VAI LÁ LONGE, NA FLORESTA
Vai lá longe, na floresta,
Um som de sons a passar,
Como de gnomos em festa
Que não consegue durar...
É um som vago e distinto.
Parece que entre o arvoredo
Quando seu rumor é extinto
Nasce outro som em segredo.
Ilusão ou circunstância?
Nada? Quanto atesta, e o que há
Num som, é só distância
Ou o que nunca haverá.
FRESTA
Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
PÁLIDA, A LUA PERMANECE
Pálida, a Lua permanece
No céu que o Sol vai invadir.
Ah, nada interessante esquece.
Saber, pensar — tudo é existir.
Mas pudesse o meu coração
Saber à tona do que eu sou
Que existe sempre a sensação
Ainda quando ela acabou...
DORME, CRIANÇA, DORME
Dorme, criança, dorme,
Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.
Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.
BOIAM FARRAPOS DE SOMBRA
Boiam farrapos de sombra
Em torno ao que não sei ser.
É todo um céu que se escombra
Sem me o deixar entrever.
O mistério das alturas
Desfaz-se em ritmos sem forma
Nas desregradas negruras
Com que o ar se treva torna.
Mas em tudo isto, que faz
O universo um ser desfeito,
Guardei, como a minha paz,
A esperança, que a dor me traz,
Apertada contra o peito.
VERDADEIRAMENTE
Verdadeiramente
Nada em mim sinto.
Há uma desolação
Enquanto eu sinto.
Se vivo, parece que minto.
Não sei do coração
Outrora, outrora
Fui feliz, embora
Só hoje saiba que o fui.
E este que fui e sou,
Margens, tudo passou
Porque flui.
O QUE É A VIDA E O QUE É MORTE
O que é a vida e o que é morte
Ninguém sabe ou saberá
Aqui onde a vida e a sorte
Movem as coisas que há.
Mas, seja o que for o enigma
De haver qualquer coisa aqui,
Terá de mim próprio o estigma
Da sombra em que eu o vivi.
SABES QUEM SOU? EU NÃO SEI
Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.
Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.
TENHO ESCRITO MUITOS VERSOS
Tenho escrito muitos versos,
muitas coisas a rimar,
dadas em ritmos diversos
ao mundo e ao se olvidar.
Nada sou, ou fui de tudo.
Quanto escrevi ou pensei
é como o filho de um mudo-
“amanhã eu te direi”.
E isto só por gesto e esgar,
feito de nadas em dedos
como uma luz ao passar
por onde havia arvoredos.
RENEGO, LÁPIS PARTIDO
Renego, lápis partido,
Tudo quanto desejei.
E nem sonhei ser servido
Para onde nunca irei.
Pajem metido em farrapos
Da glória que outros tiveram,
Poderei amar os trapos
Por ser tudo que me deram.
E irei, príncipe mendigo,
Colher, com a boa gente,
Entre o ondular do trigo
A papoila inteligente.
SE EU ME SENTIR SONO
Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,
Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,
Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.
TUDO O QUE SOU NÃO É MAIS DO QUE ABISMO
Tudo o que sou não é mais do que abismo
Em que uma vaga luz
Com que sei que sou eu, e nisto cismo,
Obscura me conduz.
Um intervalo entre não ser e ser
Feito de eu ter lugar
Como o pó, que se vê o vento erguer,
Vive de ele o mostrar.
SANGRA-ME O CORAÇÃO
Sangra-me o coração. Tudo que penso
A emoção mo tomou. Sofro esta mágoa
Que é o mundo imoral, regrado e imenso,
No qual o bem é só como um incenso
Que cerca a vida, como a terra a água.
Todos os dias, ouça ou veja, dão
Misérias, males, injustiças – quanto
Pode afligir o estéril coração.
E todo anseio pelo bem é vão,
E a vontade tão vã é o pranto.
Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a norma, o natural possível.
E de querer bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular ao ser?
Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geômetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço –
O mundo fluído, com seu tempo e espaço,
Que ele mesmo não sabe quem criou?
Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.
Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só no mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, por que foi erguido?
Como acabá-lo, tempo inconcluído.
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?
O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele
Que, esse Deus exumado, refletiu
A morte e a exumação que houveram dele.
Mas está perdido o selo como que sele
Seu pacto com o vivo que caiu.
Por isso, em sombra e natural desgraça,
Tem que buscar aquilo que perdeu –
Não ela, mas a morte que a repassa.
E vem achar no Verbo a fé e a graça –
A nova vida do que já morreu.
Porque o Verbo é quem Deus era primeiro.
Antes que a morte, que o tornou o mundo
Corrompesse de mal o mundo inteiro:
E assim o Verbo, que é Deus terceiro,
A alma volve ao Bem que é o seu fundo.
FLUI, INDECISO NA BRUMA
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.
Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.
É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
NESTA GRANDE OSCILAÇÃO
Nesta grande oscilação
Entre crer e mal descrer
Transforma-se o coração
Cheio de nada saber;
E, alheando do que sabe
Por não saber, o que é,
Só um instante lhe cabe,
Que é o conhecer a fé –
A fé que os astros conhecem
Porque é a aranha que está
Na teia, que todos tecem.
E é a vida que antes há.
TUDO QUE SINTO, TUDO QUANTO PENSO
Tudo que sinto, tudo quanto penso,
sem que eu o queira se me converteu
numa vasta planície, um vago extenso
onde há só nada sob o nulo céu.
Não existo senão para saber
que não existo, e, como a recordar,
vejo boiar a inércia do meu ser
no meu ser sem inércia, inútil mar.
Sargaço fluído de uma hora incerta,
quem me dará que o tenha por visão?
Nada, nem o que tolda a descoberta
como o saber que existe o coração.
ONDA QUE, ENROLADA, TORNAS
Onda que, enrolada, tornas,
Pequena, ao mar que te trouxe
E ao recuar te transtornas
Como se o mar nada fosse,
Por que é que levas contigo
Só a tua cessação,
E, ao voltar ao mar antigo,
Não levas meu coração?
Há tanto tempo que o tenho
Que me pesa de o sentir.
Leva-o no som sem tamanho
Com que te ouço fugir!
MONTES, E A PAZ QUE HÁ NELES
Montes, e a paz que há neles, pois são longe...
Paisagens, isto é, ninguém...
Tenho a alma feita para ser de um monge
Mas não me sinto bem.
Sem eu fosse outro, fora outro. Assim
Aceito o que me dão,
Como quem espreita para um jardim
Onde os outros estão.
Que outros? Não sei. Há no sossego incerto
Uma paz que não há.
E eu fito sem o ler o livro aberto
Que nunca mo dirá...
NESTE MUNDO EM QUE VIVEMOS
Neste mundo em que vivemos
Somos sombras de quem somos,
E os gestos reais que temos
No outro em que, almas, esquecemos,
São aqui esgares e assomos.
Tudo é noturno e confuso
No que entre nós aqui há.
Projeções, fumo difuso
Do lume que brilha ocluso
Ao olhar que a vida dá.
Mas um ou outro, um momento,
Olhando bem, pode ver
Na sombra e seu movimento
Qual no outro mundo é o intento
Do gesto que o faz viver.
E então encontra o sentido
Do que aqui está a esgarrar.
E volve ao seu corpo ido,
Imaginado e entendido,
A intuição de um olhar.
Sombra do corpo saudosa,
Mentira que sente o laço
Que a liga à maravilhosa
Verdade que a lança, ansiosa,
No chão do tempo e do espaço.
FOI UM MOMENTO
Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.
CESSA O TEU CANTO
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.
Foi tua voz
Encantamento
Que, sem querer, nesse momento,
Vago acordou
Um ser qualquer
Alheio a nós
Que nos falou?
Não sei não cantes!
Deixa-me ouvir
Qual o silêncio
Que há a seguir
A tu cantares!
Ah, nada, nada!
Só os pesares
De ter ouvido,
De ter querido
Ouvir para além
Do que é o sentido
Que uma voz tem.
Que anjo, ao ergueres
A tua voz,
Sem o saberes
Veio baixar
Sobre esta terra
Onde a alma erra
E com as asas
Soprou as brasas
De ignoto lar?
Não cantes mais!
Quero o silêncio
Para dormir
Qualquer memória
Da voz ouvida,
Desentendida,
Que foi perdida
Por eu a ouvir...
POEMA
O céu, azul de luz quieta,
As ondas brandas a quebrar,
Na praia lúcida e completa —
Pontos de dedos a brincar.
No piano anônimo da praia
Tocam nenhuma melodia
De cujo ritmo por fim saia
Todo o sentido deste dia.
Que bom, se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.
HOUVE UM RITMO NO MEU SONO
Houve um ritmo no meu sono.
Quando acordei o perdi.
Por que saí do abandono
De mim mesmo, em que vivi?
Não sei que era o que não era.
Sei que suave me embalou,
Como se o embalar quisera
Tornar-me outra vez quem sou.
Houve uma música finda
Quando acordei de a sonhar.
Mas não morreu: dura ainda
No que me faz não pensar.
QUEM ME AMARROU A SER EU
Quem me amarrou a ser eu
Fez-me uma grande partida.
Debaixo deste amplo céu,
Não tenho vinda nem ida.
Sou apenas um ser meu.
Nem isso... Anda tudo à volta
A retirar-me de mim.
Parece uma fera à solta
Este mundo que anda assim
A servir-me de má escolta.
Quando encontrar a verdade
Hei de ver se hei de fugir,
Pelo menos em metade.
Depois ficarei a rir
Da minha tranquilidade.
SONHO SEM FIM NEM FUNDO
Sonho sem fim nem fundo,
Durmo, fruste e infecundo.
Deus dorme, e é isso o mundo.
Mas se eu dormir também
Um sono qual Deus tem
Talvez eu sonhe o Bem –
O Bem do Mal que existo
Esse sonho, que avisto,
Em mim chamo-lhe Cristo.
Agora o seu ser ausente,
Surge o que há de presente
Na ausência, eternamente.
Não foi em cruz erguida
Num calvário da vida,
Mas numa cruz vivida
Que foi crucificado
O que foi, em seu lado,
Por lança golpeado.
E desse coração
Água e sangue virão.
Mas a verdade não...
Só quando já, descido
De aonde foi subido
Para ser escarnecido.
Seu corpo foi baixar
Onde se há de enterrar,
O haverei de encontrar.
Desde que o mundo foi
No mundo à alma dói
O que ao mundo destrói.
Desde que a vida dura
Tem a vida a amargura
De ser mortal e impura.
E assim na Cruz se fez
A vida, para que a nós
Veja o melhor de nós.
O túmulo fechado
Aberto foi achado
E vazio encontrado.
Meu coração também
É o túmulo do Bem,
Que a vida bem não tem.
Mas há um anjo a me ver
E a meu lado dizer
Que tudo é outro ser.
JÁ ME NÃO PESA TANTO VIR DA MORTE
Já me não pesa tanto vir da morte.
Sei já que é nada, que é ficção e sonho,
E que, na roda universal da Sorte,
Não sou aquilo que me aqui suponho.
Sei que há mais mundos que este pouco mundo
Onde aprece a nós haver morrer –
Dura terra e fragosa, que há no fundo
Do oceano imenso de viver.
Sei que a morte, que é tudo, não é nada,
E que, de morte em morte, a alma que há
Não cai num poço. Vai por uma estrada.
Em Sua hora e a nossa, Deus dirá.
NÃO DIGAS NADA! QUE HÁS ME DE DIZER?
Não digas nada! Que hás me de dizer?
Que a vida é inútil, que o prazer é falso?
Di-lo de cada dia a cadafalso
Ao que ali um dia vai morrer.
Mais vale não querer.
Sim, não querer, porque querer é um ponto,
Ponto no horizonte de onde estamos,
E que nunca atingimos nem achamos.
Presos locais da ida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.
Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo um ignorância diluída!
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.
Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que nos fará seus.
Outros os montes e os solenes céus.
DO FUNDO DO FIM DO MUNDO
Do fundo do fim do mundo
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.
E eu disse: “É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser.”
Ë assim com um gesto nobre
Respondi a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
TENHO EM MIM COMO UMA BRUMA
Tenho em mim como uma bruma
Que nada é nem contém
A saudade de coisa nenhuma,
O desejo de qualquer bem.
Sou envolvido por ela
Como por um nevoeiro
E vejo luzir a última estrela
Por cima da ponta do meu cinzeiro.
Fumei toda a vida. Que incerto
Tudo quanto vi ou li!
E todo o mundo é um grande livro aberto
Que em ignorada língua me sorri!
TEU PERFIL, TEU OLHAR REAL OU FEITO
Teu perfil, teu olhar real ou feito,
Lembra-me aquela eterna ocasião
Em que eu amei Semíramis, eleito
Daquela plácida visão.
Amei-a, é claro, sem que o tempo e o espaço
Tivesse nada com o meu amor.
Por isso guardo desse amor escasso
O meu amor maior.
Mas, ao olhar-te, lembro, e reverbera
Quem fui em quem eu sou.
Quando eu amei Semíramis, já era
Tarde no Fado, e o amor passou.
Quanta perdida voz cantou também
Nos séculos perdidos que hoje são
Uma memória irreal do coração!
Quanta voz viva, hoje de ninguém!
A LÂMPADA NOVA
A lâmpada nova
No fim de apagar
Volta a dar a prova
De estar a brilhar.
Assim alma sua
Deveras esperta
Quando a noite é nua
E se acha deserta.
Vestígio que ergueu
Sem ser no lugar
De onde se perdeu...
Nasce devagar!
VAGA SAUDADE
Vaga saudade, tanto
Dóis como a outra que é
A saudade de quanto
Existiu aqui ao pé.
Tu, que és do que nunca houve,
Punges como o passado
A que existir não aprouve.
ONDE QUER QUE O ARADO O SEU TRAÇO CONSIGA
Onde quer que o arado o seu traço consiga
E onde a fonte, correndo, com a sua água siga
O caminho que, justo, as calhas lhe darão,
Aí, porque há a paz, está meu coração.
Bem sei que o som do mar vem de além dos outeiros
E que do seu bom som os ímpetos primeiros
Turvam de ser diverso o natural da hora,
Quando o campo a não ouve e a solidão a ignora.
Mas qualquer coisa falsa desce e se insinua
Nos anos que são vestígios sob a Lua.
AS COISAS QUE ERREI NA VIDA
As coisas que errei na vida
São as coisas que acharei na morte.
Porque a vida é dividida
Entre quem sou e a sorte.
As coisas que a Sorte deu
Levou-as ela consigo,
Mas as coisas que sou eu
Guardei-as todas comigo.
E por isso os erros meus,
Sendo a má sorte que tive,
Terei que os buscar nos céus
Quando a morte tire os véus
À inconsciência em que estive.
O SOL QUE DOURA AS NEVES AFASTADAS
O Sol que doura as neves afastadas
No inútil cume de altos montes quedos
Faz no vale luzir rios e estradas
E torna as verdes árvores brinquedos...
Tudo é pequeno, salvo o cume frio,
De onde quem pensa que do alto não vê
Vê tudo mínimo, num desvario
De quem da altura olhe quanto é.
AH, QUERO AS RELVAS E AS CRIANÇAS!
Ah, quero as relvas e as crianças!
Quero o coreto com a banda!
Quero os brinquedos e as danças –
A corda com que a alma anda.
Quero ver todas brincar
Num jardim onde se passa,
Para ver se posso achar
Onde está minha desgraça.
Ah, mas minha desgraça está
Em eu poder querer isto –
Poder desejar o que há.
DEIXEI ATRÁS OS ERROS DO QUE FUI
Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.
Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.
Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.
NÃO DIGAS NADA
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
QUERO DORMIR
Quero dormir. Não sei se quero a morte,
Nem sei o que ela é.
O que quero é não ser submisso à sorte,
Seja ela lei ou fé.
Quero poder nos campos prolongados
Meu ser abandonar.
Aos seus verdes silêncios afastados,
Que amo só de os olhar.
Quero poder imaginar a vida
Como ela nunca foi,
E assim vivê-la, vivida e perdida,
Num sonho que nem dói.
Quero poder mudar o universo
De um para outro lado,
Como quem junta o seu viver disperso
E o ata com o fado.
Quero, por fim, ser coroado rei
Do nada a que enfim vou.
Será minha coroa o que serei,
E o cetro o que sou.
SE ALGUÉM BATER UM DIA À TUA PORTA
Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!
SIM, VEM UM CANTO NA NOITE
Sim, vem um canto na noite.
Não lhe conheço a intenção,
Não sei que palavras são.
É um canto desligado
De tudo o que o canto tem.
É algum canto de alguém.
Vem na noite independente
Do que diz bem ou mal.
Vem absurdo e natural.
Já não me lembro que penso.
Ouço: é um canto a pairar
Como o vento sobre o mar.
TUDO QUE AMEI
Tudo que amei, se é que o amei, ignoro,
E é como a infância de outro. Já não sei
Se o choro, se suponho só que o choro,
Se o choro por supor que o chorarei.
Das lágrimas sei eu.. Essas são quentes
Nos olhos cheios de um olhar perdido...
Mas nisso tudo são-me indiferentes
As causas vagas deste mal sentido.
E choro, choro, na sinceridade
De quem chora sentindo-se chorar.
Mas se choro a mentir ou a verdade,
Continuarei, chorando, a ignorar.
TUDO, MENOS O TÉDIO
Tudo, menos o tédio, me faz tédio.
Quero, sem ter sossego, sossegar.
Tomar a vida todos os dias
Como uma remédio,
Desses remédios que há para tomar.
Tanto aspirei, tanto sonhei, que tanto
De tantos tantos me fez nada em mim.
Minhas mãos ficaram frias
Só de aguardar o encanto
Daquele amor que as aquecesse enfim
Frias, vazias,
Assim.
A NUVEM VEIO E O SOL PAROU
A nuvem veio e o sol parou.
Foi vento ou ocasião que o trouxe?
Não sei: a luz se nos velou
Como se luz a sombra fosse.
À vezes, quando a minha passa
Por sobre a alma que é ninguém,
A sensação torna-se baça
E pensar é não sentir bem.
Sim, é como isto: pelo céu
Vai uma nuvem destroçada
Que é véu, mau véu, ou quase véu,
E, como tudo, não é nada.
DIVIDO O QUE CONHEÇO
Divido o que conheço.
De um lado é o que sou
Do outro quanto esqueço.
Por entre os dois eu vou.
Não sou nem quem me lembro
Nem sou quem há em mim.
Se penso me desmembro.
Se creio, não há fim.
Que melhor que isto tudo
É ouvir, na ramagem
Aquele ar certo e mudo
Que estremece a folhagem.
COMEÇA, NO AR DA ANTEMANHÃ
Começa, no ar da antemanhã,
A haver o que vai ser o dia.
É uma sombra entre as sombras vã.
Mais tarde, quanto é a manhã
Agora é nada, noite fria.
É nada, mas é diferente
Da sombra em que a noite está;
E há nela já a nostalgia
Não do passado, mas do dia
Que é afinal o que será.
DESLEMBRO INCERTAMENTE
Deslembro incertamente. Meu passado
Não sei quem o vive. Se eu mesmo fui,
Está confusamente deslembrado
E logo em mim enclausurado flui.
Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.
Só há de meu o que me vê agora –
O campo verde, natural e mudo
Que um vento que não vejo vago aflora.
Sou tão parado em mim que nem o sinto.
Vejo, e onde o vale se ergue passa a encosta
Vai meu olhar seguindo o meu instinto
Como quem olha a mesa que está posta.
SE HÁ ARTE OU CIÊNCIA PARA LER A SINA
Se há arte ou ciência para ler a sina
A que em nós o Destino faz de nós,
Dá-me que eu a não saiba e que, indivina,
Me corra a vida vagamente e a sós.
Que quero eu do futuro que não tenho?
Que me pesa hoje, ou alegra, o que serei?
Sei, por lembrar, de que passado venho,
E, onde hoje estou, incertamente sei.
O mais, o que o futuro me dará,
Deixo a quem dê e a forma como o der.
Basta a sombra que esta árvore me dá
E a sensação de nada mais querer.
BEM SEI QUE ESTOU ENDOIDECENDO
Bem sei que estou endoidecendo.
Bem sei que falha em mim quem sou.
Sim, mas, enquanto me não rendo,
Quero saber por onde vou.
Inda que vá para render-me
Ao que o Destino me faz ser,
Quero, um momento, aqui deter-me
E descansar a conhecer.
Há grandes lapsos de memória
Grandes paralelas perdidas,
E muita lenda e muita história
E muitas vidas, muitas vidas.
Tudo isso; agora me perco
De mim e vou a transviar,
Quero chamar a mim, e cerco
Meu ser de tudo relembrar.
Porque, se vou ser louco, quero
Se louco com moral e siso.
Vou tanger lira como Nero.
Mas o incêndio não é preciso.
BEM SEI QUE HÁ ILHAS
Bem sei que há ilhas lá ao sul de tudo
Onde há paisagens que não pode haver.
Tão belas que são como que o veludo
Do tecido que o mundo pode ser.
Bem sei. Vegetações olhando o mar,
Coral, encostas, tudo o que é a vida
Tornado amor e luz, o que o sonhar
Dá à imaginação anoitecida.
Bem sei. Vejo isso tudo. O mesmo vento
Que ali agita os ramos em torpor
Passa de leve por meu pensamento
E o pensamento julga que é amor.
Sei, sim, é belo, é luz, é impossível,
Existe, dorme, tem a cor e o fim,
E, ainda que não haja, é tão visível
Que é uma parte natural de mim.
Sei tudo, sim, sei tudo. E sei também
Que não é lá que há isso que lá está,
Sei qual é a luz que essa paisagem tem
E qual o mar por que se vai para lá.
A MONTANHA POR ACHAR
A montanha por achar
Há de ter, quando a encontrar,
Um templo aberto na pedra
Da encosta onde nada medra.
O santuário que tiver,
Quando o encontrar, há de ser
Na montanha procurada
E na gruta ali achada.
A verdade, se ela existe,
Ver-se-á que só consiste
Na procura da verdade,
Porque a vida é só metade.
A CIÊNCIA, A CIÊNCIA
A ciência, a ciência, a ciência...
Ah, como tudo é nulo e vão!
A pobreza da inteligência
Ante a riqueza da emoção!
Aquela mulher que trabalha
Como uma santa em sacrifício,
Com quanto esforço dado ralha!
Contra o pensar, que é o meu vício!
A ciência! Como é pobre e nada!
Rico é o que alma dá e tem.
A CRIANÇA QUE RI NA RUA
A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo —
Tudo isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo.
SIM, JÁ SEI...
Sim, já sei...
Há uma lei
Que manda que no sentir
Haja um seguir
Uma certa estrada
Que leva a nada.
Bem sei. É aquela
Que dizem bela
E definida
Os que na vida
Não querem nada
De qualquer estrada.
Vou no caminho
Que é meu vizinho
Porque não sou
Quem aqui estou.
ERA ISSO MESMO
Era isso mesmo —
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...
Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...
Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não — nem mudarei...
Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
BEM SEI QUE TODAS AS MÁGOAS
Bem sei que todas as mágoas
São como as mágoas que são
Parecidas com as águas
Que continuamente vão...
Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas águas sem fim.
Quero uma tristeza minha
Uma mágoa que me seja
Uma espécie de rainha
Cujo trono se não veja.
NA VÉSPERA DE NADA
Na véspera de nada
Ninguém me visitou.
Olhei atento a estrada
Durante todo o dia
Mas ninguém vinha ou via,
Ninguém aqui chegou.
Mas talvez não chegar
Queira dizer que há
Outra estrada que achar,
Certa estrada que está,
Como quando da festa
Se esquece quem lá está.
OS OLHOS QUE NÃO OLHAM
Os olhos que não olham – os meus olhos –
Passa o ribeiro, que nem sei se é
Rápido no lento passar incerto ao pé
Dos invisíveis espinhos e abrolhos
Da margem, minha estagnação sem fé.
É como um viandante que passasse
Por um muro de quinta abandonada
E, por não ter que olhá-lo, por ser nada
Para o seu interesse, o não olhasse,
Fiel somente ao nada sem a estrada.
ERAM VARÕES TODOS
Eram varões todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.
E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer
Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.
COMO É POR DENTRO OUTRA PESSOA
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
DEIXEM-ME O SONO!
Deixem-me o sono! Sei que é já manhã.
Mas se tão tarde o sono veio,
Quero, desperto, inda sentir a vã
Sensação do seu vago enleio.
Quero, desperto, não me recusar
A estar dormindo ainda,
E, entre a noção irreal de aqui estar,
Ver essa noção finda.
Quero que me não neguem quem não sou
Nem que, debruçado eu
Da varanda por sobre onde não estou,
Nem sequer veja o céu.
TEU INÚTIL DEVER
Teu inútil dever
Quanta obra faça cobrirá a terra
Como ao que a fez, nem haverá de ti
Mais que a breve memória.
O SOM CONTÍNUO DA CHUVA
O som contínuo da chuva
A se ouvir lá fora bem
Deixa-nos a alma viúva
Daquilo que já não tem.
CRIANÇA, ERA OUTRO...
Criança, era outro...
Naquele em que me tornei
Cresci e esqueci.
Tenho de meu, agora,
um silêncio, uma lei.
Ganhei ou perdi?
ONDE, EM JARDINS EXAUSTOS
Onde, em jardins exaustos
Nada já tenha fim,
Forma teus fúteis faustos
De tédio e de cetim.
Meus sonhos são exaustos,
Dorme comigo e em mim.
SÁ-CARNEIRO
Nunca supus que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei certa e a falsa sorte,
Tem só ma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como for, segue a viagem.
Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do que em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.
Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.
Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.
Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós.
É como se esperasse eternamente
A tua vida certa e conhecida
Aí embaixo, no Café Arcada –
Quase no extremo deste
Aí onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, doriu-nos
Aquilo tudo que dizes no Orpheu.
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.
Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.
Porque há um de nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de termos companhia –
O amigo como esse que a falar amamos.
MÚSICA... QUE SEI EU DE MIM
Música... Que sei eu de mim?
Que sei eu de haver ser ou estar?
Música... sei só que sem fim
Quero saber só de sonhar...
Música... Bem no que faz mal
À alma entregar-se a nada...
Mas quero ser animal
Da insuficiência enganada
Música... Se eu pudesse ter,
Não o que penso ou desejo,
Mas o que não pude haver
E que até nem em sonhos vejo,
Se também eu pudesse fruir
Entre as algemas de aqui estar!
Não faz mal. Flui,
Para que eu deixe de pensar!
NÃO QUERO ROSAS, DESDE QUE HAJA ROSAS
Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?
Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.
Para quê?... Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?...
TUDO QUANTO PENSO
Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.
Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doura
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
UM DIA BAÇO MAS NÃO FRIO...
Um dia baço mas não frio...
Um dia como
Se não tivesse paciência pra ser dia,
E só num assomo,
Num ímpeto vazio
De dever, mas com ironia,
Se desse luz a um dia enfim
Igual a mim,
Ou então
Ao meu coração,
Um coração vazio,
Não de emoção
Mas de buscar, enfim —
Um coração baço mas não frio.
O AMOR É QUE É ESSENCIAL
O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
AZUL, OU VERDE, OU ROXO
Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero, casual ou mol(e),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.
Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.
Mas sonho... O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vazante, a murmurar.
Quem sabe o que é a alma? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.
Capitães, contramestres — todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?
Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância ou quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais sutil também
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.
Se assim é e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim, de o ignorar.
Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir, como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!
O MEU SENTIMENTO É CINZA
O meu sentimento é cinza
Da minha imaginação,
E eu deixo cair a cinza
No cinzeiro da Razão.
COMEÇA A IR SER DIA
Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.
Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.
Mas eu, o maldormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.
Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.
Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.
A OUTRA
Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco para, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.
Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora e minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.
Os remos já caíram na água
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra.
Bem sei, és bela, és quem desejei...
Não deixe a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.
Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?
Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Possamos nos recomeçar
Que talvez sejas
A Outra.
Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.
Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o ter ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra.
DESCE A NÉVOA DA MONTANHA
Desce a névoa da montanha.
Desce ou nasce ou não sei quê...
Minha ama é a tudo estranha.
Quando vê, vê que não vê.
Mais vale a névoa que a vida...
Desce, ou sobe: enfim, existe.
E eu não sei em que consiste
Ter a emoção por vivida,
E, sem querer, estou triste.
JÁ NÃO ME IMPORTO
Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.
Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei
Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,
Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,
Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.
E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.
O VÉU DAS LÁGRIMAS NÃO CEGA
O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega –
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo, porque flui,
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo e adormeço,
Num torpor em que me esqueço
Que existo inda neste mundo que há...
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas.
(Meu Deus!)
Un soir à Lima.
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.
Mas quê? Divago e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei.
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter o trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha contra o muro.
Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
(ou) Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima.
Quebra-te, coração…
OUVI OS SÁBIOS TODOS DISCUTIR
Ouvi os sábios todos discutir,
Podia a todos refutar a rir.
Mas preferi, bebendo na ampla sombra,
Indefinidamente só ouvir.
Manda quem manda porque manda, nem
Importa que mande ou mande bem.
Todos são grandes quando a hora é sua.
Por baixo cada um é o mesmo alguém.
Não invejo a pompa, e ao poder,
Visto que pode, sem razão de ser,
Obedece, que a vida dura pouco
Nem há por isso muito que sofrer.
TEUS OLHOS ENTRISTECEM
Teus olhos entristecem
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.
Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.
Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quase não sorrindo.
Até que neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.
HÁ DOENÇAS PIORES QUE AS DOENÇAS
Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma,
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz, há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta coisa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pode ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
NO OURO SEM FIM DA TARDE MORTA
No ouro sem fim da tarde morta,
Na poeira de ouro sem lugar
Da tarde que me passa à porta
Para não parar.
No silêncio dourado ainda
Dos arvoredos verde fim,
Recordo. Eras antiga e linda
E estás em mim...
Tua memória há sem que houvesses,
Teu gesto, sem fosses alguém.
Como uma brisa me estremeces
E eu choro um bem...
Perdi-te. Não te tive. A hora
É suave para a minha dor.
Deixa meu ser que rememora
Sentir o amor.
Ainda que amar seja um receio,
Uma lembrança falsa e vã,
E a noite deste vago anseio
Não tenha amanhã.
SONHOS, SISTEMAS, MITOS, IDEIAS...
Sonhos, sistemas, mitos, ideias...
Fito a água inexistente contra o cais,
E como flocos de um papel rasgado,
A ela dando-me como a um justo fado,
Sigo-vos com os olhos em que não há mais
Que um vão desassossego resignado.
Eles a mim como consolarão –
A mim que de inquieto já nem choro;
Que na erma mente e no ermo coração
Sombras, só sombras, sombra, rememoro;
A mim, em tudo, sempre, em vão,
Cansado até dos deuses que não são?
NA QUINTA ENTRE CIPRESTES
Na quinta entre ciprestes
Secaram todas as fontes,
As rosas brancas agrestes
Trazidas do fim dos montes
Vós mas tirastes, que as destes...
No rio ao pé de salgueiros
Passaram as águas em vão,
Com tristezas de estrangeiros
Passaram pelos salgueiros
As ondas, sem ter razão.
DIZEM?
Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por quê
Esperar?
— Tudo é
Sonhar.
CONSELHO
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ
Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastamos para um lado o altar. Então podemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto... e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a ouro, intitulado T., que é, de pois da Bíblia, o Nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.
FAMA FRATERNITATIS ROSEAI CRUCIS
I
Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,
Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.
Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adam Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador;
Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Espírito Seu, Lha veda;
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.
II
Mas antes era o verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada,
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.
Mas se a alma sente a sua forma errada,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido,
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.
Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo.
Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
Do sangue atual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.
III
Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
................................
Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
ASSIM, SEM NADA FEITO E O POR FAZER
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.
Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.
Ténue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.
Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.
Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solenemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
ENTRE O BATER RASGADO DOS PENDÕES
Entre o bater rasgado dos pendões
E o cessar dos clarins na tarde alheia,
A derrota ficou: como uma cheia
Do mal cobriu os vagos batalhões.
Foi em vão que o Rei louco os seus varões
Trouxe ao prolixo prélio, sem ideia.
Água que mão infiel verteu na areia —
Tudo morreu, sem rastro e sem razões.
A noite cobre o campo, que o Destino
Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.
Só no luar que nasce os pendões rotos
Estrelam no absurdo campo desolado
Uma derrota heráldica de ignotos.
A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.
AH, COMO O SONO É A VERDADE
Ah, como o sono é a verdade, e a única
Hora suave é a do adormecer!
Amor ideal tens chagas sob a túnica.
Esperança, és a ilusão do apodrecer.
Os deuses vão-se como forasteiros.
Como uma feira acaba a tradição.
Somos todos palhaços estrangeiros.
A nossa vida é palco e confusão.
Ah, dormir tudo! Pôr um sono à roda
Do esforço inútil e da sorte incerta!
Que a morte virtual da vida toda
Seja, sons, a janela que, entreaberta.
Só um crepúsculo do mundo deixe
Chegar a sonolência que se sente;
E a alma se desfaça como um feixe
Atado pelos dedos dum demente...
SE JÁ NÃO TORNA A ETERNA PRIMAVERA
Se já não torna a eterna primavera
Que em sonhos conheci,
O que é que o exausto coração espera
Do que não tem em si?
Se não há mais florir de árvores feitas
Só de alguém as sonhar,
Que coisas quer o coração perfeitas,
Quando, e em que lugar?
Não: contentemo-nos com ter a aragem
Que, porque existe, vem
Passar a mão sobre o alto da folhagem
E assim nos faz um bem.
AQUILO QUE A GENTE LEMBRA
Aquilo que a gente lembra
Sem o querer lembrar,
E inerte se desmembra
Como um fumo no ar,
É a música que a alma tem,
É o perfume que vem,
Vago, inútil, trazido
Por uma brisa de agrado,
Do fundo do que é esquecido,
Dos jardins do passado.
Aquilo que a gente sonha
Sem saber de sonhar,
Aquela boca risonha
Que nunca nos quis beijar,
Aquela vaga ironia
Que uns olhos tiveram um dia
Para a nossa emoção –
Tudo isso nos dá o agrado,
Flores que flores são
Nos jardins do passado.
Não sei o que fiz da vida,
Nem o quero saber.
Se a tenho por perdida,
Sei eu o que é perder?
Mas tudo é música se há
Alma onde a alma está,
E há um vago, suave, sono,
Em sonho morno de agrado,
Quando regresso, dono,
Aos jardins do passado.
SOU O ESPÍRITO DA TREVA
Sou o Espírito da treva,
A Noite me traz e leva;
Moro à beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida
Refresca-me a alma de espuma...
Pra além do mar há a bruma...
E pra aquém? há Coisa ou Fim?
Nunca olhei para trás de mim...
UM CANSAÇO FELIZ
Um cansaço feliz, uma tristeza informe
O meu espírito intranquilamente dorme.
Combati, fui o gládio e o braço e a intenção
E dói-me a alma na alma e no gládio e na mão...
Meu gládio está caído aos meus pés... um torpor
Impregna de cansaço a minha própria dor...
NÃO COMBATI
Não combati: ninguém mo mereceu.
A natureza, e depois a arte, amei.
As mãos à chama que me a vida deu
Aqueci. Ela cessa. Cessarei.
DORMI, SONHEI
Dormi, sonhei. No informe labirinto
Que há entre o mundo e o nada me perdi.
Em bosques de mim mesmo me embebi,
Misto indeciso do que vejo e sinto.
Estagno incorpóreo. No fiel recinto
leio o transtorno do que nunca li,
e o labirinto nunca está em si,
nem há mundo no incerto e abstrato plinto.
Minha alma é um ser que a verdade engana,
Memória da partida dos navios
Na praia que de espuma se engalana.
Não voltaram dos longes os sombrios
Barcos, e o luar mole deixa ver
A praia com a espuma a escurecer.
MEU PENSAMENTO, DITO, JÁ NÃO É
Meu pensamento, dito, já não é
Meu pensamento.
Flor morta, boia no meu sonho, até
Que a leve o vento.
Que a desvie a corrente, a externa sorte.
Se falo, sinto
Que a palavras esculpo a minha morte,
Que com toda a alma minto.
Assim, quanto mais digo, mais me engano,
Mais faço eu
Um novo ser postiço, que engalano
De ser o meu.
Já só pensando escuto-me e resido.
Já falo assim.
Meu próprio diálogo interior divide
Meu ser de mim.
Mas é quando dou forma e voz do espaço
Ao que medito
Que abro entre mim e mim, quebrando um laço,
Um abismo infinito.
Ah, quem dera a perfeita concordância
De mim comigo.
O silêncio interior sem a distância
Entre mim e o que eu digo!
SONO
Tenho tal sono que pensar é um mal.
Tenho sono. Dormir é ser igual,
No homem, ao despertar do animal.
É viver fundo nesse inconsciente
Com que à tona da vida o animal sente.
É ser meu ser profundo alheiamente.
Tenho sono talvez porque toquei
Onde sinto o animal que abandonei
E o sono é uma lembrança que encontrei.
QUADRAS AO GOSTO POPULAR
A quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua Alma.
Da órbita triste do vaso obscuro a graça exilada das flores atreve o seu olhar de alegria.
Quem faz quadras portuguesas comunga a alma do Povo, humildemente de nós todos e errante dentro de si própria.
***
Cantigas de portugueses
São como barcos no mar —
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar.
***
Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As perólas são os meus beijos,
O fio é o meu penar.
***
A terra é sem vida, e nada
Vive mais que o coração...
E envolve-te a terra fria
E a minha saudade não!
***
Deixa que um momento pense
Que ainda vives ao meu lado...
Triste de quem por si mesmo
Precisa ser enganado!
***
Morto, hei de estar ao teu lado
Sem o sentir nem saber...
Mesmo assim, isso me basta
Para ver um bem em morrer.
***
Não sei se a alma no Além vive...
Morreste! E eu quero morrer!
Se vive, ver-te-ei; se não,
Só assim te posso esquecer.
***
Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou —
Olha: levava um suspiro...
Bem sabes quem to mandou...
***
Entreguei-te o coração,
E que tratos tu lhe deste!
É talvez por estar estragado
Que ainda não mo devolveste...
***
A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.
***
Tens o leque desdobrado
Sem que estejas a abanar.
Amor que pensa e que pensa
Começa ou vai acabar.
***
Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia?
***
Toda a noite ouvi no tanque
A pouca água a pingar.
Toda a noite ouvi na alma
Que não me podes amar.
***
Dias são dias, e noites
São noites e não dormi...
Os dias a não te ver
As noites pensando em ti.
***
Trazes a rosa na mão
E colheste-a distraída...
E que é do meu coração
Que colheste mais sabida?
***
Teus olhos tristes, parados,
Coisa nenhuma a fitar...
Ah meu amor, meu amor,
Se eu fora nenhum lugar!
***
Depois do dia vem noite,
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.
***
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.
***
Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.
***
Rosmaninho que me deram,
Rosmaninho que darei,
Todo o mal que me fizeram
Será o bem que eu farei.
***
Tenho um relógio parado
Por onde sempre me guio.
O relógio é emprestado
E tem as horas a fio.
***
Quando é o tempo do trigo
É o tempo de trigar,
A verdade é um postigo
A que ninguém vem falar.
***
Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som parar.
***
Em vez da saia de chita
Tens uma saia melhor.
De qualquer modo és bonita,
E o bonita é o pior.
Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.
***
Teus brincos dançam se voltas
A cabeça a perguntar.
São como andorinhas soltas
Que inda não sabem voar.
***
Tens uma rosa na mão.
Não sei se é para me dar.
As rosas que tens na cara,
Essas sabes tu guardar.
*
Fomos passear na quinta,
Fomos à quinta em passeio.
Não há nada que eu não sinta
Que me não faça um enleio.
***
Os alcatruzes da nora
Andam sempre a dar e dar,
É para dentro e pra fora
E não sabem acabar.
***
Ó minha menina loura,
Ó minha loura menina,
Dize a quem te vê agora
Que já foste pequenina...
*
Tens um livro que não lês,
Tens uma flor que desfolhas;
Tens um coração aos pés
E para ele não olhas.
***
Nunca dizes se gostaste
Daquilo que te calei.
Sei bem que o adivinhaste.
O que pensaste não sei.
***
O vaso que dei a quem
Que não sabe quem lho deu
Há de ser posto à janela
Sem ninguém saber que, é meu.
***
Tive uma flor para dar
A quem não ousei dizer
Que lhe queria falar,
E a flor teve que morrer.
***
Quando olhaste para trás,
Não supus que era por mim.
Mas sempre olhaste, e isso faz
Que fosse melhor assim.
***
Todos os dias eu penso
Naquele gesto engraçado
Com que pegaste no lenço
Que estava esquecido ao lado.
***
Tens uma salva de prata
Onde pões os alfinetes...
Mas não tem salva nem prata
Aquilo que tu prometes.
***
Adivinhei o que pensas
Só por saber que não era
Qualquer das coisas imensas
Que a minh’alma sempre espera.
***
Ouvi-te cantar de dia.
De noite te ouvi cantar.
Ai de mim, se é de alegria!
Ai de mim, se é de penar!
***
Por um púcaro de barro
Bebe-se a água mais fria.
Quem tem tristezas não dorme,
Vela para ter alegria.
***
O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim,
Mas o amor que me arrancaste,
Se deu nada, foi a mim.
***
Teu xaile de seda escura
É posto de tal feição
Que alegre se dependura
Dentro do meu coração.
***
O manjerico comprado
Não é melhor que o que dão.
Põe o manjerico ao lado
E dá-me o teu coração.
***
Rosa verde, rosa verde...
Rosa verde é coisa que há?
É uma coisa que se perde
Quando a gente não está lá.
***
A rosa que se não colhe
Nem por isso tem mais vida.
Ninguém há que te não olhe
Que te não queira colhida.
***
Há verdades que se dizem
E outras que ninguém dirá.
Tenho uma coisa a dizer-te
Mas não sei onde ela está.
***
Quando ao domingo passeias
Levas um vestido claro.
Não é o que te conheço
Mas é em ti que reparo.
***
Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.
***
Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar.
E esperasse no outro dia.
***
Nuvem do céu, que pareces
Tudo quanto a gente quer.
Se tu, ao menos, me desses
O que se não pode ter!
***
O burburinho da água
No regato que se espalha
É como a ilusão que é mágoa
Quando a verdade a baralha.
***
Leve sonho, vais no chão
A andares sem teres ser.
És como o meu coração
Que sente sem nada ter.
***
Vai alta a nuvem que passa.
Vai alto o meu pensamento
Que é escravo da tua graça
Como a nuvem o é do vento.
***
Ambos à beira do poço
Achamos que é muito fundo.
Deita-se a pedra, e o que eu ouço
É teu olhar, que é meu mundo.
***
Aquela senhora velho
Que fala com tão bom modo
Parece ser uma abelha
Que nos diz: “Não incomodo”.
***
Maria, se eu te chamar,
Maria, vem cá dizer
Que não podes cá chegar.
Assim te consigo ver.
***
Boca com olhos por cima
Ambos a estar a sorrir...
Já sei onde está a rima
Do que não ouso pedir.
***
Quem lavra julga que lavra
Mas quem lavra é o que acontece...
Não me dás uma palavra
E a palavra não me esquece.
***
Tinhas um pente espanhol
No cabelo Português,
Mas quando te olhava o sol,
Eras só quem Deus te fez.
***
Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate,
Bate de te ver e ouvir.
***
Quem me dera, quando fores
Pela rua sem me ver,
Supor que há coisas melhores
E que eu as pudera ter.
***
Acendeste uma candeia
Com esse ar que Deus te deu.
Já não é noite na aldeia
E, se calhar, nem no céu.
***
Eu te pedi duas vezes
Duas vezes, bem o sei,
Que por fim me respondesses
Ao que não te perguntei.
***
Não digas mal de ninguém
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.
***
Todas as coisas que dizes
Afinal não são verdade.
Mas, se nos fazem felizes,
Isso é a felicidade.
***
Dás nós na linha que cose
Para que pare no fim.
Por muito que eu pense e ouse,
Nunca dás nó para mim.
***
Não sei em que coisa pensas
Quando coses sossegada...
Talvez naquelas ofensas
Que fazes sem dizer nada.
***
As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pro mar...
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.
***
As ondas que a maré conta
Ninguém as pode contar.
Se, ao passar, ninguém te aponta,
Aponta-te com o olhar.
***
Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias que me desgraçam
Por me privarem de ti.
***
Quando cantas, disfarçando
Com a cantiga o cantar,
Parece o vento mais brando
Nesta brandura do ar.
***
Não sei que grande tristeza
Me fez só gostar de ti
Quando já tinha a certeza
De te amar porque te vi.
***
A mantilha de espanhola
Que trazias por trazer
Não te dava um ar de tola
Porque o não podias ter.
***
Boca de riso escarlate
Com dentes brancos no meio,
Meu coração bate, bate,
Mas bate por ter receio.
***
Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diz que é desgraça
Não ter o que se não tem.
***
Tu, ao canto da janela
Sorrias a alguém da rua,
Porquê ao canto, se aquela
Posição não é a tua?
***
Dá-me, um sorriso ao domingo,
Para à segunda eu lembrar.
Bem sabes: sempre te sigo
E não é preciso andar.
***
Tens olhos de quem não quer
Procurar quem eu não sei.
Se um dia o amor vier
Olharás como eu olhei.
***
Pobre do pobre que é ele
E não é quem se fingiu!
Por muito que a gente vele
Descobre que já dormiu.
***
Não me digas que me queres
Pois não sei acreditar.
No mundo há muitas mulheres
Mas mentem todas a par.
***
Água que não vem na bilha
É como se não viesse.
Como a mãe, assim a filha...
Antes Deus as não fizesse.
***
Ó loura dos olhos tristes
Que me não quis escutar...
Quero só saber se existes
Para ver se te hei de amar.
***
Há grandes sombras na horta
Quando a amiga lá vai ter...
Ser feliz é o que importa,
Não importa como o ser!
***
O moinho de café
Mói grãos e faz deles pó.
O pó que a minh’alma é
Moeu quem me deixa só.
***
Dizem que não és aquela
Que te julgavam aqui.
Mas se és alguém e és bela
Que mais quererão de ti?
***
Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti.
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.
***
Olhos tristes, grandes, pretos,
Que dizeis sem me falar
Que não há filhos nem netos
De eu não querer amar.
***
Meu coração a bater
Parece estar-me a lembrar
Que, se um dia te esquecer,
Será por ele parar.
***
Quantas vezes a memória
Para fingir que inda é gente,
Nos conta uma grande história
Em que ninguém está presente.
***
Trazes o vestido novo
Como quem sabe o que faz.
Como és bonita entre o povo,
Mesmo ficando para trás!
***
A tua boca de riso
Parece olhar para a gente
Com um olhar que é preciso
Para saber que se sente.
***
A laranja que escolheste
Não era a melhor que havia.
Também o amor que me deste
Qualquer outra mo daria.
***
Se o sino dobra a finados
Há de deixar de dobrar.
Dá-me os teus olhos fitados
E deixa a vida matar!
***
Por muito que pense e pense
No que nunca me disseste,
Teu silêncio não convence.
Faltaste quando vieste.
***
Tome lá, minha menina,
O ramalhete que fiz.
Cada flor é pequenina,
Mas tudo junto é feliz.
***
A vida é pouco aos bocados.
O amor é vida a sonhar.
Olho para ambos os lados
E ninguém me vem falar.
***
Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A ideia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.
***
Compras carapaus ao cento,
Sardinhas ao quarteirão.
Só tenho no pensamento
Que me disseste que não.
***
Duas horas te esperei.
Duas mais te esperaria.
Se gostas de mim não sei...
Algum dia há de ser dia...
***
Tenho um desejo comigo
Que me traz longe de mim.
É saber se isto é contigo
Quando isto não é assim.
***
Leve vem a onda leve
Que se estende a adormecer,
Breve vem a onda breve
Que nos ensina a esquecer.
***
Quando a manhã aparece
Dizem que nasce alegria.
Isso era se ela viesse.
Até de noite era dia.
***
Nuvem alta, nuvem alta,
Por que é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta,
Desce um pouco, desce mais!
***
Teu carinho, que é fingido,
Dá-me o prazer de saber
Que inda não tens esquecido
O que o fingir tem de ser.
***
A luva que retiraste
Deixou livre a tua mão.
Foi com ela que tocaste,
Sem tocar, meu coração.
***
O avental, que à gaveta
Foste buscar, não terá
Algibeira em que me meta
Para estar contigo já?
***
Quando vieste da festa,
Vinhas cansada e contente.
A minha pergunta é esta.
Foi da festa ou foi da gente?
***
Rouxinol que não cantaste,
Galo que não cantarás,
Qual de vós me empresta o canto
Para ver o que ela faz?
***
Quando chegaste à janela
Todos que estavam na rua
Disseram: olha, é aquela,
Tal é a graça que é tua!
***
Nuvem que passas no céu,
Dize a quem não perguntou
Se é bom dizer a quem deu:
“O que deste, não to dou.”
***
“Vou trabalhando a peneira
E pensando assim assim.
Eu não nasci para freira.
Gosto que gostem de mim.”
***
Roseiral que não dás rosas
Senão quando as rosas vêm,
Há muitas que são formosas
Sem que o amor lhes vá bem.
***
Ribeirinho, ribeirinho,
Que vais a correr ao léu
Tu vais a correr sozinho,
Ribeirinho, como eu.
***
“Vesti-me toda de novo
E calcei sapato baixo
Para passar entre o povo
E procurar quem não acho.”
***
Tua boca me diz sim,
Teus olhos me dizem não.
Ai, se gostasses de mim
E sem saber a razão.
***
Quero lá saber por onde
Andaste todo este dia!
Nunca faz-bem quem se esconde
Mas onde foste, Maria?
***
O vaso do manjerico
Caiu da janela abaixo.
Vai buscá-lo, que aqui fico
A ver se sem ti te acho.
***
O cravo que tu me deste
Era de papel rosado.
Mas mais bonito era inda
O amor que Me foi negado,
***
Trazes os sapatos, pretos
Cinzentos de tanto pó.
Feliz é quem tiver netos
De quem tu sejas avó!
***
Vem de lá do monte verde
A trova que não entendo.
É um som bom que se perde
Enquanto se vai vivendo.
***
Moreninha, moreninha,
Com olhos pretos a rir.
Sei que nunca serás minha,
Mas quero ver-te sorrir.
***
Puseste a chaleira ao lume
Com um jeito de desdém.
Suma-te o diabo que sume
Primeiro quem te quer bem!
***
Lá vem o homem da capa
Que ninguém sabe quem é...
Se o lenço os olhos te tapa
Veio os teus olhos por fé.
***
Loura dos olhos dormentes,
Que são azuis e amarelos,
Se as minhas mãos fossem pentes,
Penteavam-te os cabelos.
***
O sino dobra a finados.
Faz tanta pena a dobrar!
Não é pelos teus pecados
Que estão vivos a saltar.
***
Traze-me um copo com água
E a maneira de o trazer.
Quero ter a minha mágoa
Sem mostrar que a estou a ter.
***
Olha o teu leque esquecido!
Olha o teu cabelo solto!
Maria, toma sentido!
Maria, senão não volto!
***
Já duas vezes te disse
Que nunca mais te diria
O que te torno a dizer
E fica para outro dia.
***
Lavadeira a bater roupa
Na pedra que está na água,
Achas minha mágoa pouca?
É muito tudo o que é mágoa.
***
O teu lenço foi mal posto
Pela pressa que to pôs.
Mais mal posto é o meu desgosto
Do que não há entre nós.
***
Olhos de veludo falso
E que fitam a entender,
Vós sois o meu cadafalso
A que subo com prazer.
***
Duas vezes eu tentei
Dizer-te que te queria,
E duas vezes te achei
Só a que falava e ria.
***
Meu coração é uma barca
Que não sabe navegar.
Guardo o linha na arca
Com um ar de o acarinhar.
***
Tenho um desejo comigo
Que hoje te venho dizer:
Queria ser teu amigo
Com amizade a valer.
***
És Maria da Piedade
Pois te chamaram assim.
Sê lá Maria à vontade,
Mas tem piedade de mim.
***
Tu és Maria da Graça,
Mas a que graça é que vem
Ser essa graça a desgraça
De quem a graça não tem?
***
Caiu no chão o novelo
E foi-se desenrolando.
Passas a mão no cabelo.
Não sei em que estás pensando.
***
A tua saia, que é curta,
Deixa-te a perna a mostrar:
Meu coração já se furta
A sentir sem eu pensar.
***
Meu amor é fragateiro.
Eu sou a sua fragata.
Alguns vão atrás do cheiro,
Outros vão só pela arreta.
***
Vai longe, na serra alta,
A nuvem que nela toca...
Dá-me aquilo que me falta —
Os beijos da tua boca.
***
Há um doido na nossa voz
Ao falarmos, que prendemos:
É o mal-estar entre nós
Que vem de nos percebermos.
***
Teu vestido porque é teu,
Não é de cetim nem chita.
É de sermos tu e eu
E de tu seres bonita.
**
Entornaram-me o cabaz
Quando eu vinha pela estrada.
Como ele estava vazio,
Não houve louça quebrada.
***
O rosário da vontade,
Rezei-o trocado e a esmo.
Se vens dizer-me a verdade,
Vê lá bem se é isso mesmo.
***
Castanhetas, castanholas —
Tudo é barulho a estalar.
As que ao negar são mais tolas
São mais espertas ao dar.
***
O manjerico e a bandeira
Que há no cravo de papel —
Tudo isso enche a noite inteira,
Ó boca de sangue e mel.
***
Tem A filha da caseira
Rosas na caixa que tem.
Toda ela é uma rosa inteira
Mas não a cheira ninguém.
***
A moça que há na estalagem
Ri porque gosta de rir.
Não sei o que é da viagem
Por esta moça existir.
***
Lenço preto de orla branca
Ataste-o mal a valer
À roda desse pescoço
Que tem que se lhe dizer.
***
Aquela loura de preto
Com uma flor branca ao peito,
É o retrato completo
De como alguém é perfeito.
***
A tua janela é alta,
A tua casa branquinha.
Nada lhe sobra ou lhe falta
Senão morares sozinha.
***
Vem cá dizer-me que sim.
Ou vem dizer-me que não.
Porque sempre vens assim
Para ao pé do meu coração.
***
Cortaste com a tesoura
O pano de lado a lado.
Por que é que todo teu gesto
Tem a feição de engraçado?
***
Ai, os pratos de arroz doce
Com as linhas de canela!
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa mão ser a dela!
***
Frescura do que é regado,
Por onde a água inda verte...
Quero dizer-te um bocado
Do que não ouso dizer-te.
***
Ó pastora, ó pastorinha,
Que tens ovelhas e riso,
Teu riso ecoa no vale
E nada mais é preciso.
***
A abanar o fogareiro
Ela corou do calor.
Ah, quem a fará corar
De um outro modo melhor!
***
Manjerico que te deram,
Amor que te querem dar...
Recebeste o manjerico.
O amor fica a esperar.
***
Dona Rosa, Dona Rosa.
De que roseira é que vem,
Que não tem senão espinhos
Para quem só lhe quer bem?
***
O laço que tens no peito
Parece dado a fingir.
Se calhar já estava feito
Como o teu modo de rir.
***
Dona Rosa, Dona Rosa,
Quando eras inda botão
Disseram-te alguma coisa
De a flor não ter coração?
***
Tenho um segredo a dizer-te
Que não te posso dizer.
E com isto já to disse
Estavas farta de o saber...
***
Os ranchos das raparigas
Vão a cantar pela estrada...
Não ouço as suas cantigas
Só tenho pena de nada.
***
Rezas porque outros rezaram,
E vestes à moda alheia...
Quando amares vê se amas
Sem teres o amor na ideia.
***
A senhora da Agonia
Tem um nicho na Igreja.
Mas a dor que me agonia
Não tem ninguém quem a veja.
***
Aparta o cabelo ao meio
A do cabelo apartado.
É a estrelinha em que leio
Que estou a ser enganado.
***
Esse frio cumprimento
Tem ironia para mim.
Porque é o mesmo movimento
Com que a gente diz que sim...
***
Vejo lágrimas luzir
Nos teus olhos de fingida.
É como quando à janela
Chegas, um pouco escondida.
***
Trincaste, para o partir,
O retrós de costurar.
Quem não soubesse diria
Que o estavas a beijar.
***
Deixaste o dedal na mesa
Só pelo tempo da ausência —
Se eu to roubasse dirias
Que eu não tinha consciência.
***
Dá-me um sorriso daqueles
Que te não servem de nada
Como se dá às crianças
Uma caixa esvaziada.
***
O canário já não canta.
Não canta o canário já.
Aquilo que em ti me encanta
Talvez não me encantará.
***
Rezas a Deus ao deitar-te
Pedindo não sei o quê.
Se rezasses ao Demônio,
Eu saberia o que é.
***
Boca que tens um sorriso
Como se fosse um florir,
Teus olhos cheios de riso
Dão-lhe um orvalho de rir.
***
Uma boneca de trapos
Não se parte se, cair.
Fizeste-me a alma em farrapos
Bem: não se pode partir.
***
O que sinto e o que penso
De ti é bem e é mal.
É como quando uma xícara
Tem o pires desigual.
***
Levas a mão ao cabelo
Num gesto de quem não crê.
Mas eu não te disse nada.
Duvidas de mim? Por quê?
***
Compreender um ao outro
É um jogo complicado.
Pois quem engana não sabe
Se não estava enganado.
***
A roda dos dedos juntos
Enrolaste a fita a rir.
Corações não são assuntos
E falar não é sentir.
***
Chama-te boa, e o sentido
Não é bem o que eu supunha.
Boa não é apelido:
É, quando muito, alcunha.
***
Tu és Maria das Dores,
Tratam-te só por Maria.
Está bem, porque deste as dores
A quem quer que em ti se fia.
***
Se vais de vestido novo
O teu próprio andar o diz,
E ao passar por entre o povo
Até teu corpo é feliz.
***
Tens um anel imitado
Mas vais contento de o ter.
Que importa o falsificado
Se é verdadeiro o prazer.
***
Tenho ainda na lembrança
Como uma coisa que veio,
O quando inda eras criança.
Nunca mais me dás um beijo!
***
O ar do campo vem brando,
Faz sono haver esse ar.
Já não sei se estou sonhando
Nem de que serve sonhar.
***
Quando ela pôs o chapéu
Como se tudo acabasse,
Sofri de não haver véu
Que inda um pouco a demorasse.
***
Quem te deu aquele anel
Que ainda ontem não tinhas?
Como tu foste infiel
A certas ideias minhas!
***
Essa costura à janela
Que lhe inclinou a cabeça
Fez-me ver como era dela
Que o coração tinha pressa.
***
O ribeiro bate, bate
Nas pedras que nele estão,
Mas nem há nada em que bata
O meu pobre coração.
***
Nunca houve romaria
Que se lembrassem de mim...
Também quem se lembraria
De quem se lamenta assim?
***
Comes melão às dentadas
Porque assim não deve ser.
Não sei se essas gargalhadas
Me fazem rir ou sofrer.
***
Há dois dias que não vejo
Modo de tornar-te a ver:
Se outros também te não vissem,
Desejava sem sofrer.
***
O teu cabelo cortado
A maneira de rapaz
Não deixa justificado
Aquele amor que me faz.
***
Se te queres despedir
Não te despidas de mim,
Que eu não posso consentir
Que tu me trates assim.
***
Quem te fez assim tão linda
Não o fez para mostrar
Que se é mais linda ainda
Quando se sabe negar.
***
Floriu a roseira toda
Com as rosas de trepar...
Tua cabeça anda à roda
Mas sabes-te equilibrar.
***
Morena dos olhos baços
Velados de não sei quê,
No mundo há falta de braços
Para o que o teu olhar vê.
***
Quando compões o cabelo
Com tua mão distraída
Fazer-me um grande novelo
No pensamento da vida.
***
Teus olhos de quem não fita
Vagueiam, estão na distância.
Se fosses menos bonita,
Isso não tinha importância.
***
Tocam sinos a rebate
E levantaste-te logo.
Teu coração só não bate
Por a quem puseste fogo.
***
O coração é pequeno,
Coitado, e trabalha tanto!
De dia a ter que chorar,
De noite a fazer o pranto...
***
Deram-me um cravo vermelho
Para eu ver como é a vida.
Mas esqueci-me do cravo
Pela hora da saída.
***
Fiz estoirar um cartucho
Contra a parede do lado.
Assim farei eu à vida,
Que o sonhar fez-me assoprado.
***
O malmequer que colheste
Deitaste-o fora a falar.
Nem quiseste ver a sorte
Que ele te podia dar.
***
Comi melão retalhado
E bebi vinho depois,
Quanto mais olho para ti
Mais sei que não somos dois.
***
Trazes um lenço novinho
Na cabeça e a descair,
Se eu te beijar no cantinho
Só saberá quem nos vir.
***
E ao acabar estes versos
Feitos em modo menor
Cumpre prestar homenagem
À bebedeira do cantor.
***
Toda a noite, toda a noite,
Toda a noite sem pensar...
Toda a noite sem dormir
E sem tudo isso acabar.
***
Puseste um vaso à janela.
Foi sinal ou não foi nada,
Ou foi para que pense em ti
Que te não importas nada?
***
Eu vi ao longe um navio
Que tinha uma vela só,
Ia sozinho no mar...
Mas não me fazia dó.
***
Corre a água pelas calhas
Lá segundo a sua lei.
Pareces, vista de lado,
Aquela que te julguei.
***
Lá por olhar para ti
Não julgues que é por gostar.
Eu gosto muito do sol,
E nem o posso fitar.
***
Viraste-me a cara quando
Ia a dizer-te, à chegada,
Que, se voltasses a cara,
Que eu não me importava nada.
***
Na quinta que nunca houve
Há um poço que não há
Onde há de ir encontrar água
Alguém que te entenderá.
***
Voam débeis e enganadas
As folhas que o vento toma.
Bem sei: deitamos os dados
Mas Deus é que deita a soma.
***
Ribeirinho, ribeirinho,
Que falas tão devagar,
Ensina-me o teu caminho
De passar sem desejar amar.
***
Do alto da torre da igreja
Vê-se o campo todo em roda.
Só do alto da esperança
Vemos nós a vida toda.
***
Dá-me um sorriso a brincar,
Dá-me uma palavra a rir,
Eu me tenho por feliz
Só de te ver e te ouvir.
***
Trazes um lenço apertado
Na cabeça, e um nó atrás.
Mas o que me traz cansado
É o nó que nunca se faz.
***
Vi-te a dizer um adeus
A alguém que se despedia,
E quase implorei dos céus
Que eu partisse qualquer dia.
***
Eu voltei-me para trás
Para ver se te voltavas.
Há quem dê favas aos burros,
Mas eles comem as favas.
***
Deixaste cair no chão
O embrulho das queijadas.
Riste disso — E por que não?
A vida é feita de nadas.
***
Deste-me um cordel comprido
Para atar bem um papel.
Fiquei tão agradecido
Que inda tenho esse cordel.
***
No dia de Santo Antônio
Todos riem sem razão.
Em São João e São Pedro
Como é que todos rirão?
***
Tenho uma pena que escreve
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta.
***
O capilé é barato
E é fresco quando há calor.
Vou sonhar o teu retrato
Já que não tenho melhor.
***
Baila o trigo quando há vento
Baila porque o vento o toca
Também baila o pensamento
Quando o coração provoca.
***
Fizeste molhos de flores
Para não dar a ninguém.
São como os molhos de amores
Que foras fazer a alguém.
***
Se houver alguém que me diga
Que disseste bem de mim,
Farei uma outra cantiga,
Porque esta não é assim.
***
Manjerico, manjerico,
Manjerico que te dei,
A tristeza com que fico
Inda amanhã a terei.
***
Ris-te de mim? Não me importo.
Rir não faz mal a ninguém.
Teu rir é tão engraçado
Que, quando faz mal, faz bem.
***
Ouves-me sem me entender.
Sorris sem ser porque falo.
É assim muita mulher.
Mas nem por isso me calo.
***
Se eu te pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei.
***
Bailaste de noite ao som
De uma música estragada.
Bailar assim só é bom
Quando a alegria é de nada.
***
Não sei que flores te dar
Para os dias da semana.
Tens tanta sombra no olhar
Que o teu olhar sempre engana.
***
Descasquei o camarão,
Tirei-lhe a cabeça toda.
Quando o amor não tem razão
É que o amor incomoda.
***
Cabeça de ouro mortiço
Com olhos de azul do céu,
Quem te ensinou o feitiço
De me fazer não ser eu?
***
São já onze horas da noite.
Por que te não vais deitar?
Se de nada serve ver-te,
Mais vale não te fitar.
***
Tiraste o linho da arca,
Da arca tiraste o linho.
Meu coração tem a marca
Que lhe puseste mansinho.
***
Ao dobrar o guardanapo
Para o meteres na argola
Fizeste-me conhecer
Como um coração se enrola.
***
Quando eu era pequenino
Cantavam para eu dormir.
Foram-se o canto e o menino.
Sorri-me para eu sentir!
***
Meia volta, toda a volta,
Muitas voltas de dançar...
Quem tem sonhos por escolta
Não é capaz de parar.
***
Fui passear no jardim
Sem saber se tinha flores
Assim passeia na vida
Quem tem ou não tem amores.
***
No dia em que te casares
Hei de te ir ver à Igreja
Para haver o sacramento
De amar-te alguém que ali esteja.
***
Quando apertaste o teu cinto
Puseste o cravo na boca.
Não sei dizer o que sinto
Quando o que sinto me toca.
***
Toda a noite ouvi os cães
Para manhã ouvi os galos.
Tristeza — vem ter conosco.
Prazeres — é ir achá-los.
***
Deram-me, para se rirem,
Uma corneta de barro,
Para eu tocar à entrada
Do Castelo do Diabo.
***
Quando te apertei a mão
Ao modo de assim-assim,
Senti o meu coração
A perguntar-me por mim.
***
Tinhas um vestido preto
Nesse dia de alegria...
Que certo! Pode pôr luto
Aquele que em ti confia.
***
Só com um jeito do corpo
Feito sem dares por isso
Fazes mais mal que o demônio
Em dias de grande enguiço.
***
Esse xaile que arranjaste,
Com que pareces mais alta
Dá ao teu corpo esse brio
Que à minha coragem falta.
***
Tem um decote pequeno,
Um ar modesto e tranquilo;
Mas vá-se lá descobrir
Coisa pior do que aquilo!
***
Teus olhos pousam no chão
Para não me olhar de frente.
Tens vontade de sorrir
Ou de rir? É tão diferente!
***
Quando passas pela rua
Sem reparar em quem passa,
A alegria é toda tua
E minha toda a desgraça.
***
A esmola que te vi dar
Não me deu crença nem fé,
Pois a que estou a esperar
Não é esmola que se dê.
***
Caiu no chão a laranja
E rolou pelo chão fora.
Vamos apanhá-la juntos,
E o melhor é ser agora.
***
Quando te vais a deitar
Não sei se rezas se não.
Devias sempre rezar
E sempre a pedir perdão.
***
É limpo o adro da igreja.
É grande o largo da praça.
Não há ninguém que te veja
Que te não encontre graça.
***
Quando agora me sorriste
Foi de contente de eu vir,
Ou porque me achaste triste,
Ou já estavas a sorrir?
***
Boca que o riso desata
Numa alegria engraçada,
És como a prata lavrada
Que é mais o lavor que a prata.
***
Por cima da saia azul
Há uma blusa encarnada,
E por cima disso os olhos
Que nunca me dizem nada.
***
Fazes renda de manhã
E fazes renda ao serão.
Se não fazes senão renda,
Que fazes do coração?
***
Todos te dizem que és linda.
Todos to dizem a sério.
Como o não sabes ainda
Agradecer é mistério.
***
Eu bem sei que me desdenhas
Mas gosto que seja assim,
Que o desdém que por mim tenhas
Sempre é pensares em mim.
***
A tua irmã é pequena,
Quando tiver tua idade,
Transferirei minha pena
Ou fico só com metade?
***
Quando me deste os bons dias
Deste-mos como a qualquer.
Mais vale não dizer nada
Do que assim nada dizer.
***
Tenho uma ideia comigo
De que não quero falar.
Se a ideia fosse um postigo
Era pra te ver passar.
***
Andorinha que vais alta,
Por que não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?
***
Tenho um lenço que esqueceu
A que se esquece de mim.
Não é dela, não é meu,
Não é princípio nem fim.
***
Duas horas vão passadas
Sem que te veia passar.
Que coisas mal combinadas
Que são amor e esperar!
***
Houve um momento entre nós
Em que a gente não falou.
Juntos, estávamos sós.
Que bom é assim estar só!
***
“Das flores que há pelo campo
O rosmaninho é rei...”
É uma velha cantiga...
Bem sei, meu Deus, bem o sei.
***
O moinho que mói trigo
Mexe-o o vento ou a água,
Mas o que tenho comigo
Mexe-o apenas a mágoa.
***
Aquela que tinha pobre
A única saia que tinha,
Por muitas roupas que dobre
Nunca será mais rainha.
***
Tens uns brincos, sem valia
E um lenço que não é nada,
Mas quem dera ter o dia
De quem és a madrugada.
***
Loura, teus olhos de céu
Têm um azul que é fatal.
Bem sei: Foi Deus que tos deu.
Mas então Deus fez o mal?
***
Vai alta sobre a montanha
Uma nuvem sem razão.
Meu coração acompanha
O não teres coração.
***
Dizem que as flores são todas
Palavras que a terra diz.
Não me falas: incomodas.
Falas: sou menos feliz.
***
Duas vezes jurei ser
O que julgo que sou,
Só para desconhecer
Que não sei para onde vou.
***
O pescador do mar alto
Vem contente de pescar.
Se prometo, sempre falto:
Receio não agradar.
***
Todos lá vão para a festa
Com um grande azul de céu.
Nada resta, nada resta...
Resta sim, que resta eu.
***
Andei sozinho na praia
Andei na praia a pensar
No jeito da tua saia
Quando lá estiveste a andar.
***
Onda que vens e que vais
Mar que vais e depois vens,
Já não sei se tu me atrais,
E, se me, atrais, se me tens.
***
Quando há música, parece
Que dormes, e assim te calas,
Mas se a música falece,
Acordo, e não me falas.
***
Trazes uma cruz no peito.
Não sei se é por devoção.
Antes tivesses o jeito
De ter lá um coração.
***
O guardanapo dobrado
Quer dizer que se não volta.
Tenho o coração atado:
Vê se a tua mão mo solta.
***
“À tua porta está lama.
Meu amor, quem na faria?”
É assim a velha cantiga
Que como tu principia.
***
Menina de saia preta
E de blusa de outra cor,
Que é feito daquela seta
Que atirei ao meu amor?
***
Lavas a roupa na selha
Com um vagar apressado,
E o brinco na tua orelha
Acompanha o teu cuidado.
***
Duas vezes te falei
De que te iria falar.
Quatro vezes te encontrei
Sem palavra para te dar.
***
Velha cadeira deixada
No canto da casa antiga
Quem dera ver lá sentada
Qualquer alma minha amiga.
***
Trazes a bilha à cabeça
Como se ela não houvesse.
Andas sem pressa depressa
Como se eu lá não estivesse.
***
Trazes um manto comprido
Que não é xaile a valer.
Eu trago em ti o sentido
E não sei que hei de dizer.
***
Olhas para mim às vezes
Como quem sabe quem sou.
Depois passam dias, meses,
Sem que vás por onde vou.
***
Quando tiraste da cesta
Os figos que prometeste
Foi em mim dia de festa,
Mas foi a todos que os deste.
***
Aquela que mora ali
E que ali está à janela
Se um dia morar aqui
Se calhar não será ela.
***
Mas que grande disparate
É o que penso e o que sinto.
Meu coração bate, bate
E se sonho minto, minto.
***
Puseste por brincadeira
A touca da tua irmã.
Ó corpo de bailadeira,
Toda a noite tem manhã.
***
Dizes-me que nunca sonhas
E que dormes sempre a fio.
Quais são as coisas risonhas
Que sonhas por desfastio?
***
O teu carrinho de linha
Rolou pelo chão caído.
Apanhei-o e dei-to e tinha
Só em ti o meu sentido.
***
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém te cura
E morrer é que é ter alta.
***
Que tenho o coração preto
Dizes tu, e inda te alegras.
Eu bem sei que o tenho preto:
Está preto de nódoas negras.
***
Na praia de Monte Gordo.
Meu amor, te conheci.
Por ter estado em Monte Gordo
É que assim emagreci.
***
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem.
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.
***
“Mau, Maria!” — tu disseste
Quando a trança te caía.
Qual “Mau, Maria”, Maria!
“Má Maria”, “Má Maria!”
***
Era já de madrugada
E eu acordei sem razão,
Senti a vida pesada.
Pesado era o coração.
***
Boca de romã perfeita
Quando a abres para comer.
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver?
***
Tenho um segredo comigo
Que me faz sempre cismar,
É se quero estar contigo
Ou quero contigo estar.
***
Trazes já aquele cinto
Que compraste no outro dia.
Eu trago o que sempre sinto
E que é contigo, Maria.
***
Teu olhar não tem remorsos
Não é por não ter que os ter.
É porque hoje não é ontem
E viver é só esquecer.
***
Disseste-me quase rindo:
“Conheço-te muito bem!”
Dito por quem me não quer.
Tem muita graça, não tem?
***
Fica o coração pesado
Com o choro que chorei.
É um ficar engraçado
O ficar com o que dei...
***
Este é o riso daquela
Em que não se reparou.
Quando a gente se acautela
Vê que não se acautelou.
***
Tens vontade de comprar
O que vês só porque o viste.
Só a tenho de chorar
Porque só compro o ser triste.
***
Baila em teu pulso delgado
Uma pulseira que herdaste...
Se amar alguém é pecado.
És santa, nunca pecaste.
***
Teus olhos querem dizer
Aquilo que se não diz...
Tenho muito que fazer.
Que sejas muito feliz.
***
Água que passa e canta
É água que faz dormir...
Sonhar é coisa que encanta,
Pensar é já não sentir.
***
Deste-me um adeus antigo
À maneira de eu não ser
Mais que o amigo do amigo
Que havia de poder ter.
***
Linda noite a desta lua.
Lindo luar o que está
A fazer sombra na rua.
Por onde ela não virá.
***
O papagaio do paço
Não falava — assobiava.
Sabia bem que a verdade
Não é coisa de palavra.
***
Puseste a mantilha negra
Que hás de tirar ao voltar.
A que me puseste na alma
Não tiras. Mas deixa-a estar!
***
Trazes os brincos compridos,
Aqueles brincos que são
Como as saudades que temos
A pender do coração.
***
Deixaste cair a liga
Porque não estava apertada...
Por muito que a gente diga
A gente nunca diz nada.
***
Não há verdade na vida
Que se não diga a mentir.
Há quem apresse a subida
Para descer a sorrir.
***
No dia de São João
Há fogueiras e folias.
Gozam uns e outros não,
Tal qual como os outros dias.
***
Santo Antônio de Lisboa
Era um grande pregador,
Mas é por ser Santo Antônio
Que as moças lhe têm amor.
ALGUMAS POESIAS PARA CRIANÇAS
Perto da mesma inspiração popular andam também, os Poemas para Lili e outras poesias para crianças ou afins, onde por vezes não falta o humor. Pessoa, como se sabe, gostava de crianças e gostava de as divertir. Escreveu essas poesias, não só para a pequena sobrinha Manuela, filha do coronel Caetano Dias, mas endereçando-as à sua boneca Lili, como também para outras sobrinhas e crianças. A quem gostava de os recitar para os divertir.
NO COMBOIO DESCENDENTE
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
No comboio descendente
De Palmela a Portimão.
PIA, PIA, PIA
Pia, pia, pia
O mocho.
Que pertencia
A um coxo.
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia...
LEVAVA EU UM JARRINHO
Levava eu um jarrinho
Pra ir buscar vinho
Levava um tostão
Pra comprar pão:
E levava uma fita
Para ir bonita.
Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro pra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!
Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Pra ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.
POEMA PIAL
Casa Branca — Barreiro a Moita
(Silêncio ou estação, à escolha do freguês)
Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro das pias.
Pia número UM
Para quem mexe as orelhas em jejum.
Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.
Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez.
Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro.
Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco.
Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis.
Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.
Pia número OITO,
Para quem parte nozes quando é afoito.
Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve.
Pia número DEZ,
Para quem cola selos nas unhas dos pés.
E, como as mãos já não estão frias,
Tampa nas pias!
O CARRO DE PAU
O carro de pau
Que bebé deixou...
Bebé já morreu
O carro ficou...
O carro de pau
Tombado de lado...
Depois do enterro
Foi ali achado...
Guardaram o carro
Guardaram bebé.
A vida e os brinquedos
Cada um é o que é.
Está o carro guardado.
Bebé vai esquecendo.
A vida é pra quem
Continua vivendo.
E o carro de pau
É um carro que está
Guardado num sótão
Onde nada há...
ANTÔNIO DE OLIVEIRA SALAZAR
(Poema satírico)
Antônio de Oliveira Salazar,
Três nomes em sequência regular...
Antônio é Antônio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
... ... ... ...
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, cos diabos!
Parece que já choveu...
... ... ... ...
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começaram
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até café.
“SIM, É O ESTADO NOVO”
(Poema satírico)
Sim, é o Estado Novo, e o povo
Ouviu, leu e assentiu.
Sim, isto é um Estado Novo
Pois é um Estado Novo
Pois é um estado de coisas
Que nunca antes se viu.
Em tudo paira a alegria
E, de tão íntima que é,
Como deus na Teologia
Ela existe em toda a parte
E em parte alguma se vê.
Há estradas, e a grande Estrada
Que a tradição ao porvir
Liga, branca e orçamentada,
E vai de onde ninguém parte
Para onde ninguém quer ir.
Há portos, e o porto-maca
Onde vem doente o cais.
Sim, mas nunca ali atraca
O Paquete “Portugal”
Pois calado demais.
Há esquadra... Só um tolo o cala,
Que a inteligência, propícia
A achar, sabe que, se fala,
Desde logo encontra a esquadra:
É uma esquadra de polícia.
Visão grande! Ódio à minúscula!
Nem para prová-lo tal
Tem alguém que ficar triste:
União Nacional existe
Mas não união nacional.
E o Império? Vasto caminho
Onde os que o poder despeja
Conduzirão com carinho
À civilização cristã,
Que ninguém sabe o que seja.
Com diretrizes à arte
Reata-se a tradição,
E juntam-se Apolo e Marte
No Teatro Nacional
Que é onde era a Inquisição.
E a fé dos nossos maiores?
Forma-a impoluta o consórcio
Entre os padres e os doutores.
Casados o Erro e a Fraude
Já não pode haver divórcio.
Que a fé seja sempre viva.
Porque a esperança não é vã!
A fome corporativa
E derrotismo. Alegria!
Hoje o almoço é amanhã.
A ESPERANÇA, COMO UM FÓSFORO INDA ACESO
A esperança, como um fósforo inda aceso,
Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso.
A falha social do meu destino
Reconheci, como um mendigo preso.
Cada dia me traz com que esperar
O que dia nenhum poderá dar.
Cada dia me cansa de Esperança...
Mas viver é esperar e se cansar.
O prometido nunca será dado
Porque no prometer cumpriu-se o fado.
O que se espera, se a esperança e gosto,
Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.
Quanta ache vingança contra o fado
Nem deu o verso que a dissesse, e o dado
Rolou da mesa abaixo, oculta a conta.
Nem o buscou o jogador cansado.
A TUA VOZ FALA AMOROSA
Qual é a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verão,
Ou, sendo inverno, baste estar
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.
Qual é a mão cariciosa
Que há de ser enfermeira minha —
Sem doenças minha vida ousa –
Oh, essa mão é morta e osso...
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.
AQUI ESTÁ-SE SOSSEGADO
Aqui está-se sossegado,
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.
Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-a ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.
Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.
Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido...
Agora não esqueço e sonho.
Fecho os olhos, ouço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear.
Agora não esqueço e sonho.
Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.
Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho —
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.
Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois
Nada explica nem consola.
ÁRVORE VERDE
Árvore verde,
Meu pensamento
Em ti se perde.
Ver é dormir
Neste momento.
Que bom não ser
Estando acordado!
Também em mim
Enverdecer
Em folhas dado!
Tremulamente
Sentir no corpo
Brisa na alma!
Não ser quem sente,
Mas tem a calma.
Eu tinha um sonho
Que me encantava.
Se a manhã vinha,
Como eu a odiava!
Volvia a noite,
E o sonho a mim.
Era o meu lar,
Minha alma afim.
Depois perdi-o.
Lembro? Quem dera!
Se eu nunca soube
O que ele era.
AS LENTAS NUVENS FAZEM SONO
As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Boio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.
E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.
Que bom, à margem do ribeiro
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.
AS NUVENS SÃO SOMBRIAS
As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.
Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.
E esse bocado é que é
A verdade que está
A ser beleza eterna
Para além do que há.
A TUA CARNE CALMA
A tua carne calma
Presente não tem ser.
Os meus desejos são cansaços.
Quem quer ter nos braços
É a ideia de ter de ter.
BASTA PENSAR EM SENTIR
Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.
BEM, HOJE QUE ESTOU SÓ
Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer coisa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.
BOIAM FARRAPOS DE SOMBRA
Boiam farrapos de sombra
Em torno ao que não sei ser.
É todo um céu que se escombra
Sem me o deixar entrever.
O mistério das alturas
Desfaz-se em ritmos sem forma
Nas desregradas negruras
Com que o ar se treva torna.
Mas em tudo isto, que faz
O universo um ser desfeito,
Guardei, como a minha paz,
A esperança, que a dor me traz,
Apertada contra o peito.
BRINCAVA A CRIANÇA
Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincado
E disse, eu sou dois!
Há um brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.
Estou atrás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu queria
A volta só é essa...
O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.
E havia comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.
E o tal que eu cá tenho
E sente comigo,
Nem pai, nem padrinho,
Nem corpo ou amigo,
Tem alma cá dentro
Está a ver-me sem ver,
E o carro de bois
Começa a parecer.
CAI CHUVA DO CÉU CINZENTO
Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.
Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.
CAI CHUVA. É NOITE...
Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,
Substitui o calor.
Para ser feliz tanta coisa é precisa.
Este luzir é melhor.
O que é a vida? O espaço é alguém para mim.
Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
E, sem querer, tem dó.
Extensa, leve, inútil passageira,
Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
A minha vida jaz.
Barco indelével pelo espaço da alma,
Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
Final do inútil bem.
Que, se quer, e, se veio, se desconhece
Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
Na noite agora fria.
CAMINHO A TEU LADO MUDO
Caminho a teu lado mudo
Sentes-me, vês-me alheado...
Perguntas: Sim... Não... Não sei...
Tenho saudades de tudo...
Até, porque está passado,
Do próprio mal que passei.
Sim, hoje é um dia feliz.
Será, não será, por certo
Num princípio não sei que
Há um sentido que me diz
Que isto — o céu longe e nós perto
É só a sombra do que é...
E lembro-me em meia-amargura
Do passado, do distante, E tudo me é solidão...
Que fui nessa morte escura?
Quem sou neste morto instante?
Não perguntes... Tudo é vão.
CANSA SER, SENTIR DÓI, PENSAR DESTRUIR
Cansa ser, sentir dói, pensar destruir.
Alheia a nós, em nós e fora,
Rui a hora, e tudo nela rui.
Inutilmente a alma o chora.
De que serve? O que é que tem que servir?
Pálido esboço leve
Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir...
Vago sussurro breve.
Das pequenas vozes com que a manhã acorda,
Da fútil promessa do dia,
Morta ao nascer, na esperança longínqua e absurda
Em que a alma se fia.
CANTA ONDE NADA EXISTE
Canta onde nada existe
O rouxinol para seu bem
Ouço-o, cismo, fico triste
E a minha tristeza também
Janela aberta, para onde
Campos de não haver são
O onde a dríade se esconde
Sem ser imaginação.
Quem me dera que a poesia
Fosse mais do que a escrever!
Canta agora a cotovia
Sem se lembrar de viver...
CEIFEIRA
Mas não, é abstrata, é uma ave
De som volteando no ar do ar,
E a alma canta sem entrave
Pois que o canto é que faz cantar.
CHEGUEI À JANELA
Cheguei à janela,
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.
Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
CHOVE. QUE FIZ EU DA VIDA?
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!
Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...
Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!
CLAREIA CINZENTA A NOITE DE CHUVA
Clareia cinzenta a noite de chuva
Que o dia chegou.
E o dia parece um traje de viúva
Que já desbotou.
Ainda sem luz, salvo o claro do escuro,
O céu chove aqui,
E ainda é um além, ainda é um muro
Ausente de si.
Não sei que tarefa terei este dia;
Que é inútil já sei...
E fito, de longe, minha alma, já fria
Do que não farei.
COMEÇA, NO AR DA ANTEMANHÃ
Começa, no ar da antemanhã,
A haver o que vai ser o dia.
É uma sombra entre as sombras vã.
Mais tarde, quanto é a manhã
Agora é nada, noite fria.
É nada, mas é diferente
Da sombra em que a noite está;
E há nela já a nostalgia
Não do passado, mas do dia
Que é afinal o que será.
COMO ÀS VEZES NUM DIA AZUL E MANSO
Como às vezes num dia azul e manso
No vivo verde da planície calma
Duma súbita nuvem o avanço
Palidamente as ervas escurece
Assim agora em minha pávida alma
Que súbito se evola e arrefece
A memória dos mortos aparece...
COMO É POR DENTRO OUTRA PESSOA
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
COMO NUVENS PELO CÉU
Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.
São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.
Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?
COMO UM VENTO NA FLORESTA
Como um vento na floresta.
Minha emoção não tem fim.
Nada sou, nada me resta.
Não sei quem sou para mim.
E como entre os arvoredos
Há grandes sons de folhagem,
Também agito segredos
No fundo da minha imagem.
E o grande ruído do vento
Que as folhas cobrem de som
Despe-me do pensamento:
Sou ninguém, temo ser bom.
CRIANÇA, ERA OUTRO...
Criança, era outro...
Naquele em que me tornei
Cresci e esqueci.
Tenho de meu, agora,
Um silêncio, uma lei.
Ganhei ou perdi?
DE AQUI A POUCO ACABA O DIA
De aqui a pouco acaba o dia.
Não fiz nada.
Também, que coisa é que faria?
Fosse a que fosse, estava errada.
De aqui a pouco a noite vem.
Chega em vão
Para quem como eu só tem
Para o contar o coração.
E após a noite e irmos dormir
Torna o dia.
Nada farei senão sentir.
Também que coisa é que faria?
DEIXA-ME OUVIR O QUE NÃO OUÇO...
Deixa-me ouvir o que não ouço...
Não é a brisa ou o arvoredo;
É outra coisa intercalada...
É qualquer coisa que não posso
Ouvir senão em segredo,
E que talvez não seja nada...
Deixa-me ouvir... Não fales alto!
Um momento!... Depois o amor,
Se quiseres... Agora cala!
Ténue, longínquo sobressalto
Que substitui a dor,
Que inquieta e embala...
O quê? Só a brisa entre a folhagem?
Talvez... Só um canto pressentido?
Não sei, mas custa amar depois...
Sim, torna a mim, e a paisagem
E a verdadeira brisa, ruído...
Vejo-me, somos dois!
Meu amor, somos dois.
Vejo-te, somos dois.
DEIXEI ATRÁS OS ERROS DO QUE FUI
Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.
Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.
Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.
DEIXEM-ME O SONO!
Deixem-me o sono! Sei que é já manhã.
Mas se tão tarde o sono veio,
Quero, desperto, inda sentir a vã
Sensação do seu vago enleio.
Quero, desperto, não me recusar
A estar dormindo ainda,
E, entre a noção irreal de aqui estar,
Ver essa noção finda.
Quero que me não neguem quem não sou
Nem que, debruçado eu
Da varanda por sobre onde não estou,
Nem sequer veja o céu.
DEIXEI DE SER AQUELE QUE ESPERAVA
Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.
A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.
Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.
Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.
DEIXO AO CEGO E AO SURDO
Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência:
Nada que vejo é meu.
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.
E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.
Ah, tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.
Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?
Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.
Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
DEPOIS QUE O SOM DA TERRA, QUE É NÃO TÊ-LO
Depois que o som da terra, que é não tê-lo,
Passou, nuvem obscura, sobre o vale
E uma brisa afastando meu cabelo
Me diz que fale, ou me diz que cale,
A nova claridade veio, e o sol
Depois, ele mesmo, e tudo era verdade,
Mas quem me deu sentir e a sua prole?
Quem me vendeu nas hastas da vontade?
Nada. Uma nova obliquação da luz,
Interregno factício onde a erva esfria.
E o pensamento inútil se conduz
Até saber que nada vale ou pesa.
E não sei se isto me ensimesma ou alheia,
Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
DEPOIS QUE TODOS FORAM
Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e minha agonia.
A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.
Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.
Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.
DESFAZE A MALA FEITA PRA A PARTIDA
Desfaze a mala feita pra a partida!
Chegaste a ousar a mala?
Que importa? Desesperar ante a inda
Pois tudo a ti iguala.
Sempre serás o sonho de mim mesmo.
Vives tentando ser,
Papel rasgado de um intento, a esmo
Atirado ao descrer.
Como as correias cingem
Tudo o que vais levar!
Mas é só a mala e não a ida
Que há de sempre ficar!
DESPERTO SEMPRE ANTES QUE RAIE O DIA
Desperto sempre antes que raie o dia
E escrevo com o sono que perdi.
Depois, neste torpor em que a alma é fria,
Aguardo a aurora, que já quantas vi.
Fito-a sem atenção, cinzento verde
Que se azula de galos a cantar.
Que mau é não dormir? A gente perde
O que a morte nos dá para começar.
Oh Primavera quietada, aurora,
Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria,
O que é que na alma lívida a colora
Com o que vai acontecer no dia.
DEUS NÃO TEM UNIDADE
Deus não tem unidade,
Como a terei eu?
DEVE CHAMAR-SE TRISTEZA
Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.
Sim, tristeza — mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a ter.
Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.
DO FUNDO DO FIM DO MUNDO
Do fundo do fim do mundo
Vieram me perguntar
Qual era o anseio fundo
Que me fazia chorar.
E eu disse: “É esse que os poetas
Têm tentado dizer
Em obras sempre incompletas
Em que puseram seu ser.”
Ë assim com um gesto nobre
Respondi a quem não sei
Se me houve por rico ou pobre.
DÓI-ME NO CORAÇÃO
Dói-me no coração
Uma dor que me envergonha
Quê! Esta alma que sonha
O âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena coisa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
DÓI-ME QUEM SOU
Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.
Sim tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.
DO MEIO DA RUA
Do meio da rua
(Que é, aliás, o infinito)
Um pregão flutua,
Música num grito...
Como se no braço
Me tocasse alguém
Viro-me num espaço
Que o espaço não tem.
Outrora em criança
O mesmo pregão...
Não lembres... Descansa,
Dorme, coração!...
DORME, CRIANÇA, DORME
Dorme, criança, dorme,
Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.
Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.
DORMIR! NÃO TER DESEJOS NEM ESPERANÇAS
Dormir! Não ter desejos nem esperanças
Flutua branca a única nuvem lenta
E na azul aquiescência sonolenta
A deusa do não-ser tece ambas as tranças.
Maligno sopro de árdua quietude
Perene a fronte e os olhos aquecidos,
E uma floresta-sonho de ruídos
Ensombra os olhos mortos de virtude.
Ah, não ser nada conscientemente!
Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga,
E a sombra conivente se prolonga
No chão interior, que à vida mente.
Desconheço-me. Embrenha-me futuro,
Nas veredas sombrias do que sonho.
E no ócio em que diverso me suponho,
Vejo-me errante, demorado e obscuro.
Minha vida fecha-se como um leque.
Meu pensamento seca como um vago
Ribeiro no verão. Regresso, e trago
Nas mão flores que a vida prontas seque.
Incompreendida vontade absorta
Em nada querer... Prolixo afastamento
Do escrúpulo e da vida no momento...
DO SEU LONGÍNQUO REINO COR-DE-ROSA
Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia —
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.
E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...
E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
DOZE SIGNOS DO CÉU O SOL PERCORRE
Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.
Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.
DURMO, CHEIO DE NADA
Durmo, cheio de nada, e amanhã
é, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser, pública e vã
Dada a um público vão.
O sono! este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra que de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.
O sono! que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta, sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz?!
DURMO. REGRESSO OU ESPERO
Durmo. Regresso ou espero?
Não sei. Um outro flui
Entre o que sou e o que quero
Entre o que sou e o que fui.
E A EXTENSA E VÁRIA NATUREZA É TRISTE
E a extensa e vária natureza é triste
Quando no vau da luz as nuvens passam.
É BOA! SE FOSSEM MALMEQUERES!
É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de “queres?”
Veludo da natureza tola.
Coitada!
Por ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.
Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão o meu intuito.
Caminharei sem regressar.
O LOUCO
E fala aos constelados céus
De trás das mágoas e das grades
Talvez com sonhos como os meus...
Talvez, meu Deus! com que verdades!
As grades de uma cela estreita
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita
E com voz não humana berra...
EH, COMO OUTRORA ERA OUTRA A QUE EU NÃO TINHA
Eh, como outrora era outra a que eu não tinha!
Como amei quando amei! Ah, como eu via
Como e com olhos de quem nunca lia
Tinha o trono onde ter uma rainha.
Sob os pés seus a vida me espezinha.
Reclinando-te tão bem? A tarde esfria...
Ó mar sem cais nem lado na maresia,
Que tens comigo, cuja alma é a minha?
Sob uma umbela de chá embaixo estamos
E é súbita a lembrança
Da velha Quinta e do espalmar dos ramos
Fecharam-me os olhos para toda a história!
Como sapos saltamos e erramos...
É INDA QUENTE O FIM DO DIA...
É inda quente o fim do dia...
Meu coração tem tédio e nada...
Da vida sobe maresia...
Uma luz azulada e fria
Para nas pedras da calçada...
Uma luz azulada e vaga
Um resto anônimo do dia...
Meu coração não se embriaga
Vejo como quem vê e divaga...
E uma luz azulada e fria.
E OU JAZIGO HAJA
E ou jazigo haja
Ou sótão com pó.
Bebé foi-se embora.
Minha alma está só.
É UMA BRISA LEVE
É uma brisa leve
Que o ar um momento teve
E que passa sem ter
Quase por tudo ser.
Quem amo não existe.
Vivo indeciso e triste.
Quem quis ser já me esquece
Quem sou não me conhece.
E em meio disto o aroma
Que a brisa traz me assoma
Um momento à consciência
Como uma confidência.
E, Ó VENTO VAGO
E, ó vento vago
Das solidões,
Minha alma é um lago
De indecisões.
Ergue-a em ondas
De iras ou de ais,
Vento que rondas
Os pinheirais!
EM TODA A NOITE O SONO NÃO VEIO
Em toda a noite o sono não veio. Agora
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor
Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem
Por tantas vezes ter sempre esperado em vão,
Já nada espera.
EM TORNO A MIM
Em torno a mim, em maré cheia,
Soam como ondas a brilhar,
O dia, o tempo, a obra alheia,
O mundo natural a estar.
Mas eu, fechado no meu sonho,
Parado enigma, e, sem querer,
Inutilmente recomponho
Visões do que não pude ser.
Cadáver da vontade feita,
Mito real, sonho a sentir,
Sequência interrompida, eleita
Para os destinos de partir.
Mas presa à inércia angustiada
De não saber a direção,
E ficar morto na erma estrada
Que vai da alma ao coração.
Hora própria, nunca venhas,
Que olhar talvez fosse pior...
E tu, sol claro que me banhas,
Ah, banha sempre o meu torpor!
EM TORNO AO CANDEEIRO DESOLADO
Em torno ao candeeiro desolado
Cujo petróleo me alumia a vida,
Paira uma borboleta, por mandado
Da sua inconsistência indefinida.
ENFIA A AGULHA
Enfia a agulha,
E ergue do colo
A costura enrugada.
Escuta: (volto a folha
Com desconsolo).
Não ouviste nada.
Os meus poemas, este
E os outros que tenho
São só a brincar.
Tu nunca os leste,
E nem mesmo estranho
Que ouças sem pensar.
Mas dá-me um certo agrado
Sentir que tos leio
E que ouves sem saber.
Faz um certo quadro.
Dá-me um certo enleio...
E ler é esquecer.
ENTRE O LUAR E O ARVOREDO
Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.
Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
EPITÁFIO DESCONHECIDO
Quanta mais alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.
ERA ISSO MESMO
Era isso mesmo —
O que tu dizias,
E já nem falo
Do que tu fazias...
Era isso mesmo...
Eras outra já,
Eras má deveras,
A quem chamei má...
Eu não era o mesmo
Para ti, bem sei.
Eu não mudaria,
Não — nem mudarei...
Julgas que outro é outro.
Não: somos iguais.
ERAM VARÕES TODOS
Eram varões todos,
Andavam na floresta
Sem motivo e sem modos
E a razão era esta.
E andando iam cantando
O que não pude ser,
Nesse tom mole e brando
Como um anoitecer
Em que se canta quanto
Não há nem é e dói
E que tem disso o encanto
De tudo quanto foi.
É UM CAMPO VERDE E VASTO
É um campo verde e vasto,
Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
Sem águas a correr.
Só campo, só sossego,
Só solidão calada.
Olho-o, e nada nego
E não afirmo nada.
Aqui em mim me exalço
No meu fiel torpor.
O bem é pouco e falso,
O mal é erro e dor.
Agir é não ter casa,
Pensar é nada Ter.
Aqui nem luzes (?) ou asa
Nem razão para a haver.
E um vago sono desce
Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
À vista e ao coração.
Torpor que alastra e excede
O campo e o gado e os ver.
A alma nada pede
E o corpo nada quer.
Feliz sabor de nada,
Inconsciência do mundo,
Aqui sem porto ou estrada,
Nem horizonte no fundo.
EU
Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.
Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória,
O saber e o ousar da aliança.
Só guardo como um anel pobre
Que a todo herdeiro só faz rico
Um frio perdido que me cobre
Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.
EU AMO TUDO O QUE FOI
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
EU ME RESIGNO
Eu me resigno. Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que, vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...
Eu me resigno. Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força de irem põem tudo.
De teu próprio silêncio nulo e mudo,
Não vás, meu coração.
EU TENHO IDEIAS E RAZÕES
Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
EXÍGUA LÂMPADA TRANQUILA
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
FALHEI. OS ASTROS SEGUEM SEU CAMINHO
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo.
O que tive por meu ou por haver
Fica sempre entre um polo e o outro polo
Do que nunca há de pertencer.
Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou,
O que é já nada, com a lenha velha
Onde, pois valho só quando me dou,
Pegarei facilmente uma centelha.
FITO-ME FRENTE A FRENTE (I)
Fito-me frente a frente,
Conheço que estou louco.
Não me sinto doente.
Fito-me frente a frente.
Evoco a minha vida.
Fantasma, quem és tu?
Uma coisa erguida.
Uma força traída.
Neste momento claro,
Abdique a alma bem!
Saber não ser é raro.
Quero ser raro e claro.
FITO-ME FRENTE A FRENTE (II)
Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?
É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?
Não sei, mas sinto morto
O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.
FLUI, INDECISO NA BRUMA
Flui, indeciso na bruma,
Mais do que a bruma indeciso,
Um ser que é coisa a achar
E a quem nada é preciso.
Quer somente consistir
No nada que o cerca ao ser,
Um começo de existir
Que acabou antes de o Ter.
É o sentido que existe
Na aragem que mal se sente
E cuja essência consiste
Em passar incertamente.
GLOSA
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.
Talvez eu tosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.
Por que o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis?
Escuta só meu coração.
GLOSAS
Toda a obra é vã, e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura nosso esforço e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.
Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e só para pensares sente.
Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.
Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E a outra uma água com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.
Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.
Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.
GNOMOS NO LUAR QUE FAZ SELVAS
Gnomos no luar que faz selvas
As florestas sossegadas,
Que sois silêncios nas relvas,
E em almas abandonadas
Fazeis sombras enganadas,
Que sempre se a gente olha
Acabastes de passar
E só um tremor de folha
Que o vento pode explicar
Fala de vós sem falar,
Levai-me no vosso rastro,
Que em minha alma quero ser
Como vosso corpo, um astro
Que só brilha quando houver
Quem o suponha sem ver.
Assim eu que canto ou choro
Quero velar-me a partir.
Lembrando o que não memoro,
Alguns me saibam sentir,
Mas ninguém me definir.
GOSTARA, REALMENTE
Gostara, realmente,
De sentir com uma alma só,
Não ser eu só tanta gente
De muitos, meto-me dó.
Não ter lar, vá. Não ter calma
Está bem, nem ter pertencer
Mas eu, de ter tanta alma,
Nem minha alma chego a ter.
GRADUAL, DESDE QUE O CALOR
Gradual, desde que o calor
Teve medo,
A brisa ganhou alma, à flor
Do arvoredo.
Primeiro, os ramos ajeitaram
As folhas que há,
Depois, cinzentas, oscilaram,
E depois já
Toda a árvore era um movimento
E o fresco viera.
Medita sem ter pensamento!
Ignora e espera!
GRANDE SOL A ENTRETER
Grande sol a entreter
Meu meditar sem ser
Neste quieto recinto...
Quanto não pude ter
Forma a alma com que sinto...
Se vivo é que perdi...
Se amo é que não amei...
E o grande bom sol ri...
E a sombra está aqui
Onde eu sempre estarei...
HÁ UMA MÚSICA DO POVO
Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado...
Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser...
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver...
E ouço-a embalado e sozinho...
É isso mesmo que eu quis ...
Perdi a fé e o caminho...
Quem não fui é que é feliz.
Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção...
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração...
Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido...
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!
HÁ UM FRIO E UM VÁCUO NO AR
Há um frio e um vácuo no ar.
Está sobre tudo a pairar,
Cinzento-preto, o luar.
Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
Esperança e inútil afã.
É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.
Absurdo erro disperso
No espaço, água onde é imerso
O cadáver do universo.
É como o meu coração
Frio da vaga opressão
Da antemanhã da visão.
JÁ OUVI DOZE VEZES DAR A HORA
Já ouvi doze vezes dar a hora
No relógio que diz que é meio dia
A toda a gente que aqui mora.
(O comentário é do Camões agora:)
“Tanto que espera! Tanto que confia!”
Como o nosso Camões, qualquer podia
Ter dito aquilo, até outrora.
E ainda é uma grande coisa a ironia.
LADRAM UNS CÃES A DISTÂNCIA
Ladram uns cães a distância
Cai uma tarde qualquer,
Do campo vem a fragrância
De campo, e eu deixo de ver.
Um sonho meio sonhado,
Em que o campo transparece,
Está em mim, está a meu lado,
Ora me lembra ou me esquece,
E assim neste ócio profundo
Sem males vistos ou bens,
Sinto que todo este mundo
É um largo onde ladram cães.
LÁ FORA ONDE ÁRVORES SÃO
Lá fora onde árvores são
O que se mexe a parar
Não vejo nada senão,
Depois das árvores, o mar.
É azul intensamente,
Salpicado de luzir,
E tem na onda indolente
Um suspirar de dormir.
Mas nem durmo eu nem o mar,
Ambos nós, no dia brando,
E ele sossega a avançar
E eu não penso e estou pensando.
LEVE NO CIMO DAS ERVAS
Leve no cimo das ervas
O dedo do vento roça...
Elas dizem-me que sim...
Mas eu já não sei de mim
Nem do que queira ou que possa.
E o alto frio das ervas
Fica no ar a tremer...
Parece que me enganaram
E que os ventos me levaram
O com que me convencer.
Mas no relvado das ervas
Nem bole agora uma só.
Por que pus eu uma esperança
Naquela inútil mudança
De que nada ali ficou?
Não: o sossego das ervas
Não é o de há pouco já.
Que inda a lembrança do vento
Me as move no pensamento
E eu tenho porque não há.
MAIS TRISTE DO QUE O QUE ACONTECE
Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu.
Meu coração, quem o entristece?
Quem o faz meu?
Na nuvem vem o que escurece
O grande campo sob o céu.
Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece!
Ai do que em mim me chamo eu!
MAS EU, ALHEIO SEMPRE
Mas eu, alheio sempre, sempre entrando
O mais íntimo ser da minha vida,
Vou dentro em mim a sombra procurando.
MAS O HÓSPEDE INCONVIDADO
Mas o hóspede inconvidado
Que mora no meu destino,
Que não sei como é chegado,
Nem de que honras é digno.
Constrange meu ser de casa
A adaptações de disfarce.
MINHA ALMA SABE-ME A ANTIGA
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.
Talvez eu tosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.
Por que o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis?
Escuta só meu coração.
Minhas mesmas emoções
Minhas mesmas emoções
São coisas que me acontecem.
MINHA MULHER, A SOLIDÃO
Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é o coração
Ter este bem que não existe!
Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminho.
Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só — veste de seda —,
E fala só — leque animado.
NA NOITE QUE ME DESCONHECE
Na noite que me desconhece
O luar vago, transparece
Da lua ainda por haver.
Sonho. Não sei o que me esquece,
Nem sei o que prefiro ser.
Hora intermédia entre o que passa,
Que névoa incógnita esvoaça
Entre o que sinto e o que sou?
A brisa alheamento abraça.
Durmo. Não sei quem é que estou.
Dói-me tudo por não ser nada.
Da grande noite embainhada
Ninguém tira a conclusão.
Coração, queres? Tudo enfada
Antes só sintas, coração.
NÃO DIGAS NADA
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
NÃO QUERO ROSAS, DESDE QUE HAJA ROSAS
Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?
Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.
Para quê?... Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?...
NO FIM DA CHUVA E DO VENTO
No Fim da chuva e do vento
Voltou ao céu que voltou
A lua, e o luar cinzento
De novo, branco, azulou.
Pela imensa constelação
Do céu dobrado e profundo,
Os meus pensamentos vão
Buscando sentir o mundo.
Mas perdem-se como uma onda
E o sentimento não sonda
O que o pensamento vale
Que importa? Tantos pensaram
Como penso e pensarei.
O AMOR, QUANDO SE REVELA...
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar para ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
O CÉU DE TODOS OS INVERNOS
O céu de todos os invernos
Cobre em meu ser todo o verão...
Vai pras profundas dos infernos
E deixa em paz meu coração!
Por ti meu pensamento é triste,
Meu sentimento anda estrangeiro;
A tua ideia em mim insiste
Como uma falta de dinheiro.
Não posso dominar meu sonho.
Não te posso obrigar a amar.
Que hei de fazer? Fico tristonho.
Mas a tristeza há de acabar.
Bem sei, bem sei...
A dor de corno
Mas não fui eu que lho chamei.
Amar-te causa-me transtorno,
Lá que transtorno é que não sei...
Ridículo? É claro. E todos?
Mas a consciência de o ser,
Fi-la bastante clara deitando-a a rodos
Em cinco quadras de oito sílabas.
O MEU CORAÇÃO QUEBROU-SE
O meu coração quebrou-se
Como um bocado de vidro
Quis viver e enganou-se...
O RUÍDO VÁRIO DA RUA
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua.
Ouço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.
O SOM DO RELÓGIO
O som do relógio
Tem a alma por fora,
Só ele é a noite
E a noite se ignora.
Não sei que distância
Vai de som a som
Pegando, no tique,
Do taque do tom.
Mas ouço de noite
A sua presença
Sem ter onde acoite
Meu ser sem ser.
Parece dizer
Sempre a mesma coisa
Como o que se senta
E se não repousa.
OUTROS TERÃO
Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.
A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.
“Que importa?”
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.
“Quem tem de ser?”
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.
Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.
PARECE ÀS VEZES QUE DESPERTO
Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?
A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.
E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?
Entendo, como um carrossel;
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...)
PARECE QUE ESTOU SOSSEGANDO
Parece que estou sossegando
Estarei talvez para morrer.
Há um cansaço novo e brando
De tudo quanto quis querer.
Há uma surpresa de me achar
Tão conformado com sentir.
Súbito vejo um rio
Entre arvoredo a luzir.
PELA RUA JÁ SERENA
Pela rua já serena
Vai a noite
Não sei de que tenho pena,
Nem se é pena isto que tenho...
Pobres dos que vão sentindo
Sem saber do coração!
Ao longe, cantando e rindo,
Um grupo vai sem razão...
E a noite e aquela alegria
E o que medito a sonhar
Formam uma alma vazia
Que paira na orla do ar...
POEMAS DOS DOIS EXÍLIOS
I
Paira no ambíguo destinar-se
Entre longínquos precipícios,
A ânsia de dar-se preste a dar-se
Na sombra vaga entre suplícios,
Roda dolente do parar-se
Para, velados sacrifícios,
Não ter terraços sobre errar-se
Nem ilusões com interstícios,
Tudo velado, e o ócio a ter-se
De leque em leque, a aragem fina
Com consciência de perder-se...
Tamanha a flama e pequenina
Pensar na mágoa japonesa
Que ilude as sirtes da Certeza.
II
Dói viver, nada sou que valha ser.
Tardo-me porque penso e tudo rui.
Tento saber, porque tentar é ser.
Longe de isto ser tudo, tudo flui.
Mágoa que, indiferente, faz viver.
Névoa que, diferente, em tudo influi.
O exílio nado do que fui sequer
Ilude, fixa, dá, faz ou possui.
Assim, noturno, a árias indecisas,
O prelúdio perdido traz à mente
O que das ilhas mortas foi só brisas,
E o que a memória análoga dedica
Ao sonho, e onde, lua na corrente,
Não passa o sonho e a água inútil fica.
III
Análogo começo.
Uníssono me peço.
Gaia ciência o assomo —
Falha no último tomo.
Onde prolixo ameaço
Paralelo traspasso
O entreaberto haver
Diagonal a ser.
E interlúdio vernal,
Conquista do fatal,
Onde, veludo, afaga
A última que alaga.
Timbre do vespertino.
Ali, carícia, o hino
outonou entre preces,
Antes que, água, comeces.
IV
Doura o dia. Silente, o vento dura.
Verde as árvores, mole a terra escura,
Onde flores, vazia a álea e os bancos.
No pinhal erva cresce nos barrancos.
Nuvens vagas no pérfido horizonte.
O moinho longínquo no ermo monte.
Eu alma, que contempla tudo isto,
Nada conhece e tudo reconhece.
Nestas sombras de me sentir existo,
E é falsa a teia que tecer me tece.
POR QUEM FOI QUE ME TROCARAM
Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.
Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
É que tens para mo dar.
Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?
QUAL É A TARDE POR ACHAR
Qual é a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda sendo verão,
Ou, sendo inverno, baste estar
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.
Qual é a mão cariciosa
Que há de ser enfermeira minha —
Sem doenças minha vida ousa —
Oh, essa mão é morta e osso...
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.
QUANTA MAIS ALMA ANDE NO AMPLO INFORME
Quanta mais alma ande no amplo informe
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.
QUE SUAVE É O AR!
Que suave é o ar! Como parece
Que tudo é bom na vida que há!
Assim meu coração pudesse
Sentir essa certeza já.
Mas não; ou seja a selva escura
Ou seja um Dante mais diverso,
A alma é literatura
E tudo acaba em nada e verso.
RELÓGIO, MORRE
Relógio, morre –
Momentos vão
Nada já ocorre
Ao coração
Senão, senão...
Bem que perdi!
Mal que deixei,
Nada aqui
Montes sem lei
Onde estarei...
Ninguém comigo!
Desejo ou tenho?
Sou o inimigo –
De onde é que venho?
O que é que é estranho?
SE ALGUÉM BATER UM DIA À TUA PORTA
Se alguém bater um dia à tua porta,
Dizendo que é um emissário meu,
Não acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho não comporta
Bater sequer à porta irreal do céu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Alguém bater, fores a porta abrir
E encontrares alguém como que à espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissário e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem não bater à tua porta!
SE TUDO O QUE HÁ É MENTIRA
Se tudo o que há é mentira
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira
A nada nada se dá.
Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.
Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.
Mais vale é o mais valer,
Que o resto urtigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.
SIM, TUDO É CERTO LOGO QUE O NÃO SEJA
Sim, tudo é certo logo que o não seja.
Amar, teimar, verificar, descrer.
Quem me dera um sossego à beira-ser
Como o que à beira-mar o olhar deseja.
SONHEI, CONFUSO, E O SONO FOI DISPERSO
Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
Mas, quando despertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo
Não são mais claros do que os sonhos são
Obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.
Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.
Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.
SOSSEGA, CORAÇÃO! NÃO DESESPERES!
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
SOU O ESPÍRITO DA TREVA
Sou o Espírito da treva,
A Noite me traz e leva;
Moro à beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida
Refresca-me a alma de espuma...
Pra além do mar há a bruma...
E pra aquém? há Coisa ou Fim?
Nunca olhei para trás de mim...
TENHO PENA ATÉ... NEM SEI...
Tenho pena até... nem sei...
Do próprio mal que passei
Pois passei quando passou.
UMA MAIOR SOLIDÃO
Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.
Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.
Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.
VAGA HISTÓRIA COMEZINHA
...Vaga história comezinha
Que, pela voz das vozes, era a minha...
Quem sou eu? Eles sabem e passaram.
VENDAVAL
Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!
Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!
Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.
Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles —teu pulso divida
Minh'alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar —
Fosse para onde fosse, pra longe da ideia
De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver —
Por que é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais escura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.
E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!
Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...