A HISTÓRIA DO NARRADOR
Por
mais de um mês procurara também saber a história do tio Joaquim. Havia na
tristeza, em que o velho descaia tantas vezes, quando parecia mais alegre, razão
sobeja para me aguçar a curiosidade. Tentara interrogá-lo; mas debalde sempre.
Não
era porque o tio Joaquim deixasse de me estimar deveras.
Conhecera-me
de pequeno e tivera-me sempre por seu companheiro constante nos passeios melancólicos,
em que, após o seu pensamento, caminhava horas sem dar palavra.
Ia
com ele, calado também. Respeitava a grande dor que nessas ocasiões parecia oprimi-lo;
e não me atrevia a perturbá-lo com perguntas indiscretas, ou observações fúteis.
Pressentia,
que um padecimento grande o envelhecera bem cedo, e receava tanto mergulhar a
vista nas profundezas daquela mágoa, como trepidava sempre ao aproximar-me
de um precipício. Era o desconhecimento que me sobressaltava, o que quer que
era estranho, que me impunha respeito.
O
tio Joaquim lembrava-me um desses livros antigos de bruxedos e encantamentos,
que fechado poder-se-ia confundir aos olhos de um observador qualquer com um
ripanço de semana santa; aberto porém espavoria a imaginação povoando a com os
quadros temerosos de castelos encantados, florestas mágicas, sortilégios infernais,
feiticeiros, trasgos, almas penadas e cemitérios.
Levava-me
o desejo a folheá-lo; a dúvida afastava-me de lhe tocar.
Aventurara
perguntas tímidas em varias ocasiões; mas o velho, sem que empregasse na
resposta a natural rudeza, com que despedia os importunos triviais, afastava-me
brandamente do ponto a que eu desejava chegar.
—
Quando no jardim ou no prado colhe uma flor não cuida das profundezas onde as raízes
mergulham para a alimentar; quando tira da fonte uma pouca d'água para abrandar
a sede, não indaga por que extensões corre a veia que alimenta a fonte. Não
cuide em devassar segredos, que de pouco lhe podem importar; mas que uma vez
sabidos lhe hão de trazer desgosto. A amêndoa de muitos frutos trava, enquanto
eles são doces, aproveite-se da polpa e não queira saber do caroço.
E
assim, mudando rapidamente de assunto, evitava sempre que insistisse.
Entretanto
íamos muitas tardes para um lugar da praia, que de preferência escolhíamos por
ser mais recatado e só.
Entre
ambos havia como que uma comunhão de tristezas. Ele pelo passado, eu pelo
futuro; ele por o que já experimentara e sentira; eu porque receava
experimentar e sentir também.
Enquanto
o velho passava horas silencioso e triste a rever as paginas da sua vida, a
rememorar dores, alegrias, saudades, e amores: eu que ia conhecer o mundo, eu
que deixava de ser criança e não começara ainda a ser homem, cismava no futuro
para que caminhava, e devaneava conjecturas sobre essa vida nova, que ia
encetar. Agradava pois a ambos a solidão, e ambos procurávamos de preferência
os sítios, onde menos nos podiam inquietar os conhecidos.
A
praia da nossa predileção estendia-se desde Cabo-Ruivo e o recolhimento do
Moinho. Em frente espraiava-se o Tejo pelos juncais, que, mesmo em preamar,
erguiam os cimos arrouxados sobre as águas; detrás a costa subia quase a prumo
para os olivais do Casal das rolas.
Uma
ou outra pedra enegrecida pelo tempo, pelo quebrar das ondas, pelos limos e
pelas ostras que a revestiam destacava-se na areia da praia, ou avultava por
meio dos juncos. O rio, naquelas alturas quase sempre só, parecia não terminar
no lado oposto; porque a outra margem se confundia com o céu. De cima, como
torre de vigia de castelo antigo entrava pela água dentro o pavilhão quadrado e
de teto esguio do antigo recolhimento. Debaixo o cabo a que pela vermelhidão do
terreno tinham dado o nome de Ruivo, limitava o horizonte, e tirava a vista da
parte do rio mais cheia de navios e de animação.
Tudo
ali era silencioso, tudo infundia sentimento, tudo convidava para a meditação.
Torcendo-se
por entre os alcantis da ribanceira, escondendo-se umas vezes por detrás de
moitas de rosas carrasquinhas e de giestas, outras caminhando entre pequenas matas
de congoças, outras descobrindo-se de todo num terreno escalvado e nu, um
caminho de pé posto conduzia dos olivais à praia, e estabelecia comunicação
entre o mundo e aquele retiro. Avistávamos pois a grande distancia, quando ali estávamos,
qualquer, que do Casal descesse para a praia, e haveria por conseguinte
facilidade de mudar de conversação, sem que nos perturbassem de imprevisto.
A
meio do carreiro numa lapa gotejava da rocha a água mais pura das vizinhanças e
demorava-se num berço de relva e musgo verde como esmeralda, macio como veludo,
e que forrava a cova, que a água havia feito. Junto à fonte algumas pedras polidas
pelo roçar continuo dos cântaros das raparigas dos sítios, que ali vinham buscar
água, ofereciam um bom pouso para descansar.
Era
também ali que mais de hábito nos sentávamos. O mar diante de nós, o céu sobre
nossas cabeças, as costas dadas ao mundo, e a imaginação a perder-se no espaço.
Depois,
quando descaia a tarde, aquele silêncio perturbado apenas pelo surdo marulhar
das águas, aquelas cores sombrias do mar e do céu, aquele espetáculo do
infinito, que tanto nos confrange e oprime, e a indecisão, que nos balouça no espírito,
as dúvidas que se apoderam de nós, sobre o que seremos, sobre o que nos tornará
felizes, a luta com essa terrível e misteriosa esfinge que se chama futuro,
tudo isso me levava a um estado especial que muitos talvez tenham sentido, mas
que poucos poderão definir, em que desejava sem saber o que, em que sofria e
agradava-me o sofrimento, em que amava e debalde queria fixar o grande amor que
sentia, em que lastimava sem que pudesse explicar porque, não estar assim
sempre, não passar daí para outro mundo, outra vida, outro que quer que fosse,
para mim desconhecido, mas que me parecia fatalmente destinado para me dar a
verdadeira felicidade após a qual voava a minha imaginação apaixonada.
Estes
ataques de uma nostalgia particular traduzi-los-ia eu, se tradução pudessem
ter, como o chorar da alma infinita dentro da sua tão limitada prisão, pelos
espaços e pelos mundos infinitos donde veio, e onde deve ir um dia.
Sei,
para em duas palavras me exprimir, que sofria muito, mas que era feliz sofrendo
assim.
O
meu velho companheiro, esse, apenas ali chegava sentava-se numa das pedras,
carregava o cachimbo, feria lume, acendia o tabaco e entrava a fumar; depois o
pau com que começara a traçar arabescos no chão parava gradualmente, os braços
caiam-lhe sobre os joelhos, o cachimbo apagava-se, e os olhos cerravam-se-lhe
como se tivesse adormecido.
Quando,
passado tempo, parecia tornar a si, tinha os olhos vermelhos, o rosto abatido,
o corpo quebrado. Levantava-se com muita dificuldade e mal se podia arrastar
aos primeiros passos. Depois fazia como que um grande esforço sobre si,
compunha a fisionomia, chamava um sorriso bastante rebelde nessas ocasiões, e
tornava a ser o tio Joaquim da casa da malta e do canto da lareira.
Foi
numa dessas tardes, e na praia de Cabo Ruivo, que consegui ouvir ao velho
narrador a sua história. Andara triste todo o dia, acabara de jantar, dera
conta da obrigação e convidara-me para sair em sua companhia. Não soltara meia
palavra pelo caminho e mal chegara perto da fonte atirara consigo para uma daquelas
pedras tão desalentado, que parecia não querer mexer-se mais dali. Ficara a cismar,
como costumava; mas não seria passado ainda um quarto de hora, ao olhar para ele
vi que lhe escorregavam as lágrimas pelas faces.
—
Chora, tio Joaquim?...
—
Não repare, atalhou ele rapidamente limpando as lágrimas, como envergonhado, eu
também não reparava.
—
Anda sempre triste, e assim sem desabafar, bem pelo contrário fingindo-se
alegre quase sempre; há de padecer muito!
—
Muito! Mas não tem dúvida.
—
Diz-se que as mágoas contadas são aliviadas; porque me não dá parte das suas
tristezas?
—
Para quê? Com o andar do tempo não lhe faltarão próprias; deixe as alheias.
—
Cuida que sou alguma criança, tio Joaquim?
—
Bem sei que não é, mas...
—
Seria a maior prova de amizade que me pudesse dar. Há tanto tempo que desejo
saber a sua vida!
—
Como deseja ouvir as histórias aos serões, não é assim?
—
Não. Essas servem para passar o tempo, esta outra para o conhecer bem, e para o
poder consolar.
—
Pois seja para me conhecer, que para me consolar não, porque não pode. Hoje também,
parece-me que rebentava, se não repetisse alto o que tem sido a minha vida.
Quando conversamos conosco, a voz faz eco bem fundo na cabeça e no coração,
repercute mais e sofre dobrado. Se não tivesse vindo consigo parece-me que
entrava a falar só, para aí a essas pedras e a essas águas. Ouça-me pois, já
que tanto deseja saber a minha vida.
E
o tio Joaquim deu começo à sua história.
***
Meus
pais viviam numa das províncias do norte, e se não eram ricos tinham com que
passar menos mal. Meu irmão Filipe e eu éramos os dois únicos filhos, e o que
havia chegava bem para nós. Filipe, porque era o mais velho, devia ser lavrador
como meu pai; eu, por ser o segundo, estava destinado para frade.
Admira-se,
porque já lá vão os frades; mas se vivesse no tempo dos conventos conheceria
então, que de ordinário se destinava para ordens sacras o filho segundo em quase
todas as famílias.
Acrescia
mais que o mestre dos noviços do convento próximo, Sr. João da Solidade, era
muito de nossa casa, e depois de ter convencido minha mãe de que me fazia feliz
metendo-me a frade, lhe prometera tomar-me sob sua proteção.
Pela
minha parte, posto que ninguém me consultasse o querer, parecia me também que
viveria contente naquele sossego do convento. Via os frades gordos, satisfeitos,
corados e risonhos sempre. Traziam-me presentes e davam-me doces, faziam-me
festas, e contavam-me histórias, não me queria pois com outra gente.
Em
vendo hábito aproximava-me logo, e minha boa mãe, que a mais não
alcançava, lia nesta inclinação pueril uma verdadeira e pronunciada vocação.
Assim
fui criando-me nestas ideias, até que chegou a idade de começar a aprender. Fr.
João convenceu minha mãe, de que para o meu estudo muito melhor seria viver no
convento do que em casa, pois que ao passo que ia seguindo as disciplinas com
maior regularidade, ia costumando-me também à regra conventual.
Frei
João era para meus pais apostolo e profeta ao mesmo tempo. O que dizia
seguia-se com reflexão. Despedi-me, chorei muito e partimos.
Não
tinha tamanho desafogo em casa, que estranhasse muito a vida nova que encetava.
A companhia dos outros noviços, aqueles costumes estranhos para mim, aquela
novidade de estudos, e mesmo o bom modo, com que Fr. João me tratou sempre,
conseguiram que dentro em pouco me afizesse de todo ao recolhimento claustral.
Não
tinha por fora coisa alguma, que me atraísse, e a afeição de meus pais e irmão,
únicas de que a porta do convento me separava, não eram de ordem tal, que me
fizesse lamentar muito o haver-me apartado do mundo.
Numa
das campanhas em que entrei mais tarde ouvi contar o seguinte caso a um
veterano, que tinha ido na legião lusitana com os franceses fazer a guerra da Rússia.
Nas
noites frias e claras do norte em que a luz de umas auroras particulares às terras
daquele país resplandece nos gelos, começava a cair neve, e os pobres soldados
a caírem com ela inteiriçados e hirtos. Alguns cobravam forças, erguiam-se e
continuavam. Outros caiam, não tinham forças para se mexer e ficavam por uma
vez.
Ao
tal veterano, se lhe não acodem ainda a tempo ia sucedendo este mesmo fato.
Dizia
ele, que percebia bem que ia morrer, que cada vez se enregelava mais, e
que dentro em pouco, tinha disso a certeza, estaria de todo gelado.
Sentia
porém um que quer que era agradável naquele aproximar da morte, queria evitá-la
mas não tinha forças, e ia sentindo sumir-se-lhe a vida com aquele prazer com
que nos deixamos esvaecer após a embriaguez.
A
solidão, tive tempo para o observar, parece-se com os gelos do norte.
Entristece-nos, mas encanta-nos com a sua tristeza, sentimos que lhe devemos
fugir, e conservamo-nos entretanto, parece-nos que nos esmorece a alma e o
sentimento, mas é tão doce esse esmorecer, como a morte após um desmaio, como o
adormecer da criança nos braços maternos.
Antes
de saber o que era a vida, começava a agradar-me a morte, e sem transição
alguma, arrefeciam-me os ardores dos dezoito anos, com os frios daquelas
sepulturas de vivos a que chamavam celas, claustros e conventos.
Estudava,
aprendia, e meditava. Meditava sem saber em quê, porquanto o mundo, que eu via
pelas grades do meu quarto, e o que eu fantasiava pela leitura dos livros da
biblioteca, diferençava-se tanto do mundo real, que mais tarde vim a conhecer,
como aqueles sonhos de madrugada, que nos acodem quando não dormimos de todo e
quando não estamos acordados ainda, se distinguem da vida comum e dos acasos de
todos os dias.
Passava
horas e horas a formar castelos no ar, vagos, indefinidos, indetermináveis, e
evocando fantasmas de mundos que eu não conhecia, mas que adivinhava. Dentro em
pouco de tal forma me costumei à reflexão e ao apartamento, que fugia de todos
nas horas que tinha livres, para ir sentar-me sozinho a sonhar e a cismar.
Apontavam-me
no convento como modelo de bom porte, e diziam os frades aos meus companheiros
que o amor do estudo e da reflexão me traziam assim embevecido.
Não
lhe sei dizer, o que me preocupava, mas não era de certo o amor do estudo, nem
o desenvolver da vocação monástica, como a vaidade dos frades lhes fazia supor.
Tão entranhado estava em mim o amor da solidão, que nas raras vezes, em que ia
visitar os meus, pouco me demorava em casa. Debalde a solicitude materna me
procurava deter; em vão, meu pai mesmo, posto que pouco dado a ternuras, me
dizia que era conveniente de quando em quando descansar algum tempo; trabalho
perdido era o de meu irmão em convidar-me para os divertimentos dos outros
rapazes; mal saia do meu convento, desejava logo recolher, e estava fora da
minha cela, como o peixe fora d'água. Porque dir-lhe-ei de passagem, a estima
de Fr. João fizera com que eu residisse num quarto junto do seu, e não no dormitório
comum com os outros educandos e noviços.
Oxalá
tivesse eu ficado por uma vez naquela sepultura!
Se
não fossem as visitas a minha casa, talvez não tivesse experimentado na minha
vida o que era amor; mas também não teria comprado à custa de tormentos invisíveis
essas raras e amarguradas horas de sentir apaixonado.
Nestas
alturas da sua história o tio Joaquim limpou o suor que lhe corria a fio da
testa, curvou-se para a lapazinha próxima, tomou uma pouca d'água nas mãos,
bebeu sofregamente; renovou a respiração umas poucas de vezes com força;
carregou outra vez o cachimbo, acendeu-o e passado algum tempo prosseguiu na
sua narração.
***
Estudos
que mais me preocupavam tinham feito com que, havia muito, não fosse visitar os
meus. Devendo em breve tomar ordens de prima tonsura, este sucesso, que
fatalmente determinava a minha vida trouxera-me entretido, não poucos meses.
Finalmente dera o primeiro passo solene, e por conselho de Fr. João, parti a
congratular-me com meus pais, da conquista que alcançara: e a viver por algum
tempo a vida de família antes que de todo me apartasse do mundo.
Parti;
e com a indiferença que de mim se apoderara, desde que me haviam destinado para
o convento, passei os umbrais daquelas portas que então já eram minhas, e que
não se me poderiam cerrar mais de todo, embora quisessem.
Grandes
alegrias havia em minha casa. A minha chegada encareceu-as mais ainda. Meu
irmão estava breve para casar e a sua escolha fora tanto do agrado de meus pais,
que os bons velhos não cabendo em si de contentes não achavam mimos que lhe
parecessem bastantes para com eles cercar a esposa futura de seu filho.
Margarida
era o que em linguagem comum se chama um bom casamento.
Filha
única devia herdar de seus pais uma fortuna considerável. Os seus haveres
juntos aos bens de minha casa formariam a primeira propriedade da província.
Sorria
a opulência a meus pais e embevecia-os a contemplação de um futuro plácido e
desassombrado de cuidados.
Vi
Margarida, e ao vê-la, ao trocar com ela as primeiras palavras conheci, que
tinha no peito coração, e que me corria o sangue dos vinte anos nas veias
tremulas e agitadas.
Margarida
aproximava-se também dos vinte anos, mas toda a candura infantil fulgurava naquele
rosto, que não desabrochara ainda. Não tornei, por vida minha, a encontrar
olhos que mais dissessem ao coração, quando mesmo quase sem querer falar se volviam
serenos entre um denso véu de pestanas compridas e encurvadas. Toda a sua
formosura estava nos olhos, mas esses não cediam em primores a quantos hei
visto em mulher ou em pinturas. Fazia vontade de chorar olhar para eles, sentia
se devoção fitando-os muito. Porque não há como a mulher para nos falar do céu,
de Deus, das coisas sagradas. Se criaturas assim corressem mundo a resgatar
almas, se para os mais apartados da religião dirigissem um olhar daqueles
dizendo mágoa, entusiasmo e amor, e depois daí os volvessem ao céu como rasgar
caminho para a alma renitente, não haveria ateu que resistisse, nem coração que
se não dobrasse.
Vendo
Margarida lembrava-me do céu, lembrando-me do céu, acudia-me que professara
votos que me condenavam a um perpetuo celibato. Um círculo de espinhos me
apertava a imaginação: e padecia, como nem os condenados no inferno poderiam
padecer assim.
Com
a candura de criança Margarida reconheceu-me desde logo como seu irmão. Não
houve segredo que em mim não depositasse, esperança que me não dissesse,
planos de futuro sobre que me não ouvisse, queixumes de meu irmão, que comigo
não lastimasse.
Filipe
casava porque tinha de casar, estimava Margarida como podia estimar uma irmã ou
uma parenta, e nada mais. Margarida ao contrário não via, não supunha, que pudesse
haver homem, que valesse o seu noivo. Amava-o com a cegueira, com o
arrebatamento, com a loucura de um primeiro amor.
Não
imagina como padeci com essas confissões arrebatadas, que me denunciavam um
mundo de felicidades, que nem sequer entrevera. Não imagina que dor tão funda
me ia direita ao coração, quando ela animada por aquele amor que a aquecia e
transformava, olhando-me, com as suas mãos nas minhas, com o seu hálito a
confundir-se com o meu, transfundia-me a eletricidade que irradiava, e
descrevia-me o amor que lhe chamejava na alma.
Deixava-a
como louco e ia, quantas vezes sozinho, de noite, correr por aqueles
descampados, andar muito sem saber por onde, cansar o corpo para descansar o espírito,
e para depois, cedendo à fadiga, poder cerrar os olhos por algumas horas e
tentar um sono mais atribulado mesmo do que fora a própria vigília.
Envelheci
muito naqueles dias que duraram até ao casamento de meu irmão. Via aproximar-se
a época e não acreditava, não sei que louca esperança, não sei que desvario me
dizia que tal casamento se não chegava a realizar. Parecia-me um sacrilégio,
que tanto amor fosse empregado em tanta indiferença, parecia-me impossível que
Deus consentisse em tal.
Sacrilégio
era o meu amor, sacrilégio duas vezes, por que era de padre e porque era por
uma irmã.
Pelo
modo como o tio Joaquim narrava a sua história conhecia eu quanto ele teria
padecido, e bem conforme ao que dissera antes de começar, pressentia que outros
tormentos deveria haver maiores do que as minhas dúvidas e incertezas
sobre o futuro, do que os meus sonhos e aspirações.
Chegou
entretanto o dia, prosseguiu o velho, e não sem que a estrada dolorosa tivesse
sido para mim bem cheia de agonias e de provações. Margarida não suspeitou
nunca quanto eu a amava, nem sob o gelo aparente, em que a tanto custo me
sepultava, pôde perceber os ardentes lumes de um amor desvairado. Ocasiões
houve em que rasgava o peito com as unhas até fazer sangue, em que tremia em
convulsões para resistir, em que me esforçava com sobre-humano ímpeto para não
desatar em soluços; outras em que tive de fugir para evitar a sua presença,
porque já não podia lutar com o impulso que me arrojava para os seus pés a
dizer-lhe quanto a amava.
E
tive de assistir impassível a todos aqueles pormenores, que me falavam da
felicidade futura de ambos, tive de escutar as singelas narrações de Margarida
sobre todas essas minuciosidades, que me retumbavam na cabeça com estridor horrível,
porque em todas elas descortinava, ou pretextos para uma carícia, ou cômodos
para um transporte, ou lugar finalmente para aqueles doces e para mim
desconhecidos mistérios do tálamo nupcial.
Os
primeiros clarões da alvorada no dia do casamento, encontraram-me acordado
ainda. Na véspera mesmo não acreditava que pudesse chegar: via raiar a manhã e
cuidava estar sonhando. Pois Margarida havia de casar!
Minha
família, sem compreender nem de leve, porque não recata mais cuidadosamente a
abelha os seus lavores do que eu escondera de todos e de tudo o meu insensato
amor, minha família, digo, só experimentava uma pena: não ser eu quem casasse
meus irmãos, porque a minha benção, cuidavam os crédulos pais, havia de
forçosamente atrair felicidades sobre os esposos.
Na
verdade seria o último sacrifício, depois do qual poderia dizer a Cristo: também
sei o que é o Gólgota!
Pareceu-me
tudo um pesadelo, persuadi-me que acordaria breve de tão cruel ilusão. Vi,
ouvi, falei, dirigiram-me perguntas, tornei respostas, e não soube nem sei
ainda o que vi, o que ouvi, o que me perguntaram e como respondi. Dizem que
pessoas há que dormindo andam e falam, assim devia ser o estado em que estive
todo o dia.
Mal
pôde fugir à noite, corri, corri, e quando me vi bem longe, desatei a chorar
como me não lembrava em minha vida de ter chorado assim. Parecia que me estalava
a alma naqueles soluços, mas ao correr das lágrimas um grande peso saia de
sobre mim. Não sei como, mas chorando sempre achei-me de repente diante das
janelas do quarto de Filipe. Estavam iluminadas, fitei-as com o pavor com que
daria de rosto com a entrada do inferno; vi passar dois vultos por dentro das
vidraças, reconheci-os e com a razão de todo perdida atirei comigo a terra,
agarrei com ambas as mãos a cabeça, e comecei a bater com a testa, como
desesperado de encontro ao chão.
Com
a força da dor perdi os sentidos e para ali fiquei banhado em sangue, até que
os raios do sol, já bem alto, me fizeram tornar em mim. Olhei maquinalmente
para a janela. Estava cerrada ainda; senti nova vertigem mas dessa vez, sem me
lembrar que ia banhado em sangue deitei a correr, o mais rápido que podia, em
direção do meu convento.
Disse
que uma queda no caminho me fizera o sangue que trazia, e facilmente me
acreditaram. A verdade, se o dissesse, é que fora para duvidar.
Encerrei-me
na minha cela, pretextei uma doença para não sair e pedi ao meu bom mestre, que
me ouvisse de confissão. Contei-lhe a minha história, tal como se passara nesses
dias e pedi-lhe que me acudisse, pois que não sabia de mim. Ouviu-me o
santo velho com lágrimas nos olhos, depois:
—
"Deus me perdoe se errei, disse-me, e mais ainda se fiz a tua
infelicidade, Joaquim, chamando-te para o serviço do Senhor. Mas era impossível
que assim não fosse. Há homens condenados fatalmente pela desgraça, e tu és um deles.
Lê-se no rosto esse infeliz condão, adivinhei-to eu, que também sei o que é
padecer.
Para
dores como a tua, para outras bem maiores ainda, se fizeram as solidões dos
claustros e o gelo destes vastos carneiros. Sepulta para aí a tua alma, enquanto
não te sepultam o corpo, sob essas lajes que hoje calcas, e morre já que foste
condenado a não viver. Não julgues cruel esta linguagem, é a que te pode falar
um amigo, quase um pai. — O que somos nós outros, pobres frades, neste mundo?
Fantasmas erradios que arrastamos a mortalha em vida, arrebentos solitários,
que medramos entre pedras. Para nós não há família, não há esposa, não há filhos,
tudo que é morre conosco, nada deixamos neste mundo, que se lembre de que
vivemos.
Mais
um número numa pedra, um nome no livro do registro, alguns ossos mais numa
cova. Torna impenetrável o teu tumulo, calafata com o maior cuidado qualquer orifício
por mais pequeno que seja, que dê para o exterior, e já que nada podemos ter
com o mundo aparta-te dele de todo.
Já
que não podes ser feliz esquece, já que não podes gozar, não sintas."
Segui
à risca o seu conselho. Graças à sua proteção deixaram me na minha cela, mesmo
porque, segundo dizia, assim me preparava pelo estudo e pela meditação para
ordens maiores. Passou um ano. Trabalhei, estudei muito e como disse Fr. João
da Solidade, se não fui feliz, não senti; não me lembrei e não padeci.
***
O
reinado de D. Miguel aproximava-se da sua terminação, e a tempestade, que se
formara numa pequena ilha no meio do oceano, rebentara já sobre todo o país.
Armava-se
a nação em peso; guerrilhas de um e outro partido percorriam as povoações e
juntavam aos horrores da guerra civil o assassinato, o roubo, o incêndio, o
forçamento e o sacrilégio.
Bem
esmorecido era o eco, que na minha cela repercutia; mas ainda assim por ele
avaliava das borrascas, que se desencadeavam fora. Por quanto ainda que
procurasse apartar-me das coisas deste mundo, por tal forma andavam todos preocupados
com os acontecimentos, que se iam sucedendo uns após outros com rapidez incrível,
que era impossível deixar de perceber, que havia graves casos, a atribularem a
humanidade.
Falaram-me
de combates, de mortes, de incêndios, de devastações; mas tal eu estava, que me
era tudo indiferente. Antes, porém, ocasiões havia em que, confesso-lho,
desejava que um terremoto subvertesse o mundo para que na geral destruição
encontrasse vingança correspondente ao que me haviam feito padecer.
Acordei
das minhas meditações uma noite, ao rebate dos sinos da povoação próxima e
ao dobrar sinistro e precipitado da campa do nosso convento. Ruídos desusados ecoavam
por aquelas abobadas, passos de quem fugia, vozes de quem pedia socorro, suplicas,
choros, imprecações tudo se misturava e confundia.
Estava
para me levantar do estudo e para saber a causa de semelhante alvoroto; quando
a figura majestosa de Fr. João da Solidade me apareceu à porta da cela aberta
de par em par.
—
Ergue-te, Joaquim, disse-me, toma as tuas sandálias e o teu bordão de viajante
e caminha!
Aquela
voz fora de horas, aquelas palavras solenes produziram-me efeito não inferior
ao que deverá produzir a trombeta final no Vale de Josafá.
—
Que quer de mim, meu pai?
—
Acabaram-se os dias de paz, chegaram as horas das provações e da luta. Os
servos do Senhor são perseguidos de terra em terra como animais ferozes em
montaria. Os ímpios não respeitam nem as abobadas sagradas, nem os vasos da eucaristia.
Mesmo com a hóstia sacrossanta na mão será o padre perseguido se assim o
encontrarem!
A
espada de Malco substitui a palavra de amor. Volta a igreja aos tempos da
perseguição e do martírio; segue-nos, Joaquim, as águas do dilúvio avançam cada
vez mais.
Fr.
João estava profundamente impressionado. A paixão política ateava-lhe o zelo
religioso, o homem do século trazia para junto dos altares as suas afeições
mundanas, e das crenças fazia evangelhos. Pela minha parte, quase que o não
compreendia. A linguagem enfática, que estava empregando, destoava muito da
singeleza em que educara o meu espírito reflexivo e concentrado. Fr. João com o
olhar chamejante, o gesto altivo, o rosto iluminado por um entusiasmo mais
guerreiro do que apostólico, lembrava-me um daqueles monges pregadores de eras
afastadas, que a minha imaginação tivesse feito surgir dos livros abertos diante
de mim, e que de espada na mão direita, e crucifixo na esquerda, queriam abrir
o caminho da redenção com o ferro destruidor, através das hostes dos infiéis.
—
Mas, meu pai, que aconteceu?
—
Aconteceu, que os exércitos invasores se aproximam talando campos e povoações;
aconteceu, que na sua marcha amaldiçoada não há propriedade que resista, cabelos
brancos que se respeitem, honra de mulher que se recate; aconteceu que aos que
cedem, espoliam; aos que não cedem, assassinam; aconteceu, que falam em
levantar mão sacrílega contra as muralhas defesas a profanos deste venerando
templo. Os fariseus em motim pedem o sangue dos justos. Deixemos a habitação de
paz, donde nos expulsa a malevolência dos ímpios, e vamos, como os apóstolos,
de terra em terra, de monte em monte, de caverna em caverna, onde suas vozes
não cheguem, onde seu braço não alcance, levantar sobre a pedra tosca e rude a
cruz do sacrifício, a hóstia da redenção. Vem conosco filho, vem percorrer o
teu Getsemani.
Entretanto
o sino grande continuava a dobrar com som soturno, os gritos da povoação desperta
em sobressalto, os passos precipitados dos frades, que desamparavam, gemendo,
as celas em que haviam vivido por tanto tempo, e onde esperavam descansar para
sempre, o som ameaçador e irregular de um tiroteio ao longe, davam àquela cena
um caráter que impressionava profundamente. Pela minha parte, parecia-me que um
novo pesadelo me vinha cortar a sonolência em que demorava havia tanto;
resistia ao movimento e prostrado de ânimo e de corpo, preferia que me matassem
naqueles lugares a ir tentar nova sorte, nesse mundo a que tinha tão grande
horror.
Fr.
João, que nos momentos solenes parecia transformar-se, aproximou-se de mim,
tomou-me por um braço, fez levantar-me contra minha vontade, e bradou-me
com voz terrível:
—
Serás tão ingrato, que desampares teus irmãos no momento do perigo? Aqueceria eu
por ventura a serpente no meu seio? — Seria a prova mais cruel, porque te quero
como filho; mas bem merecido castigo, por ter deposto a minha ternura nessa vil
argila. Fica-te para aí, e fique a minha maldição contigo.
E
com tanta força me abalou, que me ia lançando por terra. Firmei-me porém, e
respondi-lhe:
—
Não, meu pai, não sou ingrato. Segui-lo-ei como a sombra segue o corpo, como a
alma segue o pensamento. Era o aspecto do mundo que me espavoria; voltara tão
mal ferido do combate, que não seria para estranhar que vacilasse agora antes
de vestir de novo as armas. Sabe meu pai, que me não arreceio nem da morte nem
das provações; mas sabe também quanto me custa ir fitar de novo essa gente, que
tão grandes males me causou. Eis porque hesitava. Aqui me tem pronto para tudo,
e creia que me não apartarei do seu lado.
O
velho estendeu-me os braços, e com as lágrimas nos olhos:
—
Sempre o acreditei assim, meu filho: abracemo-nos, que talvez seja esta a última
vez. Agora a caminho! Vamos reunir-nos a nossos irmãos e infundir-lhes a
coragem, que nos falece. Irmão, filho; meu filho, ânimo.
Como
um rebanho de ovelhas, que ao pressentir o lobo se reúnem em mó, e se apertam
tanto, como se umas quisessem entrar nas outras; assim os frades se apinhavam
junto às portas do convento, espavoridos, trêmulos, espalhando vistas aterradas
para todos os lados, e escutando os pavorosos sons de alarme, que estrugiam os
ares.
Fr.
João da Solidade assumira na comunidade a preponderância, que a inteligência
forte e arrojada exerce sempre numa corporação naturalmente tímida e
indecisa. A sua presença serenou por um pouco os ânimos.
Procurando
dar à voz uma entoação firme, cuidou o velho em confortar os seus companheiros
naquele extremo lance, com esperanças de melhor futuro; em que ele acreditava
menos do que ninguém.
As
últimas palavras porém, foram cobertas pelos clamores de vitória, pelos gritos
de angustia e pelos tiros de espingarda, cujos sons misturados e confundidos
pareciam precipitarem-se sobre nós em turbilhões e redemoinhos como o vento da
tempestade.
Os
religiosos estremeceram, e pensaram em fugir cada um por seu lado, a voz de Fr.
João mais fortalecida e mais segura, tal era o poder da vontade naquela alma de
ferro, alentou-os por momentos; entretanto os clarões do incêndio tingiam de
vermelho o céu e o rasto do fogo anunciava a aproximação dos guerrilhas.
Em
pouco avistaram-se no cimo de um monte próximo os inimigos, diante dos quais fugiam
em debandada alguns milicianos da terra, que por momentos tinham pensado em
bater-se. Um grito uníssono partiu da boca das crianças e das mulheres, ao
verem aproximar-se aqueles homens sem piedade, ávidos de sangue e de extermínio;
os frades transidos de medo entoaram, erguendo os braços aos céus em sinal de
entranhada angustia, o salmo dos agonizantes.
As
primeiras palavras denunciaram aos guerrilheiros a nossa presença; ouvimo-los
distintamente clamar: — a eles, aos mandriões dos frades,— e apontaram as
espingardas.
Ao
vê-los fazer pontaria Fr. João exclamou rápido:
—
Por terra, prostremos-nos, irmãos, senão estamos perdidos! Os frades obedeceram
imediatamente; o susto mesmo deitava-os no chão; os tiros partiram; mas as
balas silvaram por cima das nossas cabeças, e uma só feriu um dos religiosos,
que tinha ficado mais distante.
Passada
a descarga ergueram-se todos, e como bando de pombas a que atirou o caçador,
deitaram a fugir em diversas direções, caindo, erguendo-se, de rastos,
gritando, gemendo, mas correndo quanto podiam.
Junto
às portas do convento desamparado, só ficávamos, depois da primeira descarga
dos guerrilheiros, Fr. João da Solidade e eu.
***
Entrados
apenas na povoação, começaram os guerrilheiros a saquear e a devastar tudo. Do lugar,
em que estávamos, podia-se conhecer de seus movimentos pelo vaguear dos archotes,
pelo soltar de gritos aflitivos, e pelas colunas de fumo, que se enovelavam
aqui e além, sobre os telhados das habitações a que lançavam fogo, quando a
preza os não satisfazia.
A
lembrança de Margarida, que não me tinha desamparado nunca, confesso-lho, nem
mesmo quando mais fervorosas suplicas levantava ao céu, acudiu-me ao
pensamento.
—
Meu pai, exclamei, fujamos, antes que caiam sobre o convento e nos surpreendam
aqui; sigamos pela estrada, que vai por fora da povoação, e vejamos se podemos,
esta noite ainda, chegar a nossa casa, avisaremos depois sobre o que temos que
fazer.
—
Vamos, filho, e o Senhor se compadeça de nós.
Não
era o amor à vida que me apartava daqueles lugares. Por minha vontade ficaria
sepultado sob as ruínas do convento e fizera da minha cela um sepulcro. Mas a
essas horas quem sabe o que seria de Margarida! Tremia só de o pensar, e o
quadro que tinha ante os olhos mais me apavorava ainda; porque daí concluía
dos horrores, que ela poderia ter presenciado, se é que deles não tivesse sido
vitima.
Não
imagina nem por sombras o que seja uma guerra civil. Por muito que lhe contem,
tudo fica muito abaixo da realidade. Aquela porém era guerra de extermínio.
Desencadeavam-se
ódios, que estavam em incubação, havia dezenas de anos. Agrediam-se vizinhos,
parentes, amigos e irmãos, e agrediam-se tanto mais cruelmente, quanto melhor
sabiam, onde haviam de ferir. Não poupavam ninguém, não havia recanto que
valesse, não havia esconderijo que salvasse, não havia nem idade, nem sexo, que
pusessem a coberto do insulto, da afronta, da violência, tanto mais cruéis
quanto partiam dos que dois dias antes comiam à mesma mesa, e bebiam no mesmo
copo.
Ao
romper da manhã estávamos diante da casa de meu pai. Tinham-me preparado para terríveis
surpresas as cenas, que presenciara pelo caminho; o que vi, porém, sobrelevou
muito ao que eu esperava.
Tudo
em terra, tudo saqueado, tudo roubado, e os cadáveres de meu pobre pai e de
minha velha mãe a meio da casa, crivados de feridas...
As
lágrimas sufocaram o velho narrador, que teve de descansar por momentos antes
de poder prosseguir.
—
Descanse, tio Joaquim, disse-lhe já quase arrependido da minha indiscreta
curiosidade, não continue, custa-lhe tanto... Outra vez me contará o resto.
—
Não, para quê? Tem de ser. Não é o contar que custa, é lembrar; e raras vezes
me esqueço. Isto já passa, um momento de descanso e continuo.
Tinham
entrado em casa, e dado rigorosa busca para encontrarem os tesouros; que,
segundo era fama na terra, havia em casa. Desesperados por não acharem o que
esperavam, voltaram-se contra os dois velhos, que por mais que quisessem não os
podiam satisfazer; por quanto apenas havia começado a guerra tinham escondido noutra
parte o seu dinheiro.
Não
lhe acreditaram nos juramentos, e mataram-nos barbaramente para se vingarem das
suas negativas.
—
E Margarida?
—
Havia dias que partira para uma fazenda dali distante em companhia de meu
irmão, salvara-se da morte, e da desonra.
—
Pois quê?...
—
A tudo se atreviam aqueles homens implacáveis. Não havia barreira que se lhe pusesse
diante, nem consideração, que os demovesse, pareciam furiosos.
Pela
convivência soube o que eram esses desalmados, a quem o amor da pátria servia
de pretexto, e o amor da rapina estimulava unicamente.
—
Pois o tio Joaquim?...
—
Fui guerrilheiro também. A vista dos cadáveres de meus pais operou em mim uma
revolução pavorosa. Tive sede de sangue, de destruição, de vingança. Enterrei
os dois velhos sem derramar uma só lágrima. A febre do extermínio requeimava-me
por dentro, cravei uma cruz sobre a cova onde ficaram, unidos como o haviam
sido sempre, e jurei que não descansaria enquanto tivesse forças para uma
espingarda.
Fr.
João, que era perseguido também como lobo, porque todos o conheciam, juntou-se
comigo; reunimos os mais enfurecidos do lugar, agravamos as feridas dos que
mais haviam padecido, e levantamos uma guerrilha das mais afamadas naqueles
tempos, e bem conhecida pelo nome de — guerrilha do frade.
Lutamos,
lutamos com encarniçamento sem igual, e parecia que as forças se nos aumentavam
com a luta. Andei naquela vida errante perto de um mês, sem dormir uma noite sono
que aproveitasse, sem ter duas horas de descanso, sem ter um momento sequer
para pensar no passado, ou no futuro.
Seguiam-se
os combates, as emboscadas, as fugas, os ataques, sem descontinuarem, sem
interrupção alguma. Era preciso homens de ferro para aquela vida, e
entretanto, de tal forma o furor nos trazia incendidos, que ao cabo do mês parecia
que mal havíamos começado.
Um
dia ao amanhecer, um dos nossos, que andava por fora veio avisar-nos de que
outra guerrilha se aproximava, da qual se contavam proezas inauditas.
Esperamo-la
e saímos-lhe a caminho, desejosos de nos medir com esses tão celebrados
inimigos.
Durou
quatro horas o fogo, batemo-nos como desesperados de parte a parte, até que
fugiram em debandada, deixando o campo juncado de cadáveres. Dos nossos a perda
fora considerável também, e Fr. João agonizava com uma bala nos pulmões.
Saia-lhe da boca sangue e espuma, soluçava que fazia horror ouvi-lo, e
expirou-me nos braços, procurando debalde articular algumas palavras.
Corremos
a revistar os mortos que os contrários haviam deixado insepultos. Entre os cadáveres
reconheci meu irmão!...
***
Estava
castigado do que havia feito como guerrilheiro; a minha campanha estava concluída.
Tinha corrido às armas para vingar a morte de meus pais, e arrojava a
espingarda homicida diante do cadáver de meu irmão.
Triste
período da minha vida, entre duas sepulturas; e sepulturas dos meus mais próximos
parentes!
A
guerra estava a acabar.
Tinha-se
assinado a convenção de Évora-Monte, por toda a parte os vencidos depunham as
armas, e procuravam salvar-se das represálias pela fuga, ou pelo homizio.
Caminhei
sem saber como, nem por onde, para fugir ao ensanguentado espectro de meu
irmão, que parecia perseguir-me, trazendo após si as vitimas de quantos haviam
perecido aos nossos tiros; os meus companheiros tresmalharam-se em diversas
direções. Separamo-nos, como nos havíamos reunido, sem pena nem saudades.
Apesar de termos vivido tanto tempo juntos, quase que nem nos conhecíamos.
À
noite entrei na povoação.
Bati
a uma casa, que, semelhante a sentinela perdida, estava mais afastada das
outras. Abriram-me a porta, soltaram um grito ao ver-me: eu ia dando no
chão. Reconheci Margarida.
—
E Filipe?
Pareceu-me
que assim devera ser a voz do Senhor, quando bradou ao primeiro fratricida:
—
Caim, que fizeste de teu irmão Abel?
Não
tive forças para negar, exclamei-lhe em resposta:
—
Morto!
E
desatei a soluçar, escondendo o rosto entre as mãos.
À
minha vista parecia ter adivinhado tudo com essa lucidez, que dá o sentimento.
Eu não pudera resistir à voz da consciência, que parecia acusar-me pela boca de
Margarida.
A
desgraçada viúva caiu fulminada. Quando tornou a si tinha enlouquecido.
Aquele
viver de sustos e de inquietações constantes de tal forma lhe haviam excitado o
espírito, que um golpe tão profundo assim rápido, quase inesperado, achou-a sem
forças para o aguentar. Ao menos deixava de padecer.
Durou
alguns meses ainda. E tudo quanto até então eu tinha experimentado, poderia
dizer se brinco de crianças comparado aos tormentos que aturei durante esses meses.
Não
soube nunca onde meus pais tinham escondido os seus bens. Estávamos pobres, e
Margarida, que se definhava a olhos vistos, reclamava cuidados e despesas que
me obrigaram a vender quanto possuía, e a trabalhar de noite e de dia para
acudir à pobre enferma.
Amara
Margarida com toda a veemência do primeiro e último amor. A paixão mais enérgica
do homem, a que o arroja às maiores empresas, ou o precipita até às ações mais
vis, tinha rebentado em mim com toda a força ao ver aquela santa e boa
rapariga.
Aprendera
com ela o que era amor, e sofrera tanto mais, quanto via que era por outro
que ela experimentava sentimento igual ao meu. Agora, porém, tinha-a a meu lado
sempre; mas como morta ou pior ainda, porque horrorizavam e arrefeciam mais
aqueles transportes de loucura, do que os gelos e o pavor da sepultura. Ouvi-a
de noite e de dia chamar por um nome que não era o meu, e cada vez que lho
ouvia, parecia que com ele, daquela boca pela qual para que desabrochasse em
algumas palavras de amor, eu dera a vida, saía uma acusação, um anátema contra
mim.
O
nome do meu rival, de quem me não podia vingar porque estava morto, esse nome
que ouvia a todos os momentos, era o de meu irmão, morto pelos meus, talvez por
mim; e eu vivia para que Margarida me recordasse a todos os momentos: a mesma
bala que cometera um fratricídio, enlouquecera a única mulher que havia amado.
Adivinha
o resto; nem mesmo eu teria forças para continuar por muito tempo.
Margarida
morreu. Eu estava só, sem meios, cercado de terríveis recordações. Fugi a esse
mundo de pavorosos espectros, e vim por aí abaixo procurar no trabalho o
esquecimento. Tenho trabalhado; mas não pôde esquecer ainda!...
***
O
tio Joaquim acabara de falar e parecia ouvi-lo ainda. Tinham ficado ressoando-me
as suas palavras, como a pancada do sino depois de tangido, e que por
muito tempo vai abalando o espaço.
Já
de muito anoitecera. Com a noite começara a carregar-se o céu, a encapelar-se o
mar, a desencadear-se o vento. Rugia a tempestade, quando o velho concluiu. O
ribombo do trovão abafou-lhe as últimas palavras. A natureza parecera querer acrescentar
um coro majestoso àquela eloquente manifestação.
Lancei
os olhos em roda; levantei-me, dei o braço ao narrador, e começamos a descer
pela encosta com extrema dificuldade, porque já fazia muito escuro.
O
tio Joaquim não dava por coisa alguma, deixava conduzir-se como uma criança.
Não parecia deste mundo.
Ao
voltar para uma azinhaga que no fim da praia cortava para a estrada, volvi os
olhos para o mar, que cada vez se embravecia mais, e vi à luz de um relâmpago o
sítio, onde sentado havia pouco, tinha ouvido a história do velho.
Comparei
aquelas duas tempestades: a que ribombava surdamente na alma do velho, e a que
estalava nos ares levantando em escarcéus a água do mar, e varrendo a terra com
o furioso soprar do furacão.
Quanto
era superior o padecimento do velho! — E entretanto dali a poucas horas a
natureza descansava daquela convulsão violenta; mas o tio Joaquim continuava a
padecer, suspirando pela tardia hora do repouso.
Só
a natureza pode descansar porque é imortal; para o homem o descanso chega,
apenas, quando lhe começa a imortalidade.
Finalmente
o tio Joaquim também descansou.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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