O ANJO DA MINHA POESIA
Je fus poète alors! Sur mon âme embrasée
L’imagination secoua sa rosée,
Et je reçus d´en haut le don intérieur
D’exprimer par des chants ce que j´ai dans le cœur!
Brizeux – Marie
Quando perco numa hora a essência de homem,
Vejo as asas roçar-me de um arcanjo,
Caídas pela dor;
Como pomba ferida pela seta,
Que as brancas asas roça pela relva,
Fugindo ao caçador.
Desponta sempre no horizonte da alma,
Como entre a noite e o dia a estrela d’Alva,
Que triste pranto sua;
Vem aclarar-me a morredoura chama
De uma vida mal gasta entre a desordem,
De óleo quase nua.
E o morrão a atiçar, sempre co’os olhos,
Como a lua do céu quando goteja:
Inda às franjas da tarde,
Uma gota insensível se desprende
Que cai sobre o brandão, que mais o apaga,
Que então apenas arde.
E as sombras de minha alma se debuxam
Tristes pelos meus lábios, como quadro
De lôbregos clarões;
E quais brisas casando aos sons do mocho
Seus ais na aba de um lago: assim tempero
Minhas tristes canções.
Perdem-se sempre pelo mar, que as leva,
Dormem sem vida no regaço ocultas
De um triste e ermo desvio;
Confundem-se co’as ramas de algum tronco,
Abraçam-se dormentes, mal ouvidas,
Co’as vagas de algum rio.
E o homem? — Pedis embalde à sorte o pranto,
Os soluços da vaga! — Se os escuta,
É nos lábios sem — ai!
Vagos sons, que o não movem, vão passando,
Como aura pelo seixo asas roçando
Lamentosa lá vai.
E embalde peço ao anjo dos meus sonhos,
E da minha poesia — alma afinada
Pelas fibras da minha,
Crendo que às vezes sobre um brejo infecto,
Paira a luz de uma estrela abandonada,
Da abóbada rainha.
Mas a esperança? — num mirrado peito,
O que pode sorrir? — em seus abismos,
Que luz há de raiar?
Nem a vejo indistinta, como a vela,
Quase sombra nas orlas do horizonte,
Começando a nadar.
Ah! se houvesse no mundo por descuidos
Uma alma de mulher que me entendesse,
Sempre cândida e pura!
É verdade: — talvez que inda algum dia,
Transportada minha alma à nossa esfera,
Me sorrisse a ventura.
Mas a taça esgotei de um jato enorme
Da desgraça fatal! descri do mundo:
Meu sonho abandonei:
Disse então: — quando o mar tornar-se em flores,
Em pérolas a terra, hei de no mundo
O anjo ver que sonhei.
Oh! inda bem, meu Deus, que me o escondeste
Deste mundo falaz! — talvez que louco
Por seus mimos gozar,
Me esquecesse de ti: — foi bom: estou salvo!
Ah! nunca dês que a virgem de meus sonhos
Me venha perturbar.
Então lá quando o véu a noite estenda
De seu rosto tisnado, — em ti cismando,
Urdirei teus louvores,
Como notas que uma ave aos céus entoa
De formoso rosal, — entrelaçadas
Com o incenso das flores.
Então quando amanhã o sol erguer-se,
Como do leito nupcial o esposo
A fronte levantando,
Em vez de ter nos braços apertada
A mulher, que encontrasse, — as tuas glórias
Levarei publicando.
E inda às abas da noite cismadora,
Sobre o leito da tarde adormecida
Entre sombras azuis,
Que vai à Eternidade caminhando,
Hei de enviar-te uma oração piedosa
Das plantas de uma cruz.
Bem sei: de mim há de zombar o mundo!
Deixá-lo entre ilusões! — Quando eu te adoro
Da terra respeitoso,
Tenho as horas mais plácidas de um sonho,
Da vida informe a parte mais formosa,
Da terra o maior gozo...
Entretanto minha alma espezinhada
Do mundo — se dilata, e se sublima,
Co’o cautério da dor;
Lâmpada exausta, cuja Luz parece
Que em fumo para os céus vai-se elevando
Ao templo do Senhor.
Não zombeis, homens, não! O Eterno é justo:
Vós ficareis na terra como tochas
Mal gastas do tufão,
E eu irei para os céus antes — que o vento
Da desgraça gastou, que a vós mais cedo
De minha alma o brandão.
Oh! como é belo já sem crer no mundo,
Puro como um aroma dos altares
Para os céus levantado,
Esperar o solene passamento,
Contra as portas a abrir-se do infinito,
Sem sustos arrimado.
E entanto eu canto; e as notas que derramo
Como sombras de lâmpada noturna
Num templo amortecida,
Tal do brandão vão-se escoando lôbregas
De minha alma já frouxa, já tombada
Aos extremos da vida.
E o meu anjo não falta; e sempre triste
Vem minha alma roçar co’as débeis asas,
Caídas pela dor,
Como pomba ferida pela seta,
Que as brancas asas roça pela relva,
Fugindo ao caçador!
HISTÓRIA DE UM AMOR
Nesta página molhada
Com uma lágrima de dor,
P’ra sempre deixo lembrada
A história de nosso amor.
Que queres tu que te eu faça?
Achei-o em meu coração:
Podes chamá-lo desgraça:
Não erras, não mentes, não!
Este amor, que foi gerado
De um raio dos olhos teus,
Pelo destino embalado,
Talvez maldito de Deus,
Eu não queria. Não pude
Nunca a ideia conceber
De te manchar a virtude,
Auréola do teu viver.
Mas disse: — pode-se amá-la,
Sem ela mesmo o saber:
Vê-la em sonhos e beijá-la,
Cair aos seus pés prostrado,
Febril, louco, delirante;
Pois este amor ignorado,
Que a mim me fora bastante,
Que mal lhe pode fazer?
Cri eu, ser o mesmo, amá-la,
Bem como se ama a pintura
De um quadro, que porventura
Caiu sob o nosso olhar.
Tão baixo estava a mirá-la
No céu tão alto em que a via,
Que eu a mim próprio dizia:
— Não há perigo em amar.
Há tanta coisa que amamos
Sobre este pobre planeta,
Há tanta coisa que olhamos
Sem que um crime se cometa,
Que a olhar mais docemente,
Mesmo com certa paixão,
Ser mesmo um pouco imprudente
Num terno aperto de mão,
Quando tinha em minha frente
Essa sublime visão,
Esse raio de alegria
Que dava em meu coração,
Que dentro da alma vibrava,
E de um mistério a inquietava,
De emoção a embebecia,
Que ante essa mulher sublime,
Ai! tudo ser bem podia,
Mas não podia ser crime
O que fosse admiração.
E pus-me a amá-la.— Gostava
De olhá-la profundamente:
Nessa fronte inteligente,
Que como o céu se encurvava,
Eu lhe procurava a história
Do que dentro se passava:
Minha fronte merencória,
Como vergasta pendida,
Bebia o calor da vida
Na vasta chama, em que toda
Parecia ela envolvida.
Era um perfume de roda
Na nuvem dos seus vestidos!
Dos seus cabelos compridos,
Negros, finos, luzidios,
Saíam como que rios
De luz cambiante e cheirosa,
E sobre a fronte orgulhosa
Enrolados lhe pousavam,
Como coroa cintilante;
Os seus pés escorregavam
Sobre o tapete da sala,
Como os silfos, que passavam
Sobre os seus lábios sem fala,
Mas onde se adivinhava
Na ligeira convulsão
O acumular-se da lava
Na cratera do vulcão.
Essa boca não falava!
Mas ai! dela o que eu ouvia!
Era uma eterna harmonia,
Que minha alma inebriava.
Já não tinha liberdade
De fugir ao encanto dela...
Era queimar-me à vontade
As asas em luz tão bela...
Envenenara-me a essência
Que seu corpo trescalava;
Louco já, sem consciência,
Preso ao meu cego desejo,
Pela morte procurava
No fundo abismo de um beijo.
Ai! eu já me deleitava
Não sei com que pensamento:
E depois? Que me importava
Esse importuno depois,
Que fora talvez mortalha
Que um mau destino só talha
Para pôr sobre nós dois.
Sobre nós dois? — Porém ela
Tão pura e casta e tão bela,
Não! amar-me não devia:
Nem mesmo amar-me queria...
Custava-lhe muito... tanto,
Que a revoltava... No entanto,
Quando eu aos seus pés chegava,
O seu olhar de rainha
Tão doce se aveludava,
Tão doce chama continha,
Que o rosto lhe iluminava;
Que não era ilusão minha,
Também ela se alegrava
De ver-me, como eu a via:
Ai! assim de dia em dia
Surdo incêndio se ateava.
Lavrou o fogo... A virtude
Quase estalava por fim:
E nesta batalha rude
Não sei dela, nem de mim.
Eu sou o mar que soluça
Na praia, em que se debruça,
Como esplêndida voragem
Espelhando a sua imagem;
Ela é a planta isolada
Que sobre a praia deixada
Do vento ao rijo fragor,
Sobre um árido rochedo
Nasce, vinga, e cresce a medo,
Dando solitária flor.
Se a tempestade passar
Na asa de um vento mais forte,
Pode ela encontrar a morte,
Rojada ao fundo do mar.
Nesta página molhada
Com uma lágrima de dor,
P’ra sempre aí fica lembrada
A história de nosso amor.
ORIGEM DAS NUVENS
I
A um filho das brenhas contando as saudades
Da taba que tinha deixado, a aprendi;
Que lenda formosa! Bem anos passaram,
Morreu o selvagem: — e eu nunca a esqueci...
***
Um nome soava: rompia um gemido,
As vagas se abriam, deixavam passar,
Tão linda!... tão linda!... coberta de aljôfares,
Calçando conchinhas, a Virgem do mar.
Trazia uma lira, que prata não era,
Que não era ouro, nem era marfim:
Mas era uma concha forrada de pérolas,
Nos céus encordoada, de preço sem fim.
Arregaça as roupas, as pernas diáfanas
Põe uma sobre outra, numa onda do mar:
Encosta a cabeça nas asas de um zéfiro,
À praia se chega; começa a cantar:
***
— Nasci nas neblinas das noites de outono,
Criei-me nas conchas das águas do mar;
As vagas me davam seu leite de espumas,
Os ventos me vinham no berço embalar.
Chamava os peixinhos das grutas algosas,
Miríades deles eis vinham de além:
Eu chamo as ondinas, dançando elas correm;
As vagas eu chamo, cantando elas vêm.
Os ventos trouxeram da lua estas roupas,
Os ventos trouxeram também este véu,
Tão branco!... tão branco!... da neve mais branca,
Colhida da neve que nasceu no céu.
E as vagas, e os ventos, e as castas ondinas,
E os peixes, que saltam, oh! tudo me diz:
— Princesa!... Princesa!... Deus salve a Princesa!
E eu sendo Princesa me sinto infeliz.
Duas lágrimas rolam depois pelas faces,
E os olhos da Virgem se viam pairar
Num vulto gigante, que a treva encobria,
Num monte inclinado p'ra as águas do mar.
II
Quem era o gigante do trono das rochas?
Vivia? ou cismava? Que faz ele ali?
Um dia, a desoras, cantando sem cuido,
Sem cuido, a desoras, cantando eu o vi...
— Nasci, branco orvalho, de um riso da aurora,
Criei-me saltando num seio de flor,
E as flores me davam bom leite em perfumes,
E as aves o sono num canto de amor.
As brisas, em bando, formando coreias,
Nos ombros de seda me vinham buscar,
Subindo as encostas das altas montanhas,
No topo das serras lá vão-me pousar.
No topo das serras de vez me deixavam,
Me deram uma lira de ferro e marfim:
Vesti-me de seda, coroei-me de névoas,
De aljofarezinhas calcei borzeguim.
Depois os perfumes subiam da terra,
As aves lá iam, lá mesmo cantar:
A voz das florestas tentava epinícios,
Cantava-me idílios a sombra do mar.
Firmado é meu trono nas rochas dos montes,
E as selvas e os montes aclamam-me rei:
— Feliz, bradam todos, feliz teu reinado!
Olhei para as águas cismando e chorei!...
III
E a turba descrida, que o via de longe
Na rocha, que entesta num céu nevoento,
Dizia: — É uma nuvem, que coroa o rochedo;
Os cantos, que ouvimos, são da asa do vento.¬
E o Bardo dos Montes, no topo das serras,
Em cima das rochas cismando vivia:
Coitado! de uma harpa de cordas de ferro
Só mágoas tirava: só mágoas sabia.
***
E a Virgem das Águas nas praias boiava,
E os alvos vestidos rasgavam-se ao vento:
E os negros cabelos de pé sobre a fronte
Brincavam com as brisas de um céu pardacento.
E à vez encostada num leito de névoas,
Com a face tocada da poesia das águas,
Com os olhos banhados da luz das estrelas
Tocava... eram hinos; cantava... eram mágoas...
E a turba descrida, que a via sentada
Num leito de névoas, além a vagar,
Dizia: — É uma nuvem, que boia nas águas:
Os cantos, que ouvimos, vêm da água do mar.
***
E o Bardo dos Montes de pé sobre as rochas,
Cantando ou chorando, cismando vivia:
E a sombra gigante no trono das vagas,
Penhascos de prata, pairando se via.
E a Virgem das Águas tão louca!... tão louca!...
Vagava sem tino nas águas do mar;
E às vezes à praia chegava, e sorria,
Soltava uns soluços, tornava a chorar!...
E um dia, era cedo, e o sol não brilhava...
Do trono dos montes o Bardo saía,
Os troncos vergando da umbrosa montanha,
Com trêmulos passos à praia descia.
E os olhos ao longe, movendo piedade,
Pairavam nas águas de império sem fim,
E os dedos corriam nas cordas de uma harpa,
Que os ventos lhe deram de ferro e marfim.
***
E a turba descrida, que ao longe passava,
O Bardo dos Montes ouvindo cantar,
Dizia: — Que nuvem que boia na praia!
Que vagas que gemem na praia do mar!
IV
— Habito nos Montes, ó Virgem das Águas:
Em cima das rochas bem anos vivi:
Cismando, cantando, chorando, morrendo...
Morrendo... morrendo... morrendo por ti.
E o Bardo a procura, quer dar-lhe um abraço;
E a Virgem das Águas sorriu e chorou!
Tão louca! tão louca!... fugiu para os mares;
Correu sem sentidos: — cismou e voltou.
— Eu vim das montanhas, Princesa das Águas,
Por ter-me cansado de tanto te olhar:
Tem pena, não fujas do Bardo dos Montes;
Tem pena, Princesa das Águas do mar!
Princesa, não fujas! Não vês? É tão frio
O vento da tarde! tão úmido o céu!
Tem pena do Bardo: sim! nega-lhe os risos,
Mas lança-lhe ao menos as pontas do véu.
Vem, sabe: em meu peito, lá dentro, há um vaso:
Na terra, que o enche, nasceu uma flor:
Se ao menos da morte, que morro, a salvasses?!
Ah! salva um raminho do ramo de amor!
Os ventos buscavam meu leito nos astros;
As flores me davam seu leite a beber:
As aves meu sono, cantando, embalavam...
Mas salva um raminho, que eu posso morrer.
E o Bardo dos Montes os braços estende:
E a Virgem das Águas sorriu e chorou:
Tão louca!... tão louca!... fugiu para os mares;
Correu sem sentidos: — cismou e voltou.
— Firmei o meu trono nas rochas dos Montes,
Sepulcro p’ra um morto na praia encontrei:
Sem ti, ó Princesa, viver não podia;
Sem ti, ó Princesa, sem ti morrerei.
Os ventos dos Montes buscar-me-ão às praias:
As flores às praias vir-me-ão perfumar...
As aves o sono da morte acalentam;
Chorando, soluçam as vagas do mar.
E o Bardo dos Montes os braços estende,
E a Virgem das Águas sorriu e chorou!
Tão louca!... tão louca!... fugiu para os mares...
Correu sem sentidos: — cismou e voltou.
— Os ventos buscavam meu leito nos astros,
As flores me davam seu leite a beber,
As aves meu sono, cantando, embalavam:
Contudo em meus reinos não pude viver...
Gemendo, cantando, chorando, morrendo,
Em cima das rochas bem anos vivi:
No leito das vagas me deixas chorando,
Cantando, gemendo, morrendo por ti...
E o Bardo dos Montes os braços estende,
O extremo suspiro da vida a exalar,
Lutando com as trevas nas vascas da morte,
Os seios encontra da Virgem do mar.
— Não morres, ó Bardo do reino dos Montes,
Exclama a Princesa das Águas do mar,
Teu peito é mais firme que as rochas das praias,
Vem pois em meus reinos comigo reinar.
E o Bardo dos Montes a aperta em seus braços,
E em leito de névoas deitados lá vão:
Tão loucos!... tão loucos!... chorando e sorrindo,
Chorando e sorrindo de louca paixão...
Estalos de beijos, saciar de desejos,
Esvoaçar de avezinhas por entre a espessura,
Que a virgem das Águas salvou uns raminhos,
E um bosque fez de alma de imensa ternura.
E o Bardo exclamava do trono das vagas:
— Foi morte por morte; do peito ao calor,
Não morro gelado do frio do vento,
Mas morro queimado do fogo do amor...
V
E o Gênio dos Ares um dia passando
Com roupas de neve deixadas ao vento,
Os olhos dois astros, radiando entre nuvens,
As tranças flutuando num céu sonolento;
Num carro de prata tirado a ginetes,
Que ao céu, invisíveis, passando a galope,
Levavam o Gênio à casa das fadas,
Que habitam das serras as selvas do tope,
A Virgem das Águas encontra... tão linda!
Lhe cai pela espádua seu cândido véu,
Tem roupas de noiva mais brancas que a neve:
Crê ver a Princesa das fadas do céu.
Enfreia os ginetes, que espumam raivosos,
Por cima das Águas, convulso, parou:
Trocou uns olhares de fogo com o Bardo:
Espada de raios do lado arrancou.
— Além das estrelas subi muitas vezes,
Perdi-me em caminhos dos reinos de além,
Em busca das fadas cansei meus ginetes:
Olhava... desertos! — Buscava... ninguém.
Com letras de fogo gravei nos meus paços,
Que bordam estradas, que conta não têm:
— Gentil peregrina, que vens de outros mundos,
Recebe pousada, — não passes além.
Bem-vinda! Bem-vinda! de além desses reinos,
As fadas ocultas só andam? — pois diz.
Formosa estrangeira, vem dar-me estas novas:
Gentil peregrina, onde é teu país?
E a Virgem das Águas sorrindo se volta:
No gesto e sorriso lhe esmaga a ilusão:
Nos lábios do Bardo pipitam sorrisos,
Que adejam, como aves, que más novas dão.
Contendo-se o Gênio, lhe torna sereno:
— Não tenhas receio; que mal eu te fiz?
Gentil viajora, vem dar-me boas novas:
Mimosa estrangeira, onde é teu país?
— Quem és tu? — De iroso, voltando-se o Bardo
Ao Gênio dos Ares, se exalta ao bradar:
— Eu tenho o meu trono nas rochas dos Montes:
E Ela? o seu trono nas vagas do mar.
E o Gênio dos Ares, tornou com desprezo:
— No trono o Coluro tão só me sustém:
O sol é meu leito; — meu paço as estrelas,
O reino, onde impero, limites não tem.
— E eu tenho o meu trono nas rochas das serras,
E Ela o seu trono nas vagas do mar:
Esposa e Princesa do Bardo dos Montes!
O Bardo dos Montes lhe torna a bradar.
Esbarra entre os dentes... tonteando esmagado
Mal roda sem asas um ai de improviso!
Estalam gemendo do peito as cavernas:
Nos lábios manqueia sinistro sorriso:
— Desprezo a um cobarde: vai, torna aos teus Montes,
Meu mais vil escravo mais reinos domina:
Voltemos à Pátria, graciosa estrangeira;
Os céus vos esperam, gentil peregrina.
As negras cortinas da noite se entreabrem,
Se funde o meu leito num mar de fulgor:
A voz de minha harpa dá voz às tormentas:
São meigos... são belos meus cantos de amor;
Ah! linda Rainha, vem; deixa as tuas Águas,
Escravas incautas sorrindo aos tufões:
Descalças ondinas, se as plantas de prata
Descuidam da areia, lá acham grilhões...
Além das Montanhas, que dormem na terra,
As águias se elevam, se eleva o condor:
Do céu, onde impero, só passa exaurido,
Algum pensamento de Deus e de amor!
É tarde! voemos: as noites convidam:
À beira da estrada comigo amanhã
Terás o Deus salve da Aurora que passa,
À porta sentada da minha Aldebarã.
Ao verem-te as aves dos ares diziam:
— Andar, Peregrina; caminha, caminha:
Agora cantando, dirão, se te virem:
— Tão linda! Deus salve, Deus salve a Rainha.
As vagas chorando no fundo das Águas
Dirão de despeito: — Quem foi que a mandou?
A linda estrangeira, por ser muito linda,
Se foi peregrina, Rainha ficou.
Mas... brilham meus paços: as lâmpadas ardem;
É noite, estrangeira: partamos p’ra além:
Não temas espaços: é tarde! partamos:
Eu tiro das rédeas o teu palafrém.
***
E a Virgem das Águas, olhando o seu Bardo,
Montada bradava do seu palafrém:
— É noite, partamos, fujamos do Gênio:
É noite: fujamos p’ra as bandas de além.
S'us! Bardo: tal não penses: vinguemos espaços;
Não lutes: és Bardo, e ele é Paladim;
Tem ele uma espada forjada de raios,
Tu tens uma lira de ferro e marfim.
— Tem ele uma espada forjada de raios;
Eu tenho uma lira de ferro e marfim.
Não estás ao meu lado? — Que importa um cobarde?
Dão brenhas de louros combates assim.
— Tu teimas levá-la, reizinho das Rochas?
Pois toma esta espada, se queres lutar,
Irmã desta minha, forjada de raios:
Mas... olha, que os Bardos só sabem cantar.
— Gigante soberbo, rei de altos impérios:
Eu sou um reizinho, não temas de mim:
Tu és orgulhoso e orgulhos eu tenho:
Dão brenhas de louros combates assim.
— S’us! luta... urge o tempo... Gentil peregrina,
Por cima das Águas lá geme Alcion:
Ó Bardo dos Montes, as águas de Mergui,
Princesa, nem sempre tem junto um silong.
***
E o Bardo dos Montes com o Gênio dos Ares,
Olhares de fogo, raivando, trocou:
Espadas e liras encruzam nas trevas:
Os golpes troveja, o sangue jorrou...
E a Virgem das Águas, tão louca! tão louca!
Ao lado do Bardo procura um lugar:
Não tendo uma espada forjada de raios,
— Eu te amo, — dizia, mais para o animar.
VI
E o sol no outro dia doirava as montanhas;
Vagavam ginetes dispersos no ar,
E os restos de um carro perdidos nos montes,
E um corpo estendido nas águas do mar.
Um corpo diáfano, imenso flutuante,
Suspenso, impalpável, fantástico ser,
Que o vento ao seu grado num sopro arrastava,
Imbele, vazio, sem força ou poder.
E as turbas buscavam nos montes a espada
Dos céus esgarrada, de enorme extensão;
Só viram penhascos, quebrados, rolados,
Uns troncos queimados, e cinzas no chão.
E o Bardo dos Montes, e a Virgem das Águas
Num leito purpúreo dormiam no céu,
E os raios douravam, e as brisas brincavam
Com os lençóis de neve, e as neves do céu.
***
Vagavam sem tino depois vencedores
No céu sem limites, no reino do Ar,
No trono das rochas, em cima dos Montes,
No trono das vagas, em cima do mar.
Talvez que morressem de muitas loucuras!
E as nuvens que sempre costumam boiar
No Monte e nas Águas são restos dispersos
Do Bardo dos Montes, da Virgem do mar.
***
As coisas, que eu conto, contadas nas brenhas,
Contadas, cantadas por Bardos da Grei,
Em criança as ouvia, se não verdadeiras...
O Índio dizia, serão... eu não sei.
VINGANÇA
I
Sentite de Domino in bonitate.
Liber Sapientiae
Trist! esperant lo be que desig veure.
Fra Rocamberti — Comédia de la Glória d’Amor
Rústica choça de palmar coberta
Além na base da montanha vedes;
O musgo e a relva cobrem-lhe as paredes:
Crê-se que a choça o mesmo chão brotou:
Por cima dela ergue-se a montanha
De negras rochas fúnebres coroada;
E ali jaz como pedra derrocada
Que a procela do píncaro arrancou.
Parece a choça vegetar; — parece
Rocha de musgo e de ervaçal coberta.
Oh! é medonha esta mansão deserta,
Que um mar de bronze aos pés fervendo tem!
A longa praia de areal luzente
Em longas curvas por além se perde,
E pelas malhas da cortina verde,
Que estende o manto em flor, a custo a veem
Pelos buracos das paredes rotas
A débil luz, em gotas mil, transuda:
Tremem... vacilam... Cada gota muda
Daqui p’ra ali... e ainda... ainda outra vez:
Parecem um milhão de pirilampos
No giro eterno, pelo mato ardendo:
E o palhal, entre a relva se encolhendo,
Olha por entre a lôbrega mudez.
Um pano negro, fixo, estendido
Forra o céu, franja-o todo, e cai no oceano:
E além... como um buraco nesse pano,
Pálida a lua — quase imóvel — jaz.
Dragão de bronze de escamoso tergo
Meio encostado no seu leito enorme
Ruge... mas baixo: — ronca... sim!... mas dorme:
E ainda o sono seu terror nos faz.
De vez em quando agita-se a floresta:
O horror das trevas atravessa um grito...
E sentado na base de granito
Volta ao silêncio o bosque secular.
Mas outros gritos outra vez ressoam!...
E ainda outro mais agudo e horrendo?!...
— O vento passa, o bosque está mexendo,
E o brônzeo tronco está rolando o mar.
No galho verde — sob a rama e a copa —
Por entre as folhas encontrou-se um ninho:
Diz um ao outro... Eram dois: baixinho,
Não rumorejes, sairão de lá;
Vamos ver os mimosos passarinhos...
Pé num nó, outro em cima, a mão num galho,
Furtando a fronte ao gotejar do orvalho,
Consigo um deles sobre o tronco dá.
Afasta as folhas; quebra os galhos; rompe
Dedos e mãos na ponta dos espinhos;
E não encontra os lindos passarinhos,
Que ele julgou naquele ninho haver;
Assim mancebo de cabelos negros,
E olhos, que enchem de luz a tez morena,
À choça verde se chegou com pena
Que vinha o pai já velho à choça ver.
Bate: — ninguém responde. A porta quebra,
Entra e volta, e procura, e fala, e grita...
Somente a luz da alâmpada se agita,
Ante um pequeno nicho aberto — a arder.
Sai: vai longe... Voltou: mas nada — Torna;
Na curva praia precipita o passo:
E enquanto a voz plangente rasga o espaço,
Hirto, louco de dor voa a correr.
No entanto pelos rombos das paredes
A débil luz em gotas mil transuda;
Tremem... vacilam... Cada gota muda
Daqui p’ra ali... e ainda... inda outra vez.
Parecem um milhão de pirilampos
No giro eterno, pelo mato ardendo:
E o palhal, entre a relva se encolhendo,
Olha por entre a lôbrega mudez.
II
Este cadáver, que habla
Por la boca de una herida...
Calderón de la Barca — La vida es Sueño.
Cadáver hirto atravessando o espaço,
Crê-se que asas fantásticas distende!...
Mas quem no voo rápido o suspende,
Como uma seta, que num tronco entrou?
E como a seta, que vacila, dando
Na imóvel rocha, e quebra-se e recua,
Por que ele inclina ao chão a fronte nua,
Como uma seta que no chão tombou?
Disséreis — na carreira delirante,
Que o monte e o bosque e o mar ele atravessara,
Se o monte e o bosque e o mar ele encontrara,
Sob os pés, que engoliam céu e chão,
Que mão de ferro lhe agarrando a coma,
O transformou em súbito rochedo,
Talhado como um homem que tem medo,
Que curva o tronco, e ao espaço estende a mão?...
Como um despojo de naufrágio humano
Dos vagalhões à praia arremessado,
Imóvel, mudo, o lábio descerrado,
Como quem grita ainda a extrema vez
Jaz... eu tremo em dizer, treme ele em vê-lo!...
Porém a vaga, que até ali volteia,
— Níveo lençol do morto, a branca areia
Levanta... É o pai!! e em hórrida nudez.
Mas as feridas com abertas bocas,
Por onde o sangue negro ferve e espuma...
Mas as feridas bradam cada uma
O que ele mesmo no morrer bradou...
Preso o espírito ao corpo, oscila e treme:
Mar grande — a eternidade — além se estende:
Frágil cadeia — a vida — à praia prende...
O vento passa... e no passar quebrou.
Por muito tempo imóvel o mancebo
— Anjo na lájea tumular plantado —
Marmóreo, mudo, feio, descorado,
Não vacilara em que tremesse o chão!
Não volve os olhos; não remexe os lábios!
Jaz transformado em súbito rochedo,
Talhado como um homem que tem medo,
Que curva o tronco, e ao espaço estende a mão.
III
Al pianto or s’abbandona.
G. Borghi — Inni.
Ruge... mais alto ruge...
Mais alto... é já bramido!
Como dragão ferido,
Retorce a cauda o mar;
Açoita a praia, e volta
O corpo enorme e horrendo,
E o dorso destorcendo
As garras lança ao ar.
O corpo de serpente
Estende a tempestade:
E enche a imensidade
O enorme vulto seu;
As asas coruscantes
Do mar na face bate:
Horríssono combate
Começa o mar e o céu.
Na base de granito,
A mata além suspensa,
Desata a sombra imensa
Do vulto colossal:
E o ulular rouquenho
Dos troncos sacudidos
É um dos mil rugidos
Da voz do temporal.
Com os brados repetidos
Que o céu e o mar despenha,
No soco aquela penha
Começa a estremecer:
Dos olhos do mancebo
O pranto já flutua:
Com um doce raio a lua
Do leito o vem colher.
IV
Le preme il cor questo pensier...
Ariosto — Orlando Furioso
Detrás desse falar é como estátua
Por entre raras folhas de arvoredo,
Onde um raio de luz do céu bem vindo
Bate... recua... torna, e fere a medo.
Assim o anjo da morte está rojando
A asa esplendente sobre o negro ossário,
E da luz um a um ferem-lhe os raios,
Enquanto o vento açouta o lampadário.
A noite entorna a sombra e nela o envolve;
Da fronte a lua quebra-lhe o negrume:
E a mortal palidez sorri das trevas
No mudo desespero de um queixume.
Molhada a face de marfim... rutila:
Véu de lágrimas foi; já não pranteia:
— Assim a vaga, que do mar não volta,
Deixa de água ensopada a branca areia.
Mas como a brisa, que passando toca
Com a ponta da asa o lago adormecido,
Ou como o vento, que a lanugem branca
Do cisne eriça... e ouve-se um gemido;
Ou como o aroma, que desata o incenso
No crepitar da chama, que o devora:
O moço treme e ao lábio o canto salta,
E o céu, e o mar, e a terra, e o bosque chora.
— Deus santo, três vezes santo,
Deus, que meu pai amou tanto,
Deus, que tudo podes só;
Este cordeiro imolado
Deve ser-te consagrado:
Ai! o sangue derramado
Lava da alma o lodo e o pó.
Deus, que guias do oriente
Em uma carreira ardente
O sol, que vibra tua mão,
Como a flecha despedida,
Que abre no céu a ferida,
Que escorre o sangue da vida
Nas veias da criação:
Deus, que misturas as tintas,
Em que as várias cenas pintas
Das obras da imensidão,
E que, à voz do passarinho,
Desces do céu a um raminho,
E o teces no próprio ninho,
Como o ouro o tecelão:
Ó Deus, que um rude madeiro
Ergueste de medianeiro
Entre ti e o pecador...
Salva a tua criatura:
Do crisol da sepultura
Tira esta alma limpa e pura
Ao fogo do teu amor.
Deus, no Gólgota cordeiro,
Que as santas iras primeiro
Trovejaste do Sinai...
Deus, fé, clarão, esperança!...
Eu tenho em ti confiança;
Brada este sangue vingança:
Dá-me vingar o meu pai.
Deus, sobre a vítima embora
Caia então a mesma hora!...
Mesmo aos pés do tremedal.
Um riso na boca airosa
— Orvalho em botão de rosa —
Tem inda a estátua mimosa
Caída do pedestal.
V
Oh! andai; quem vos detém?
Gil Vicente — Auto da almA
Depois sereno o moço sobre a praia
— A um raio do luar —
Cavou a areia e o pai deitou na cama,
Mesmo à beira do mar.
E ululante, terrível, passa ao longe
Rugindo o furacão!
Como as cordas de uma harpa dedilhada,
Cada vaga estalava repuxada
Do vento à férrea mão.
Oh! que é sublime o quadro em que a tormenta
Por em torno moldura:
Brame o mar, brame o vento, brame o bosque,
Brame o céu, que fulgura.
Somente a lua, um raio atravessando
Por nuvem negra e basta,
Vem feri-lo no úmido semblante,
Na fronte sobre o peito vacilante,
Como débil vergasta.
E ao longe pelos rombos das paredes
A débil luz em gotas mil transuda:
Tremem... vacilam... Cada gota muda
Daqui p’ra ali... e ainda... inda outra vez...
Parecem um milhão de pirilampos
No giro eterno pelo mato ardendo:
E o palhal, entre a relva se encolhendo,
Olha por entre a lôbrega mudez.
Vai lento e lento procurando a choça
O mancebo... Parou:
Humana voz de moribundo náufrago
O espaço povoou!...
VI
............ golfos de água
Han de ser tu sepultura
En monumentos de plata;
Mal hiciera en darse al mar,
Quando soberbio levanta
Rizados montes de nieve,
De cristal crespas montañas.
Calderón de la Barca — La vida es Sueño.
Socorro!... E o mar revoltoso,
Negro!... negro!... a horripilar!...
Dragão que ousa com as asas
Do céu a face açoutar:
Vem apenas um gemido,
Como um queixume perdido,
Entre as vagas confundido,
Gemer às praias do mar.
Socorro!... e a voz delirante
Nas costas das ondas vem:
Quebram-se as ondas na praia,
E a voz quebra-se também.
Vento rijo: mar fremente,
Onde a morte mostra um dente
Branco em cada vaga algente...
Quem vai tentá-lo? — Ninguém.
Fora uma luta de loucos,
Sem uma luz de esperança...
Ninguém... ninguém se abalança...
Ninguém salvá-lo ousará.
Mas se for... será vencido
Sem combate, sem ruído:
Um grão de areia caído
No fundo do mar será.
As ondas quebram-se, franjem
Com grande horror ao cair;
E como as fronte da hidra,
Tornam de novo a surgir:
Os raios precipitados
Reúnem brados aos brados!...
Nesta noite aos naufragados
Deus... Deus só pode acudir.
Socorro!... E a vaga esmagada,
Como que soluça um ai!...
Sobre a praia as roupas deixa,
Sobre o mar um corpo cai.
Quem?... O órfão!! — Desgraçado!...
Vai mancebo condenado:
Teu juramento é quebrado:
Não vingaste inda o teu pai.
Vai morrer... vai, louco, morre!
Tens bem grande sepultura:
Teu sudário é treva escura,
É teu coveiro o bulcão.
E a sombra de um pai ferido,
Há de ir bradando-te ao ouvido:
— Maldição, filho esquecido!
Oh! maldição! maldição!? —
VII
... quum littora fervere late
Prospiceres...
Virgílio — Eneida
Silêncio!... O mar de ferro derretido
Na amplíssima caldeira
Chiar parece, e fumegar ao fogo
De imprevista fogueira.
Calmou-se o vento. Aos mil e mil os raios
A trovoada ateia:
E cada vaga em surdo e horrendo grito,
Como um muro de bronze, ou de granito,
Derroca-se na areia.
VIII
In conspectu suo.
Regum Liber
Velho Titã formidável,
Ao clarão da tempestade
Tens escrita a eternidade
Nas rugas da fronte audaz:
As vagas, em que te enleias,
São como as grossas cadeias,
Que sacodes nas areias,
E que não quebram jamais!
É belo de ver, e horrível,
Velho leão prisioneiro,
Cavado o teu corpo inteiro
De profundas cicatrizes:
E quando as iras derramas,
Voltando as negras escamas,
Tu muges, roncas e bramas,
E o que tu queres não dizes.
Às vezes paras na grita,
E o teu corpo se aquebranta;
E em tua enorme garganta
Prendes a horríssona voz:
Cessam então teus mugidos,
Como ferros sacudidos,
Lançados, mas não partidos,
Até a terra, até nós.
Mas lá no polo Deus mesmo
Os teus membros amarrados,
Contidos, assujeitados
A montes de gelo — quis.
Lá em vão tu remordes;
Como Encélado sacodes
O corpo enorme, não podes
Erguer a crespa cerviz.
Mas eu me horrorizo e tremo
Ante tua majestade,
Se te dessem liberdade
Nessas frias regiões:
Que grande fora o teu brado,
Se do corpo lacerado
Quebrassem-te o cadeado
Que te prende aos teus grilhões.
O baque dessas montanhas
Caindo despedaçadas,
Como cadeias quebradas,
Que horrível não fora ouvir!
Mas fora belo!... Eu queria
Ver de então a noite e o dia,
Que tua fronte devia
De cinza e de ouro cobrir.
Oh! fora belo! Assentado
Sobre o monte mais erguido,
Ouvir teu grande bramido
Em paz — sereno... a sorrir!
Talvez... o hino à liberdade
Nessa horrível majestade...
Dos flancos da tempestade
Surgisse Deus, para ouvir!...
IX
Eso es pagarlo por mi
La vida, que le debí.
Calderón de la Barca — Las armas de la hermosura
Mas quem surge lá da praia,
Como um fantasma do mar?
É o mancebo! — Da morte
Pôde o náufrago salvar.
Não perdeste inda a esperança!
Cheira sangue essa lembrança!
E o sangue brada vingança;
E inda te podes vingar!
Ei-lo... o náufrago estremece...
Ei-lo arquejando já vai...
Passa a lua... fere-o... O moço
Treme... oscila... quase cai:
É o assassino estendido,
Co’as roupas do pai vestido!...
Levanta o ferro buído,
Vinga, mancebo, o teu pai.
Do leão entras a jaula
Coberto de espuma e pó,
E arrancas da garra a presa,
Que devorava sem dó;
Sim! lá teria morrido:
Mas não ficara punido,
Que a vingança é do ofendido,
A vingança é tua só.
Homens, céus, estrelas, anjos,
Florestas, rios, oceanos...
Vinde ver um fraco humano,
Como se vinga... Chegai.
Oh! que placidez imprime
Naquela fronte sublime
A ideia que vinga um crime,
E vinga no crime um pai!...
Ajoelha o moço e murmura:
— Deus, cumpriste o meu destino:
Deste salvar o assassino...
Meu Pai! fui teu vingador.
E, como cansado, inclina
A fronte — quase divina,
Como cegada bonina
Para as mãos do cegador.
Ei-lo, a inocência no seio,
No perdão o seu punhal,
Morto aos pés do homem de lodo
Como estátua em tremedal.
Um riso na boca airosa
— Orvalho em botão de rosa —
Tem inda a estátua mimosa
Caída do pedestal.
X
Qual lodoletta che in aere si spazia
Prima cantando, e poi tace contenta
Dell’última dolcezza che la sazia...
Dante — Paradiso
E no outro dia à beira-mar deixado
Um cadáver jazia:
E sobre o véu da morte um véu mais lindo
De luz o corpo todo o está cobrindo...
Tão belo resplendia!
Beleza estranha, que sorri de leve
Na palidez da face.
Como se a morte — o riso de bondade
Desencravar julgara uma impiedade,
E inteiro lho deixasse.
E de longe o palhal, que verdejava,
Mas já meio inclinado,
Pendendo para a beira do caminho,
Era como vazio e verde ninho
De um galho pendurado!
AMOR E DEVER
Eu que quisera os meus olhos
Fixos em ti noite e dia,
Eu sofro a lenta agonia
De não te poder olhar!
Toda esta gente espiona
A nossa pobre ventura;
No olhar, no Gesto procura
Nosso segredo encontrar.
O amor que dentro em nós ferve,
É como o perfume acaso
Que pelas fendas do vaso
Se faz a todos sentir?
Que por mais oculto e envolto,
Que o ter em si se procura,
Em vão é, não se segura,
Por força que há de trair?
Trai — Embebe o ambiente todo:
E cada qual que o respira,
Procura donde sairá,
Que vaso o entornando está:
Agitam-se todos: querem,
Com inquietação manifesta,
Ver pelo aroma que resta
Donde veio e o que inda há.
Assim um dia e outro dia
Estando de ti tão perto,
Sabendo, tendo bem certo
Ser meu o teu coração...
Eu que morro por olhar-te,
Ai! nem mesmo olhar-te ensaio;
Chego e entro, e falo, e saio,
Sem quase apertar-te a mão.
Mas esta mesma frieza
Que junto a ti sempre tenho,
Já nos faz mal, eu convenho;
Todos anseiam saber
Por que sendo tu formosa,
E eu sendo moço, não há de
Reinar maior amizade,
Maior alegria haver?
Porque esses mesmos que tremem
Pela virtude ultrajada,
Buscando e não vendo nada,
Não sabem compreender
Como é possível que um anjo
Que eles têm sempre admirado,
Não possa ser desejado,
Por quem é crime o querer.
E a nossa melancolia,
Nossa mudez, nosso medo,
Ai! se desvenda o segredo
Que nós devemos guardar?
Branca pérola metida
Em concha de rósea alvura
Deve estar menos segura
Dentro no fundo do mar.
Ai! a ninguém o entreguemos,
Nem num olhar indiscreto,
Porque o nosso puro afeto
Deus só o possa saber.
Que seja como um tesouro
Dentro de um cofre guardado,
Que fora melhor gozado,
Mas que é melhor não perder...
HINO DE MORTE
(Na morte do colega, aluno do 4º ano de Medicina, Antônio José Gonçalves Júnior)
I
Da sacro cineri flores.
Do túmulo de Sannazaro
Omnis glória ejus...
Psalmus
Um século de glórias e esperanças
Naquela fronte, como um régio almafre,
Imenso balouçava;
E sob a selva dos cabelos densos,
Como um rio escondido nas florestas
A ideia borbulhava.
Homens, vós não sabíeis quem ele era!
Da noite à boca do mancebo inglório
Parásseis um momento:
Detrás da escura selva desse crânio
Se erguera um dia, em trono chamejante,
Do seio nebulento.
Como inunda de fogo a flor do oceano
O sol, — ele inundava o seu futuro
De claridão tamanha.
Eram rastos de chama os dias dele!
Dos loureiros à sombra um sol dormia
Atrás de uma montanha
Era um nimbo de esfera vaporosa
Embaciando as lâmpadas celestes,
Que pesava no mundo!
Seu pensamento: — um dia condensado
De cima do seu crânio cairia,
Como oceano profundo!
Amanhã rangeria aquela porta!
E ao entreabrir-se aquela língua de ouro,
Do céu, onde alma voara,
Aerólito, como um anjo em fogo,
Embuçado nas roupas de mil anos,
Numa ideia rolara.
Assim de chofre o espaço engole um mundo:
Cem cidades assim desaparecem
Nos campos de Senaar;
E como a cruz de um morto, uma coluna
Lá fica apenas sobre a cova delas
Seus ossos a apontar!
II
Nulli flebilior, quam tibi...
Horácio — Odes
Que vistes dele? — Nada. Descansava
Sobre os seus louros, à manhã da vida.
O jovem sonhador!
Sobre o feixe, que abate das florestas,
Também, antes de o erguer, por um momento
Descansa o lenhador.
Tinha afiada a adaga. A hora do alarma
Parecia estalar; sob a armadura
Do combate parou:
Viu o campo: estendeu à larga as rédeas:
Mas da vida o corcel, que ele montava,
Caiu e tropeçou.
Ó meu amigo!... E o que perdeste, ó Pátria!....
Que pedra das abóbadas da glória
Rolou, se espedaçando!
Escárnio dessa turba de mancebos,
— Raça de vermes! — sobre o pó da terra
Esmagava-os, passando.
Se assoberba o ginete relinchando,
Quando a escarpa do Abila o árabe arrasa
Após a hiena e o leão:
A vida dele era um corcel fogoso:
E o corcel, que engolia abismo e escarpa,
Caiu: mas ele não.
No Cusistão daquele peito em brasa
Da liberdade a rosa florescia
Fechada em botão lindo,
Era no meio do mais belo fogo
Que vingava a roseira, onde orvalhada
Cada flor ia abrindo.
Que naufrágio espantoso! Eram só de ouro
Os sonhos que essa mente carregava
Aos vagalhões da vida:
Que nau perdida sobre o mar tormenta
Esperdiçou os louros do poeta,
Em noite desabrida!
Pátria, curva-te ao céspede de um filho:
Ontem por ti morreu: hoje ao seu túmulo,
Não te pejes, baixando:
Cristo era a pátria do universo inteiro
E, sobre a cova de um amigo, Cristo
Se prosternou, chorando.
III
... ore tremente...
Ovídio — Tristium
E como o rosto é pálido, e fanadas
Rosas, que um dia abriram purpurinas
À doce luz da vida!
Assim a ruína de cidade morta
Em noite de luar, por entre a relva,
Dorme meio escondida.
O meu coração não pulsa! Entre ruínas
Para o viajor. Pompeia está dormindo...
Dorme, sem ressonar!
Seu coração — o povo que palpita, —
Caído sob as carnes das cidades,
Não... não pode pulsar!
Morto, que vale a vida? O diga Homero,
O cego Homero, que esmolou, trocando,
De cidade em cidade,
Por um alpendre e por um pão, os cantos
Que à Grécia antiga e antigos povos davam
História e eternidade.
A vida é isso: é vaga, que arremessa
Colombo ardente à entrada do oceano,
Donde surge com um mundo,
E torna a arremessá-lo a mesma vaga,
E ele encontra o grilhão, a treva, a morte
Do ergástulo no fundo.
E que há pois do outro lado do sepulcro?
A pedra tumular que arcano esconde?
Que segredo ali jaz?
Quando o alvião a rasga, a ossada alveja:
Silenciosamente o verme mexe,
Eis tudo... e nada mais!...
Mudo o vento da morte entorna as ruínas
Sobre o corpo, e o movimento que mutila,
Por grandioso que seja,
Prostra-se aos séculos, que vão vindo, e passam:
Parte-se a lousa e em um riso alvar o crânio
Parece que graceja....
Ó meu amigo, irmão nos mesmos sonhos,
Já me arrependo de acordar-te ao leito,
Para dar-te estas flores:
As lâmpadas do céu velam-te as noites:
Chora-te, e sempre, à madrugada, à cova
A estrela dos amores.
Amanhã o teu pai sorri, mancebo:
Amanhã tua mãe beija outro filho:
Amanhã entra o mundo!
E as estrelas do céu, da aurora o orvalho
Amanhã velarão a sós no berço
O teu sono profundo.
IV
..... flentem flens...
Ovídio — Tristium
Perdão, ó pais, perdão: a frase gela:
Mas há cá dentro o horror de um cataclisma,
Que me fez desumano;
E arrebentou-me a estrofe à flor dos lábios,
Como os vulcões nas asas alevantam
Uma ilha no oceano.
Vós não o esquecereis, não! Infelizes!
A eternidade de uma dor paterna,
Quem a pode sondar?
Ártico polo, que aglomera o gelo,
Quem por cima de lágrimas tão densas
Vai-lhe os seios prumar?
A glória me há de aureolar a fronte:
Apesar de homens vis, que tudo arrancam
Vingai, louros, vingai:
Minha mãe, ó Brasil, ó pátria, é dele
Este loureiro; é dele: — ide ao seu túmulo
De joelho o plantai...
V
Vox ferrea.
Virgílio — Eneida
Homens, é tempo: agora eu me levanto:
Limpei o rosto; — as lágrimas secaram:
Glória, que nos vens dar?
Reis, lá estão os lauréis da vida bela!
Jovens, as rosas caem das roseiras,
Sem o tempo as murchar.
De tanta vida que o inundou, que resta?
A noite sem estrelas do sepulcro!
A luz do lampadário
Da vida, ainda transbordando a enchente
Do óleo, que a seiva aviventou, não arde
No leito mortuário.
Pálida cruz, que os braços seus distende,
Como um soldado de além-mundo vela
Imbele e desarmado:
Roem-lhe os vermes a terrosa planta,
E não retira o pé, único ele,
Do arraial desprezado.
Ecbatana, — a princesa, — se coroava
Com o sol do Oriente, recostada às selvas,
Sobre o almatrá do Oronte:
Seu penacho de templos grimpejava,
Como um cocar de variadas plumas,
Na cimeira da fronte....
Ontem. De sobre escombros de ossos hoje,
No meio de pireus cinereados,
Sobre um roto divã,
Como enrolada em faixas de uma múmia,
Sem trono, a fronte sem cocar de plumas,
Rói-lhe a entranha Hamadã...
PÁGINA ESCURA
(Num livro íntimo de Teixeira de Melo)
É o teu rosto a pérola das luzes,
E a luz foi sempre um tálamo celeste:
Guarda, homem-menino, no teu rosto,
Guarda o beijo de amigo que me deste:
Deixa-o dormir na mesma cama, ao lado
Do beijo que te deu amor primeiro,
Por seus cândidos velos branca ovelha
Dorme assim junto à esposa do ovelheiro.
Nascemos na estação das mesmas flores;
O mesmo sol luziu ao nosso leito;
A mesma pátria nos colheu aos braços;
Só não bebemos leite ao mesmo peito.
Mas... minha mãe ao ter-te no seu colo,
Por meu amor ao menos te embalava;
E chamando-me — filho — sobre a fronte
Um beijo meu... só meu, em ti guardava.
Mas... tua mãe ao ter-me no seu colo,
Por teu amor ao menos me sorrira;
E, chamando-te — filho — sobre a fronte
Um beijo teu... só teu, em mim sentira.
Meu irmão, junto à minha a tua estrela
Como uma flor de fogo abrindo vinha,
E a rosa, que plantou no céu meu anjo,
O teu anjo plantou junto da minha.
A tua inda floresce arregoada,
Vive entre os anjos numa eterna aurora;
A minha desfolhou-se, e na haste curva
Cinórrodo mirrado apenas mora.
A Bíblia do cristão eu não profano,
Mas a vida além-túmulo desvaira;
Tenho medo ante as trevas do infinito
Onde a mente não chega e a razão paira.
A fé de Deus no meio dos meus sonhos
Tem uma fonte, que abebera, é certo,
Matariéh formosa adormecida,
Como a verde esmeralda do deserto.
Mata-me a sede, sim! a fé, eu creio;
Entanto o vácuo do sepulcro espanta:
Cristo, o Homem-Deus, implora o Pai, tem medo,
Cristo, Lázaro ao túmulo, levanta.
Tu vês: o peco fruto da roseira,
Pende seco, ante o sol, desorvalhado:
Assim ante uma vida de esperanças
Pende sobre o sepulcro debruçado.
Cedo cai: pegarei no sono em breve:
Anjo, lembra-te então desta aliança:
Vai desfolhar-me um cântico medroso,
Como um tímido beijo de criança.
Anjo, irmão, criatura de outras eras,
Por milagre de amor inda inocente,
Branco, ingênuo, no fundo deste século,
Como a pérola em fundos da corrente...
Anjo, irmão, tua mãe leva ao meu túmulo,
Fá-la chorar com a minha... a desgraçada!
Pobre mãe! que saudades lhe não deixo...
Mães, que os filhos perdeis, chorais... mais nada...
MEMÓRIA
(Num Álbum)
Memoria de mi memoria!
Gil Vicente — Amadis de Gaula
Ia em mudez romagem do sepulcro,
— Lugar do meu destino —
Sacola de mendigo, pão sem leiva,
Bordão de peregrino:
Não quisera deixar outro vestígio
Mais do que deixa a flor,
Mais do que deixa a vaga: um leve aroma,
Um lânguido rumor.
Deixarei entretanto em meu caminho,
Além da branca ossada,
Das pegadas além, que à areia imprimo,
Uma lenda sagrada:
Seja em teu livro; leia-se esculpida:
— Respeito e simpatia —
Como num tronco, que há de viver séculos,
P’ra memória de um dia!
***
Mulher! não sabes, não, quanto há de aziago,
O que levo comigo...
Bordão de peregrino é a harpa do poeta,
E o saco do mendigo:
A marca informe, que o proscreve ao mundo,
Que ao mundo o não levanta;
Porque bem como a flor só tem perfume,
Como as aves só canta.
Eu, bom grado, de vez dependurava-a,
De algum tronco qualquer,
Sobre o altar, para Deus, sobre o teu seio,
Para o amor da mulher.
Como armadura druídica pendida
Na brenha das sainas,
Deixara ao vento o dedilhar-lhe as cordas,
O ouvi-lo às campinas.
Porém, não: Deus ma deu, inda em que pese
Carregarei meu fardo:
Que vale por ela a vida de miséria,
E o nome vil de bardo?
Assim pintam arcanjos abraçando
Harpas, que vão vibrando
Entre o esplendor da Virgem sobre nuvens,
Lua em arco pisando.
Inda hei forças: de seiva e mocidade
O coração transborda:
E em paz não morre o poeta enquanto da harpa
Não quebra a última corda.
Irei cantando pois em meu caminho...
Cantarei... cantarei
O belo, o grande, o justo, o bom, o eterno:
E até quando não sei...
***
É teu livro um pomar, onde algum tempo,
À sombra abandonada,
Sentar-te-ás a colher os frutos de ouro
De uma árvore enflorada.
Dá pois espaço à minha pobre planta
Em tão fértil terreno,
Em que terão de erguer-se os novos cedros
Deste Líbano ameno.
Tiro-a do arneiro amplíssimo do mundo,
Minha planta querida:
Possa em teu livro, mais estreito campo,
Viver mais longa vida.
Deu flores? Nunca! A pobre, nivelada
Ao musgo mais rasteiro,
Viveu assim em meio do mistério,
No centro do pradeiro.
Nunca!... Mata o cacim nopal deserto,
E o suão nevado e forte
Passa sobre o delubro das florestas,
Como um canto de morte.
Oh! nunca!... Mas se um dia aqui passares,
À sombra deste arbusto,
Quando um fantasma murmurar: — tem flores...
Sou eu: não tenhas susto:
Que o cinórrodo da roseira agreste
Nunca... nunca aparece,
Senão sob os acenos da ruína
Da rosa que emurchece.
DESEJO DE VIVER
Oh! fora o sol um anjo em voo ardente
Surgindo na amplidão,
Deixando o novo Isaac ensanguilento
Sob o ferro de Abraão!...
Sinto que morrerei! Ajoelhado
Na minha própria dor,
Sinto o frio da boca do cutelo
Cair do cegador!
Eu era a espiga lanceolada e linda,
Sem inda lourejar:
Anjo da morte, espera: é cedo: espera!
Deixa: eu hei de murchar.
Meu Deus, se o sol surgisse inda mais dias
Sobre o meu horizonte,
E com seus raios quentes, deslumbrantes
Me enchesse de ouro a fronte!...
Se inda mais cenas sobre as suas flores,
Sorrindo a natureza,
Me surgisse embalada, como a índia
Na rede da devesa!...
Tenho vontade de viver por ela,
Tão cândida menina,
Lírio do vale, aurora da montanha,
Estrela da colina!
Gota de leite em lábios de inocente
Me fora o seu carinho;
Me fora a flor, que atravessando ao bico,
Leva o pássaro ao ninho.
Dá, meu Deus, acender meus lábios frios
Nesse raio de amor:
Dá, meu Deus, perfumar minha alma impura
Nessa essência de flor.
Dá-me viver e amar: minha harpa interna
Murmurando acordou:
Meu coração estremeceu... foi ela...
Foi ela que o vibrou...
E como o vento sopra as rosas belas
Do seio do suão,
E elas se vão cheirosas embalando
Nas águas do Jordão...
Ela soprou-me da alma as lindas rosas
Dos rosais da poesia,
Que vão ao céu boiando em grupo, e em cima
De vagas de harmonia.
Dá-me viver e amar, meu Deus: — Esse anjo
Viu-me, e me despertou:
E a morte, que eu sem medo olhava, agora
De susto me gelou!
Mas este pensamento, esta dor viva
A entranha me corrói:
Este verme, que as carnes me lacera,
Sinto que me destrói.
Meu Deus, eu sou o lírio inda crescendo,
A flor que não abriu:
Eu sou a aurora tímida e orvalhosa
De um sol, que não surgiu...
Eu sou a folha verde do arvoredo,
Eu sou inda a esperança:
Para a fouce, que inclina ao chão uma haste,
Sou inda tão criança!...
Meu Deus! a vida para amar com ela
De um amor infinito,
E nossos lábios confundir num hino,
Numa oração, num grito...
Num qualquer som, que traduzisse o abalo,
Que dentro em mim senti:
É a alma já, que em hinos se desprende
A ti, meu Deus, a ti...
Lázaro, suspendeu ela do túmulo,
Meu morto coração:
Jó blasfemo, hoje volvo a ti meus olhos
No arroubo da oração.
Já sei amar: ela ensinou-me. Agora
Eu não quero morrer;
Quero adorar-te, ó Deus, orar com ela;
Quero amar e viver.
DESILUSÕES E MORTE
... carmina tantum
Nostra valent...quantum
Chaonias dicunt, aquila veniente, columbas.
Virgílio — bucólicas.
Eu amo ver no céu sempre uma nuvem,
Um grito na devesa,
Um soluço no mar: amo o que é triste
Em toda a natureza.
Não vês a nuvem que lá passa agora,
E corre para o ocidente?
Será meu berço: — ali da morte nos braços
Dormirei molemente,
Bem como um cisne dorme à flor de um lago,
Que à luz do sol iria,
E a brisa, que lhe lambe o flanco, as penas
Das asas arrepia.
E que frio há de ser ali meu leito
Ficarei ao relento;
Dormirei ao clarão da lua pálida
Aos sons da harpa do vento.
Passei por este mundo, o meu deserto;
Foi-me a terra madrasta;
Pisei os espinhais de arneiro ingrato;
Sofri: — é tempo: basta.
Ninguém doeu-se do infeliz na vida:
Foi-me pranto a loucura:
Foi meu gemer um grito sem sentido,
Perdido na espessura.
Quando a plumagem lhe adornou as asas,
A borda do seu ninho,
Os seus primeiros voos experimenta,
Piando o passarinho:
Eu que vejo ante mim desenrolar-se
O espaço do infinito,
Quero ensaiar o meu primeiro voo,
Com o meu último grito.
Adeus. Como passais, gemendo, agora,
Ventanias do sul!
Faz-me bem vossa voz: passai: bem cedo
Serei no mesmo azul.
Eu da vida o que deixo? — amor é tudo:
E eu nunca amei, — meus Deus!
Nunca vi para mim cândida virgem
Volver os olhos seus.
Inda estou branco, como a flor que nasce
Em cava entristecida,
Onde o sol pendurar não vem à fronte
O ouro quente da vida.
Meu pai, um dia me surgiu radiando
Um anjo, era uma aurora,
Mas por ele passei, qual sobre chamas
Vai um pássaro embora.
Já viste a estrela que se banha ao longe
Nas águas de algum rio,
E após no outeiro parecer que treme,
Gelada pelo frio?
Vacila incerta, e tímido lhe brilha
O olhar úmido e morno;
E a langorenta pálpebra da noite
Estremece-lhe em torno.
Parece um anjo a meditar saudades
Em pé sobre a colina,
Em cujo seio um coração de fogo
Merencório imagina:
Na cicloide dos astros mergulhada
Se perde de repente:
Como a folha que o vento arranca ao tronco,
E atira na corrente.
Assim ela surgiu-me: assim perdi-a...
Assim a perderei;
E dentro o turbilhão em que volteia
Não mais a buscarei...
Fora o meu coração uma harpa eólia,
Meu lábio um hino infindo,
Fora uma prece a minha vida inteira,
A ti, meu anjo lindo.
Como o sol, teu sorriso me aquecera
O coração algente;
Como o luar da noite, o teu afago
Me prateara a mente.
Mas eu não cri no brilho da miragem,
Tão falso e sedutor:
Ninguém pode engastar no meu deserto
A esmeralda do amor.
Que o dedo seco do infortúnio afasta
Tudo o que me sorri:
Passava sob um céu sem sol nem lua,
Passando sob ti.
E em bem, meu Deus! A virgem dos meus sonhos
Não morrerá de fome:
E eu não lhe infiltrarei na entranha a febre,
Que os dias me consome.
Pomba do céu, não pises um cadáver:
Viva flor cor de neve,
Passa-lhe em cima, no teu voo aéreo,
Sem tocá-lo de leve.
E enquanto vais buscar outros amores...
Vai, eu quero esquecer-te:
Amanhã hei de dar, no areal da praia,
Aos corvos um banquete.
Eu sou tão infeliz!... Se to dissesses:
— Jovem, tenho-te amor:
Tu morrerias... morrerias cedo,
Meu anjo, minha flor.
Que eu nunca vi a rosa em meu caminho
A desbrochar louçã,
Que eu lhe dissesse: — adeus, flor da campina
Vir-te-ei ver amanha...
Misera! o vento lhe imprimira a fronte
Um mórbido palor:
A noite lhe negara os seus orvalhos,
O dia o seu calor.
Meu triste olhar, como astro moribundo
Nas abas do horizonte,
Errante sob a noite dos cabelos,
Se estremece da fronte.
E como a gotejar de sons chorosos
De um sino vacilante...
Parece que eles vibram na agonia
De uma alma agonizante.
Sou... eu sou infeliz: ninguém o pensa:
E a noite, se me deito,
Só eu sei que de atrozes desesperos
Me acolhem no meu leito.
E sob o cris do próprio pensamento
Eu caio de rolão,
E as carnes com a dor de um ferro em brasa
Me rasga o coração.
Perdão, meu pai, perdão, se inda algum dia
Amanhecer deitado,
Pálido e frio, como estátua ebúrnea
Em campo desolado.
A dor é um veneno que corrompe
A entranha pouco e pouco,
Que lacera, apunhala, rói, mastiga,
Que torna o homem louco.
Como a palmeira em pé sobre um rochedo
Meneia o leque ao vento,
Em pé, estéril, me espedaça o mundo,
E eu pendo e desalento.
Eu morrerei: eu morro... ó mocidade,
Raio de luz divina,
Já não madrugas trêfega em meu rosto,
Em nuvem purpurina.
Eu amorteço, como a luz que pende
Por abismo profundo,
Como a estrela da noite em céu de trevas
Passo inglório no mundo.
Mas não virão, velhice, os teus invernos
Meus sonhos desfolhando,
Por entre as verdes crenças de mancebo
Morro ao menos cantando!
Ó minha branca túnica da vida,
Ao luar te lavei,
Eu te sequei ao sol das esperanças,
De amor te perfumei,
Pus-te aos ombros: soberbo do teu peso,
Eu cego caminhava;
E aos meus pés a poeira, que se erguia,
Teu brilho profanava.
Ai! e as aleias dos jardins da terra
Tem tanto espinheiral!
E quem pensa dormir em frouxel brando,
Acorda em tremedal.
Rasguei, pois, minha túnica alvacenta;
O lodo a profanou:
Choro, não os meus dias, que passaram,
Mas a dor, que ficou.
Como me acolhes bem, ó desengano!
Procurei-te algum dia?
Por que passas a mão em meus cabelos?
Tua mão é tão fria!
Mas não importa... Agora em teu regaço
Procurarei o sono.
Ai! minha vida foi, como o teu seio,
Um feio e eterno outono.
Minha mãe, me olerente a morte ao menos
Teu perfume de amor;
Morro; e sinto deixar-te, ó minha amiga!
Morro! morro de dor.
Não vês a nuvem, que lá passa agora,
E corre para o ocidente?
E teu berço, ó minha alma: ali bem cedo
Dormirás molemente...
GRITOS DE UM LOUCO
L´aura soave e l´alba rugiadosa,
L´acqua la terra ao suo favor s´inclina
Ariosto — Orlando Furioso
Lembra-te, ó anjo, que eu te amei um dia,
Lembra-te, ó anjo, que eu por ti chorei.
Eu, que nos teus pés ajoelhei-me escravo,
Com o mesmo orgulho com que se ergue um rei!
Adeus!... Vai pois além, no azul dos mares,
Curvar as vagas aos sorrisos teus!
Adeus!... Tu podes tudo em toda parte:
Fez-te rainha a formosura: — Adeus.
Que diz o mar à praia em que brincavas,
No proceloso, túrbido escarcéu?
Que diz a praia ao vale? O vale ao campo?
Que diz o campo ao monte? e o monte ao céu?
Que dizeis, larga fila de colinas,
Deitadas lá ao longe em leito azul,
Em cujo seio as asas perfumara
Macia brisa a sussurrar do sul?
As pudibundas, tímidas estrelas
Hoje em teu colo pousarão também:
O que dirão os langorentos olhos,
Quando estenderem na planície além?
O mar, a praia, o vale, o campo, o monte,
Céus, estrelas, colinas, — sei, — dirão:
— Ela vai: vamos nós: — e o mar, e a praia,
Campo, montes e céus... contigo irão.
E eu ficarei na vida como um homem,
A quem roubaram de repente a luz,
Que enterrado em seu túmulo de trevas,
Deixam sozinho, — que ninguém conduz.
E o amor há de falar aos meus ouvidos,
Como o som dos grilhões fala ao galé,
Com as sombras do cárcere além-torno,
Com as lembranças do passado ao pé!
Nas pedras soltas do palácio de ouro,
Que ao céu rojei e desabou no chão,
Nas pedras soltas, — nestas pedras mesmo —
Deixem-me agora perpassar a mão.
Não quero muito: destas folhas rotas,
Destas colunas que aí estão em mó,
Deste poema que caiu, eu quero
Salvar os restos de uma pedra só.
Vamos... palpemos... Tudo é pó! Mais longe
Eis uma enfim!... Oh! como sou feliz!...
É uma pedra do palácio de ouro!
Vamos ver o que esta pedra diz.
— Da virgindade a pérola alvejava
E a coroa de ouro, não, não de rubis...
Na fronte dela a coroa era a beleza...
Vamos ver mais... Oh! como sou feliz!
Tu me sorriste; mas teu riso frio,
Hirto, sem vida então me fez gelar:
Boiava à tona do teu lábio calmo,
Como um cadáver sobre quieto mar.
Maldita pedra!... Em tão confuso acervo
Só tu ficaste sem fazer-te pó!
Vai-te, maldita: és como o cão do cego,
Que o não conduz e que lhe late só.
Gritos de um louco!... sinto-o bem: doudejo!
Esforço-me amarrado aos dias meus,
Cuja corrente em vão quebrar procuro,
E aos pés rojar-te, como extremo adeus.
Adeus! — As vagas já o colo inclinam:
As moles brisas farfalhando estão;
E nas asas azuis que se desdobram,
Vejo erguer-se o teu pé, bela visão!
Adeus!... O gênio informe das tormentas
Desruga a fronte pálida e senil,
E, sentado nas fragas das montanhas,
Está o céu a enfeitar de ouro e de anil.
Vai!... Mas ouve: talvez não vás ainda,
Suavíssima visão dos sonhos meus:
Adeus!... o lábio te repete sempre:
Mas ai! o coração não diz: — adeus.
Ondas uma após outra a pedra batem:
Dentre as vagas a lua olha através:
Lá ergue a rocha sobre a praia o colo,
Dizendo a todos: — Eu não sei quem és.
Tu te ergues, anjo, sobre minha praia,
Toda de branco, criação de luz:
E eu, como a lua, te enamoro, e vaga,
Sou todo flores dos teus pés a flux.
Ah! tu passavas como um lindo cisne,
Que as níveas asas pelo céu abriu,
E na torrente dos meus brancos dias,
Delas a sombra... a sombra só caiu.
Ó cisne, uma lanugem do teu colo;
Um só perfume do teu seio, ó flor;
Um beijo... um só dos beijos teus, ó virgem...
Como pagaras tu tão louco amor...
Nas verdes margens, sim! talvez parasses,
A desfolhar os trêmulos rosais,
Lançando rosas à torrente branca
Dos dias meus, puríssimos cristais,
Talvez deitando ao longe as alvas roupas,
Metesses nela a ponta dos teus pés:
Depois o corpo... Oh! podes vir: as margens
Desta torrente escondem-se em vergéis...
Oh! podes vir!... As pérolas dos seios
Nítidas mãos e trêmulas contêm.
Como conchas que estão quase entreabrindo...
Mostrando apenas que tesouro têm.
Oh! vem!... Já vejo que te rola a trança
— Rio em ondas de treva — ao dorso nu:
O teu pé escorrega... aí vem: ó anjo,
As brancas asas por que estendes tu?...
No mar de esperanças, que referve e canta,
Há grandes ilhas e jardins também:
Ricas cidades, que as marmóreas frontes
Erguem soberbas pelo céu além:
Altas torres que o manto azul retalham
Do céu, e delas saem profundos sons,
Que voam, como pássaros de bronze,
Que as asas mexem como vagalhões.
Não abras tanto os teus rasgados olhos...
No fundo desses dois lagos azuis
Vejo tua alma estremecer de medo,
Como o oceano ferido pelos suis.
Não tremas, virgem, se nas altas torres
Inquietos sons nos brônzeos ninhos seus
Voam, revoam, bramam, fremem, fogem
Buscando o seio do porvir... e Deus.
Por que não vens às minhas ilhas de ouro?
Vem ver impérios; vem somente ver,
Olha que as margens se abrirão, ao ter-te,
Como à luz a romã, no alvorecer.
Oh! que tesouros neste mar de esperanças...
Dos reis da terra tenho pena e dó!...
Vem, ó meu anjo, de tão vastos mundos
Ser tu rainha... ser rainha só...
Sim! eu bem vejo, aéreo cisne, voas:
Queres ser minha, desces até mim:
Mas que tristeza vem toldar-me a fronte
Quando o prazer aí vem, sorrindo enfim?
E eu sei que Deus nas frontes langorentas
Luz às mãos cheias lá do céu lançou;
Como na fronte de ébano da noite
O diadema de estrelas colocou.
Minha tristeza é filha do infinito,
Que palpo e quero e foge-me no ar;
Respiro-a em tua fronte de donzela,
No céu azul, no verdejante mar.
Sabes? — Meu lábio agita muitas vezes
Esta sombra que Deus em mim deitou,
Como de noite na floresta imensa
Hinos espalha o vento que passou.
— Meu lábio vai cantar agora!...
Leio em mim, leio em ti: vou ser feliz!
A terra, o mar, o céu, teus olhos, tudo
Até a folha do arvoredo o diz.
Ai! tudo é belo!... As brisas que respiro
Cheirosas vêm dos matagais do sul:
O horizonte é diáfano e profundo:
A terra é de ouro; o céu é de ouro e azul!
Oh! como acorda a natureza! — é noiva
No tálamo inda puro a estremecer:
E na espuma de renda, em que mergulha,
Ora o pejo a convulsa, ora o prazer.
Tudo mexe e palpita, e freme e vive:
Tudo cintila, tudo é luz e vez!...
Oh! que prodígio vai passar-se agora?
O que vai ser de mim, de ti, de nós?
Eia, meu anjo, fala, acorda... é tempo:
Meu lábio agora sepultar-se vai
No fragor de epinício cintilante,
Ou no sussurro trêmulo de um ai.
Porém que vejo? — As asas te arrebatam?
Oh! por que vais a me fugir assim?
— Escuta, cisne, leva-me nas asas:
Anjo, não busques novo céu sem mim.
Adeus! escuta: rápida me foges!...
Quem pudera seguir os voos teus!
Adeus! eu quero ouvir-te a voz ainda!
Adeus! ao menos vem dizer-me adeus!
É tarde! É tarde! Eu doudejo agora.
Volta: ofendi-te! Tens no rosto a dor:
Ai! volta: escuta: — Adoração, meu anjo:
Não me entendias, porque eu disse: amor.
Mas foi tão tarde! Não me ouviste: foste!
Lembra-me agora que por ti chorei!
Lembra-me agora que por ti fui louco!
Lembra-me... ai! lembra-me... Eu te amei! amei!
Agora, como um cego, a mão estendo
Entre as ruínas do passado só:
Nem uma pedra do palácio de ouro!
Desse poema só me resta o pó.
MIOSÓTIS
Oh! tu queres que entenda estas flores,
Cuja terna e mimosa linguagem
Traz-me o encanto, a doçura da aragem,
Que atravessa os teus lábios gentis,
Cuja voz tem um eco partido
Tão do fundo de tua existência,
Que antes é triste adeus de uma ausência
De andorinha que deixa o país!
Não foi obra do acaso? Trazia
Dentro delas o teu pensamento?
Era como um queixume, um lamento,
Que partia do teu coração?
Ai! tu mesma os vestidos erguendo
Da orvalhada, que a relva molhava,
Enquanto eu junto à casa ficava,
Colher foste-as com rápida mão.
E voltaste contente, animada,
Com mais cor, que na face não tinhas.
E ao entregar-me as mimosas florinhas,
Tua mão tinha um certo tremor:
— Não conhece? na pátria de Werther,
Lá na terra da triste Alemanha,
Vale, outeiro, campina, montanha,
Rico e pobre conhece esta flor.
A princesa que vive em castelos,
Camponesa em tugúrio de palha,
A mão cheia as florinhas espalha
Dos canteiros, que estão ao sopé:
Quem se não serve delas um dia,
Quando a dor de uma ausência nos chega,
Quem não pede à florinha tão meiga
Sua voz, seus segredos... quem é?
Quem não tem um parente, um amigo,
Que abra em torno de si um vazio?
Quem não teve um momento sombrio
Para um pai, para um filho chorar
Quando deixam seu lar e seus campos,
E vão longe, por outros países
Ver se podem fazer-se felizes,
Noutro céu outra estrela encontrar?
Ai! então entre lágrimas fala,
O que o lábio dizer nunca soube,
É um mundo de coisas que coube
Dentro dessas florinhas azuis,
Que lhe entregam, que levam consigo,
Como o aroma da terra deixada:
Como flor e não sendo mais nada,
Vale mais do que um mundo de luz... −
Tu falavas, gentil amiguinha,
Como o mel, que de um favo goteja,
E minha alma era abelha, que adeja
Louca e tonta a beber desse mel:
E eu bebia esse aroma divino,
Eu bebia o licor destilado
Pelo cálix da rosa, mau grado
Ter o quer que de vago e cruel.
Ai! não era o que nela buscava
O meu louco desejo, não era:
Nem que a flor as estrelas trouxera
Enfeixadas consigo também;
Tu falavas da flor e cerravas
A tua alma em profundo sigilo:
Escutei-te, sereno e tranquilo,
E tornei: — Amiguinha, pois bem,
Mas quando ela é deveras sublime,
Quando tem o valor de um poema,
É, se é dada por mão que trema
Entre as mãos, ao ser dada essa flor,
Quando os olhos se empanam na nuvem
De um orvalho de lágrima pura,
Quando a mão sente a mão que a segura
Fria e o rosto expressivo de dor.
Quando a amada mulher em segredo,
Não podendo falar, no-la entrega,
Mas depois que de lágrimas rega,
Mas depois de beijá-las sem fim:
Como fala a mimosa tão triste,
Vestidinha de azul orvalhado:
— Mas não tardes... não tardes, amado;
Vai, adeus, não te esqueças de mim...
Não te esqueças de mim, é seu nome,
É o nome da flor que me deste.
Foi acaso? Sabias? — Quiseste
O que a flor dentro em mim levantou?
Que esperanças! que loucas quimeras!
Que desejos! que anseios! que ardores!
Leva, leva contigo estas flores,
Nelas nunca a tua alma falou.
Ai! em vão tua mão te tremia.
Muito em vão, sim! tu tinhas no rosto
A sublime expressão do desgosto
De um amor impossível talvez!
Ai! em vão em tua voz procurava,
No volver dos teus olhos, no gesto,
No cansaço, no riso, num resto
Da marmórea, eternal palidez...
Ai! em vão! ai! em vão! eu buscava
Ler tua alma, entender-lhe o segredo;
Ou astúcia, ou finura, ou já medo,
Ou indiferença, o mais certo, encontrei.
Tu que sabes do amor com que te amo,
Tu tremias do gosto que tinhas
De enganar-me com essas florinhas,
De me ver ébrio e louco: — bem sei.
Só quiseste falar da Alemanha,
Da miosótis tomando o motivo;
Ai! mas nesse momento aflitivo,
Ler buscava no mudo palor
Do teu rosto, um pouquinho animado,
A expressão dessa doce ebriedade
De mostrar-me com tanta crueldade
Luminosas miragens de amor!
Não te esqueças de mim, me dizias?
Não te esqueças de mim... Impossível!
Eu que sempre te vi inflexível
Aos extremos do meu coração:
Que este amor só transluz nos meus olhos,
Na tristeza em que sempre me vias:
E ai! tu só! ai! tu só! me dizias:
— Não te esqueças de mim, como irmão:
Toma, toma as miosótis que deste,
Guarda-as bem no teu seio, querida:
Mas quando elas te encherem a vida
De uma longa saudade sem fim,
Quando fores cansada de ver-me,
De sofrer quase morto me notes,
Manda então outra vez as miosótis:
Diz-me então: — Não te esqueças de mim.
Oh! então erguerei com Cristo
Do sepulcro o lajedo pesado,
E de novo ao teu sol deslumbrado,
Céus e terra verei aos meus pés:
Beberei vida nova em teus lábios,
Beberei em teus beijos alento...
Vem, amor, é a vida um momento:
Ó ventura, eu já sinto o que és...
A FLOR DO VALE
Adeus, ó linda flor, em que tão pálida:
Eu vou partir: mas tu fica-te embora:
Caia o orvalho do céu, como os meus prantos,
Sobre o teu seio que languesce agora.
Pouse em teu cálix, transmudado em riso,
Cada raio que a aurora desentrança:
Cada avezinha, que do céu te venha,
Do céu traga-te um canto de esperança.
Cada sol te renove um doce encanto;
Mas que não venha o vento lisonjeiro
Na asa, que arrasta noites delirantes,
Dormir contigo ao mesmo travesseiro.
Quero-te tanto assim, pálida virgem,
Nesse vago cismar, no olhar tão triste,
Que parece que a morte inda agorinha,
A dois passos de ti brincando viste.
Amo-te tanto assim... Oh!... muito!... És bela,
Como o tímido olhar de uma criança:
Tu vacilas fantástica em meus sonhos,
Como a mórbida luz de uma esperança.
Ó nunca, meu amor, à borboleta,
Abrindo as asas matizadas de ouro,
Abras o seio de cetim tão branco,
Teu bem melhor, meu único tesouro.
Eu quero à tarde, no cair das sombras,
A fronte reclinar em teus joelhos;
E como fala nos sons da harpa um anjo,
Um anjo ouvir falar nos teus conselhos.
Ó meu amor, só tens as asas brancas,
Só tens o facho, etérea formosura:
É quanto quero: as asas p’ra minha alma,
E o facho para minha noite escura.
Oxalá que na treva em que me escondo,
Esta linda miragem me não minta:
E que inda possa te cerrar nos braços,
Tão pura como o canto meu te pinta.
Cedo volto, alva flor, e se no vale
Inda encontrar-te perfumosa e linda,
Quero sob o teu hálito odoroso
Moles noites de amor dormir ainda;
E saber que é por ti que aspiro e vivo,
E no fogo em que esta alma se evapora,
Dormir contigo como um monte acorda
No seio em brasa de uma linda aurora.
Vênus boiando nas espumas de ouro,
Que oceanos de luz nos montes deixa,
Vacila, como lágrima na pálpebra,
Após o desabafo de uma queixa.
Olha: ei-la que vem trêmula e envolta
De raios de ouro lânguidos, serenos:
É a estrela do amor. Olhando-a à tarde,
Não te esqueças de mim... nessa hora ao menos.
Flor, como uma harpa em vibração tremendo,
Eu bem cedo, outra vez, serei contigo,
Na fronte a chama, no meu lábio o hino,
E no meu peito o meu amor antigo...
A SORTE
Amore, amore, grida tuto il mondo.
São Francisco de Assis
— Por que vou ver das colinas
A manhã que nos sorri?
— Eu, se lá subo, imaginas?
Acaso vou eu sem ti?
— Queres saber por que cismo?
Não sabes, mimosa flor?
— E tu, por que cismas tanto
Às horas do sol se pôr?
— Queres saber o que fazem
Meus olhos por céus além?
— E os teus, que fazem? não erram
Perdidos por lá também?
— Por que suspiro, abaixando
A fronte pálida ao chão?
— E tu, por que a fronte inclinas,
Por que suspiras então?
— O que procuro — alta noite —
Lá dentro nos olhos teus?
E tu, mulher, o que queres,
O que procuras nos meus?
Que doce mistério é este?
Eu quem sou, e tu quem és?
Tu... toda a luz de minha alma:
Eu a sombra dos teus pés.
Eu sou a noite que doira
Da tua estrela o fulgor:
Eu sou o vale profundo,
Tu és a pálida flor.
Eu sou a vaga sombria,
Que soluçando correu:
Tu és o raio perdido,
Que em suas águas bateu.
Eu sou a árvore agreste,
Que nos rochedos brotou:
Tu és o pássaro lindo,
Que nos seus ramos pousou.
Eu sou as folhas do livro,
Tu és a lenda de amor;
Eu sou o vaso, e tu, virgem,
Tu és o suave odor.
Da vida às margens risonhas,
Onde há só mudez e paz,
Eu rosas estou colhendo,
Tu rosas colhendo estás.
Ai! embalemos as almas
Num berço de amor sem fim:
Eu não quero... tu não queres...
Mas a sorte o quer assim!...
A LÂMPADA ETERNA
Agora quando o sol surgir de novo
Entre a pálpebra imensa do horizonte,
A dor madrugará também com ele,
Longos sulcos cavando em minha fronte.
Esqueleto de um riso há tempos morto
Jaz aqui no meu peito em cava escura,
Onde a luz fria de minha alma bate
Como um raio de lua em sepultura.
Pálida estrela, tu passaste errante,
Nua e sem raios pelo meu deserto;
Quero ao menos amar-te, em que bem longe,
Já que não posso ter-te aqui bem perto.
Quando as flores murcharem pelas jarras,
Nem luz de festa houver no altar poento,
E pela nave do meu templo escuro
Passar apenas sussurrando o vento...
Como uma flor de fogo desbrochada
Num solo merencório e solitário,
A tua imagem pura e irradiante
Dará luz no interior do meu sacrário.
E, que me importa a luz de cem mil círios,
Sendo tu uma alâmpada sagrada,
Que sobrevive do esplendor da festa,
Sempre a arder na capela abandonada?...
NÃO RASGUES TEU NOME
(Numa página de livro de E. Pelletan)
Que anjo do desespero,
Encarnado em grito horrendo,
Me atravessa o lábio e o fere
Como espada em chama ardendo?
Que quer dizer este brado
Nos lábios meus a ulular,
Como quem sai dos abismos
À superfície do mar?
Que fazes? que profanaste?
Aonde atreveste a mão?
Quem vê o sol, basta um dia,
Nunca mais deslembra-o, não.
Monta o pálido ginete,
Sobe a colina de além,
Viaja o vale da morte,
Quem te há de esquecer? Ninguém.
Elias do pensamento,
Sacode o pó dos teus pés,
Monta o teu carro de fogo,
Sobe: — sabemos quem és.
Teu nome não te pertence:
Não to podes mais roubar:
O vento escreveu-o nas folhas
Do seu livro secular.
O tempo vinga esta injúria:
É um cofre de ouro a história,
Onde há de soar teu nome,
Lançado por mão da glória.
Oh! teu futuro é bem lindo,
Como o meu é feio e agreste,
Como vinga o teu loureiro!
Como cresce o meu cipreste!
CISMANDO
I
Embaixo o mar, que se desfranja imenso,
E em cima o céu a arder,
E o sol, ossada de real cadáver,
No túmulo a descer.
E no oriente, num coxim de prata,
A estrela se reclina.
Olhar da noite vigiando o dia,
Por detrás da cortina.
E a brisa com os azuis cabelos soltos
Brincando pelo bosque,
Batendo as leves, perfumadas asas
Nos vidros do quiosque.
E o batel preso à margem da corrente,
Ondulando ao seu grado,
Como minha alma ao corpo, oscila e treme,
Batel à praia atado.
Lembras-te, ó Virgem, deste quadro belo,
Que ontem vimos dali,
Tu sentada na relva da colina,
E eu ao pé de ti?
II
Sonhemos juntos, na estação das flores,
Sonhemos em mudez:
Eu na fronte o vulcão, o incêndio, a lava,
E tu a palidez:
Eu a rosa em que o sol perfuma as tranças,
Eu a rosa de amor:
Tu o lírio, que a tarde traz no seio,
O lírio do pudor.
Oh! nestes sonhos que vaporam da alma,
Como um doce perfume,
Nestes delíquios, nestes longos êxtases
A vida se resume.
A vida bela, que sacode aos ares
O seu manto odorento,
Como a palmeira da Ásia o véu de amores
Na passagem do vento,
A vida bela na celeste idade,
Em que tudo a cismar,
Pela escada de seda da esperança
Despenha-se no ar.
Ai! sonhemos, ó Virgem de olhar doce,
De lânguido palor,
Tu os sonhos de Deus na fronte bela,
Eu os sonhos de amor...
A VIDA
(Num Álbum)
A vida é taça de ouro, ou prata, ou argila,
E sempre a quer a mocidade cheia:
Doiradas ilusões fervem-lhe dentro,
Como orvalhos em páramos de areia.
A vida é rio, que murmura, ou brada,
Ora na mata à sombra de arvoredo,
Ora em deserto, em leito nu, sem flores,
Que vai em mar sem fim morrer bem cedo.
A vida é flor em cima de uma vaga,
Que em moles asas leva à praia o vento:
Mas essa praia é o colo de uma virgem,
Um louro, um goivo, o espinho de um tormento.
Desata a vida por serenos vales;
Não te despenhes de alcantil sombrio;
Paga-te a queda o estrépido ululoso,
Que não vale a mudez de um claro rio;
De um claro, rio, espelho transparente,
Que entre as rosas da aurora o céu afaga,
Que embala a tarde, nos seus véus dourados
Pondo uma estrela à flor de cada vaga.
Assim sereno, assim suave e calmo
Passa silente à sombra da colina;
E a própria relva, que lhe enfeita as margens
A dar flores gentis o rio ensina.
Na taça de ouro de inocentes crianças
Enche a existência, que tão branda corre;
Sem nome, mas também sem longas mágoas,
Ama a mulher, a Deus, a Pátria... e morre.
Não vás aos cimos desnichar as águias;
Não vás aos bosques perseguir as feras:
Deixa que o sol de luz os pés te banhe,
Vê à noite a brilhar milhões de esferas.
Lutar com mares não sabidos para
Novos mundos achar, é só de poucos:
Esses vivem a glória, e sombra, e sonhos,
Esses são sempre mártires e loucos.
Ai! as visões! essas visões eternas,
Esses fantasmas de ouro, a que passado
Arrastam após si uma existência...
Não sigas... Foge ao abismo inda ignorado.
Ninguém é Prometeu sem ter dos deuses
Ferros, torturas, quedas desastrosas:
Melhor vida é viver indo entre lírios,
E dormir, acabando, em chão de rosas...
A ABELHA
Soyez bien réveillée!...
Cazotte
Que vens tu fazer, abelha,
Lindo inseto zumbidor?
Que vens tu zumbir ao vento?
Que vens tu zumbir à flor?
Eu sei, inseto inocente,
Que para teres teu mel,
Matas a flor, em que pousas,
A lindo flor do vergel.
Encostas teus beiços de ouro,
Teus lindos, dourados pés
No colo rubro das rosas:
Se elas não sabem quem és!
Porque sua irmã te julgam;
E julgam, quando te veem,
Que és uma flor sem raízes,
Ou uma flor que asas tem.
E depois teu beiço é doce;
Sabe tanto o teu zumbir!
E a flor inclina a cabeça,
E pensa que vai dormir.
E pensa que o sono é belo,
Que noutro dia hão de vir
Com a aurora os mesmos orvalhos,
Com o sol o mesmo sorrir:
Que nos teus braços, abelha,
Ai! nos teus braços de irmã,
Há de embalá-las a noite,
Achá-las há de a manhã.
Eu sei, abelha dourada,
Eu sei qual é teu ardil:
És como a aranha; a teu modo
Urdes a rede sutil.
Mas essa rede é mortalha:
Mesmo assim fina, como é,
Ai! quem tocar a mão nela!
Ai! quem deitar nela o pé!...
Ó linda flor, foge dela,
Foge dela, ó linda flor.
Esse inseto de asas de ouro
Canta, mas olha, é traidor.
Há de dizer-te: — és a joia
Do esmeraldino roupão,
Que cai dos ombros dos montes,
E tolda em pregas o chão:
Há de chamar-te: princesa;
E o teu sólio há de beijar:
E há de dizer: — tem bem pouco,
Quem ter merece um altar:
Que há de salvar-te à tormenta,
Se a fria chuva cair:
Mas de uma coroa de orvalho
A fronte te há de cingir.
Da noite o orvalho é diamante,
É sem rival seu fulgor;
E acorda assim enfeitada,
Mais linda a mais linda flor.
E há de dizer-te inda a abelha,
Que durmas, sem te afligir;
Que nem as mesmas estrelas
Ao teu pousal hão de vir.
Que na tua mole cama,
(Que cheiro os lençóis não têm!)
Que nas cortinas, no berço,
Ninguém bolirá... ninguém...
Que as tranças de ouro, ligeiras,
Que em ondas vêm a rolar
Da espádua negra da noite,
Que tem a fronte a estrelar...
Com os pés calçados de sombra
Sobre a terra a caminhar,
Não hão de em teu seio puro
Não hão de se perfumar.
Flor, ficarás encantada,
Tu te hás de julgar feliz.
De teres, quem te ama tanto,
Quem tantas coisas te diz.
Que extremos!!... Ter amplo o espaço!
Livre o céu, bem amplo o ar!
Ter asas, e não deixar-me!
Oh! ela é quem sabe amar.
Sim! eu decerto amaria
Tão boa amiga; sei bem:
É linda: e além de linda
Quase é minha irmã também.
Mas eu furtara um momento,
A tão extremo amor,
E fora ao vale vizinho,
Saíra a ver outra flor:
Subira ao céu: minhas asas
Molhara-as em seu clarão;
E até em pensá-lo, o juro,
Sinto-me humilde no chão,
Pelos pés acorrentado,
Presa enfim pela raiz,
Embora me veja amada,
Sinto-me sempre infeliz.
Ó abelha, abelha, abelha,
Abelha gentil irmã;
Deves pois amar-me muito!
És boa, quanto és louçã.
Dorme comigo em meu berço:
A noite vem, a chegar,
E a brisa que há de embalar-nos,
Vem lá dos lados do mar —
E abrirás o teu berço
De seda, de ouro, e cetim,
Flor boa, — Abel das campinas, —
À abelha, — seu mau Caim.
E penderás a cabeça:
E quando a fores pender,
Conhecerás, mas já tarde,
Ir nesse sono morrer.
E hão de encontrar noutro dia,
Já sem perfumes, sem cor,
No teu berço mutilado
O teu cadáver de flor.
Maldita, maldita abelha,
Que para fazer teu mel,
Matas a flor em que pousas,
A linda flor do vergel.
O NOME
(No álbum de minha irmã)
Do nome a lembrança ao menos
No teu álbum queres tu:
Nem como o filho de Vênus,
Tem asas, sendo ele nu...
Nu, sem asas, sem história,
Junto a um ossário sem cruz,
Não há de o anjo da glória
Dar-lhe em torno branda luz;
Alumiá-lo aos vindouros,
Vê-lo na campa surgir
No meio desses tesouros
Com que se paga ao porvir.
Mas abençoado seja,
Quem o loureiro criou,
E o espinhal, que viceja,
E o pé que um dia o pisou.
Vá, pois, minha irmã querida,
Meu nome e o meu coração,
O nome, e a fonte da vida,
Flor seca, e extinto vulcão.
Irmã, modesto regato,
Sem ondas e sem fragor,
Nas margens virente mato,
No mato inocente flor.
Flor de candura, cheirosa
De perfumes matinais,
Se mais bela ou se odorosa,
Não se sabe o que ela é mais.
Recebe o meu triste nome,
E guarda-o em teu seio bem,
Que de ti ninguém o tome,
Que não o saiba ninguém...
O meu nome sem ruído,
E o meu mudo coração,
Como um som esvaecido
Sobre as cinzas de um vulcão.
Como a folha que segura
A um galhinho inda está,
Nas ondas dessa água pura,
Que é tua vida, que vá...
E enquanto ele vai... enquanto
Teu santo bálsamo cai,
Faz-me o teu bálsamo santo
Erguer da campa meu pai...
O nosso pai, irmã boa,
Que vendo a nossa união,
Com uma mão nos abençoa,
Sobre nós põe outra mão...
A AVE DO AMOR
Lasciate ogni speranza...
Dante — Inferno
Que ave de paz lá vem, trazendo em cuidos
No tenro bico tão mimosas flores,
— Talvez colhidas de rosais de sonhos,
— Talvez medradas em vergéis de amores?
Que encantadora que é! voga no espaço
Como na mente a ideia de ventura,
Como um sorriso a espreguiçar-se lânguido
À flor dos lábios de uma virgem pura.
Vem mais serena que a canção que passa
Do coração ao lábio, onde flutua
Sustentada nas asas da harmonia,
num céu de outono a lua.
Avezinha do amor, vai com teus ramos
Fazer teu ninho; veio a primavera:
Adeus! vai ser feliz. Adeus! sê livre!
Oh! tão livre e feliz quem ser pudera.
Vai: não pares aqui. Mas ai! mau fado...
Mau fado teu, onde pousar vieste?
Não havia algum campo mais viçoso?
Há por aí vergel menos agreste.
Que queres tu de mim? — Ai! desgraçada!
Sabe-o Deus, para mim já que assim corres,
Se desejo asilar-te!... Mas não posso:
Vais morrer, infeliz! — Coitada, morres!...
Ó não venhas, por Deus, ave, não venhas
Fazer teu ninho, e assim morrer tão cedo
Num fundo abismo, namorando a grimpa,
Que ao pé se eleva de alcantil penedo.
Minha alma hoje é um sepulcro escuro e feio,
Meu coração terreno montezinho,
Inda que se ergue pelo mundo, altivo...
Ai! da avezinha que aí fizer seu ninho!
Pobre infeliz! Nem sabes que tormenta
Anda num céu de pavoroso inverno,
Aonde o sol das ilusões é frio,
Onde a descrença é um pegão do inferno.
Degradado do Éden dos meus sonhos,
Vou às vezes à porta proibida
Chorando, como Adão, e inda ouço ao longe
Dulias de anjos da mansão perdida...
Mas ai! o desengano é gelo, é morte,
P'ra as flores da alma um furacão eterno!...
Pobre infeliz! nem sabes que tormenta
Anda num céu de pavoroso inverno!
Quando se encara o nada desta vida,
E a fofa pompa a que este mundo aspira,
E só se encontra no pequeno e grande
Vaidade, orgulho, estupidez, mentira:
Quando se tem de manejar a intriga,
A adulação vestir com frases de ouro,
Como um verme asqueroso andar de rastos,
Para depois se haver um vão tesouro:
Tropeçar na miséria a cada passo,
Ver que a fome ao seu lado a voar ande,
P'ra matá-la manchar as mãos de sangue,
Depois na rua blasonar: sou grande!...
Roubar ao órfão o pão, e à viúva triste,
Fazer suar a esquálida pobreza:
Subir pelos degraus do crime a passo,
Até chegar às salas da grandeza!...
Olhar lá do alto a mesquinhez dos outros,
Vê-los vergar; pisar-lhes sobre o colo,
Julgar que deles os separa um mundo,
Quando é só a traição, o crime, o dolo!...
E nós pensamos que nossa alma é um templo,
Que tem por tochas grandes pensamentos,
Ardendo ante o altar de sãs ideias,
Mas nunca em aras de ídolos poentos!
Que este crânio é uma alâmpada eviterna,
Pendendo acesa desse teto imenso,
A destilar suavíssimos perfumes
De âmbar e aloés e mirra e nardo e incenso!
Mas qual!... É uma taberna e pobre, e suja,
Onde a plebe se ebria, onde vomita,
Onde faz dissensões, onde blasfema,
Onde ulula e pragueja, e ri-se e grita.
Tais são as sensações mais austeras,
Que à alma vão por qualquer das cinco portas;
Lá se ebriam, lá brigam, lá se rompem,
Lá se enervam, por fim lá ficam mortas.
E o crânio? Isso é um covil meio encoberto
Por esta grenha de cabelos densos:
Rasgado corucheio, que as ervas cosem,
E em que andam bandos de aves más suspensos.
E quem dirá, que ocultos não voltejam,
Sinistros, como sombra em corredores
Projetada por lâmpada mortiça,
Na mente afãs, e ânsias, e amargores?
E o que tem alagado o rosto em luzes
De um riso, que do lábio está pendente,
Como lustre do pórtico de um paço,
Cheio de festa, de prazer, de gente?
E dentro? Não passeis daquelas portas:
Vos mente o coração; é chagas todo:
Fruto, — ouro por fora, e a massa vermes;
Lago, — prata na flor, no álveo lodo.
Homens, quereis saber quem sois? Um dia
Ide sós, ermos, longe da cidade
Ver roçar pela face azul do oceano
As asas do dragão da tempestade:
Ide às florestas nos festins das brumas,
Negro o céu, densa a noite, o vento forte,
Rugindo aos sons do cedro, que desaba
Como um riso de escárnio aos ais da morte:
Ide... e ouvindo o estalar dos galhos secos,
Que imita de um cadáver as passadas,
Que entre as brenhas, ao entrechocar dos ossos,
Bate palmas ao raio, em gargalhadas!
Meus amigos, trazei as vossas taças,
Enchei-as neste oceano de luz pura:
Barca de ouro é uma nota de harpa jovem,
Que erguendo ondas de um mar de luz, murmura,
Desfralda as velas como um cisne as asas,
Cortando um mundo imenso da harmonia,
Traz cada vaga um pensamento de ouro,
Um ramo de coral da fantasia.
Meus amigos, trazei as vossas taças,
Ide enchendo-as da luz que um canto escorre:
Hoje eu canto: amanhã? não sei: quem sabe?
O cisne canta, e quando canta, morre...
Meus amigos, gravai bem na memória:
Um tesouro não vale uma impostura;
Uma ação vil mácula a vida inteira;
Uma virtude vale a sepultura.
Abri... abri caminho a vis escravos,
Olhos torvos, copando a fronte o louro:
Do que arrasta a zombar grilhões de ferro,
E a arrastar — vis! — os seus, por serem de ouro.
Deixai-os, sim! — As aves, que de noite
Dando daqui, dali um curto salto,
Como não veem de dia o voo da águia,
Não creem que possam céu pisar mais alto.
Eu não: eu triste, que só tenho uma harpa,
Abordoado e mudo peregrino,
Como um cisne batendo as asas brancas,
Sem deixar rasto, sigo o meu caminho...
Também às vezes sobre a estrada pairo:
Olho o mundo a soslaio, e vejo o espaço
Pejando gralhas, cujas ricas penas
Roubaram dos pavões: ergo-me e passo.
Pairo além: olho; e então dou fé que o homem,
— Rei destronado, — ensaia um voo ainda
Ao reino, donde foi por Deus lançado:
Delira; — mas o arrojo seu não finda.
É verdade: nossa alma, — essa águia imensa —
Abre as asas vaidosa, e aos céus remonta:
Ei-la quase a empolgar um astro... empolga...
Quase... Mas lá naufraga em luz, de tonta.
Tantos mundos, que em chamas arrebentam,
Tanta glória no azul do céu traçada!
Que não dê um rasgão em tanto arcano!
Que veja tanto! que não saiba nada!
É grande só quem não levanta os olhos,
Para acima de si ver coisas belas.
Quem tem aos pés milhões de sóis, de mundos,
E muito abaixo as nuvens e as procelas.
É grande quem não volta a frente ao vento,
Que lhe sacode o pó da terra à cara;
Quem os olhos não fecha à luz do raio,
Que faz tremer de medo o vil que a olhara.
É rico só quem com um desejo apenas
Do nada um céu tão lindo desencanta,
Quem pode só com um pé erguer mais astros,
Que o pó dos campos, que o tufão levanta.
É sábio só quem pode a tantos mundos
Dar leis e ser o único monarca,
Conduzindo-os mais calmo que um remeiro
Conduz, cantando amor, num lago a barca.
É bom somente quem podendo tudo,
Vendo o homem que quer ser rei, ser forte,
Não despenha torrentes de coriscos,
Chuvas de fogo, furacões de morte.
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E o que é o amor? Um sonho inebriante,
Que aos braços da mulher num beijo passa:
Sombra a amizade que acompanha o fausto,
Que se apaga, que foge ante a desgraça.
Ah! que as rijas lufadas das descrenças
Varreram-me as ilusões! Conheço o nada
Dos gozos deste mundo; e que má sina,
Quem não tem de ilusões alma enflorada.
Não há mais para mim auroras lindas,
Nem sol de encantos, nem cismar profundo;
Só ouço os passos de uma turba louca,
Só vejo trevas a reinar no mundo.
Ah! e o que é um coração de poeta,
Onde a desgraça em rijos tufões brama?
O que aí pode florejar? Nem cardos,
Nem pobre relva, nem rasteira grama.
É como a rocha à beira mar, sem viço,
Onde o mar vai quebrar iroso a sanha!
É como a lança, que branqueja a neve,
De estéril coroa de brutal montanha.
E então lá quando as aves de almos sonhos,
Namoradas, como águias, pela altura
Desse alcantil, aí em flores voam,
Pousam na lájea de uma sepultura;
Qualquer rugir do coração as deita
Ao abismo da alma!... Ai! teu adejo corta;
Avezinha de amor, se queres vida,
Não pouses, não, aqui: pousando és morta.
Minha crença é não crer em coisa alguma,
Menos em Deus, menos nas dores, menos
No fim de tudo, nas sombrias coisas,
Que nos pedem, chorando, uns vagos trenos.
Vai buscar algum campo mais florido,
Um vergel para ti menos agreste,
Um coração, onde ilusões vicejam:
Para que a um calvo coração viste?
Mulher, se prezas tua felicidade,
Quando me vires a sorrir um dia,
Não creias, não, em mim: — é falso o riso:
Oh! não queiras amar estátua fria.
Se, no meu coração, fazer tentares
Com penas de ilusões de amor o ninho,
Vê: se queres viver, lembra o meu canto:
Corta teu voo e deixa-me sozinho.
Deixa, na brenha do sofrer oculto
Rochedo, o coração como atalaia
Do abismo de minh’alma, até que um dia
Raio de morte o despedace e caia.
Goivos, então, que hoje bordais meu bosque,
Livre estrada abrireis de galho em galho,
Por onde passe à areia ressequida
O rocio da manhã, da noite o orvalho.
Porém, lá quando o sol quiser seus raios
Calar, goivos, fechai, não quero flores
Num granizo esquecido, que não pôde,
Enquanto coração, ser para amores.
E onde irás tu, meu pobre canto? És folha,
Que aos sóis da existência entregue, corre;
Caída já de uma árvore esgalhada,
Inda que nova, mas que pende e morre.
Passarás pelo mundo, como passa
Um suspiro de um peito desgraçado,
Como uma gota solta no oceano,
No tumulto da vida abandonado.
Homens, porém, se algum de vós moteja,
Se algum de vós em mim não crê tão pouco,
Entregai-me aos baldões, passai felizes,
Que eu irei só, como caminha um louco.
SALVE, Ó LIVRO
(Num Álbum)
À sombra do vergel coberto de loureiros,
Onde os cisnes da Lísia e do Brasil rivais
Roubam à abelha o mel e o clarão aos luzeiros,
Em melódicos sons, em cantos divinais,
Vim sentar-me, conviva estranho, humilde, ignoto,
Entre a turba de reis, que é cada um pensador,
E erguer a voz também, também fazer meu voto,
Mesclando aos seus lauréis a minha pobre flor.
Sonhei: — Vi do horizonte erguer-se um vulto armado,
Com gesto de guerreiro antigo e colossal,
E abraçar um mancebo a erguer-se do outro lado
Tão grande que o cabelo era-lhe um florestal.
Tinha um rio enroscado à floresta; — era o casco,
Como serpente argêntea em troncos a silvar:
Na boca enorme traz um enorme penhasco,
Que, disséreis, ser ilha em verde e pleno mar.
Os pés punha-os também sobre outra igual serpente,
Estendendo a lamber ubérrimos vergéis:
A imagem cri eu ver do meu Brasil ingente,
Que à fronte tem um rio e outro rio nos pés.
Levando aos ombros nus as vagas espumosas,
Entre eles o oceano estortegava em vão:
Fronte a fronte no ar, ali os dois gigantes
Firmavam num amplexo uma eterna união.
Enquanto à mente o quadro em sonhos me apresenta,
E eu quero e aspiro vê-lo eternamente assim,
De um e de outro país o gênio aqui se assenta
No mesmo livro como à mesa de um festim.
O livro então parece o braço destinado
A ter a humanidade em senda mais feliz,
A ligar o Cruzeiro ao Tejo decantado
E os montes de um país ao mar de outro país.
O livro é como o sol, águia da imensidade
Nos páramos do céu em voo perenal,
O facho que ilumina o passo à humanidade,
A espada que fulmina o anjo torvo do mal.
O raio que derruba as raias dos impérios,
E nivela as nações e une povos e reis,
Que faz o poeta ver nos espaços etéreos
Junto ao jovem Brasil o ancião português,
Caldeira refervente em que cai a pedaços
A vida e o coração e a alma do pensador,
Donde sai, pé em terra e a fronte nos espaços,
Feita de sons e luz a figura do amor,
Elo santo que prende o mar grande ao vil lenho
E às divinas canções um tênue som de mais:
Salve, ó livro, arca de ouro em que guardar eu venho
Meu pobre nome e uni-lo aos nomes imortais.
AQUELA TARDE!...
Quisera atirá-la ao espaço,
Dar-lhe inteira liberdade...
Cantar minha felicidade
Aos montes, aos céus, ao mar:
Quisera sentir o abalo,
Que percorrera por tudo:
Mas ai! devo ficar mudo;
Mas ai! não devo falar.
Custa guardar um segredo!
Custa saber que astro ignoto,
Não sabido, em céu remoto
Visto por mim a luzir,
Deve ficar sepultado
No seu ninho resplendente...
E que hei de eu só... eu somente,
Vê-lo, amá-lo, e o não trair.
Que há de ser como um abismo,
Como entranha que devora
O resplendor de uma aurora,
Sem ter poder de a mostrar:
Contê-la por que não saia!
Foi grande o meu fatalismo:
Caiu a pérola no abismo,
E eu fui o abismo do mar.
Agora sei o que custa
O esconder a ventura!
É tão fraca a criatura!
É tão constante o sofrer,
Que quando chega o momento
Da menor felicidade
Quer contá-la à imensidade,
Quer dá-la a todos saber.
Não cabe um argueiro destes
Dentro de suas entranhas,
Ele que engole montanhas
De obscuros dramas de dor,
Que cala todos os gritos
De suas misérias brutas,
Com as pálpebras enxutas,
Limpa a fronte de suor!
Chega o instante radioso,
Morde no fruto dourado,
Fica-lhe o lábio banhado
Do doce mel a luzir;
Quer esconder a ventura:
Mas o gozo é tão profundo
Que aos vesgos olhos do mundo
Quer e não pode mentir.
Argila que estala, e deixa
Pelas fendas entreabertas
As essências mais secretas
Fugir... perder-se no ar.
E a inveja que enruga a fronte,
Por toda parte procura,
Quem pôde o olor da ventura
Deixar do vaso escapar.
Ai! desta fraqueza humana,
Ou desta humana vaidade,
Que esconder a felicidade
Quer, e sucumbe no afã!
Miséria!... cobarde infâmia
Os nossos brios consomem,
Mas o homem é sempre o homem
Ontem, e hoje, e amanhã!...
Assim dentro de mim gira
O ignoto astro, que veio
Meter-se dentro em meu seio,
Encher-me de estranha luz!...
Ai! se o descobrem acaso!
Qualquer grito traiçoeiro
Fará secar meu loureiro,
Fará nascer minha cruz.
Não! não o mostro; não posso:
Bom grado o mostrava! E embora
As flores, a selva, a aurora,
Astros, sol e dia, e luz,
O mar, as nuvens, os montes,
Noite, orvalho, primavera
Me dissessem que não era
Um astro, como supus!
Podiam negá-lo todos,
Negá-lo podia tudo;
Ficara estático e mudo,
Ouvindo todos negar,
Enquanto o astro rolando
No seu leito chamejante,
Vinha com seu beijo amante
Minha fronte iluminar.
Aquela tarde!... Quem dera
Poder bem contar os anos,
Que depois de tantos danos,
Ela então viver me fez!
Aquela tarde!... foi séculos...
Foi talvez a eternidade...
Na taça da felicidade
Bebi por primeira vez!
É meu segredo!... Não digo;
Quase não posso contê-lo;
Mas ai! não devo dizê-lo...
Ninguém o deve saber!
No dia em que alguém soubesse,
Ao pé da minha ventura
Abrira-se a sepultura,
E só restava o morrer...
Assim límpido regato,
Nítido fio de prata,
Cintilante se desata
À sombra das palmeiras:
Mas se cortam as palmeiras,
Onde a fonte se escondia,
Foi o seu último dia,
A fonte não corre mais.
CRER E MORRER
Meu Deus, que mal te fez a criatura
Antes de ser criada?
Para a fazer sofrer, ó Deus, somente
A tiraste do nada?
Não vês? — Passar a escala das torturas,
Chorar desde o nascer...
Beber a dor no cálice da vida,
Bebê-la até morrer!...
Lançaste o homem, como o vento a folha
Que arrasta pelo pó:
Teve a esperança, a dúvida lhe deste;
Mas certo o sofrer só.
Em cada ruga a cicatriz do raio,
Que o anjo fulminou,
Palpa na fronte bela e em cada pulso
O ferro, que o manietou.
Encelado caído sob as ruínas
De tudo que elevou;
Prometeu amarrado ao eterno Cáucaso,
Em que a dor o deitou...
Ei-lo mísero! E é isto o homem!... Isto
É tua obra, Senhor!...
E com que fim fizeste esta obra hedionda,
Mescla de barro e de dor?
Fizeste o mar: pois bem, o mar é grande:
Fizeste o céu; pois sim!
O céu inda é maior: e o homem fizeste
Também: mas com que fim?
Quem do criado se ergue ao que tu podes,
Podes muito, Senhor!
O mar o diz, o céu o atesta: o criado
Proclama o criador!
Para que a dor, a podridão, as fezes?
Para te compreender,
Para louvar-te, era preciso o homem
Na dor nascer, morrer?
A dor! A dor!!... Foi o primeiro leite,
Que o homem amamentou.
Para sofrer e compreender-te as obras,
E louvar-te, aqui estou...
Só?... É enorme!... Só?... É crime... Escravo
Fizeste-me da dor!
Ai! desvenda-te aos olhos de minha alma,
Senhor! Senhor! Senhor!
Eu não te compreendi: eu não te entendo:
Luz... luz ao pobre cego:
Vou à mercê dos ventos, como a tábua
Do naufrágio no pego...
Vou, porque vou: a onda me arrebata,
O vento me conduz:
Ouço-te a voz talvez, mas te não vejo...
Luz, para ver-te, luz.
Fugiste, ó Deus, à nossa natureza
Para céus mais distantes:
Sê dela e as mesmas leis hão de prender-te
Nas malhas cruciantes...
Rojar no pó do templo a fronte imbele,
Cantar em teu louvor,
O peito lacerar com mãos convulsas,
É fácil, meu Senhor:
Vão holocausto, com que tu não folgas,
Que a pobre humanidade
Faz por terror; onde há somente o uso,
Não amor, não piedade.
Ao que pensa, ao que quer estar contigo,
A ver-te te não dás:
Lá dentro do infinito e tu com ele,
Lá muito longe estás...
Meu Deus, Senhor meu Deus, se um dia ao menos
Não se dormir sem dor,
Na pedra tumular pousada a fronte
Sob o véu do palor...
Se em nós se enroscam, inda ali, as serpes
De lentas agonias,
Que envenenaram toda a nossa vida,
Todos os nossos dias...
Então, Senhor, bendiga-te a existência
Outro feliz, não eu:
Quem à sombra da tua providência
Nasceu, viveu, morreu:
Que eu farto de sofrer, sinto a blasfêmia
Os meus lábios queimar:
Deus, ao menos de fé colma minh’alma;
Ensina-me a esperar...
Oh! a esperar em ti, a crer que em breve,
Além da sepultura,
Não há dor, nem sofrer, que em paz repousa
A pobre criatura.
Feliz! feliz quem perpassou na terra,
O olhar em ti só fito,
E, sem tocar as asas na planície,
Voou para o infinito.
Feliz quem creu, amou, viveu, só tendo
No céu seu rumo e norte:
E que diz: vejo o porto: e morre, e encontra
Enfim a paz na morte.
PALMAS E LOUROS
I
... con le più dolce e più soavi
Parole che sa dir: con quel più amore
Che può mostrar, gli dice...
Ariosto — Orlando Furioso
Como na idade homérica nós vemos
Um rei crer Deus um hóspede que vem.
Deste-me palma, louros, coroas, festas,
O pobre estranho creste um Deus também.
Eu as levanto: tuas são, poeta:
Deste o que tinha: teu real crisol
Ouro só tinha e esse ouro derramaste:
É luz, é ouro, o que só vem do sol.
Porém o ouro do sol que a terra inunda
E lança ao mar o seu purpúreo véu,
Pendurando-o na coma da floresta,
E as asas doira aos pássaros do céu.
Não é da terra, não; não é dos bosques,
Não do mar, não das aves; de ninguém;
E quando o sol refoge além-montanha,
Leva consigo esse ouro todo além.
A concha enorme da turquesa aérea
Entorna a sombra tétrica e feral,
Boceja o sono entre as estrelas, dorme
Cheio de vagos sons o florestal.
Uma gota no musgo de uma rosa,
Fonte sem nome em cava de alcantil,
Que o pássaro conhece e onde ele bebe,
Tênue ruído entre harmonias mil.
Eis o que sou... Porém se o sol um dia
Inclina o régio diadema ao val,
E um raio fulvo vibra-lhe da fronte,
Parece a gota um mundo colossal.
II
... dum adhuc infans...
Apolônio de Rodes – Argonauta
No meu primeiro despertar, na infância,
Quando a palavra era um murmúrio apenas,
Como uma ave que o espaço não calcule,
Ao sol da glória eu sacudia as penas.
Chorei cantando na manhã da vida,
— No céu ridente da alma sombra alguma, —
Como o aroma de um tronco não ferido
Que chora e o ar nas lágrimas perfuma.
Eu nesse tempo modulava às brisas,
Ao sorrir da mulher tecia endechas,
E adormecendo molemente os ventos,
O ambiente enchia de amorosas queixas.
Cantava as nuvens que nos céus erravam,
Como um bando de pombas fugidias,
E as vagas, que correndo à flor dos mares,
Vinham morrer a rir nas penedias.
Voz profética a vir dos quatro ventos,
Parecia dizer-me: — Espera.... Espera...
— Espero!... aos ventos respondia: e eflúvios
Cria beber de eterna primavera...
Esperar pelo quê? — Qual o meu sonho?
A profética voz me não dizia;
Contudo o que era grande me enlevava,
E o que era belo aos olhos me sorria.
Que há de esperar por fim quem tudo espera?
A infância mede o seu porvir distante:
E olha p’ra o Homero, e ri-se, e diz: — quem sabe?
E diz: — talvez!... ao temeroso Dante!
Está tão alta em suas esperanças!
Próximo ao berço tanta luz radia!
Ai! mais um passo e está perdido o Éden,
E o tanger dessas músicas que ouvia...
Como a lagoa transparente embala
O céu que a cobre, e o bosque que a rodeia,
E o céu, e o bosque, e o azul, e o ouro, e enfim tudo
Perde a lagoa com um só grão de areia.
III
I’vo piangendo i miei passati tempi...
Petrarca — Rime
Eu morrerei da tarde entre os perfumes,
Num vale escuso a rir-se todo em flores,
Vendo passar por mim estranhos numes,
Quase a rir-me também das próprias dores...
Sobre que pó, sobre que lodo impuro
Caiu-me quase em pranto e quase a medo
Da árvore bela dos meus grandes sonhos
Uma das flores que murchava cedo...
Do tempo vão na lutulenta vaga
Vês este povo que se arrasta agora?
Vasos podres de argila, o ouro da glória
Bate lá dentro, e não retine fora.
Não os maldigo, não. Não foram deles
Minhas tristezas, minhas alegrias;
Quando semeava a noite o céu de estrelas,
Eu também povoava-o de harmonias.
Cantava, como canta o passarinho,
Como soluça a juriti queixosa,
E minha dor desabrochava em cantos,
Como entre espinhos desabrocha a rosa.
A glória... o tempo... a eternidade!... ruído,
Que sempre ao mesmo esquecimento corre:
Aqui, ali, mais perto ou mais distante
A vaga cresce, rola, arqueja e morre.
Oh! porque é bom cantar, eu canto às vezes;
E porque é bom gemer, eu gemo: eis tudo;
E lanço as minhas flores sobre o tempo,
Como quem as desfolha em lago mudo.
É da noite na máscara sombria
Que escondo a face quando o lábio chora:
E ainda os olhos úmidos enxugo
No véu de rosas, quando volta a aurora.
Só quero hoje o silêncio, o amor, a calma,
Todo o casal bem festejado de heras,
Na porta sempre o sol e dentro da alma
Ai! o perfume bom das primaveras.
Glória... ambições... procelas rugidoras
Em oceanos de vagas agitadas!
O enorme, o colossal!... nada. A paz antes
Que esse montão de fúlgidas ossadas.
Depois, ó poeta, a pálpebra descendo,
A mais... a mais... ao sono conduzida,
Como o último acorde do instrumento,
Que a tarda noite a repoisar convida...
Algumas flores do jardim, colhidas
Por mãos dos que têm lágrimas no rosto;
Céspede escusa em qualquer canto e adeuses
De poucos... e o que for do lado oposto.
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IV
Eia, poeta, inunda-me de palmas,
Lança-me coroas, como um rei, que és:
Tudo isso é teu: levanto-as para dar-tas:
São tuas: pisa-as com teus régios pés...
VIRTUS
Alta, branca, emoldado o rosto longo
Em bastas ondas de cabelos negros,
Triste o sorriso, o olhar nos céus perdidos,
Como em vago desejo e em vago enleio,
De luz e aroma enchia o ambiente todo.
Tinha nas largas dobras do vestido
Estremecimentos de asas; sussurravam
Vagas moles de um mar nos movimentos
Dos seus pés: ondulava o corpo todo
Suavemente, como no infinito
Do mar a vaga rumorando rola,
Mal tocada do vento: uns longes toques
De nuvens não rosadas, mas de um doce
E diáfano azul, meio esbatido
Em gaza branca, a fronte lhe envolviam.
Era a tristeza angélica não vinda
De desesperos, de agonias fundas,
Mas de um doce cismar...
Eu vi-a erguer-se,
Como a divina estátua da harmonia,
Levantada a cinzel por mão de artista,
E depois inclinando-se, qual dobra
A vaga ao vento, a relva aos pés da deusa,
Que outrora andou errante pelos bosques,
As longas mãos branquíssimas soltando
Sobre o piano, a alma enamorada,
Cândida e triste, esperançosa e bela,
Lançar aí toda ao músico instrumento...
Alma branca de um mármore aquecido
A sol estranho, ao ideal, em Deus, andavas
Como uma sombra pálida e palpável,
E quente, como o bafo dos teus lábios,
Fazendo o ar enlouquecer de ouvir-te,
Porque não sei, se ao ouvir-te, o ar sorria,
Porque não sei, se ao ouvir-te, o ar chorava.
E eu sentia-me triste e ao mesmo tempo
A alma em festa corria-me por dentro,
Asas batendo em turbilhões de sonhos...
Vaporosas imagens passam, voltam
O luminoso rosto e as brandas músicas,
E as estreladas cítaras sussurram
Queixas, que quase irmãs são de um sorriso,
Tão vagamente se aparecem ambos,
Sussurro doce, anônimo, que embebe
O ar de aromas, de dulias tênues,
Como se as violetas, desdobrando
O perfume tenuíssimo, com ele
Também mesclassem sons inda mais ternos.
Amo-te. A ti me prende uma indizível
Misteriosa corrente: amo-te: és bela:
Nem sei mesmo se és bela: em ti há tudo
Da formosura mãe: como sou doido
Pelo luar, como amo o céu profundo
Cheio de dia e sol, de noite e estrelas,
E é minha cada estrela de ouro ou prata
Para beijá-la em cada raio, como
Amo o mar, quer em calma ou proceloso.
Como na hora apraz a Deus — e o santo,
E o grande e o nobre me arrebata e prende,
Me faz morrer de amor, me enleva e arrouba:
Amo-te assim. A nuvem de um remorso
Não sulca a minha fronte: um violento
Tremor não toma o coração de assalto...
Ai! quando penso em ti...
Pudessem todos
Rasgar minha alma, e ver espadanando
Dela, como espadana o sangue a jorro
Do seio, cujos lírios arroxeiam,
Ferro, que ousou tocá-lo, e ver pudessem
Pedaços do meu céu cair rolando
Ainda as luzes trêmulas de sonhos
Em turbilhões que fervem, sóis errantes
De indefinidas cismas; nebulosas
De ideias mal formadas, que tomavam
Vulto agora lá dentro; e esses retalhos
De um céu de imagens belas e estreladas,
Mundos a palpitar, mundos já mortos
Que foram todavia da esperança,
Mundos cheios de luz, sóis formosíssimos...
Pudessem vê-lo enfim todo entornado,
Já sereno, já céu tempestuoso,
Todo o céu de minha alma e ao abismo dela
Apanhar cada sensação ainda
Não feita sentimento... eu não teria
De ali corar; as conjunturas lúbricas
Em palpáveis visões não toldam nunca
O meu amor por ti... O etéreo encanto,
O misterioso impalpável, o infinito,
Talvez a imagem do meu Deus mais pura,
É o que amo em ti!...
Eu posso amar-te,
Calçar de beijos, luminosa estrela,
O teu caminho: a minha vida inteira
Estender-ta no chão, qual branda relva
Em que possas calcar teus pés mimosos;
Queimar dia por dia em éreo vaso
Toda a existência para aromar-te o ambiente,
Em que lançares teu olhar angélico...
Posso morrer por ti...
Quando apontares
Com teu marmóreo dedo cor de rosa
O caminho da morte, esse caminho
É o da honra; — hei de morrer sem medo,
Sem vacilar, sem resistir, sem único
Suspiro por quanto há mais caro à vida,
Porque tu vales mais, formosa. Foste,
És o meu amor; quero morrer à sombra
Do meigo olhar dos teus suaves olhos,
Ó tu, beleza, encanto, amor, Virtude.
PAUPERRIMA DOMUS
Eu fui hoje espiar a tua casa
Por entre as folhas verdes do jardim;
Dois infinitos tinha ante os meus olhos:
Era a tua casinha e o mar sem fim.
Volvi de tua casa ao mar meus olhos;
Volvi do mar ao céu, que então brilhava;
Doida andorinha à cata de um galhinho,
Minha alma errante as asas fatigava.
Como uma taça azul e transparente,
O céu estrelas aos milhões continha;
O mar, que as refletia, era formoso:
Nenhum encanto a tua casa tinha.
Entre velhas irmãs, irmã mais velha,
Sobre as muletas dos portais se erguia;
Nada de outras tão pobres como a tua,
Nada artístico e belo a distinguia.
Do tempo estava gasta e já sem brilho
A cal branca que a frente lhe vestia
E, como acocorada sobre os membros,
Parecia tremer à ventania.
Não é de outra maneira um ninho: serve
Um ramo seco, um musgo, e qualquer palha,
E está lá dentro a pérola do bosque...
Está quem no bosque hinos do céu espalha.
Uma tépida brisa de Dezembro
Vinha a intervalos murmurosa e olente,
Carregando o ruído das crianças
Que brincavam contigo alegremente.
Guarda-joias de amor e de esperanças,
Ninho quente onde tu, pomba, dormias,
Céu mais céu do que o céu num canto apenas,
Em que teus passos a voar volvias;
Era essa casa... a tua pobre casa,
Esquecida na beira do caminho,
Como uma estrela além no fim da estrada,
Como na extrema da palmeira um ninho.
Meus olhos, onde andava então minh’alma,
Pregam-se à tua porta: eu esperava
Que sairia dela alguma coisa
Mais brilhante que a luz que a iluminava.
Eras tu? — Não sei eu. O bando louro
Das crianças? Também não sei: mas era
Alguma coisa assim como uma estrela,
Cheirosa e alegre, como a primavera:
E também melancólica, assim como
O céu e o mar de sombra e luz vestidos...
Talvez uma mulher, em cujas veias
Girassem céus de amores derretidos!
Sei lá... Porém o mar não tinha encantos,
O céu noturno e esplêndido os não tinha,
Nem o jardim... nem nada em torno ou longe...
Era o meu ramo verde essa casinha.
Saí. Os guardas do jardim faziam
Sair o povo alegre e amotinado;
Dez horas dera o próximo mosteiro;
Rangeu nos gonzos o portão pesado:
Notei que os pés pesavam-me, que os olhos
Iam, num movimento irresistível,
Por dois mudos grilhões quase arrastados...
Quis ficar: era tarde: era impossível.
Saí pensando que amanhã viria
No meio da indiferença desse povo,
Ao céu, ao mar, às flores, ao universo
Tua casinha preferir de novo.
Tua casinha... um pardieiro em ruínas,
Grãos de areia sobre outros grãos de areia;
Mas nela havia o que em ninguém havia:
Da minha felicidade estava cheia...
Parei no meio do caminho ansiado;
— Não a vi hoje... e suspirei! — Embora:
Tornarei. Para mim aquela porta
Tinha o deslumbramento de uma aurora...
Último enfim saí. Entre as mãos rijas
Puxa um guarda o portão: era preciso
Sair; saí: — as grades estrugiram:
Pareceu-me esboroar-se o paraíso.
Tu morrerás um dia; e hás de espantada
Ouvir dos anjos a loucura minha,
Que eu ia às noites espreitar de longe
Tua velha e misérrima casinha!...
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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