3/07/2023

Rondas Noturnas (Poesia), de Mário Pederneiras


RONDAS NOTURNAS



SONO

Alma contemplativa
Que ao Bem-Estar e à sugestão disponho,
Esta fecunda Noite sugestiva
Leva rumo do Sonho.

Alma! Segue-a também que este caminho
Onde florescem risos e lisonjas,
É mais branco talvez que o próprio linho
Que veste as Noivas e amor talha as Monjas.

O luminoso traço dos Luares
Segue, isolada, em cismas e abandono..
Deixa lá-baixo o rumo dos Pesares
E os caminhos imáculos do Sono.

Deixa lá-baixo a agitação da Vila
No seu penoso e másculo trabalho...
Faz-te velha e tranquila
À nostalgia deste Céu grisalho.

Vamos por ela em fora caminhando
Enquanto a Lua leve a Esfera invade,
Serena e lenta levantando
O penetrante pólen da saudade.

Vamos por ela em fora
Gozando a Paz e esta feição de Aldeia,
Enquanto a Noite monacal dessora
Os Santos Óleos de uma Lua Cheia

Sob o palor da Luz alva e quimérica
Como que a Vida — neste trecho franco —
Dorme um Sono letal de Monja histérica
Amortalhada em branco

Pela Amplidão deserta
Sem uma Sombra que o seu brilho afoite.
Anda uma Lua branca em ronda, alerta,
Pelo vácuo da Noite.

Lá nas Alturas límpidas te encerras
— Alva Núncia da Dor meiga e clemente —
E d'alto encobres o vigor das Terras
Da tua doce palidez doente.

Por esta Noite d'alvos tons polares,
Calma seguindo pelos Céus — semelhas
A Alma de um Crente em rumo dos Altares
Por caminho de Noivas e de Ovelhas.

És Tu que um campo calmo e desolado
Tornas sereno e casto
E vasto
Como um Passado.

Sob a calma infinita
Dos teus honestos, pálidos clarões,
N'alma se agita
A turbamulta das Recordações.

Tudo esmorece
À tua luz monástica e sombria
E a Terra assim parece
O longo vale da Melancolia.

És Tu que envolta nessa luz querida,
Feliz, meiga e campônia,
Lentos nos leva para o Sul da vida
Pela Estrada da insônia.

E enquanto de Sonhos ávida
A Alma reclama e treme em sobressalto,
Pairas em constelado Sonho impávida
Lá-Alto.
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Aqui — por onde em Pasmo e Assomo
Toda a tristeza das Alturas sondas,
Chega o rumor da vida apenas — como
Leve remanso embalador das Ondas.

E vai crescendo empós... Vem mais pesado,
Chega de lá — de onde o luar acaba —
E repercute pelo descampado
Num barulho de Sonho que desaba.

Por mais que a Noite em calma se dilate
Hás de ouvi-lo sempre. Escuta;
É o Mundo que clama e que se bate
Eternamente em Luta.

E enquanto aqui a Alma deserta
Na réstia branca dá Ilusão enfaixo —
A vida em lutas e clamor desperta
Lá-Baixo.

Ouve-a de longe, desta Noite casta,
Serena e mansa, mística, isolada,
Que pausa e lenta e mórbida se arrasta
Toda de branco de Luar noivada.

Ouve-a daqui, deste isolado abrigo,
Amplo e clemente,
Onde um Luar amigo
Põe calmas de Olhos de convalescente.

Ouve-a daqui, destas alfombras,
Cheias de olor selvático de mata,
Onde o crivo das Sombras
Parece aberto em lâminas de prata.

Que esse clamor d'estranhas cenas
Que este silêncio torna triste e torvo,
Aqui chegando te pareça apenas
O pressago rumor de Asas de Corvo.

Que esse rumor se eleve e cresça,
Aumente embora e cresça grão a grão,
Mas que daqui apenas te pareça
Um Sonho mau.

E enquanto em Sonhos ávida
A alma reclama e treme em sobressalto,
Paires — em constelado Sonho impávida
Lá-Alto.

 

PÓRTICO DA INSÔNIA

Embora o Sol em flavas flamas arda,
Quente enrubesça a Terra e queime o Trigo,
Logo que chega a Noite e a Luz encarda,
Abres à Vida o teu honesto abrigo.

É lá que empós as Glórias e o Perigo
A Alma repousa — se o carinho tarda —
Velada apenas desse Olhar amigo
E da ronda cristã de Anjos da Guarda.

Companheiro do Tédio e do Cansaço
Surges sereno e vagaroso abrindo
Um carinho de sombras pelo Espaço.

A Alma repousa envolta em denso Véu,
Esquecida do mundo atroz — fruindo
A Saudade nostálgica do Céu.

 

SONHO

Da tua branca e solitária Ermida
Por caminhos de Céu que a Lua esmalta —
Desces — banhada dessa Luz cobalta —
O linho d'Asa abrindo sobre a Vida.

Nada teu Passo calmo sobressalta
E quando a Mágoa as Almas intimida
Das Ilusões a turba renascida
Em ronda espalhas pela Noite alta.

E a claridade que se faz é tanta
Que logo a Terra fica cheia dessa
Sonora e estranha Luz que alegra e canta.

E iluminada de um Luar de Outono
A Alma feliz e impávida atravessa
A vasta e longa escuridão do Sono.

 

PESADELO

Em pesado rumor que entristece e apavora
Rolas em Temporal pela Noite da Esfera,
Oh! Sátiro senil, que a Luxúria descora
E o palor invernal das Insônias macera.

As mortas Ilusões, a Ventura de outrora
Tudo o que a Vida ilude e que o Sono exagera,
Tu despertas em Dor que agoniza e que chora
Pela Estrada feral que vai ter à Quimera.

Velho, macabro Clown em sátira figura
Engonçado ofegando em eterno Cansaço
E eterno a debater-se em eterna Tortura.

O rumor animal do teu fôlego aos sorvos
Lembra à Noite, em Pavor, aflando pelo Espaço,
O pesado oscilar da Asa agoura dos Corvos.

 

INSÔNIA

Intermináveis Campos desolados
Por Noites brancas de Luares quentes,
Ecos d'estranhos cânticos dolentes
Por bocas de infelizes soluçados,

Ressurreições de Dores e Pecados
De velhos tristes corações doentes,
Longas Mágoas que dormem penitentes
Envolta na neblina dos Passados.

Tudo revives e renovas — tudo —
Nessa longa Tristeza que dessora
O teu Olhar petrificado e mudo.

E à Alma para que essa Mágoa açoite
Deixas apenas este Céu de Aurora
E a impenetrável Solidão da Noite.

 

MELANCOLIA

Sob a meiga feição que nos conforta
Da velhice feliz destes Luares,
Sonoro um Sino plange e est’hora morta
Abre em Saudade Roxa pelos Ares.

E logo a Mágoa que este som comporta
Invade os Céus, oscila sobre os Mares,
E a Terra como que feliz suporta
O mais triste de todos os Pesares.

Nem uma sombra neste Céu — nem uma
E deste Eirado nem um som se evola;
Neste vale não afla uma só pluma...

Por esta Noite d'alvos tons tristonhos
Em pesado tropel apenas rola
Toda a confusa legião dos Sonhos.

 

PRECE

Abrindo rumo pelas nebulosas
Longas Estradas onde a Mágoa impera,
Seguem contigo as Almas piedosas
Para a serena quietação da Esfera.

E logo as velhas Amplidões brumosas
— Que alvo Palor monástico macera —
Tremem em longas vibrações ruidosas
Num delírio de Sonhos e Quimera.

Canta em tudo uma Luz clara e sem áscua
Que a Alma em branco e recolhida alaga
De alegrias católicas de Páscoa.

E pela Noite longa que adormece
Vago e leve grilar de Estrelas — vaga
Simbolizando o ritmo da Prece.

 


Em cruz por sobre o peito os alvos braços.
Sangrando a Carne, a cabeleira solta,
Caminhas triunfal pelos Espaços
Nas longas Alvas do Martírio envolta.

Sobes da Terra! Em grita e desenvolta
Clama a Teus Pés a turba dos devassos
E freme em leve oscilarão revolta
A Luz honesta que te aclara os passos.

Surgem muralhas e muralhas tombam,
Rebenta a Guerra era torno a Ti rugindo,
Teus frágeis pulsos os grilhões arrombam.

Sobes em Glória imaculada, exangue,
Ungindo a Vida e os Corações ungindo
Dos Santos-Óleos do teu próprio Sangue.

 

ESPERANÇA

Irmã do Sonho e Noiva da Agonia,
De Olhares baços, do palor dos Lírios,
Eternamente em lenta Romaria
Por caminhos de Mágoas e Martírios.

Onde solucem Dores e Delírios
E a Crença tombe inanimada e fria,
Hão de os teus Olhos acender os Círios
Do consolo final de uma Alegria.

Vive conosco, vive eternamente
Em misérias de Vida, ou Vida rica,
Todo o Carinho desse Olhar de crente.

Mortas da Vida as claridades frouxas
Tombas e a Terra em que tu rolas — fica
Toda coberta de Saudades Roxas.

 

CARIDADE

Vinda de longe Terra promissora,
Que eterna Lua mística ilumina,
Pela Estrada da Vida peregrina
Essa andrajosa de Cabeça loura.

Atro Destino o seu vagar agoura
Mas nos Seus Olhos que o Pesar neblina,
Brilha em farol toda essa Luz divina
Que a própria Terra que ela palma— doura.

Almas Aflitas nos seus Olhos pensam
E sobre o Pobre a sua Sombra amada
Pousa em carinhos batismais de Benção:

Dourada d'ouro dos trigais em messe,
Segue rumo dos Céus, resplendorada
De exalos brancos de Saudade e Prece.

 

SAUDADES

Longo bando de Monjas maceradas
Pelo palor vernal das Agonias,
Que nascem ao luar das Invernias
E vivem no silêncio das Estradas.

Por longas Alvas monacais veladas,
Fofas e frouxas, flácidas e frias,
Macabram sombras trôpegas, esguias.
Movimentando o engonço das ossadas.

A ritmar-lhes o vagar parece
Que às Luzes brancas do Luar e neves
Vaga um tono de Dobres e de Prece.

Seguem rumo dos Céus farandulando
Flácidas, alvas, céleres e leves,
Como um bando de Tísicas noivando.

 

MAR

Azul e calmo — lembras a Saudade
Das Noivas Brancas ou dos Iludidos;
És claro como os rumos percorridos
Pela gente que vem da Mocidade

Revolto em fúrias de uma Tempestade
Lembras o coração dos Pervertidos
E esses caminhos longos e batidos
Pela gente que vai para a Maldade.

Revolto — cresces; torna-se infinita
A tua vasta solidão funesta
Nem o Pavor humano te limita.

Calmo — tu tens a flacidez de um Véu.
E toda a tua vastidão honesta
Cabe dentro do Céu.

 

ILUSÃO

Noite de Unção e Páscoa — redolente —
Branca, de branco a Esfera amortalhando,
Pelo pó das Estradas polvilhando
Farinha d'Hóstia de um Luar crescente.

Rumor de velos noivos se esgarçando
E dessa alvura e palidez doente,
Surges esbaça, leve e transparente
D'Alva de linho do Luar se alando.

Vens da velhice das Alturas francas
E a Terra casta em tua Glória incensa.
Exalos alvos de Saudades brancas.

E sobre o Mundo pávido, enfadonho,
Farolas d'alto — em nívea réstia extensa —
A Nebulosa trêmula de um Sonho.

 

VÍCIO

Eterno Clown e Símbolo profano
Do Riso eterno — como o das Caveiras —
Em cuja face o Gozo cava insano
A meia-lua roxa das Olheiras.

Em alegrias de Arlequim de Feiras
Levado pela mão do Desengano,
Por este mundo humílimo te esgueiras
No disfarce infeliz de um Ser humano.

De aspecto rude, repelente e torvo,
Sem Risos e sem Mágoa e sem Guarida
Haures restos de Vida sorvo a sorvo.

Estéril, capro, sem carinho e zelo,
Passas rebelde e em fúria pela Vida
No indomável corcel de um Pesadelo.

 

LUXÚRIA

Corpo senil em sátira figura
De bambas mamas moles e morenas
De Olhos em temporal e noite escura
Que brilham d'aço ao ruivo das melenas.

Por caminhos que foram d'açucenas
E agora d'água em pântanos impura,
Vens para a Vida, que de Gozo encenas,
Na farândola moma da Loucura

Través o Vício que no Riso esbaças
Clama a tu'Alma bruna e maculada...
Amorena-se o Ar quando tu passas.

Deusa dos Risos parvos e facetos
Que tens corvos sombrios em revoada
Noivando dentro dos teus Olhos Pretos.
 


TÉDIO

O halo de fogo dos Ocasos cresce
E flavo a Terra púbere engrinalda
E este resto de Sol que tudo escalda
De chama e de aço rígido parece.

Nem uma sombra os Campos esmeralda.
É tudo jalde e tudo amarelece.
Pelo extremo do Céu que convalesce
Rola o desgrenho de uma Tarde jalda.

Cálida Tarde plácida e soturna
Imensa e torva, germinada ao lento
Labor d'estranha e comburente furna.

Través da Luz que alto flameja e arde
A Alma lá vai — em rumo ao desalento —
Curvada ao peso do vigor da Tarde.

 

DESOLAÇÃO

Pela Estrada da Vida ampla — coberta
De um longo velo pesaroso e baço,
Hás de encontrá-la muita vez alerta
Na longa rota do teu longo passo.

Por caminhos de pedras e sargaço
Há de levar-te pela mão incerta,
Até que exausto em Mágoas e Cansaço
Te seja a Vida intérmina e deserta.

Verás em tudo Solidão e Escolhos
E da Tristeza a tétrica figura
Estampada trarás nos próprios Olhos.

E então em Mágoas e Pavor clamando
Hás de vê-la passar na Noite escura
A mortalha dos sonhos arrastando.

 

SOMBRA 

Mal para a Vida o claro da pupila
Abrindo, entramos para a Luta olhando,
Mansa, de rastro, em lutos e tranquila
De onde chegamos vens também chegando.

Seguimos juntos, vamos palmilhando
Campos em flor, longas rotas de argila,
E entre Gozos e Mágoas rastejando
Negro, o Teu Vulto ciprestal oscila.

Conosco sempre! E quando inanimadas
As Ilusões, a Crença, a Dor suprema,
Tudo tomba no meio das jornadas.

Ainda és tu que em longo luto espalhas
No longo Palmo da Morada extrema,
A projeção funérea das mortalhas.



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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