3/07/2023

Pizzicatos (Poesia), de B. Lopes


PIZZICATOS
COMÉDIA ELEGANTE




Ao mestre e amigo
A. J. Teixeira Lopes.

O DISCÍPULO

Viscondessa
não posso
Ir hoje àquele ponto
Beijar-te a extrema dos dedinhos finos,
As pétalas gracis, as róseas unhas
De tua mão esquerda...
Calcula tu que perda
E vê, senhora, o caiporismo nosso!

Quando tínhamos pronto,
Em dois columbinos,
Um idílio ao luar, sem testemunhas,
 Cortaram-nos as vasas.

Porém o amor tem asas
E voa longe, oh! minha loira Marta,
Anjo de olhos azuis e boca breve.
A paixão que nos leve
Como plumas — ao alto da montanha.

Nos veremos a farta
Domingo à noite — saberás aonde.
Com certeza o visconde,
Por ser de noite, lá não te acompanha
E ficará, reumático, na cama.
Toma a tua carruagem,
Dando as precisas instruções ao pajem
E vem ao Politeama.

Podes trazer o Armando,
O teu lindo morgado, esse fedelho
De seis anos, galante,
Que é todo louro, mas de um louro brando,
E que por ser teu filho é o teu espelho,
Abismo santo que de ti me aparta.
Esse meigo tratante
E o teu anjo da guarda,
De boné e de farda.

Traz em teus lábios, Marta,
Consolações e bálsamos — precisos
Ao teu moderno e pálido Abelardo,
Num dos teus bons sorrisos,
E de mistura — o nardo
De um beijo doce e apaixonada prece.

Entre perfumes de cananga e malva,
Fofos e plissês cândidos de renda,
Surja o teu rosto como a estrela d'alva,
Que, entre cirros nevados
E albores perfumados,
Como lágrima enorme transparece.

E não te esqueças, pálida sereia,
De uma camélia, que à lapela eu prenda,

E níqueis para a ceia!

II
Eu tinha recebido
Na mesma tarde — um dia de mormaço
O bilhete amoroso e perfumado;
Recebi-o dobrado
Desse feitio clássico de abraço...

Beijei, abrindo, tonto e comovido,
O adorável pedaço
De papel verde, especial e raro,
De ramagens por fora
E um lindo escudo nobiliário dentro,
Com a coroa de barão no centro.
Enfim, um papel caro,
Roubado à pasta do marido, embora!

Esperei impaciente todo o dia.
Caiu a noite e saio:

—Levava em mim a lépida alegria
De duas asas pelo azul de maio!

Aproximei-me logo do edifício...
“É D. Juan Tenório?” disse, rindo,
A tentação, olhando-me travessa.
“Como o senhor é lindo
De chapéu desabado na cabeça!...
Eu vou pagar-lhe tanto sacrifício.”
E murmurou aos meus ouvidos “entre,

Mas devagar, sentido!”
—Fui a bico de pés pela mão dela,
Cauto, larápio, pipilando a fala.

Vi, ao passar na sala.
De boca aberta ao ar de uma janela,
O burguês do marido

Ressonando, ao divã, de mãos no ventre.

III
Era um dia de março, um dia quente!
Através de florestas,
De povoações e campos de fazendas,
Rodava o trem vertiginosamente.
Era uma tarde destas
Que enlanguescem os pobres viajantes
Em fadigas horrendas.

Uma senhora de ares elegantes
Circunvagava o seu olhar de artista
Educado em viagens.

Sobre os pontos distantes
Vaporizavam-se, a -perder de vista,
Numa verdura tenra de pastagens,
As situações amenas,

Com duas cabras no quintal apenas,
E coqueiros em roda;
E um grande e velho engenho
Cuja pluma de fumo vaporoso
Era o traço gamenho
Dessa paisagem toda!

Aqui e ali — o gado preguiçoso,
De olhar tranquilo e ventas dilatadas,
Pacato ruminava
Ao abrigo das árvores copadas,
Pelas campinas em que o sol vibrava!...

E no pendor da serra,
Onde alinhavam-se as figuras pretas
Da escravatura capinando a terra,
Coruscava, tinindo,
— Como um metal de rútilas facetas.—
Ao sol das duas — o aço das enxadas!

E além, além, no claro das estradas,
Iam dois sulcos no atoleiro abrindo
Os carros de lavoura!

Eu, absorvido e pasmo,
Pensava então na viajante loura,
Quando a vejo sentar-se, balbuciando
Uma frase qualquer de entusiasmo.
E fomos palestrando
Sobre aquela beleza de paisagem...

Depois, pediu-me um livro, qualquer coisa
Para matar o tédio da viagem:
Um romance ou uns versos
Em que o espírito quieto de uma esposa
Não corresse perigo.
—E tinha os olhos num clarão imersos!
Eu murmurei comigo:
É uma aristocrata e ilustre dama.

E dei-lhe então os madrigais queixosos
De um poeta de fama,
Que era o prodígio lírico da rima.

Os olhos da senhora
E os seus dedos mimosos
— Uns espécimes róseos de obra-prima—
Em pressões delicadas,
Iam correndo agora
Do belo livro as folhas adoradas

De pernas para cima!

IV
Apareceu com a chuva,
Há de sair com o sol
Esta minha paixão pela viúva,
Que, tornando-me triste noite e dia,
Me prende e me agonia,
Como um peixinho a rabear no anzol.

Quero cantar agora,
Quero me rir, depois
Que vi na igreja o teu perfil, senhora;
Mas não posso cantar, e rir não posso!
E rezo um padre-nosso
Ao teu esposo morto há um ano ou dois.

Já de tristezas farto,
Abro a minha janela e o sol dourado
Entrou-me pelo quarto
Às seis do dia...

e vejo a viuvinha
Em outra alcova, bem defronte à minha,

A torcer os bigodes de um soldado.

V
Regurgitava a sala de visitas:
— Sociedade escolhida,
Uma assembleia alegre e divertida
De bacharéis casquilhos
E mulheres bonitas,
Com maridos burgueses, mas sem filhos.

Toda uma nuvem de perfume e renda!

Num dos jogos de prenda
Promovidos, unânime, na sala
De uma feição de gala
E iluminada a giorno,
Com folhagens e flores por adorno,
Eu sustentei o olhar daquela dama,
Através das lunetas

Acomodadas entre um nariz grego
E sobrancelhas pretas.
Como o inseto no meio de uma trama,
Sob o poder daquele olhar em chama
Eu não tinha sossego.

Suspenderam o jogo
Para servir-se o chá.
A dama, logo
Que viu-se livre, ergueu-se resoluta,
Em toda a esplendorosa
Graça de sua artística figura!
—Tinha o soberbo aspecto
De uma rainha medieval e astuta
E a macia frescura
De uma orvalhada rosa.
Dirigindo-se a mim, com muito afeto,
Pediu-me o braço e forno! à janela:

Estava a noite quieta,
Estrelada e sem lua.

Desenrolei a mágica linguagem,
A linguagem singela
Do amor, mas do amor vago de poeta,
Como um beijo invisível que flutua...

Ela ouviu-me extasiada
E a fronte morna nos meus ombros pôs,
Ofegante, mimosa, enamorada.

Chamaram-nos, porém, no mesmo instante
Ao chá — o nosso algoz,
Que nos tirava de um colóquio amante.
Dei-lhe o braço e levei-a
A extensa mesa de convivas cheia...

Uma rizada colossal, de ataque
Nos recebeu.
É que eu levava o fraque

Cheio de pó de arroz!

VI
Este episódio cômico registro
No interrompido diário
Da minha vida de celibatário.

Eu frequentava clandestinamente
A casa de um ministro
Feio, rico, senil, quinquagenário;
Um magro titular de qualquer coisa,
Que tinha por esposa
Uma senhora, moça e inteligente.

O caso deu-se em julho,
Numa manhã de rosas!
O céu brunido pelo sol magnífico
E atravessado de asas
De andorinhões e garças vagarosas,

Que divagavam, baixas, sobre as casas;
E vinham, num mergulho,
Lavar as alvas penas no mar verde,
Espelhado e pacífico,
Que no vago se perde.
Andava errante um columbino arrulho!

Esta sadia nesga de marinha
Nós víamos do quarto
Pela larga janela envidraçada;
Ela ainda alquebrada,
Tronco em meu braço, fronte unida à minha,
Eu — satisfeito como um lobo farto,
E com o olhar lambendo-a;
Buscando, amortecidos.
Os seus lânguidos olhos de chinesa,
Talhados em amêndoa.

Um tipo da raríssima beleza
Dos velhos tempos idos!

Passava nesse instante,
Cortando o mar e o tédio da paisagem,
Um veleiro escaler de pano ao vento.
Na rápida passagem
Era uma pluma lépida, volante!

Chegara-me aos ouvidos,
Como vago lamento,
Uma canção nostálgica de bordo,
—Toda a tristeza amarga do marujo...
Apurando os sentidos
Em mil receios trágicos acordo.

Sinto barulho e de seus braços fujo:
Subia o conselheiro
A escadaria gótica do prédio...
E pálido, e ligeiro,
Pus-me na sala, de chapéu na destra;
Não havia remédio!

Entrou o esposo, trêmulo, na sala.
Deu comigo e parou sem dar palestra;
Interrogou-me apenas
Com o olhar penetrante...

Ela, vindo do quarto, petulante
Ao conselheiro fala,
Com voz melíflua e de feições serenas,
Num rasgo audaz de consumada artista:

Este moço... é o dentista!

VII
O teu amor, criança,
Enche-me os dias da existência honesta
De uma luz tênue sempiterna e mansa,
Com prelúdios de festa.

Como céu estreitado est’alma adornas!
Mas teu olhar — um vândalo,
Um bandido de capa,
Com os agudos punhais de folhas mornas
E ciumento escândalo,
Às vezes salta e fere-me, a socapa...
Mas num sorriso entornas
Sobre a ferida o bálsamo do sândalo!

Não me crimines, filha,
(Eu não sei pelo idioma,
Como a flor pelo aroma,
Se de Constantinopla ou de Sevilha)
— Há de chegar o desejado instante
Dessa ventura lúbrica e suprema,
A lauda palpitante
Do emocional e lírico poema!

Eu sou prudente e austero:
Para o nosso consórcio,
Pomba arribada! unicamente espero.

Uma lei de divórcio.

VIII
E apaixonado eu disse-lhe — fujamos,
Ave adorada! Enlaça-te em meu braço,
Braço de amante, protetor e forte.
Vamos fugindo; vamos
Assim, à lei da sorte
Como dois alvos pombos pelo espaço...

E descíamos a escada do terraço.

— Olha o mar... não escondas
Amedrontado o teu olhar, oh! casta!
Vê esta noite límpada e tranquila
E a lua sobre as ondas,
Como um globo de lâmpada que oscila,
Sob o manto de luz que o céu arrasta,
Todo, todo estrelado!...

Ai! sobre o dorso deste leão farpeado
De agulhetas de estreitas
E frechas brancas do luar que escorre,
Há de vogar um barco
De segredantes velas
E dentro dele — nós; e enquanto, flor,
O rumo ousado em teus olhares marco,
Como um cisne que morre,
Ao cadencioso ritmo das águas
Vou desferindo uma canção de amor!

Rompendo a névoa túrbida das mágoas,
Pelo brilhante mar da fantasia
Vão a minh'alma e a tua
Num dos raios da lua,
Como duas falenas transparentes.

Longe estaremos ao romper do dia,
Como uns noivos contentes.

Além daquela praia
Circular e alvacenta,
Onde o luar mais lânguido desmaia,
Cheios de muito amor, muito carinho,
Vamos fazer o ninho,
Oh! pomba, oh! alva pomba penugenta!

Paras?! Não pares.
Firma-te em meu braço,
Este braço amoroso, honesto e forte,
Se te vence o cansaço.
Vamos longe, mais longe, flor do norte,
Ver crescer este amor, doce e garrido.
Como um pássaro em plena primavera.

Se uma cabana — um ninho apetecido —
Toda enfeitada de jasmins e de hera,
Onde a ventura existe,
Como uma flor aberta nos espera,
Porque queres voltar?...
(Neste momento o mar gemeu mais triste)

“Há quartos de alugar...”

IX
Nós íamos ao banho
Juntos e alegres, ao romper do dia.

Eu não era um estranho
Que te levasse oculta à alguma parte;
Muito ao contrário disso,
Tua família sempre me dizia
Que, se eu pudesse a praia acompanhar-te,
Prestava-lhe um serviço.

Mas de uma vez... ai! que manhã aquela!
Revolvia-se o mar todo em ressaca,
E tu, pálida e bela,
Saíste da barraca...
Estavas mesmo de fazer cobiça!

Vinhas toda vestida de flanela,
A cabeleira dentro de uma touca
E os pés — nos sapatinhos
De linho cru e sola de cortiça.
Nos olhos — mil carinhos,
E um sorriso na boca.

Esquecia-me, flor; manda a justiça
Que registre-se o chic de teus braços
Nus, roliços e brancos,
Como de jaspe dois recurvos traços,
Desenhando-te os flancos.

Tive um palpite e me vesti de meia;
—Estava a maré cheia!

Dei-te o braço e descemos: eu sem susto,
E tu — a muito custo,
Com receios ainda.

Ai! que demônio! estavas mesmo linda!

Entrei, entraste, e mergulhamos juntos...
—Todos, na praia, todos, assustados
Cuidavam que saíssemos defuntos,

E saímos corados!!

X
Tinha findado o baile
Na sala nobre, esplêndida e brilhante...

A formosa condessa
Morena, esbelta, acomodando o xale
Sobre os bandós da fúlgida cabeça,
Com um ar petulante
Disse, cumprimentando-me — apareça...

A um aceno orgulhoso
Aproximou-se o pajem,
Descobrindo-se humilde e respeitoso,
E apresentou-lhe a capa de saída;
—Houve um frufru de seda comprimida,
E partia a carruagem!
Deixou no parque um rastro de perfume
E na minh’alma — o lume
De uma paixão enorme e incalculável.

Logo ao dia seguinte
Pus no lábio o sorriso mais amável
E apresentei-me em casa da fidalga,
Que as cumiadas do respeito galga:
—A sala era um requinte
De arte e luxo; de aroma e luz repleta.

“Bem vindo o meu poeta”
Disse ela rindo; e me buscando à porta.
Conduziu-me à otomana e conversamos,
Com crítica e pilhéria,
Sobre o baile da véspera.

“Mas vamos
Ao que mais nos importa”
Disse, de súbito, a fidalga séria.

Supus que fosse me fatiar de coisa
Sentimental e a esmo;
Dos sagrados deveres de uma esposa,
Literatura mesmo,
E não de assuntos em que a gente peque.

Eu palpitava, e palpitava o leque
De lavores de prata
Na nervosa mãozinha aristocrata
Da elegante senhora.

Dentro abafava de calor; e fora,
Pelo quadrado espaço das janelas,
Distante — agente via
Pedacinhos alegres de paisagem
Iluminados pela luz do dia...
Soprava as bambinelas
Uma travessa e momentânea aragem!

Havia em toda a casa
Certa calma narcótica e propícia,
Uma errante carícia.

Os meus sonhos de amor abriam asa!
Houve um momento de silêncio, como
Aqueles de romance...
Um aflitivo lance!
Rompi com ele! e, delicado, tomo
As mãozinhas rosadas da condessa...
Neste instante ligeiro
Tive um baile de sonhos na cabeça!

Ela os lábios abriu, como se fosse
Dar-me esperança, uma palavra doce...

Mas falou-me em dinheiro!

XI
Era a doce alegria
De minha vida - enchia-me a saleta
De garrulice e deliciosos trilos,
Desde a alvorada até findar o dia.

Vivíamos tranquilos,
Eu — um pobre poeta,
Ele — um tenor, um belga superfino,
Louro, mais muito louro,
Como um filhinho trefego de ingleses,
Olhos inquietos e pescoço fino.

Nós tínhamos, às vezes,
Dois de flauta — original orquestra!
Em vez da refeição e da palestra.

E ouviam-se risadas
Que pareciam moedinhas d'ouro
Sobre mesas de mármore atiradas,
Quando o sol de janeiro
Entrava, rindo, pela casa dentro,
E vinha-nos o cheiro
Dos próximos hotéis, da salsa e o coentro
Das hortas, cheias de repolho e celga.

Ai! com tristeza o digo:
Morreu cantando o meu canário belga!
Envolve-o a sombra do feral mistério.

Minha saudade roxa, vem comigo
Ao triste cemitério
Do meu quintal, onde enterrei aquele
Que foi na vida o meu melhor amigo,
E para aonde agora a dor me impele...

Tenho os olhos de lágrimas pesados!
No dia de finados,

Canários que passais—orai por ele!

XII
Encontrei séria e fria,
Com evidentes laivos
De ciumenta raiva no semblante,
O meu pálido amor, naquele dia.

Deu-me na boca o beijo costumado
E ordenou-me: sentai-vos,
Meu bandoleiro amante.

Obedeci, sentando-me ao seu lado
Sobre um divã reps cor de zinco,
Com ramagens vistosas.

Do poente aceso em púrpuras e rosas,
Vinha um raio fugaz do sol das cinco,
Um doirado filete,
Pela janela aberta
Que iluminava o róseo gabinete.

Cortava largamente
Saudosa nota a vastidão deserta!
E pelo éter tranquilo das alturas,
Como nódoas escuras,
Iam buscando abrigo
Bandos de corvos sacudindo as asas.

Por detrás de um antigo,
Meio arruinado templo,
—A catedral de torres elevadas —
O sol morria no horizonte em brasas!

Enquanto isto contemplo,
Iam correndo as horas sossegadas.

Ela a custo fingia
Estar imersa em dolorosas cismas.
A sacudir a perna,
Fixava muito o triste olhar no lustre
Que, no cristal dos prismas,
Todo o fogo do ocaso refletia.

Havia um quer que fosse,
Uma agonia interna
N'alma doente dessa moça ilustre,
Que não teve p'ra mim, naquele dia,
A gota leve de uma frase doce.

Olhando-me de chofre,
A suspirar me disse
Uma atrevida, rápida tolice,
Que eu guardei na memória
Como quem guarda pérolas num cofre:

“Sabeis a minha história,
Meu feiticeiro vate;
Que os episódios dela inda estão frescos.
Traíram-me esses modos romanescos
E aqueles versos lindos...
Mas nem por vós o coração me bate!
Quero dizer com isto:
—Os amores são findos!”

Eu nunca tinha visto
Coisa igual em mulheres. Era a esfinge!
Levantei-me colérico e soberbo
Como o leão que se tinge
No próprio sangue, e enfebreci o verbo.

Tive rancores trágicos de Otelo
A princípio; depois,
Engalfinhando os dedos no cabelo,
Um pensamento rápido e cobarde
Atravessou-me a ideia...
Houve uma longa pausa entre nós dois.

De uma tristeza cheia
ora, no azul, esmaecia a tarde.

Ajoelhei-me a seus pés, pálido, tonto
Completamente, ao ponto
De lhe beijar as fímbrias do vestido...
Pedindo amor, pedindo amor e graça,
Eu balbuciei, vencido:
—Oh, minha pomba, amaina
Com a ponta d’asa esta fatal desgraça!
Ao meu afeto doido abre a tua alma,
Que é um ninho de paina...

Ela encarou-me majestosa e calma;
E a minha voz vazava
Um filtro de saudade!
Lúcia tranquila, estática, me olhava.

E eu lhe falei da minha mocidade,
Dos meus vinte anos, cheios de calor,
Sem um pingo de neve
Que caísse de leve
No viçoso vergel do meu amor.

“Primavera pretensa!”
Disse ela, enfim, num teatral arranco,
E a rir-se muito, a rir-se doidamente,
Pedindo-me licença,
Num gesto audaz, impetuoso e franco,
Com a mãozinha insolente

Arrancou-me da barba um fio branco!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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