3/07/2023

Poemas Malditos (Poesia), de Álvares de Azevedo


POEMAS MALDITOS



UM CADÁVER DE POETA

Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver! 
Tu não pesaste sobre a ferra: a terra te seja leve!
L. Uhland
I
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!

Morrer! e resvalar na sepultura.
Frias na fronte as ilusões — no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!

Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!

Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!...

II
Morreu um trovador— morreu de fome.
Acharam-no deitado no caminho:
Tão doce era o semblante! Sobre os lábios
Flutuava-lhe um riso esperançoso.
E o morto parecia adormecido.

Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas da agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No seu peito
Não havia colar nem bolsa d'ouro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! não valia a sepultura!

Todos o viam e passavam todos.
Contudo era bem morto desde a aurora.
Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel
Um ceitil para a cova!... nem sudário!
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta — um pobre louco
Que leva os dias a sonhar— insano
Amante de utopias e virtudes
E, num tempo sem Deus, ainda crente?

A poesia é de cerco uma loucura,
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doidos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! à inspiração divina,
E, quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora,
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvazia por um misérrimo
Quando a emprega melhor em lodo e vício!

E que venham aí falar-me em Tasso!
Culpar Afonso d'Este — um soberano! —
Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!
Um poeta é um poeta — apenas isso:
Procure para amar as poetisas!

Se na Franca a princesa Margarida,
De Francisco Primeiro irmã formosa,
Ao poeta Alain Chartier adormecido
Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,
Apesar de princesa, era uma doida,
E a prova é que também rondós fazia.
Se Riccio o trovador obteve amores
— Novela até bastante duvidosa —
Dessa Maria Stuart formosíssima,
É que ela — sabe-o Deus! — fez tanta asneira,
Que não admira que um poeta amasse!

Por isso adoro o libertino Horácio.
Namorou algum dia uma parenta
Do patrono Mecenas? Parasita,
Só pedia dinheiro — no triclínio
Bebia vinho bom — e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto.

E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,
Por fazer umas trovas de vadio,
Deveriam lhe dar, além de glória
— E essa deram-lhe à farta — algum bispado,
Alguma dessas gordas sinecuras
Que se davam a idiotas fidalguias?

Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
Que um poeta não vale meia princesa.

Um poema contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de teteias,
Nas horas do café lido fumando,
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.

Mas não passe dali do vate a mente.
Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
Fábulas tem mais leitores do que Homero...
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...

É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De um Álbum da moda umas quadrinhas.
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo:
Desde que o mundo é mundo assim cogita.

Nem há negá-lo — não há doce lira
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no ouro vibra!
Nem músicas nem santas harmonias
Igualam o condão, esse eletrismo,
A ardente vibração do som metálico...

Meu Deus! e assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poetas, silêncio! é este o homem?
A feitura de Deus a imagem dele!
O rei da criação!...

Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te — o egoísmo!
Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!

III
Passou El-Rei ali com seus fidalgos.
Iam a degolar uns insolentes
Que ousaram murmurar da infâmia régia,
Das nódoas de uma vida libertina!

Iam em grande gala. O Rei cismava
Na glória de espetar no pelourinho
A cabeça de um pobre degolado.
Era um rei bon-vivant, e rei devoto;
E, como Luís XI, ao lado tinha
O bobo, o capelão e seu carrasco.

O cavalo do Rei, sentindo o morto,
— Trêmulo de terror parou nitrindo.
Deu d'esporas leviano o cavaleiro
E disse ao capelão:
"E não enterram
Esse homem que apodrece, e no caminho
Assusta-me o corcel?"

Depois voltou-se
E disse ao camarista de semana:
"Conheces o defunto? Era inda moço.
Faria certamente um bom soldado.
A figura é esbelta! Forte pena!
Podia bem servir para um lacaio."

Descoberto, o faceiro fidalgote
Responde-lhe fazendo a cortesia:
"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,
Leve-me Satanás se este defunto
Ontem não era o trovador Tancredo!"

"Tancredo"! murmurou erguendo os óculos
Um anfíbio, um barbaças truanesco.
Alma de Triboulet, que além de bobo
Era o vate da corte — bem nutrido,
Farto de sangue, mas de veia pobre,
Caídos beiços, volumoso abdômen,
Grisalha cabeleira esparramada,
Tremendo narigão, mas testa curta;
Em suma um glosador de sobremesas.

"Tancredo! — repetiu imaginando —
Um asno! só cantava para o povo!
Uma língua de fel, um insolente!
Orgulho desmedido... e quanto aos versos
Morava como um sapo n'água doce...
Não sabia fazer um trocadilho... "

O rei passou— com ele a companhia.
Só ficou ressupino e macilento
Da estrada em meio o trovador defunto.

IV
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornando,
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade:
Bochechas e nariz, em cima uns óculos,
Vermelho solidéu... enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispos — como hoje e mais ainda —
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura;
Papudos santarrões, depois Missa
Lançando ao povo a bênção — por dinheiro!

O cocheiro ia bêbado por certo;
Os cavalos tocou pelo bom caminho
Mesmo em cima das pernas do cadáver.
Refugou a parelha, mas o sota
— Que ao sol da glória episcopal enchia
De orgulho e de insolência o couro inerte,
Cuspindo o poviléu, como um fidalgo —
Que em falta de miolo tinha vinho
Na cabeça devassa, deu de esporas:
Como passara sobre a vil carniça
Reléu de corvos negros — foi por cima...
Mas desgraça! maldito aquele morto!
Desgraça!... não porque pisasse o coche
Aqueles magros ossos, mas a roda
Na humana resistência deu estalo...
E acorda o fradalhão...

"O que se sucede?
— Pergunta bocejando: É algum bêbado?
Em que bicho pisaram?"

"Senhor bispo"
Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro
Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo
Isto é — dessa fidalga raça nova
Que não anda de pé como São Pedro,
Nem estafa os corcéis de São Francisco:
"Perdoe vossa excelência eminentíssima;
É um pobre diabo de poeta,
Um homem sem miolo e sem barriga
Que lembrou-se de vir morrer na estrada!"

"Abrenúncio! — rouqueja o Santo Bispo —
Leve o Diabo essa tribo de boêmios!
Não há tanto lugar onde se morra?
Maldita gente! inda persegue os Santos
Depois que o Diabo a leva!... "
E foi caminho.

Leve-te Deus! Apóstolo da crença,
Da esperança e da santa caridade!
Tu, sim, és religioso e nos altares
Vem cada sacristão, e cada monge
Agitar a teus pés o seu turíbulo!
E o sangue do Senhor no cálix d'ouro
Da turba na oração te banha os lábios

Leve-te Deus, Apóstolo da crença!
Sem padres como tu que fora o mundo?
É por ti que o altar apoia o trono!
E teu olhar que fertiliza os vales
Fecunda a vinha santa do Messias!

Leve-te Deus ou leve-te o Demônio!

V
Caiu a noite, do azulado manto,
Como gotas de orvalho, sacudindo
Estrelas cintilantes. — Veio a lua
Banhando de tristeza o céu noturno:
Derrama aos corações melancolia,
Derrama no ar cheiroso molemente
Cerúlea chama, dia incerto e pálido
Que ao lado da floresta ajunta as sombras
E lança pelas águas da caumpina
Alvacentos clarões que as flores bebem.
A galope, de volta do noivado,
Passa o Conde Solfier, e a noiva Elfrida.
Seguem fidalgos que o sarau reclama.

ELFRIDA
— Não vês, Solfier, ali da estrada em meio
Um defunto estendido? —

SOLFIER
— Ó minha Elfrida,
Voltemos desse lado: outro caminho
Se dirige ao castelo. É mau agouro
Por um morto passar em noites destas.

Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.

ELFRIDA
— Tancredo vede! é o trovador Tancredo!
Coitado! assim morrer! um pobre moço!
Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?
Neste mundo não teve um só amigo? —

"Ninguém, senhora — respondeu da sombra
Uma dorida voz— Eu vim, há pouco,
Ao saber que do povo no abandono
Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo
Cavei junto do lago a cova impura."

ELFRIDA
— Tendes um coração. Tomai, mancebo,
Tomai essa pulseira... Em ouro e joias
Tem bastante p'ra erguer-lhe um monumento,
E para longas missas lhe dizerem
Pelo repouso d'alma...

O moço riu-se.

O DESCONHECIDO
— Obrigado. Guardai as vossas joias.
Tancredo o trovador morreu de fome;
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa
Cheia outrora de eternas fantasias,
De ideias a valer um mundo inteiro!...
Por que lançar esmolas ao cadáver?
Leva-as, fidalga — tuas joias belas!
O orgulho do plebeu as vê sorrindo.
Missas... bem sabe Deus se neste mundo
Gemeu alma tão pura como a dele!
Foi um anjo, e murchou-se como as flores,
Morreu sorrindo como as virgens morrem!
Alma doce que os homens enjeitaram,
Lírio que profanou a turba imunda,
Oh! não te mancharei nem a lembrança
Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,
És o templo deserto, onde habitava
O Deus que em ti sofreu por um momento!
Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:
Na cova negra dormirás tranquilo...
Tu repousas ao menos!... —

No entanto sofreando a custo a raiva,
Mordendo os lábios de soberba e fúria,
Solfier da bainha arranca a espada,
Avança ao moço e brada-lhe:

"Insolente!
Cala-te, doido! Cala-te, mendigo!
Não vês quem te falou? Curva o joelho,
Tira o gorro, vilão!"

— Tu vês: não tremo.
Tu não vales o vento que salpica
Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,
Não sabes que um punhal vale uma espada
Dentro do coração? —

Mas logo Elfrida:
"Acalma-te, Solfier! O triste moço
Desespera, blasfema e não me insulta.
Perdoa-me também, mancebo triste;
Não pensei ofender tamanho orgulho.
Tua mágoa respeito. Só te imploro
Que sobre a fronte ao trovador desfolhes
Essas flores, as flores do noivado
De uma triste mulher... E quanto às joias,
Lança-as no lago... Mas quem és? teu nome?"

— Quem sou? um doido, uma alma de insensato,
Que Deus maldisse e que Satã devora;
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo,
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!...
Uma alma como o pó em que se pisa;
Um bastardo de Deus, um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte — anátema!
Desses que a turba com o dedo aponta...
Mas não; não hei de sê-lo! eu juro n'alma,
Pela caveira, pelas negras cinzas
De minha mãe o juro... agora há pouco
Junto de um morto reneguei do gênio,
Quebrei a lira à pedra de um sepulcro...
Eu era um trovador, sou um mendigo.

Ergueu do chão a dádiva d'Elfrida;
Roçou as flores aos trementes lábios;
Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo
Pousou-as lentamente...

— Em nome dele,
Agradeço estas flores do teu seio,
Anjo que sobre um túmulo desfolhas
Tuas últimas flores de donzela! —

Depois vibrou na lira estranhas mágoas,
Carpiu à longa noite escuras nênias,
Cantou: banhou de lágrimas o morto.

De repente parou— vibrou a lira
Com as mãos iradas, trêmulas... e as cordas
Uma per uma rebentou cantando...
Tinha fogo no crânio, e sufocava.
Passou a fria mão nas fontes úmidas,
Abriu a medo os lábios convulsivos,
Sorriu de desespero — e sempre rindo
Quebrou as joias as lançou no abismo.

VI
No outro dia, na borda do caminho
Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,
Viu-se um mancebo louro que morria...
Semblante feminil, e formas débeis,
Mas nos palores da espaçosa fronte
Uma sombria dor cavara sulcos.
Corria sobre os lábios alvacentos
Uma leve umidez, um ló d'escuma,
E seus dentes a raiva constringira...
Tinha os punhos cerrados... Sobre o peito
Acharam letras de uma língua estranha...
E um vidro sem licor... fora veneno!...

Ninguém o conheceu; mas conta o povo
Que, ao lançá-lo no túmulo, o coveiro
Quis roubar-lhe o gibão — despiu o moço...
E viu... talvez é falso... níveos seios...
Um corpo de mulher de formas puras...


VII
Na tumba dormem os mistérios de ambos;
Da morte o negro véu não há erguê-lo!
Romance obscuro de paixões ignotas
Poema d'esperança e desventura,
Quando a aurora mais bela os encantava,
Talvez rompeu-se no sepulcro deles!
Não pode o bardo revelar segredos
Que levaram ao céu as ternas sombras;
Desfolha apenas nessas frontes puras
Da extrema inspiração as flores murchas...

 

BOÊMIOS
(Ato de uma comédia não escrita)

Totus mundus agit histrionem 
(Provérbio do tempo de Shakespeare)


PRÓLOGO

Levanta-se o pano até o meio. Passa por debaixo e vem até a rampa um velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:

Dom Quixote! Sublime criatura!
Tu sim foste leal e cavaleiro,
O último herói, o paladim extremo
De Castela e do mundo. Se teu cérebro
Toldou-se na loucura, a tua insânia
Vale mais do que o siso destes séculos
Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo,
Recebe as orações, mirras e flores,
E a louca multidão renega o Cristo!
Tua loucura revelava brio.
No triste livro do imortal Cervantes
Não posso crer um insolente escárnio
Do Cavaleiro andante aos nobres sonhos,
Ao fidalgo da Mancha — cuja nódoa
Foi só ter crido em Deus e amado os homens,
E votado seu braço aos oprimidos.
Aquelas folhas não me causam riso,
Mas desgosto profundo e tédio à vida.
Soldado e trovador, era impossível
Que Cervantes manchasse um valeroso
Em vil caricatura, e desse à turba,
Como presa de escárnio e de vergonha,
Esse homem que à virtude, amor e cantos
Abria o coração!

Estas ideias
Servem para desculpa do poeta.
Apesar de bom moço, o autor da peca
Tem uns laivos talvez de Dom Quixote.
E nestes tempos de verdade e prosa —
Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos
Que velavam nas torres encantadas
As donzelas dormidas por cem anos —
Do seu imaginar esgrime as sombras
E dá botes de lança nos moinhos.

Mas não escreve sátiras: apenas
Na idade das visões — dá corpo aos sonhos.
Faz trovas, e não talha carapuças.
Nem rebuça no véu do mundo antigo,
P'ra realce maior, presentes vícios.
Não segue a Juvenal, e não embebe
Em venenoso fel a pena escura
Para nódoas pintar no manto alheio.

O tempo em que se passa agora a cena
É o século dos Bórgias. O Ariosto
Depôs na fronte a Rafael gelado
Sua coroa divina, e o segue ao túmulo.
Ticiano inda vive. O rei da turba
É um gênio maldito — o Aretino.
Que vende a alma e prostitui as crenças.
Aretino! essa incrível criatura,
Poeta sem pudor' onda de lodo
Em que do gênio profanou-se a pérola
Vaso d'ouro que um óxido sem cura
Azinhavrou de morte homem terrível
Que tudo profanou com as mãos imundas,
Que latiu como um cão mordendo um século,
E, como diz um epitáfio antigo,
Só em Deus não mordeu, porque o não vira.
Como ele, foi devasso todo o século.
Os contos de Boccaccio e de Brantome
São mais puros que a história desses tempos.
Tasso enlouquece. O Rei que se diverte
— O herói de Marignan e de Pavia
Que num vidro escrevera do palácio
Femme sovem varie, mas leviano
Com mais amantes que um Sultão vivia,
Mandava ao Aretino amáveis letras,
Um colar d'ouro com sangrentas línguas,
E dava-lhe pensões. O Vaticano
Viu o Papa beijando aquela fronte.
Carlos V o nomeia cavaleiro,
Abraça-o e — inda mais — lhe manda escudos.
O Duque João Médicis o adora,
Dorme com ele a par no mesmo leito.
É um tempo de agonias. A arte pálida,
Suarenta, moribunda, desespera
E aguarda o funeral de Miguel Ângelo
Para com ele abandonar o mundo
E angélica voltar ao céu dos Anjos.

Agora basta. Revelei minh'alma.
A cena descrevi onde correra
Inteira uma comédia em vez de um ato,
Se o poeta mais forte se atrevesse
A erguer nos versos a medonha sombra
Da loucura fatal do mundo inteiro.

Boas-noites, plateia e camarotes;
O ponto já me diz que deixe o campo.
O primeiro galã todo empoado,
Cheio de vermelhão, já dentro fala:
Estão cheios de luz os bastidores.

Uma última palavra: o autor da peça,
Puxando-me da túnica romana,
Diz-me da cena que eu avise às Damas
Que desta feita os sais não são precisos;
Não há de sarrabulho haver no palco.
É uma peça clássica. O perigo
Que pode ter lugar é vir o sono;
Mas dormir é tão bom, que certamente
Ninguém por esse dom fará barulho.

O assunto da Comédia e do Poema
Era digno sem dúvida, Senhores,
De uma pena melhor; mas desta feita
Não fala Shakespeare nem Gil Vicente.

O poeta é novato, mas promete.
Posto que seja um homem barrigudo
E tenha por Talia o seu cachimbo,
Merece aplausos e merece glória.


ATO ÚNICO

A cena passa-se na Itália no século XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lâmpada. Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra tocando guitarra. Dão 3 horas.

NÍNI
Olá! que fazes, Puff? dormes na rua?

PUFF (acordando) 
Não durmo... Penso.

NÍNI 
Estás enamorado?
E deitado na pedra acaso esperas
O abrir de uma janela? Estás cioso
E com a botelha em vez de durindana
Aguardas o rival?

PUFF
Ceei à farta
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Faço o quilo; ao repouso me abandono.
Como o Papa Alexandre ou como um Turco,
Me entrego ao farniente e bem a gosto
Descanso na calcada imaginando.

NÍNI
Embalde quis dormir. Na minha mente
Fermenta um mundo novo que desperta.
Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio
Como em seio de mãe um feto vivo.
Na minha insônia vela o pensamento.
Os poetas passados e futuros
Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro
Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo,
É certa a glória minha!

PUFF
A ideia é boa:
Toma dez bebedeiras — são dez cantos.
Quanto a mim tenho fé que a poesia
Dorme dentro do vinho. Os bons poetas
Para ser imortais beberam muito.

NÍNI
Não rias. Minha ideia é nova e bela.
A Musa me votou a eterna glória.
Não me engano, meu Puff, enquanto sonho:
Se aos poetas divinos Deus concede
Um céu mais glorioso, ali com Tasso,
Com Dante e Ariosto eu hei de ver-me.
Se eu fizer um poema, certamente
No Panteon da fama cem estátuas
Cantarão aos vindouros o meu gênio!

PUFF
Em estátua, meu Níni! Estás zombando!
É impossível que saias parecido.
Que mármore daria a cor vermelha
Deste imenso nariz' destas melenas?

NÍNI
Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.

PUFF
O vinho! És uma besta; só um parvo
Pode a beleza desmentir do vinho.
Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos
Onde o rei Salomão, como elogio,
Dizia à noiva: — Pulchriora sunt
Ubera tua vino!

NÍNI
É sempre um bobo


PUFF
E tu és sempre esse nariz vermelho
Que ainda aqui na treva desta rua
Flameja ao pé de mim. Quando te vejo,
Penso que estou na Igreja ouvindo
Missa Dita por Cardeal.

NÍNI 
És um devasso.

PUFF
Respondo-te somente o que dizia
Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:
"Se Adão pecou no estado de inocência,
Que muito é que nos dias da impureza
Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes:
Toda a fragilidade vem da carne,
E na carne se eu tanto excedo os outros,
Vícios não devem meus causar espanto.
Minha alma dorme em treva completíssima
Pela minha descrença... E tu, maldito,
Por que sempre não vens esclarecer-me
Com esse teu farol aceso sempre,
Cavaleiro da lâmpada vermelha
As trevas de minh'alma?

NÍNI
Que leproso!

PUFF
Sou um homem de peso. Entendo a vida;
Tenho muito miolo, e a prova disto
É que não sou poeta nem filósofo,
E gosto de beber, como Panúrgio.
Se tu fosses tonel, como pareces,
Eu te bebera agora de um só trago.

NÍNI
Quero-te bem contudo. Amigos velhos
Deixemo-nos de histórias. Meu poema…

PUFF
Se falas em poema, eu logo durmo.

NÍNI
Uma vez era um rei…

PUFF
Não vês? eu ronco.

NÍNI
Quero a ti dedicar minha obra-prima;
Irás junto comigo à eternidade.
Teu retrato porei no frontispício.
Meu poema será uma coroa
Que as nossas frontes engrinalde juntas.

PUFF
Pensei-te menos doido. O teu poema
Seria uma sublime carapuça.
Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Níni,
Tu precisas de um saco.

NÍNI
Impertinente!

PUFF
Dá-me aqui tua mão. Sabes, amigo?
Passei ontem o dia de namoro;
Minhas paixões voltei à nova esposa
Do velho Conde que ali mora em frente.
Estou adiantado nos amores.
A cozinheira, outrora minha amante,
Meus passos guia, meus suspiros leva.
Mas preciso, com pressa, de um soneto.
Prometes-me fazê-lo?

NÍNI
Se me ouvires
Recitar meu poema…

PUFF
Eu me resigno.
Declama teu sermão, como um vigário.
Mas o sono ao rebanho se permite?
(Entra um criado correndo)
Roa-me o diabo as tripas, se não vejo
Ali correr com pernas de cabrita
O criado do cônego Tansoni.

NÍNI
Onde vais, Gambioletto?

GAMBIOLETTO
Vou à pressa
Ao doutor Fossuário.

PUFF
Acaso agora
O carrasco fugiu?

NÍNI
Quem agoniza?

GAMBIOLETTO
O Reverendo e Santo senhor Cônego,
Deitando-se a dormir depois da ceia
No colo de Madona la Zaffeta,
Umas dores sentiu pela barriga,
Caiu estrebuchando sobre a sala...
Morre de apoplexia.
NÍNI
O diabo o leve!

GAMBIOLETTO
E o médico, senhores!
(Sai correndo)

PUFF 
Venturoso!
Sempre é Cônego... Níni, dulce et decus
Pro patria mori... É doce e glorioso
Morrer de apoplexia! Quem me dera
Morrer depois da ceia, de repente!
Não vem o confessor contar novelas,
Não soam cantos fúnebres em torno,
Nem se forca o medroso moribundo
A rezar, quando só dormir quisera!
Venturosos os Cônegos e os Bispos,
E os papudos Abades dos conventos!
Eles podem morrer de apoplexia!
E se morre pensando — coisa nova!
Quem nunca no viver cansou-se nisso;
Se eles morrerem pensando, ante seus olhos,
No momento final sem ter pavores,
Inda corre a visão da bela mesa!
A não morrer-se como o velho Píndaro,
Cantando, sobre o seio amorenado
De sua amante Grega, oh! quem me dera
Cair morto no chão, beijando ainda
A botelha divina!

NÍNI
Que maluco!
A estas horas da noite, assim no escuro
Não temes de lembrar-te de defuntos?
Beijarias até uma caveira,
Se espumante o Madeira ali corresse!
PUFF
Os cálices doirados são mais belos;
Inda porém mais doce é nos beicinhos
Da bela moca que sorrindo bebe
Libar mais terno o saibo dos licores...
Eu prefiro beijar a tua amante.

NÍNI
Tens medo de defuntos?

PUFF
Um bocado
Sinto que não nasci para coveiro.
Contudo, no domingo, à meia-noite...
Pela forca passei, vi nas alturas,
Do luar sem vapor à luz formosa,
Um vilão pendurado. Era tão feio!
A língua um palmo fora, sobre o peito,
Os olhos espantados, boca lívida,
Sobre a cabeça dele estava um corvo...
O morto estava nu, pois o carrasco
Despindo os mortos dá vestido aos filhos,
E deixa à noite o padecente à fresca.
Eu senti pelo corpo uns arrepios...
Mas depois veio o ânimo... trepei-me
Pela escada da forca, fui acima,
E pintei uns bigodes no enforcado.

NÍNI 
Bravo como um Vampiro!

PUFF
Oh! antes d'ontem
Passei pelos telhados sem ter medo,
Para evitar um pátio onde velava
Um cão — que enorme cão! — subindo ao quarto
Onde dorme Rosina Belvidera.
NÍNI
Ousaste ao Cardeal depor na fronte
Tão pesada coroa?

PUFF
A mitra cobre.
Dizem que a santidade lava tudo;
Depois... o Cardeal estava bêbado…
A propósito, sabes dos amores
Do capitão Tybald? O tal maroto
Não sei de que milagres tem segredo
Que deu volta à cabeça da rainha.

NÍNI
Por isso o pobre Rei anda tão triste!

PUFF
Spadaro, o fidalgote barba-ruiva,
Contou-me que espiando pela janela
Do quarto da rainha os viu Caluda!

NÍNI
E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha
Algum pau de vassoura ou um chicote?
Puff: El-Rei Nosso Senhor então ceava.

NÍNI
Santo Rei!

PUFF
E demais é bem sabido
Que El-Rei só reina à mesa e nas caçadas.

NÍNI
Nunca perde um veado quando atira.


PUFF
Ele caça veados! Má fortuna!
Não o cacem também pela ramagem!

NÍNI
Com língua tão comprida e viperina
Irás parar na forca.

PUFF
Níni, escuta.
Assisti esta noite a um pagode
Na taverna do Sapo e das Três-Cobras.
Era já lusco-fusco e eu entrando
Dou com Frei São José e Frei Gregório,
O Prior do convento dos Bernardos
E mais uns dois ou três que só conheço
De ver pelas esquinas se encostando,

Ou dormidos na rua a sono solto...
Que soberbo painel! Faze uma ideia!
Um banquete! fartura! que presuntos!
Que tostados leitões que recendiam!
Numa enorme caldeira enormes peixes,
Recheados capões fervendo ainda,
Perus, olhas podridas, costeletas
Esgotara o talento a cozinheira!
Abertos garrafões; garrafas cheias;
Vinho em copos imensos transbordando;
Na toalha, já suja, debruçados
Aqueles religiosos cachaçudos
De boca aberta e de embotados olhos.
Gastrônomos! ali é que se via
Que é ciência comer, e como um frade
Goza pelo nariz e pelos olhos,
Pelas mãos, pela boca, e faz focinho
E bate a língua ao paladar gostoso
Ao celeste sabor de um bom pedaço!
Depois! era bonito! Frei Gregório
Com a boca de gordura reluzente,
Farto de vinho, esquece o reumatismo,
Esquece a erisipela já sem cura,
Canta rondós e dança a tarantela.
Arrasta-se caindo e se babando
Aos pés da taverneira De joelhos
Faz-lhe a corte cantando o Miserere
Principia sermões, engrola textos,
E a gorda mão estende ao nédio seio
Da bela mocetona... a mão lhe beija,
A mão que o cetro cinge de vassoura...
Chora, soluça e cai, estende os braços,
Ainda a chama, e cantochão entoa...

Era de rir! os velhos amorosos,
Uns de joelhos no chão, outros cantando
Estendidos na mesa entre os despojos,
Outros beijando a moça, outros dormindo.
Ela no meio deslambida e fresca
Excita-os mutuamente e os rivaliza,
Passa-lhes pelo queixo a mão gorducha...

Corre o Prior a soco um Barbadinho,
Atracam-se, blasfemam, esconjuram,
Um agarra na barba do contrário,
Outro tenta apertar o papo alheio...
Abraçam-se na luta os dois volumes
E rolam como pipas. No oceano
Assim duas baleias ciumentas
Atracam-se na luta... Que risadas!
Que risadas, meu Deus! arrebentando
Soltou o pobre Puff vendo a comédia!

NÍNI
Ouve agora o poema…

PUFF
Espera um pouco,
A taverna do canto não se fecha,
Está aberta. Compra uma garrafa …
Bom vinho tu bem sabes! Tenho a goela
Fidalga como um rei. Não tenho dúvida
Mentiu a minha mãe quando contou-me
Que nasci de um prosaico matrimônio
Eu filho de escrivão!... Para criar-me
Era — senão um Rei— preciso um Bispo!

NÍNI (vai à taverna e volta)
Eis aqui uma bela empada fria,
Uma garrafa e copo.

PUFF (quebrando o copo)
O Demo o leve!
Eu sou como Diógenes. Só quero
Aquilo sem o que viver não posso.
Deitado nesta laje, preguiçoso,
Olhando a lua, beijo esta garrafa,
E o mundo para mim é como um sonho.
Creio até que teu ventre desmedido
Como escura caverna vai abrir-se,
Mostrando-me no seio iluminado
Panoramas de harém, Sultanas lindas
E longas prateleiras de bom vinho!

NÍNI
Dou começo ao poema. Escuta um pouco:

I
Havia um rei numa ilha solitária,
Um rei valente, cavaleiro e belo.
O rei tinha um irmão. — Era um mancebo
Pálido, pensativo. A sua vida
Era nas serras divagar cismando,
Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque
Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.

II
Vagabundo um vez junto das ondas
O Príncipe encontrou na areia fria
Uma branca donzela desmaiada,
Que um naufrágio na praia arremessara.
Revelavam-lhe as roupas gotejantes
O belo talhe níveo, o melindroso
Das bem moldadas formas. — O mancebo
Nos braços a tomou, e foi com ela
Esconder-se no bosque.

Quando a bela
Suspirando acordou, o belo Príncipe
Aos pés dela velava de joelhos.

Amaram-se. É a vida. Eles viveram
Desse desmaio que dá corpo aos sonhos,
Que realiza visões e aroma a vida
Na sua primavera. A lua pálida,
As sombras da floresta, e dentre a sombra
As aves amorosas que suspiram
Viram aquelas frontes namoradas.
Ouviram sufocando-se num beijo
Suspiros que o deleite evaporava.

III
O rei tinha um truão. O caso é visto,
É muito natural. — Se reis sombrios
Gostam de bobos na dourada corte,
Não admira decerto que um risonho
Em vez de capelão tivesse um bobo.

Loriolo — o truão do Rei— acaso
Um dia atravessando pela floresta,
Foi dar numa cabana de folhagens.
Ninguém estava ali, porém num leito
De brandas folhas e cheirosas flores
Ele viu estendidas roupas alvas
— E roupas de mulher! — e junto um gorro,
Que pelas joias e flutuantes plumas
E pela firma no veludo negro
Denunciava o Príncipe.

Loriolo,
Apesar de na corte ser um Bobo,
Não era um zote. Foi-se remoendo,
Jurou dar com a história dos namoros.
E para andar melhor em tal caminho,
Ele que adivinhava que as Américas
Sem proteção de rei ninguém descobre,
Madrugou muito cedo — inda era escuro —
E convidou El-Rei para o passeio.

IV
Ora, por uma triste desventura,
O rei entrando na Cabana Verde
Achou só a mulher. — Adormecida
No desalinho descuidoso e belo

Com que elas dormem, soltos os cabelos,
A face sobre a mão, e os seios lindos
Batendo à solta na macia tela
Da roupa de dormir que os modelava...
Não digo mais...

Loriolo pôs-se à espreita.
O Rei de leve despertou a bela,
Acordou-a num beijo...

V
A linda moça,
Se havia ali raivosa apunhalar-se,
Fazer espalhafato e gritaria,
Por um capricho, voluptuoso assomo,
Entregou-se ao amor do Rei...

VI
"Maldito!"
Bradou-lhe à porta um vulto macilento.
"Maldito! meu irmão, aquela moca
É minha, minha só, é minha amante
E minha esposa fora... "

O Rei sorrindo
Lhe estende a régia mão e diz alegre:
"A culpa é tua. Eu disto não sabia;
Se do teu casamento me falasses,
Eu respeitava tua..."

"Basta, infame!
Não acrescentes zombaria ao crime.
Hei de punir-te. É solitário o bosque;
Aqui não és um rei, porém um homem,
Um vil em cujo sangue hei de lavar-me.
Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!"

VII
Despiu tremendo a reluzente espada.
O mesmo fez o Rei. — Lutaram ambos.
Feminae sacra fames, quantum pectora
Mortalia cogis! E embalde a moça,
Ajoelhando seminua e pálida,
Vinha chorando, mais gentil no pranto,
Entre as espadas se lançar gemendo.
Embalde! Longo tempo encarniçado
A peleja durou Enfim caíram
Rolaram ambos trespassados, frios,
E, na treva de morte que os cegava,
Inda alongando os braços convulsivos
Que avermelhava o fratricida sangue,
Procurando no sangue o inimigo!

VIII
O Bobo fez as covas. Na montanha
Enterrou os irmãos. — E quanto à moça,
Pelo braço a tomou chorosa e fria,
Foi ao paço, e na gótica varanda,
De coroa real e longo manto,
Falou à plebe, prometeu franquezas,
Impostos levantar e dar torneios.
— Falou aos guardas: prometeu-lhes vinho,
— Falou à fidalguia, mas no ouvido,
E prometeu-lhe consentir nos vícios
E depressa fazer uma lei nova
Pela qual, se um fidalgo assassinasse
Algum torpe vilão, ficasse impune
E nem pagasse mais a vil quantia
Que era pena do crime — e alto disse
Que havia conquistar países novos.

IX
A história infelizmente é muito vista,
Não sou original! É uma desgraça!
Mas prefiro o caráter verdadeiro
De trovador cronista. —

Loriolo
Trocou de guizos o boné sonoro
— Muito leve chapéu! — pela coroa
Só teve uma desgraça o Rei novato:
Foi que um dia fugiu-lhe do palácio
A tal moça volante nos amores.

X
Muitos anos passaram. Loriolo
Era um sublime rei. De rei a bobo
Já tantos têm caído! Não admira
Que um Bobo sendo Rei primasse tanto.
Governava tão bem como governam
Os reis de sangue azul e raça antiga,
Demais gastava pouco e, se não fosse
Seu amor pelas alvas formosuras,
De certo que na lista dos monarcas
Ele ficava sendo o Rei Sovina.
Enfim era um Monarca de mão-cheia.
Tinha só um defeito — vendo sangue
Tinha frio no ventre; e desmaiava
Ao luzir de uma espada era nervoso!
Ninguém falava nisso. — Até a giba,
A figura de anão, a pele escura,
Aquela boca negra escancarada
(E que nem dentes amarelos tinha
P'ra ser de Adamastor), as gâmbias finas,
Eram tipo dos quadros dos pintores.
Se pintavam Adônis ou Cupido,
Copiavam o Rei em corpo inteiro,
E o ouro das moedas, que trazia.
A ventosa bochecha os beiços grossos,
O porcino perfil e a cabeleira,
Era beijado com fervor e culto.

XI
Loriolo envelhecia entre os aplausos,
Dando a mão a beijar à fidalguia.
Demais um sabichão fizera um livro
Em vinte e tantos volumões in-fólio,
Obra cheia de mapas e figuras
Em que provava que por linha reta
De Hércules descendia Loriolo
E portanto de Júpiter Tonante.
E apresentou as certidões em cópia
De óbito e nascimento e batistério,
E até de casamento, e para prova
De que nas veias puras do Monarca
Não correra a mais leve bastardia.
É inútil dizer que os tais volumes
Nada contavam sobre o Pai, porqueiro
Como o do Santo Papa Sixto Quinto,
E sobre a mãe do Rei, a velha Mória
Que vendera perus, Deus sabe o resto!
Nos tempos folgazões da mocidade!

XII
Um dia o reino cem navios tocam.
São piratas do Norte! são Normandos!
Infrene multidão nas praias corre,
Levando tudo a ferro até os frades.
Matam, queimam, saqueiam, furtam moças.
E a infrene turba corre até aos paços.

XIII
Enquanto vem a campo a fidalguia
Armada pied en cap, espada em punho,
Loriolo, sem fala, nos apertos
Nas adegas se esconde.

Embalde o chamam,
Embalde corre voz que dos Normandos
Emissário de paz o Rei procura.
El-Rei suou de susto a roupa inteira.
Nem era de admirar, que a reis e povo,
Como ao bicho-da-seda a trovoada,
Camisas de onze `-aras apavoram
E fazem frio aparições de forca.

XIV
Um soldado Normando que buscava
Nas adegas reais alguma pinga,
Mete a verruma numa velha pipa.
Um grito sai dali, mas não licores.
O soldado feroz destampa o nicho;
Agarra um vulto dentro, mas somente
Sente nas mãos vazia cabeleira
Desembainha a torva durindana.
Nas cavernas da pipa, e nas cavernas
Do coração do Rei reboa o golpe.
Estala-se o tonel de meio a meio.
Entretanto o bom Rei que não falava,
Sujo da lia da ruinosa pipa,
Mais morto do que vivo (já pensando
Que seu reino acabava num espeto
Como o reino do galo), às cambalhotas
Rola aos pés do soldado, chora e treme,
Gagueja de pavor nos calafrios
E pelo amor de Deus perdão implora.

XV
O soldado, maroto e bom gaiato,
Agarra às costas o real trambolho,
Como um vilão que à feira leva um porco,
E no meio do pátio, entre os despojos,
De pernas para o ar e cara suja
Atira o Bobo

— El-Rei! clama um fidalgo.

XVI
Porém o Rei não fala… Sua e treme.

"Singofredo o pirata aqui me envia.
(Diz ao Rei o pacífico Mercúrio,
O Arauto de paz que vem de bordo):
Eu venho aqui propor-vos um tratado.
Por direito de espada e por herança
Singofredo é senhor destes países.
Ele vem reclamar sua coroa.
Se o Rei não se opuser, não corre sangue;
Senão hão de fazê-lo em sarrabulho,
Puxado pelo nariz o encher de lado,
E espetar-lhe a careta sobre um mastro.
Singofredo o feroz exige apenas
Que o Rei deixando o cetro deste reino
Seja sempre na corte Rei da Lua.
Loriolo virá ao seu caminho
Trajando seu gibão amarelado
Com remendos de cor, e campainhas,
Meias roxas e gorro afunilado".

XVII
Loriolo suspira. O povo espera.
Pela face do Bobo corre a furto
Uma lágrima trêmula. — É desgraça
Tendo subido a Rei, voltar...

Nem ousa
O nome proferir de sua infâmia.

De repente uma ideia o ilumina...
Deu uma das antigas gargalhadas,
Inda em trajes de rei graceja e pula.

Foi uma dança cômica, fantástica,
Um riso que doía — tão gelado
Coava o coração!... Estava doido...
Dançou a gargalhar... caiu exausto,
Caiu sem movimento sobre o lodo...
Escutaram-lhe o peito. Estava morto.

Ora o pirata, o invasor Normando
Era filho da nossa conhecida,
Que, posto não pudesse com acerto
Dizer quem era o pai de seu boêmio
Afirmava contudo afoitamente
Que, em todo o caso, tinha jus ao trono.

Reina pela cidade a bebedeira,
E bebendo à saúde do bastardo
O Bobo que foi rei ninguém sepulta...

Bem vês, amigo Puff, que neste conto
Em poucos versos digo histórias longas;
— Amores, mortes, e no trono um bobo
E sobre o lodo um rei que não se enterra.
— Muito embora a mulher as roupas façam,
Eu provo que o burel não faz o monge,
E um bobo é sempre um bobo. Mostro ainda
De meu estro no vário cosmorama
Um rei que numa pipa o trono perde.
E um bastardo que o pai dizer não pode
E em nome de dois pais, ambos em dúvida,
Vem na sangueira reclamar seu nome.

Um outro só com isso dera a lume
Um poema em dez cantos. Sou conciso;
Não ouso tanto: dou somente ideias,
Esboço aqui apenas meu enredo.

Puff! olá, meu Puff! Estás dormindo,
Prosaico beberrão! Acorda um pouco!
Bebeu todo o meu vinho — a empada foi-se
Não resta-me esperança! Este demônio
De um poeta como eu nem vale um murro!

UM HOMEM DA PLATEIA (interrompendo)
Silêncio! fora a peça! que maçada!
Até o ponto dorme a sono solto!
 


SPLEEN E CHARUTOS

I
SOLIDÃO

Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça.

Ergueu-se, vem da noite a vagabunda
Sem xale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes;
É doida por amor da noite a filha.

As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório;
Todos têm o capuz e bons narizes.
E parecem sonhar o refeitório.

As árvores prateiam-se na praia,
Qual de uma fada os mágicos retiros
Ó lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!

Falando ao coração que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas mortas no lençol de prata?

Minha alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária
Deito-me só e triste, e sem ter fome
Vejo na mesa a ceia solitária.

Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo!

II
MEU ANJO

Meu anjo tem o encanto, a maravilha
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pelo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte num desdém, num beijo vida,
E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!

III
VAGABUNDO

Eat, drink and love; what can the rest avail us!
Byron

Eu durmo e vivo no sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrela;
Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores;
Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!...

Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio;
Não creio no diabo nem nos santos.
Rezo à Nossa Senhora, e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.

IV
A LAGARTIXA

A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.

Possa agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.

Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha;
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.


V
LUAR DE VERÃO

O que vês, trovador? — Eu vejo a lua
Que sem lavor a face ali passeia;
No azul do firmamento inda é mais pálida
Que em cinzas do fogão uma candeia.

O que vês, trovador? — No esguio tronco
Vejo erguer-se o chinó de uma nogueira.
Além se entorna a luz sobre um rochedo
Tão liso como um pau-de-cabeleira.

Nas praias lisas a maré enchente
Se espraia cintilante d'ardentia
Em vez de aromas as doiradas ondas
Respiram efluviosa maresia!

O que vês, trovador? — No céu formoso
Ao sopro dos favônios feiticeiros
Eu vejo — e tremo de paixão ao vê-las —
As nuvens a dormir, como carneiros.

E vejo além, na sombra do horizonte,
Como viúva moça envolta em luto,
Brilhando em nuvem negra estrela viva
Como na treva a ponta de um charuto.

Teu romantismo bebo, ó minha lua,
A teus raios divinos me abandono,
Torno-me vaporoso, e só de ver-te
Eu sinto os lábios meus se abrir de sono.

VI
O POETA MORIBUNDO

Poetas! amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!
Façam dela uma corda, e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!

Cantem esse verso que me alentava...
O aroma dos currais, o bezerrinho,
As aves que na sombra suspiravam,
E os sapos que cantavam no caminho!

Coração, por que tremes? Se esta lira
Nas minhas mãos sem força desafina,
Enquanto ao cemitério não te levam
Casa no marimbau a alma divina!

Eu morro qual nas mãos da cozinheira
O marreco piando na agonia...
Como o cisne de outrora... que gemendo
Entre os hinos de amor se enternecia.

Coração, por que tremes? Vejo a morte
Ali vem lazarenta e desdentada...
Que noiva!... E devo então dormir com ela?...
Se ela ao menos dormisse mascarada!

Que ruínas! que amor petrificado!
Tão antediluviano e gigantesco!
Ora, façam ideia que ternuras
Terá essa lagarta posta ao fresco!

Antes mil vezes que dormir com ela,
Que dessa fúria o gozo, amor eterno...
Se ali não há também amor de velha,
Deem-me as caldeiras do terceiro Inferno!

No inferno estão suavíssimas belezas,
Cleópatras, Helenas, Eleonoras;
Lá se namora em boa companhia,
Não pode haver inferno com Senhoras!

Se é verdade que os homens gozadores,
Amigos de no vinho ter consolos,
Foram com Satanás fazer colônia,
Antes lá que no Céu sofrer os tolos! —

Ora! e forcem um'alma qual a minha
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça
A cantar ladainha eternamente
E por mil anos ajudar a Missa!

 

É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!

É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou— é ela!
Eu a vi— minha fada aérea e pura —
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...

Oh! decerto... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores.

Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! — repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela,— eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! — murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou— é ela!

 

UM MANCEBO NO JOGO SE DESCORA

Um mancebo no jogo se descora,
Outro bêbado passa noite e dia,
Um tolo pela valsa viveria
Um passeia a cavalo, outro namora,

Um outro que uma sina má devora
Faz das vidas alheias zombaria,
Outro toma rapé, um outro espia...
Quantos moços perdidos vejo agora!

Oh! não proíbam pois ao meu retiro
Do pensamento ao merencório luto
A fumaça gentil por que suspiro.

Numa fumaça o canto d'alma escuto...
Um aroma balsâmico respiro,
Oh! deixai-me fumar o meu charuto!

 

AO SOL DO MEIO-DIA EU VI DORMINDO

Ao sol do meio-dia eu vi dormindo
Na calçada da rua um marinheiro,
Roncava a todo o pano o tal brejeiro
Do vinho nos vapores se expandindo!

Além um Espanhol eu vi sorrindo
Saboreando um cigarro feiticeiro,
Enchia de fumaça o quarto inteiro.
Parecia de gosto se esvaindo!

Mais longe estava um pobretão careca
De uma esquina lodosa no retiro
Enlevado tocando uma rabeca!

Venturosa indolência! não deliro
Se morro de preguiça... o mais é seca!
Desta vida o que mais vale um suspiro?

 
TODA AQUELA MULHER TEM A PUREZA

Toda aquela mulher tem a pureza
Que exala o jasmineiro no perfume,
Lampeja seu olhar nos olhos negros
Como em noite d'escuro um vaga-lume.

Que suave moreno o de seu rosto!
A alma parece que seu corpo inflama
Ilude até que sobre os lábios dela
Na cor vermelha tem errante chama...

E quem dirá, meu Deus! que a lira d'alma
Ali não tem um som — nem de falsete!
E sob a imagem de aparente fogo
É frio o coração como um sorvete!

 

O CÔNEGO FILIPE

O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Por que tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heroico poema decantar-te?

Voltemos ao assunto. A minha musa
Como um falado Imperador Romano
Distrai-se às vezes apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre.

Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
Sobre a vela atirava a carapuça.
Então no escuro, em camisola branca
Ia apalpando procurar na sala —
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar— o negro saco.

À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro,
Suando de calor de sol e amores
Cantava no alaúde enamorado.
E como ele saiu-se do namoro.
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo;
Que tem ares até de ladainha!

Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela sua natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?

Princípio no harém. Não é tão novo.
Mas esta vida é sempre deleitosa.
As almas d'homem ao harém se voltam —
Ser um dia sultão quem não deseja?

Quem não quisera das sombrias folhas.
Nas horas do calor, junto do lago
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?

Mas ah! o plágio nem perdão merece!
Digam — pega ladrão! — Confesso o crime,
Não é Ovídio só que imito e sonho
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa ideia é do cônego Filipe!

 

TERZA RIMA

E, belo de entre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas recendendo,

Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até perdoem respirar-lhe o sarro!

Porém o que há mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d'honra, és tu, ó meu charuto!

 

NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcineia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a comédia — em casamento.

Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!

 

O EDITOR

— A poesia transcrita é de Torquato,
Desse pobre poeta enamorado
Pelos encantos de Leonora esquiva,
Copiei-a do próprio manuscrito
E para prova da verdade pura
Deste prólogo meu, basta que eu diga
Que a letra era um garrancho indecifrável,
Mistura de borrões e linhas tortas.
Trouxe-me do Arquivo lá da lua
E decifrou-ma familiar demônio,
Demais — infelizmente é bem verdade
Que Tasso lastimou-se da penúria
De não ter um ceitil para a candeia.

Provo com isso que do mundo todo
O sol é este Deus indefinível,
Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre,
Mais santo do que os Papas — o dinheiro!

Byron no seu Don Juan votou-lhe cantos,
Filinto Elísio e Tolentino o sonham,
Foi o Deus de Bocage e d'Aretino,
Aretino, essa incrível criatura
Lívida e tenebrosa, impura e bela,
Sublime e sem pudor, onda de lado,
Em que do gênio profanou-se a pérola,
Vaso d'ouro que um óxido terrível
Envenenou de morte, alma poeta
Que tudo profanou com as mãos imundas,
E latiu como um cão mordendo um século...

Quem não ama o dinheiro? Não me engano
Se creio que Satã à noite veio
Aos ouvidos de Adão adormecido
Na sua hora primeira, murmurar-lhe
Essa palavra mágica da vida,
Que vibra musical em todo o mundo.

Se houvesse o Deus-vintém no Paraíso
Eva não se tentava pelas frutas,
Pela rubra maçã não se perdera;
Preferira decerto o louro amante
Que tine tão suave e é tão macio!

Se não faltasse o tempo a meus trabalhos
Eu mostraria quanto o povo mente
Quando diz— que a poesia enjeita, odeia
As moedinhas doiradas. — É mentira!

Desde Homero (que até pedia cobre),
Virgílio, Horácio, Calderon, Racine,
Boileau e o fabuleiro Lafontaine
E tantos que melhor decerto fora
Dos poetas copiar algum catálogo,
Todos a mil e mil por ele vivem,
E alguns chegaram a morrer por ele!
Eu só peço licença de fazer-vos
Uma simples pergunta. Na gaveta
Se Camões visse o brilho do dinheiro —
Malfilâtre, Gilbert, o altivo Chatterton
Se o tivessem nas rotas algibeiras
Acaso blasfemando morreriam?

 

DINHEIRO

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune,
adoré; on a consideration, honneur,
qualités, vertus. Quand on n'a point d'argent,
on est dans la dépendance de toutes ces
choses et de tout le monde.
Chateaubriand

Sem ele não há cova — quem enterra
Assim gratis a Deo? O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?
Demais, as Dánais também o adoram.
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a Deputado, até Ministro,
Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte, Alma
Romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos... Certamente,
Assim o disse Deus — mas esse texto
Explica-se melhor e doutro modo.
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim — concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras.

 

MINHA DESGRAÇA

Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...

Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei. O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...

Minha desgraça, ó cândida donzela
O que faz que o meu peito assim blasfema,
É ter para escrever todo um poema,
E não ter um vintém para uma vela.

 

GLÓRIA MORIBUNDA

Une fille de joie attendait sur la borne.

Théoph Gautier

I
É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos louros,
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto...
Nessas órbitas — ocas, denegridas! —
Como era puro seu olhar sombrio!

Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoula a mirra incandescente.

Tu outrora talvez desses-lhe um beijo;
Por que repugnas levantá-la agora?
Olha-a comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das ideias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu-se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada, apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?

Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem,
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensanguenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde
Mas esse a morte o sabe e o não revela,
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo
E a terra sepulcral não respondia.

Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.

II
— Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?
Vem pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se inda podes amar, ergue-te ainda,
Une teu peito ao meu, pálida sombra! —

III
Era uma fronte olímpica e sombria,
Nua ao vento da noite que agitava
As loiras ondas do cabelo solto;
Cabeça de poeta e libertino
Que fogo incerto de embriaguez corava.
Na fronte a palidez, no olhar aceso
O lume errante de uma febre insana.

IV
— Mancebo, quem és tu?

— Que importa o nome?
Um poeta de santas harmonias
Que a Musa obscena do bordel profana.
Na aparição balsâmica dos anjos
Porventura enlevei a mocidade.
Das virgens no cheiroso travesseiro
Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei!

Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou... Amei... Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos.
Nessa esponja da vida inda uma gota
Talvez reste a meus lábios anelantes
Que me dê um assomo de ventura
E um leito onde morrer amando ainda.

E que vida, mulher! que dor profunda,
Faminta como um verme aqui no peito!
Murcha desfaleceu a flor da vida
E cedo morrerá... E vós, meus anjos,
Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira
A quem votei meu canto deliroso;
Amantes que eu sonhei, que eu amaria 
Com todo o fogo juvenil que ainda
Me abrasa o coração, por que fugistes,
Brancas sombras, do céu das esperanças?

Oh! riamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?
À orgia! na saturnal entre a loucura
Derrama o vinho sono e esquecimento
Vinde, belezas que a volúpia inflama!
Bebamos juntos... Cantarei de novo!
A minha alma nas asas do improviso,
Como as aves do céu, voe cantando...
Todos caíram ébrios?... só eu resto?
Embora! em minha mão a lira pulsa,
Meu peito bate, a inspiração agora
Cânticos imortais ao lábio inspira.
Voai ao céu— não morrereis, meus cantos!

V
A glória! a glória! meu amor foi ela,
Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio...
E agora!... Além os sonhos dessa vida!
Quando eu morrer, meus versos incendeiem!
Apague-se meu nome — e ao cadáver
Nem lágrimas, nem cruz o mundo vote
Sou um ímpio (disseram-no!) pois deixem-me
Descansar no sepulcro!

Por que choras,
Descorada mulher? Sabes acaso
Quem é o triste, o malfadado obscuro
Que delira e desvaira aqui na treva
E tuas mãos aperta convulsivo?
Eu não te posso amar. Meu peito morto
É como a rocha que o oceano bate
E branqueia de escuma — ali não pode
Medrar a flor cheirosa dos enlevos...
Teu amor... Eu descri até dos sonhos...
Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,
Uma estrela de Deus não a ilumina.
Quem pudera nas ondas do passado,
Ditoso pescador, erguer no lodo
O ramo de coral de teus amores?

VI
Amei! amei! no sonho, nas vigílias
Esse nome gemi que eu adorava!
Votei amor a tudo quanto é belo!
Escuta A rua é queda. A noite escura
É negra como um túmulo. Durmamos
No leito dos amores do perdido.
Vês? nem lua no céu! tudo é medonho!
Nem estrela de luz. — Silêncio! Embora!
Escuta, anjo da noite! no meu peito
Não ouves palpitar o som da vida?
Deixa encostar meus lábios incendidos
No teu seio que bate. Vem, meu anjo!
A alma da formosura é sempre virgem!
Minha virgem — irmã— meu Deus! Contigo
Oh! deixa-me viver! Eu sinto bela
A tua alma acordando refletir-se
Nesses olhos tão negros d'Espanhola.
Quero amar e viver— sonhar— em fogo
Meus frouxos dias exaurir num beijo,
Derramar a teus pés os meus amores,
Minhas santas canções a ti erguê-las,
A ti, e só a ti! —

VII
— Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?

— Nada. É cedo ainda.
Não é ela ainda não. Chamei por ela...
Foi em vão... delirei...

— Por quem?

— A morte.

— Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!

— Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.

— Eu também sofro... mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura.
No amor impuro profanei minh’alma...
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minh’alma dorme amor ainda.
Levanta-me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abraços de morte unir-me ao seio.
Doida! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus... eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina... tudo aquilo
Escrevera Satã... —

VIII
— Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos.
Das longas gerações que se agonizam
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lado,
E a lançaste nas trevas errabunda
Com a palidez na fronte como anátema,
Qual lança a borboleta a asas d'ouro
No pântano e no sangue?

Tudo é sina:
O crime é um destino — o gênio, a glória
São palavras mentidas — a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!

IX
Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.

E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo silêncio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas
E a lira do poeta, se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando,
Coroando-me dos lírios da alvorada.
Arvore prateada da esperança.
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
A sombra vossa, delirante um dia?

Oh! que morro também! na noite d'alma
Sinto-o no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme...
Exilei-me dos homens blasfemando,
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.

X
E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doido que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P'ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano. — Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas.
— Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.
Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro!
Nunca infame beijou a mão dos grandes!
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da infâmia o revérbero.
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva

XI
O santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia-noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?

Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido.
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido, deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida...
Comprimi-a no meu exausto peito.
Falei-lhe em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a dor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante...
Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!

Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d'esperanças...
E soluçava a triste, e ardentes longas,
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela...
Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais eram mentira!

XII
Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim?
Em vez de prantos
Deixa-me suspirar a teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos,
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho — o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar num deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher. Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina.
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!

XIII
Escuta:
Sinto uma voz no peito que suspira.
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um cântico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras,
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles! —

XIV
O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo — era lívida — inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.

E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.

Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou— o pobre amante
Que uma só noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer— e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.

Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé — ergueu ao malfadado
A manta.

Como súbito acordando
Disse a moça a tremer:

— Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito...
Oh! deixa-o dormir.

— Mulher no peito
Sabes quem te dormiu?

— "Que importa o nome?"
Assim falava-me…

— Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver... Morreu Bocage!



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.


 

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