3/03/2023

O Cerco de Corinto (Poesia), de Lord Byron


O CERCO DE CORINTO


I
Longo trilho de séculos exaustos,
Rijas tormentas, bélicos furores,
Infestarão Corinto: ela entretanto
Persiste em pé, e no alteroso alcáçar
Nova conquista à Liberdade oferece.
Nem bramir de tufões, nem terremotos
O alvejante penhasco lhe abalarão,
Esse lajoso assento, que, em despeito
Da decadência sua, inda parece
Não sem orgulho contemplar seu cimo;
Esse padrão demarcador erguido
Entre os dois mares, que dum lado e doutro
Lhe estão rolando purpurinas ondas,
Que sempre a forcejar por se reunirem,
O acatam sempre, e vem morrer-lhe às plantas.
Se o sangue nestes sítios derramado
Desde que neles o fraterno sangue
Timoléon vertera, ou desde quando
Pelo aviltado déspota da Pérsia
Abandonados foram, borbulhasse
Da terra que o bebeu no morticínio,
Este sangrento oceano sepultara
Sob os tremendos escarcéus todo o istmo:
Ou se pudessem amontoar-se os ossos
Dos que ali perecerão, surgiria
Por entre aqueles céus abrilhantados
A colossal pirâmide espantosa,
Dando rival à Acrópoles, que as nuvens
Se vê roçar com a torreada fronte.

II
Eis lanças vinte mil sobre as espáduas
Do nebuloso Citéron fulguram;
E em toda a planta do istmo, sobre as duas
Opostas praias que o ladeiam amplas,
Se eleva o pavilhão, brilha o Crescente
Nas federadas linhas Muçulmanas;
E o tisnado Spai desfila em bandos
À vista dos Bachás amplo-barbados;
E os olhos podem ver ao longo e ao largo
As coortes cingidas do turbante,
Que o promontório alastram, enxameiam:
Lá se ajoelham do Árabe os camelos,
Do Tártaro os ginetes lá volteiam;
Dando de mão à grei, o Turcomano
Prestes uniu ao lado a cimitarra.

Dos bélicos trovões crebro ribombo
Até faz emudecer, de susto, os mares,
Aprofunda-se a trincheira, e muito longe
Silvando voa no pelouro a morte;
Sob o peso da bomba assoladora,
Soltam-se em pulverento remoinho
Os da muralha esboroados lanços;
E, do recinto dela, eis o inimigo
Ás do Infiel intimações responde
Com manejo expedito, e fogos destros.
Que vão cruzando os empoeirados plainos,
E os ares que anuvia o fumo em rolos.

III
Das muralhas porém o mais vizinho
Entre os que punham peito e mãos à empresa
De as converter em ruína, o mais profundo
Que nenhum dos da prole Muçulmana
Nas da guerra artes tétricas, e altivo
Qual nunca o foi assinalado chefe
Colhendo louros em sangrentas lides;
O que voando audaz de posto a posto,
Dum feito a maior feito, se avantaja
Em destro esporear corcel fumante,
Em surdir mais veloz onde arde o perigo,
Cada vez que há sortidas ou assaltos;
E quando a bateria, em mãos valentes,
Resiste inexpugnável, então mesmo
Com exultante aspecto desmontando
A dar alento, na refrega, aos tíbios;
O mais abalizado e o mais recente
Da hoste que lucrou nestas paragens
Ao sultão de Istambul renome egrégio;
O guia incomparável em campanhas,
Ou solerte assestando o férreo tubo,
Ou manejando a temerosa lança,
Ou tufão que rebenta onde há conflitos, —
É Alp, o Veneziano renegado!

IV
O renegado de Veneza! — ah! ele
De vetusta linhagem primorosa
Teve o seu nascimento: todavia,
Desterrado afinal do pátrio ninho,
Contra os concidadãos tomou as armas,
Em que por eles adestrado fora;
E orna-lhe a fronte rasa hoje o turbante.
Depois de eventuais destinos vários,
Sob a lei que Veneza lhe ditara
Se acolheu, como a Grécia, então Corinto;
E ei-lo que ante seus muros se apresenta,
Inimigo entre os feros inimigos
Da Grécia e de Veneza, e trasbordando
De ressentido ardor, qual incandesce
Ao jovem convertido a alma orgulhosa,
Onde duestos mil acumulados
Estão sempre em tumulto, e eternos vivem.
Nem por isso com ele quis Veneza
Desempenhar o cívico apelido
Em que firmava o seu brasão;
E de São marcos no palácio excelso,
Delatores incógnitos lançaram
Na Boca do Leão, durante a noite.
Denúncia atroz de requintados crimes,
Que o cobriam de mácula indelével:
Salvou seus dias pressurosa fuga.
Desde esse lance despendia a vida
No meio dos combates, demonstrando
Bem claro à pátria o que perdeu no aluno
Que contra a Cruz, já suplantada, erguia
O soberbo Crescente, e, guerreando,
Só vingar-se ou morrer buscava ansioso.

V
Coumourgi — aquele que impôs termo aos feitos,
O último perecendo, e o mais pujante,
Lá nos de Carlowitz sangrentos plainos,
Sem mágoa de morrer, porém, raivoso,
Dos Cristãos maldizendo ínclitos louros,
E de Eugênio adornando o grão triunfo;
Coumourgi — e porventura a glória deste
Conquistador da Grécia derradeiro
Poderá perecer, senão surgindo
Braço Cristão que restitua à Grécia
Sequer os foros que gozou outrora
Por Veneza outorgados? Ele vinha,
Já depois de volvidos lustros vinte,
Reintegrar a Otomana prepotência;
E, os veteranos seus pospondo agora,
Para mandar do exército a vanguarda
Alp escolheu, que a confidência suma,
Atrasando cidades, lhe pagava,
E mostrando em façanhas destrutoras
O seu zeloso aferro à nova crença.

VI
A muralha enfraquece: de contínuo
As Turcas baterias lhe varejão
O parapeito e ameias; restrugindo,
Sai de cada canhão a voz do raio:
Aqui flameja, ao rebentar da bomba,
Crepitante zimbório; além baqueia
Este, este outro edifício derrocado,
Sob o espesso granizo destilhaços,
Que em lufadas vulcânicas recresce:
Vai resfolgando em rúbidas colunas
Voraz incêndio, que tão alto sobe,
Como sobe o fragor da ruína ingente,
Ou solta-se em terrestres meteoros
Que vão no céu esvaecer-se infindos:
Mais nebuloso, mais impérvio o dia
Se torna à luz do sol, com a mole opaca
Do fumo alçado em tortuosos rolos,
Que de enxofrado horror a esfera enlutam.

VII
Nem somente ardor cego de vingança,
Que a longa dilação fez mais ferino,
Esporeara esse Alp apostatado
À adestrar os guerreiros Maometanos
Na arte de abrir a prometida brecha.
Daqueles muros no recinto havia
Uma donzela, cuja mão formosa
Ele obter pretendia apesar mesmo
Do inexorável pai, que, furibundo,
Aos rogos lha negou, quando Alp outrora,
Chamando-se Lancioto, o bafejavam
Tempos melhores, mais propícios fados;
E sem nota e sem crime de perfídia,
Aos palácios, às gôndolas levando
Alegria vivaz, se assinalava
Nos Carnavais, ou ressoar fazendo
Sobre águas do Ádria esses descantes meigos
Que alvoroçadas de prazer escutam
À meia-noite as Ítalas donzelas.

VIII
Que do seu coração já possessora
Não fosse a virgem, suspeitavam muitos;
No em tanto de infinitos requestada,
E a nenhum acolhendo, persistia
De todo o laço conjugal isenta
A juvenil Francina: e desde o instante
Em que das Adriáticas paragens
Se retirou Lancioto a pagãos climas,
O sorriso expirou nos lábios dela;
Meditabunda e pálida tornou-se;
Confissões amiudava, e já não era
Tão vista em mascaradas e assembleias;
Ou, se lá ia, os olhos seus descidos
Avassalavam, num volver furtivo,
Mil corações de balde suspirosos:
Nenhum objeto contemplava atenta;
Não punha em atavios tanto apuro,
Nem já tão terno desprendia o canto;
Seus passos, bem que leves, o eram menos
Que os dos parceiros seus, a quem na dança
Colhia absortos o raiar da aurora.

IX
Dum solo aos Muçulmanos arrancado,
Quando a soberba lhes calcou Sobieski
Ante os muros de Buda, às margens do Istro;
Dum solo que depois Veneza altiva
Empolgou com violência desde Patras
Até a Eubóica enseada, o regimento,
Por ordem superior, tomou Minotti;
E de Corinto na torreada estância
Já ele era do Doge o delegado,
Quando os olhos da Paz fagueiros, pios,
Depois da larga ausência, confortavam
Com um sorriso dos seus a Grécia sua,
Inda não roto esse armistício tredo
Que ao jugo anticristão a subtraía.
Entrou Minotti ali com a filha amável;
E desde o tempo em que a formosa Helena,
Deixando o esposo e a pátria, fez ver quantos
Dum ilícito amor desastres brotam,
Nunca estas praias adornou beleza
Digna de comparar-se à da estrangeira.

X
Em crebros boqueirões abre-se o muro;
E sobre as ruínas da aluída mole
Vai, à primeira luz, desenvolver-se
Assalto mais que todos formidando.
Tropas enfileiraram-se; escolhidos
Foram para formar toda a vanguarda
Tártaros e Otomanos; e vós outros,
Flor dos guerreiros, a quem foi sem causa
Imposto o sobrenome de perdidos,
E para quem a morte e riso, é jogo;
Vós, que com alfanje em punho abris caminho,
Ou de vossos cadáveres juncando
A que o braço rompeu vereda honrosa,
Sois marmóreo degrau, por onde afoitos
Os sócios trepam, — morrereis mais tarde!

XI
É meia-noite: a fria lua ostenta
O disco inteiro, e amplo fulgor difunde
A contrastar com a sombra das montanhas;
Traja de azul o mar, de azul se veste
O firmamento, este suspenso oceano,
Todo cravado de ilhas que refulgem
Lá tão remotas, com ardor tão vivo:
E quem, quem pode atento contemplá-las,
E repascer depois os olhos tristes
No vale dos mortais, sem que apeteça
Voar e unir-se para sempre a elas?
Dormem as ondas, numa praia e noutra,
Plácidas e cerúleas como os ares;
Só de leve as áreas roça a espuma,
Com murmurinho igual ao dum regato.
Os ventos se recostam sobre as ondas;
E das hastes ao longo quietas pendem,
Em pregas conchegando-se, as bandeiras,
Que remata arcifúlgido Crescente.
Nada interrompe esta mudez profunda,
Senão além a voz da sentinela
Reproduzindo a senha, ou lá mais longe
Relincho de corcéis agudo e crebro,
Ou ecos que respondem dos outeiros,
Ou da hoste bravia o rumor vasto,
Que semelhante ao de agitadas folhas
Alongando-se vai de praia a praia,
Ou preces usuais que à meia-noite
Levanta o Muezim, rasgando os ares
Com a lamentosa garganteada loa,
Qual espírito que vaga na planície:
Melódicos acentos, mas prantivos,
Quais os produz o vento, que, passando,
Encontra as cordas de sonoras harpas,
E extrai descompassadas harmonias,
Que não conhece o menestrel mundano.
Este som se afigura aos sitiados
Grito agoureiro da infalível queda;
Ele fere no ouvido aos sitiadores
Como indício aziago e pavoroso,
Repentina toada indefinível,
Que os corações lhes paralisa agora,
E logo os faz pulsar mui apressados,
Com a vergonha de haver surdido neles
Tão desusada sensação furtiva:
Destarte o sino apregoador da morte
Nos sobressalta de repente ouvido,
Inda que seja em funeral de estranhos.

XII
Calou-se o som, a rogativa é finda;
As sentinelas em seus postos velam;
Foi a noturna ronda percorrida,
E em tudo as ordens satisfeitas todas.
Tem Alp o seu tentório sobre a praia,
E em ânsias vai curtir inda esta noite;
Mas bem pode a manhã suavizá-las,
Na fruição das vantagens tão copiosas
Com que o amor e a vingança hão de reunidos
Demora indenizar tão prolongada.
Horas poucas lhe restam, e carece
De repousar, por que expedito esteja
Ás proezas da crástina matança:
Mas baralhados, quais estuantes vagas,
Os pensamentos lhe relutam n'alma.
Sem repouso e só ele em todo o campo;
Nem sente o coração intumescer-lhe
Fanática vanglória blasonante
De ver pelo Crescente a Cruz calcada,
Ou de vender seus dias mui baratos,
Seguro de gozar no paraíso
O sempiterno amor das Houris belas;
Nem se sente abrasar daquele austero
Patriótico ardor que de bom grado
Suporta árduas fadigas, verte o sangue.
Quando peleja sobre o chão nativo,
Ele não era mais — que um renegado.
Ora verdugo da traída pátria;
Ele não era mais que um peito forte,
Um braço acreditado entre o seu bando.
Seguiam-no, por que era valoroso,
E já lhes granjeara espólio grande;
Davam-lhe acatamento, por ver quanto
Ele sabia cativar do vulgo
As vontades, e arteiro dispor delas:
Mas nem por isso lhe entejavam menos
O Cristão nascimento: inveja influi-lhes
A própria fama atraiçoadora que ele
Ganhara sob um nome Muçulmano:
De qualquer modo, esse esforçado chefe
Vil Nazareno foi na juventude.
Não lhes era sabido até que ponto
É capaz de curvar-se o orgulho, quando
Murcho e aviltado o pundonor baqueia;
Não lhes era sabido quão violenta
Chama voraz em corações se acende
Que de meigos tornaram-se bravios;
Ignoravam qual zelo de vinganças
Refalsado e fatal se gera e cresce
Dum convertido n'alma. Ele os regia:
Pode um homem reger outros piores,
E de ser o primeiro gloriar-se.
Tais os leões sobre o jackal dominam:
Destro o jackal espia e abate a presa;
Mas, no apertão da rugidora turba,
Dá-se por pago, se devora os restos.

XIII
A cabeça lhe ferve, e apressuradas
As artérias palpitam-lhe convulsas;
Dum lado e doutro volta-se, baldando
Modos de repousar; e se dormita,
O som mais leve, o mais pequeno abalo
Prestes o acordam angustiado em dobro.
A fronte incandescida lhe molesta
Hoje o turbante, e, nem que plúmbea fosse,
A loriga lhe pesa sobre o peito,
Se bem que tanta vez, e a sono solto,
Sob esse mesmo peso repousasse,
Tendo apenas por leito um chão saibroso,
E por dossel o firmamento apenas,
Leito e dossel quais ao guerreiro a noite
Agora os deparou. Ele nem pode
No seu tentório adormecer, nem quieto
Esperar que desponte a luz diurna,
E eis vaga ao longo da arenosa praia,
Alastrada de tantos que repousam.
Quem os acalentou? e por que causa
Ha de ele só velar, despossuído
Dum bem que logram rasos subalternos,
A quem cabe arrostar maiores perigos,
E lidas superar mais afanosas?
Mas ah! que um sonho animador lhes pinta
Os lucros todos do futuro espólio;
E enquanto mil e mil passam dormindo
Esta que a noite extrema é talvez deles,
Alp, em vigília atroz, vagueia ansiado,
E lhe é alvo de invejas quanto encontra.

XIV
Vai na aprazível fresquidão da noite
Achando refrigério às ânsias d'alma.
Relentoso ora o céu, bem que tranquilo,
As afogueadas faces lhe aspergia
Com brando orvalho. Após lhe fica o campo;
De fronte lhe serpeia, derramado
Em crebros surgidouros e enseadas,
O golfo de Lepanto; está-lhe à vista
A de Delfos montanha sempiterna,
Onde os gelos acrescem, brilham, durão,
De mil estios afrontando a ardência,
Campeando no golfo, e serro, e clima,
Sem que os dissolva, como a nós, o Tempo.
Desaparecem o tirano e o servo,
Impróprios a aguantar fulgente raio;
Mas este véu deslumbrador e frágil,
De que vês envolvido o monte excelso,
Quando torres baqueiam, jazem troncos,
Lá brilha sempre no empinado alcáçar;
Píleo na Forma, nuvem no elevado,
Na cor e na amplidão lençol funéreo,
Erguido a designar que a Liberdade
Se ausentou da mimosa estância sua,
E hoje lânguida jaz no mesmo solo,
Onde foi largos tempos escutado
Seu profético ardor em áureos versos.
Oh! que de quando em quando inda lá soam
Os passos seus sobre arescentes campos,
Sobre tantos altares demolidos;
E ela, um a um mostrando aqueles restos
Abonadores da passada glória,
Alentar busca os ânimos prostrados:
Porém de balde bradará, enquanto
Não despontar num coração preclaro
Destimidez possante, toda acesa
Ao clarão desses dias que luziram
Sobre a fuga do Persa, e que risonhos
O intérito arrostaram do Espartano.

XV
Inda que fugitivo e criminoso,
Alp admirava as ínclitas virtudes
Desses tempos heroicos; e esta noite,
Enquanto vagueava, e na memória
O presente e o passado revolvia,
Apreciando as mortes gloriosas
Dos que em defensa da genuína causa
Seu sangue ali verteram, mui bem sente
A que ponto é falaz, mesquinha, obscura
Quanta fama lucrou dum bando à frente,
E, nefário traidor, brandindo a espada
Entre as turmas cingidas do turbante,
Que raivoso guiara a injusto assédio.
Onde era em cada prospero sucesso
Não menos computado um sacrilégio.
Tais não lhe mostra a fantasia os chefes,
Por quem aquele pó que o circundava
Fora ilustrado, e que as falanges suas
Perfilavam no plaino, não de balde
Então de baluartes guarnecido.
Estes morreram escudando a pátria,
E eternos vivem no fulgor da glória:
Suspirar-lhes ali os nomes gratos
Inda parece a brisa; ali seus feitos
Soam no murmurinho das correntes;
Povoa seu renome aqueles campos;
O pilar taciturno, ermo, alvacento,
Demanda aos sacros vultos aliar-se;
Os espíritos seus em torno giram
Dos fuscos serros; a memória sua
Toda se espelha no cristal das fontes;
O arroio humilde, o caudaloso rio
Perenes fluem com a perene fama
Dos estremados campeões sublimes.
Por mais que a oprima um jugo, é esta sempre
A pátria deles, e a mansão da glória!
A Grécia! — há de levar sempre este nome
Um som despertador ao Mundo inteiro.
Varão que aspira a perpetrar façanhas,
Lá põem na Grécia o fito, e abjura as normas
Que somente os tiranos sancionaram;
Para lá olha, e se arremessa aonde
Conquiste a Liberdade, ou deixe a vida.

XVI
Sempre assim meditando silencioso,
Alp ao longo da praia os passos move,
E com brando rocio a noite o ameiga.
Coarctados e sem esto, aqueles mares
Em moto igual ondeiam sempiternos,

E a vaga que possuem mais furiosa
Nem um quarto de jeira ao solo invade;
E ou se mostre, ou se esconda, ou mude as fases,
Não tem sobre eles influência a lua:
Mansos, tumentes, no alto, na enseada,
Do domínio lunar se movem francos.
O escolho imóvel, descobrindo a base,
Olha ao largo, e de balde espera as ondas:
Pode ver-se a que o cinge espúmea linha,
Que embaixo lhe traçou a mão dos evos.
Um pequeno areal loureja plaino
Entre o salgado leito e o chão relvoso.
Pela marina margem vagabundo,
Eis Alp assoma dos sitiados muros
Desviado não mais que quanto alcança
Um tiro de clavina. Como é crível
Que ali não fosse visto, ou que evitasse
O golpe hostil? Entre os Cristãos acaso
Remanescem traidores encobertos?
Qual torpor lhes vincula as mãos agora?
Qual gelo os corações lhes paralisa?
Tal brandura ele estranha; mas é certo
Que de nenhum dos lanços lá do muro
Escorva reluziu, sibilou bala,
Se bem que tão de baixo agora avulte
Dos bastiões minaces que flanqueão
Essa porta, resguardo da cidade
Pela banda do mar; se bem que possa
Quase as palavras distinguir ferrenhas,
E os passos numerar da sentinela,
Que soam, indo e vindo compassados,
Pela extensão da sotoposta lajem.
Nem os cães, de ocupados, lhe latiram!
E, magros e famélicos rosnando,
Os vê sob a muralha dar-se ao bodo
De sangrentos cadáveres e ossadas:
Ei-los que estão da pele despojando
Nesta hora um crânio Tártaro
, bem como
Nós despojamos o recente figo;
E alvejantes lhes rangem os colmilhos
Sobre a caveira que inda mais alveja,
E que dos queixos lhes resvala, quando
Embotados os deixa o roer crebro;
Mas vão moendo devagar os ossos,
Se um acaso permite que não achem
Sobre aquele torrão melhor sustento.
Seu antigo jejum quebrou-se à larga
Nos guerreiros que ali perdendo a vida,
Lhes são manjar em refeição noturna.
Pelos turbantes sobre a área esparsos,
Alp a flor do seu bando reconhece;
Bem nota o verde, o carmesim das telas
Com que cingiam por costume a fronte;
E cada pericrânio oferece a esguia
Madeixa longa
, e no demais é raso.
Os pericrânios jazem na goela
Feroz dos cães, ao passo que a madeixa
Se lhes enreda em volta das queixadas.
Lá se vê mais além, do golfo à orla,
Sôfrego abutre contender com um lobo,
Que, das montanhas a prear baixando,
Era ali solitário, e não ousava,
Dos cães espavorido, tomar parte
No amplo repasto das humanas carnes;
Mas engole a ração que lhe coubera
Dum corcel debicado já das aves,
Que da enseada no areal jazia.

XVII
De tão feio espetáculo insofrível
Arreda os olhos Alp: ele em conflitos
O que era estremecer não soube nunca;
Porém não é tão árduo, tão penoso
Olhar ao que estendido se revolve
Do próprio sangue em fumegante lago,
E arqueja entregue à insaturável sede
E ao vasquejar da morte, quanto é vê-lo
Depois que pereceu, e é só cadáver.
No momento fatal, um certo orgulho
Se desenvolve n'alma do soldado,
Lhe adoça o fim cruento: se fenece,
Espera reviver na voz da Fama,
Ficar benquista à Honra, que tem sempre
Os olhos fitos no que morre afoito!
Mas quando enfim se esvaneceu tudo isto,
Bem mísero se sente quem percorre
Campo alastrado de insepultos mortos.
Ao ver como da terra surde o verme,
Deixa o bruto as florestas, a ave desce,
E ali afluem, demandando no homem
Todos quinhoar presa, e achando todos
O lucro seu na decadência dele.

XVIII
Ali se via derrocado templo:
São cinza e longo olvido as mãos que o ergueram.
Inda algumas colunas, e dispersos
De mármore e granito mil fragmentos
O solo oprimem, recobertos de erva.
Inexorável Tempo! e nunca inteiras
Deixarás ao porvir obras passadas!
Inexorável Tempo! e hás de tu sempre
Querer que do passado fique apenas
Aquilo que o presente afligir deve;
E assim fazer-nos dolorosa a imagem
Do que já foi, do que há de ser um dia!
Bem como nós, verão nossos vindouros,
Em relíquias de antigos monumentos,
Só pedras que exalçou o homem de barro!

XIX
Ao pé duma coluna Alp eis se assenta:
Com a mão comprime a face, e o corpo inclina
Como quem se ressente acabrunhado
De aterradores pensamentos tetros;
A cabeça descai-lhe sobre o peito
Incandescido, palpitante, opresso;
Giram-lhe pela fronte debruçada
Os dedos velocíssimos, bem como
Pelo ebúrneo teclado os dedos giram
De primoroso artista, que em prelúdios
Por ora se entretém, da escolha incerto.
Vergando assim ao pesadume infenso,
Crê que ouviu suspirar noturna brisa.
Acaso em lajens côncavas murmura
Gemido terno de macias auras?
Ergue então a cabeça, e o mar observa; —
Repousa o mar, qual cristalino espelho:
Contempla esguias ervas; — nada as move:
Donde procederia o som mavioso?
Repara nas bandeiras; — quietos pendem
No alto do Citerón, quais os deixara,
Inda os hasteados panos; leve aragem
Nem sequer lhe roçou a tez do rosto:
Qual do imprevisto murmurinho a causa?
Volve-se ao lado esquerdo: — será isto
Ilusão ou verdade? Ante seus olhos
Eis jovem dama refulgente assoma!

XX
Se Alp então visse um inimigo armado
Surgir-lhe face a face, não se erguera
Tão abalado de profundo assombro.
"Deus de meus pais! que vejo? quem és? como
De hostis fileiras te aproximas tanto?"
A mão tremente lhe recusa agora
Estampar sobre a fronte essa Cruz mesma
Que ele tanto insultou; mas neste lance
Se persignara, se a consciência sua
Lhe não fizesse ver quanto era indigno.
Repara, observa a fundo, e reconhece
O rosto belo, as engraçadas formas:
É Francina, essa virgem suspirada
Que ele a si pretendia unir consorte!
Inda nas faces lhe viceja a rosa,
Porém a rubra cor é menos viva.
Que é do atrativo desses lábios meigos?
Não mora neles o sorrir danoso
Que ao rubi dava esmalte. Inda em seus olhos
Reside o azul do sossegado oceano;
Mas se no aspecto bonançoso o imitam,
Também o imitam na frieza imóvel.
Talhe acusam gentil vestes ligeiras;
Nada lhe vela o seio luminoso;
Soltas de ébano as tranças, ver não tolhem,
Por entre a chuva dos anéis ondeantes,
Nívea nudez dos torneados braços.
Levanta ao alto a mão antes que fale;
E de tal modo branca e transparente
Se mostrava essa mão, que poderíeis
Ver por entre ela rutilar a lua.

XXI
"O repouso deixei, a fim somente
De vir ao meu amado, e de fazê-lo
Feliz comigo, e ser feliz com ele.
Por teu respeito entre inimigas turmas
Eis movo os passos, e transpus a salvo
Muralhas, portas, sentinelas, tudo.
Uma jovem donzela, em todo o brio
Da nativa pureza, há quem afirme
Que dos próprios leões é respeitada:
E o superno Poder que ao inocente
Escuda contra o déspota dos bosques,
Se encarregou também de defender-me
Do insulto de infiéis confederados;
E vim: — se vim de balde, oh! vê que nunca,
Nunca mais tornaremos a encontrar-nos!
Sei que, abjurando de teus pais a crença,
És réu de crime hediondo; todavia
Lança por terra esse turbante, e imprime
Sobre a fronte o da Cruz sinal divino,
E eu de ti folgue na perpétua posse.
Eia, o negro labéu expele d'alma;
E pois havemos amanhã de unir-nos,
Não queiras para sempre separar-nos."

"E ao toro nupcial onde acharemos
O apetecido espaço? pode havê-lo
Entre montões de mortos e expirantes?
Os Cristãos, seus altares, quanto é deles,
Ha de o ferro amanhã unido à chama
Tudo, tudo extinguir: nenhum mais deve,
Senão és tu e os teus, ver nova aurora;
Que eu assim o jurei. Mas ser-me-á doce
A mais danosos sítios transportar-te,
Onde se enlacem mãos, se olvidem mágoas,
Onde tu sejas a consorte minha,
Quando abatido de Veneza o orgulho
Eu já tiver; quando este braço, que ela
Quis sumir na abjeção, deixe açoitados
Com viperino látego os infames
Que acendeu contra mim o vício e a inveja."

Ela pousou a mão sobre a mão dele:
Foi leve o toque, mas varou-lhe pronto
As medulas dos ossos, e entranhou-lhe
Pelo imo coração gelo indizível,
Que nem destremecer lhe deixou posses;
E este frio mortal, de que se arguia,
Removê-lo de si em vão tentava.
Oh! nunca, nunca de tão caro objeto
Partira movimento que viesse
Com tamanho terror gelar-lhe o sangue,
Qual nesta noite o subitâneo toque
Daqueles alvos dedos alongados.
Morreu-lhe em palidez a efervescência,
Ficou-lhe o coração, qual seixo, imóvel,
Ao ver aquele rosto, ai! tão mudado
Já de si próprio: belo, mas languente —
Sem vestígio nenhum de incêndios d'alma,
Que em cada feição dele se espelhavam,
Como um dia de sol se espelha n'água.
Anélito nenhum se unia às vozes
Que lhe escapavam dos imotos lábios;
Do quieto coração nenhum palpite
Lhe sublevava o seio; nada havia
Que a rígida atenção interrompesse
Daqueles olhos estacados, fixos.
Tais são os do sonâmbulo, que, em meio
De ansiados sonhos, deixa o leito e vaga;
Tais, na extensão de apainelados razes,
Baças figuras de minaz aspecto,
Se ao trêmulo clarão as contemplamos
De expirante lucerna, desenvolvem
Não sei qual misto de animado e morto,
Com que parecem, aterrando a vista,
Ora avançar do tenebroso fundo,
Ora entranhar-se nele, em moto alterno,
Que a seu sabor lhes comunica o vento.

"Se por amor de mim tu crês que é muito,
Por amor só do céu embora o faze:
Longe arremessa (inda outra vez to digo)
Da fronte criminosa esse turbante,
E me promete de não ser infesto
Aos filhos da insultada pátria tua,
Ou és perdido, e despedir-te deves,
Não já da Terra — esvaeceu-se a Terra —
Mas do céu e de mim, que te fui cara.
Eia, cede a meus rogos: vê que abertas
Inda te esperam da clemência as portas;
E bem que contra ti grave sentença
Fosse já proferida, o rigor dela
Em grande parte expiará teu crime.
Pondera a fundo; e provocar não queiras
A maldição daquele que abjuraste.
Ao céu inda uma vez levanta os olhos,
Vê que a ti mesmo para sempre o fechas.
Essa nuvem que esconde agora a lua,
Lá vai passando
, e passará de pressa:
Se, quando rebrilhar o disco inteiro
Desafrontado do vapor sombrio,
Não revolveu a contrição teu peito,
Ficam de ti vingados Deus e os homens:
Tremendo fim terás, e mais tremenda
Te espera a eternidade dos perversos."

Alp ergue a vista ao céu, e reconhece
O indicado sinal; porém o orgulho
Intumesce-lhe o coração, e o rege
Com despótico império inabalável;
E esta paixão falaz que o predomina,
É torrente caudal que tudo alaga.
Ele implorar perdão! ele render-se
A impertinências de mesquinha virgem!
Ele, ofendido de Veneza ingrata,
Poupar-lhe os filhos, que votou à morte!
Não: — embora essa nuvem traga um raio,
Embora um raio o esmague: — e inda não troa?

Sem que a mínima voz dos lábios solte,
Ele fitava ansioso aquela nuvem:
Atento a vê passar; fugiu de todo:
Em seu pleno fulgor se mostra a lua.
"Qualquer que seja o meu destino (exclama),
Não tenho de mudar: agora é tarde.
No meio da tormenta pode a cana
Dobrar-se e logo erguer-se, os troncos quebram.
Qual Veneza me fez, serei já agora;
Seu implacável inimigo em tudo,
Exceto na afeição que eu te consagro.
Tu pois és salva: oh! vem, meus passos segue."
Voltando-se, ele a busca; ela sumiu-se:
Só o antigo pilar lhe avulta ao lado.
Sorveu-a a terra, ou se esvaiu nos ares?
Nada ele viu — nada escutou só sabe
Que ali nenhum vestígio existe dela.

XXII
A noite dissipou-se, e o sol resplende,
Qual se um dia de festa esclarecesse.
Eis dentre bruscos véus pomposa surge
Arraiada a manhã de áureos fulgores,
E abrasador promete o meio-dia.
Trombetas se ouvem, rufos de tambores,
Hórridos sons de bárbara corneta,
Sussurrar de bandeiras flutuantes,
Relinchar de corcéis, tropear de turmas,
E o retinir das armas, e o alarido:
"Ei-los vem! ei-los vem!" Da terra prestes
Descravam-se os pendões equi-caudatos
,
Desnudam-se as espadas lampejantes,
E tudo a entrar em Forma apercebido,
Só depende da voz, e a voz já soa:
Tártaros, e Spais, e Turcomanos,
As tendas abatei, ide à vanguarda,
Dai de espora aos corcéis, e na planície
Seja cortado o passo aos fugitivos,
Quando estes prorromperem da cidade:
Não escape nem velho nem mancebo,
Que oferecer de Cristão qualquer indício.
Entretanto que em massa prepotente
Vão sustentar os camaradas vossos
A ensanguentada brecha, e entrar por ela.=
Já o fogoso corcel remorde o freio,
E arqueia o colo, e, sacudindo a crina,
As rédeas tinge de alvejante espuma:
Estão em riste as lanças, e flamejam
Acesos os murrões, e em continente
O assestado canhão vai despejar-se
Com estampido horríssono, e as muralhas,
Rotas em frente, esboroar de todo.
Na falange os Janízaros entraram:
Alp os comanda; e a cimitarra nua
No erguido braço nu sustenta e brande.
Kans e Bachás fixaram-se em seus postos;
E ei-lo à frente da hoste se apresenta
Em pessoa o Vizir. — Tanto que a senha
Troar na disparada colubrina,
Tudo em Corinto será ruína e morte:
Não ficará um sacerdote às aras,
Nem um chefe no centro das famílias,
Nem folgo vivo que as mansões povoe,
Nem sequer uma pedra sobre os muros.
"Deus e o Profeta seu! Alah-Hu!" — Sobe
Até às estrelas o feroz ululo!
"Lá tendes, para entrar, aberta a brecha;
E escadas não vos faltam: também todos
Nessas robustas mãos sustentais armas;
E como há de falhar-vos o triunfo?
Dentre vós o primeiro que se afoite
À arrancar a vermelha Cruz hasteada,
Pode franco pedir quanto apetece
Com mais veemente ardor: suplique e obtenha."
Tal se exprimiu Coumourgi, o Vizir bravo.
Foi resposta o brandir de espadas, lanças,
Com mil aclamações de raiva alegre. —
Silêncio! — à senha estai atentos! — fogo!

XXIII
Como quando esfaimados ruem lobos
De chofre sobre o búfalo soberbo,
Sem tremerem da torva catadura,
Do mugir fero, do escavar das plantas,
Nem dos minaces cornos assestados;
E ele ou lança por terra ou ergue aos ares
Os primeiros que acessos o acometem,
Mas que no cego arrojo a morte encontrão:
Assim o Muçulmano invade os muros,
E no ímpeto primeiro é repelido.
Ali rotos do bélico granizo,
Dispersos como vidro espedaçado,
Quantos de bronze acobertados peitos
Ora juncando a terra, donde nunca
Se hão de levantar mais! Estão fileiras
Inda alinhadas, quais na queda o estavam;
Jaz dos mais destemidos cópia grande:
Tal, quando o dia é findo, e o labor cessa,
Vemos jazer sobre aplainados campos
A erva que o segador deixou ceifada.

XXIV
Bem como, em viva preamar, se observa
De algozes escarcéus batida rocha,
E já minada dos diuturnos estos,
Soltar enormes lascas alvejantes,
Que com fragor horríssono se abatem,
Assemelhando ao torreão de gelo
Que Alpinos vales despenhado aterra:
Assim os de Corinto habitadores,
Afinal quebrantados, exauridos,
Foram na ruína atroz precipitados
Pelo acintoso impulso recrescente
Das cerradas coortes Muçulmanas.
Eles insistem firmes, e, na queda,
O furor do Infiel os prostra em massa.
Pelejam braço a braço, e planta a planta;
E nada, exceto a morte, ali é mudo:
Ímpetos, golpes, empuxões, clamores
Ou a pedir quartel, ou de vitória.
Reunidos ao troar increbescente
Dos bélicos trovões, e ao temeroso
Estrondo da batalha encarniçada.
Lá vão disseminando susto imenso
Por longínquas cidades, de igual modo
Que se estivessem sob o golpe infesto,
E já dentro o inimigo as depredasse;
Não doutra sorte que se próprio fora
A excitar sensação ou triste ou leda
Aquele som que aniquilar só sabe,
E que, varando dos soturnos montes
As entranhas duríssimas, se expande
Em pavorosos ecos desusados:
Lá os ouviu Megara e Salámina,
E, se não exagera a voz do vulgo,
Até na enseada do Pireu troaram.

XXV
Em rijo e solto embate retinindo,
Sabres, espadas, desde a ponta aos copos,
Gotejam sangue; mas entrados foram
Os muros já, e eis principia o saque,
E após ele a feroz carnificina.
Rompe dos edifícios depredados
Medonha confusão de agudos gritos:
Escuta quão velozes na fugida
Vão pés escorregando em quente sangue,
Que as ruas deixou lúbricas: no em tanto
Aqui e além, onde o terreno ofereça
Contra o fero invasor qualquer vantagem,
Onde algum lanço de parede ou muro
Lhes proteger as costas, então eles,
Aos dez, aos doze, em mal parados grupos,
Logo ali fazem alto, — ali renovam
Desesperada briga audazes, firmes,
Ou com as armas na mão perecem todos.
Eis a pé firme um ancião lá surge; —
De cãs lhe alveja povoada a fronte;
Porém vigor pujante lhe robora
O veterano pulso: não se altera
Seu bizarro denodo, entre o bulício
Do revolto brigar; tem por trincheira
Semicírculo espesso de inimigos,
Que hoje uns sobre outros apinhava mortos;
Ferve em dura peleja não ferido,
E sabe retirar-se não cercado.
Sob a loriga refulgente esconde
Dos certames de outrora as cicatrizes
Inumeráveis; que de toda a espécie,
E o corpo inteiro lhe crivaram golpes.
Em despeito daquela ansianidade,
É de tão férreos membros, que difícil
Fora de igual jaez achar-se um modo:
E os inimigos, que empatados tinha,
Pululavam-lhe ali mais numerosos
Que as prateadas cãs da fronte altiva;
Mas apoucando-os vai a forte destra.
Muitas mães Otomanas prantearam
Filhos que, quando pela vez primeira
Ele a espada tingiu em sangue Turco,
Inda não eram nados, e hoje expiram
Antes de perfazerem lustros quatro.
Bem poderá ele ser o avô de quantos
Neste dia imolou às iras suas:
Vingando um filho que perdera há muito,
Vai dos contrários seus matando os filhos:
E desde quando o desvelado jovem,
Única prole varonil que tinha,
Morreu a combater no undoso estreito
Que de Ásia o chão divide do de Europa
,
Logo o pai prometeu sacrificar-lhe
Sanguinosa hecatombe de inimigos,
Ceifada ao golpear do férreo braço.
Se o morticínio pacifica as sombras,
Nem mesmo de Patroclo aos manes coube
Júbilo igual ao que sentir deviam
Os do jovem Minotti. Sepultado
Ficou seu corpo nas opostas praias,
E ora privados de sepulcro nestas
Cá ficam mil para milhares de anos.
Qual deles escapou que referisse
Como os outros morreram, e onde jazem?
Lousa nenhuma os cobre, não lhes guarda
Nenhum túmulo as cinzas: entretanto
Vivem e viverão no imortal plectro.

XXVI
Qual clamoroso Alah! — um terço avança
De tropa Muçulmana a mais afoita,
E de pulso melhor: vai-lhe na frente,
Nervoso, nu até o ombro, e em moto ondeante
Brandindo o ferro, e sobranceiro a todos,
Do comandante o braço, que expedito
Sabe ferir, e perdoar não sabe. —
Outros embora em mais pomposo traje,
De espólio ao inimigo a sede atém;
Sejam embora muitos os que empunham
De áureo lavor custosas cimitarras,
Que de nenhuma escorre tanto sangue;
Ostentem muitos adornada a fronte
De turbantes mais altos, mais airosos; —
Alp é só conhecido por aquele
Braço nu, que branqueja levantado.
Ei-lo campeia onde mais arde a briga!
Não se arvorou pendão sobre estas praias
Que mais destro as fileiras anteceda;
Jamais, durante a Muçulmana guerra,
Se despregou bandeira que atraísse
De tão longe os Delis: sempre o distinguem
A lampejar como cadente estrela!
Onde quer que este braço prepotente
Uma vez se mostrou, logo os mais bravos
Surdem todos ali, ou tarde chegam;
Ali quartel o ignavo em vãos clamores
Ao vingativo Tártaro súplica;
Ali o herói, no chão deitado e mudo,
Nem quer que quando morre um ai lhe escape,
E inda com tíbio golpe derradeiro
Invade o antagonista, que não menos
A par de si prostrou; e bem que expire
Tão alquebrado das feridas mútuas,
Raivando aferra o ensanguentado solo.

XXVII
O ancião, persistindo inabalável,
Opor consegue momentâneo estorvo
De Alp à carreira atroz. — "Cede, Minotti:
Salva todos os teus, atende à filha."
 — "Nunca o verás, vil renegado, nunca!
Nem tinha eu de anuir inda que fosse
Vida eterna essa vida que me ofereces."
 — "E Francina! — e a futura minha noiva!
Queres, assim teimoso resistindo,
Ser também causador da morte dela?"
 — "Ela está mui a salvo." — "Onde? em que sítios?"
 — "No céu, donde banida para sempre
Foi tua alma aleivosa, — e onde Francina
Vive longe de ti, vive sem mancha."
Alp, a tais vozes, titubante, ansiado,
Fica não doutra sorte que se o peito
Lhe traspassasse truculento golpe;
E de Minotti despontou nos lábios
Irônico sorriso de vingança.

"Oh Deus! quando expirou?" — "Inda esta noite;
Mas do espírito seu não choro a ausência,
Antes folgo de ver que cá não deixo
Desta minha linhagem nobre e pura
Ninguém que haja de ser mísero escravo
De Mafamede ou teu. Anda, acomete!"
Baldado desafio! Alp é já morto.
Ao tempo que Minotti lhe vertia
Naquelas expressões criminadoras
Todo o fel da vingança, e que mais cruas
Que a própria ponta de buído alfanje
Elas varavam Alp, eis voa o golpe
Dum templo não distante, defendido
Com incríveis primores de firmeza
Por esse dos Cristãos último resto,
Que tão minguado e de esperança exausto,
Inda de lá fazia esforços grandes
Para o combate restaurar falido:
E antes de descobrir donde assestada
Lhe foi a letal bala sibilante,
Alp o cérebro tem varado dela,
E volteia, e vacila, e cai por terra:
Lampejou-lhe ante os olhos clarão débil,
Quando vergou para não mais erguer-se,
Ficando apenas palpitante tronco,
Que ei-lo envolvido jaz na noite eterna.
Nele indício não há que vida inculque,
Salvo o tremor dos membros onde o tiro
Deixou menor estrago. A ponto acodem,
E de costas o estendem: rosto e peito
Lhe estão manchados de poeira e sangue,
E jorra-lhe da boca o vital fluido,
Que as cavernosas veias desampara;
Mas não lateja o pulso, não se escuta
Nos lábios murmurar-lhe o arranco extremo;
Nem sequer um suspiro, uma palavra,
Um penoso arquejar, lhe assinalam
O transito fatal da vida à morte.
Antes que o pensamento levantasse
Em súplica contrita, réu nefando,
Se apresenta aos umbrais da eternidade,
Sem que ao perdão celeste aspirar possa,
E na vida e na morte — Renegado.

XXVIII
Então dum lado e doutro aos ares sobe
Espantoso alarido retumbante:
Aqui, de regozijo; além, de raiva.
Eis de novo travadas em conflito
Espadas de Cristãos e Turcas lanças
Embatem com furor, mutuam golpes,
Estendendo no pó guerreiros muitos.
Ousa, de rua em rua e passo a passo,
Minotti disputar aos inimigos
Qualquer porção restante do terreno
Que ao seu bravo comando fora entregue:
Ao lado, a reforçar-lhe audácia e pulso,
As sobras tem da guarnição briosa.
Resistência tenaz oferece o templo,
Donde predestinada veio a bala
Que em grande parte despicou Corinto,
Morto Alp, o mais feroz de seus contrários
Para ali recuando sem desvio,
Deixando diante ensanguentado rasto,
E os inimigos encarando sempre,
E nunca sem matar vibrando um golpe,
O chefe e o seu cortejo, em retirada,
Conseguem reunir-se aos que ocupavam
A sacra estância: no recinto dela
Inda lhes cabe respirar um pouco,
Das maciças paredes escudados.

XXIX
Remanso bem mesquinho! Os Muçulmanos,
De pujante reforço abastecidos,
Borbotando furores e ufania,
Tão cerrados, tão férvidos avançam,
Que o número lhes tolhe a retirada:
Destarte se atravancam no caminho
Que vai ao templo, onde os Cristãos não sabem
O que é render-se; e os batalhões infestos
Tanto apinham-se à frente, que, inda quando
Lavrasse o susto ali, nenhum pudera
Por entre as fortes massas escoar-se:
Ou vencer ou morrer lhes era força.
Morrem; mas sobre os corpos palpitantes
Lhes surgem de repente os vingadores.
Que, frescos e raivosos pululando,
As filas, sempre rotas, enchem sempre;
E os Cristãos afadigam, extenuam,
Violentas amiudando as investidas:
E ei-los agora os Infiéis assomam
Junto ao sacro portal. Por longo espaço
A férrea contextura inda resiste,
Inda de cada fresta voam tiros,
Todos bem assestados, mortais todos;
E de cada janela se desatam
Em chuveiro as sulfúreas alcanzias.
Mas já fraqueiam as nutantes portas —
Vergam rangendo os quícios, cede o ferro, —
Lá pendem — lá se abatem já caíram:
Não mais resistirá, morreu Corinto!

XXX
Soturno, sem que o vejam, só consigo,
Ao altar arrimado está Minotti.
Dum painel sobranceiro, a Virgem santa
O afável rosto fúlgido lhe volve,
Transunto de celeste colorido,
Onde os olhos são luz, amor o aspecto;
E na ara colocado a fim que possa
Dos humanos fixar o pensamento
Sobre as coisas do céu, quando eles oram
Devotos, genuflexos ante a imagem
Desta Mãe admirável, que em seu grêmio
Sustem e afaga o Redentor-menino,
E com sorrisos acolhendo meigos
Uma por uma as fervorosas preces,
Como que ao céu de transferi-las cuida.
Sorrindo sempre, inda sorri agora,
Em despeito da atroz carnificina,
Do sangue em jorros que deturpa as naves.
Eleva então Minotti os olhos lassos,
E, exalando um suspiro, se persigna;
Logo ali duma tocha que era acesa
Ei-lo se apossa, e permanece firme,
Enquanto os Muçulmanos irruindo,
Desenvolvendo à larga ferro e fogo,
Hórridos enchem a mansão sagrada.

XXXI
Sob a lajem que o vasto pavimento
Recompunha em mosaico variada,
Subterrâneas abóbadas se arqueiam.
Jazigo aos mortos das passadas eras:
Em memorandas lápidas incisos
Liam-se os nomes seus, que ler não deixa
Ora o sangue que os cobre: aqui não menos
Viam-se, honrando as cinzas, esculpidos
Timbres, emblemas de lavor prestante,
Mármores luzidios, de vistosas
Multicolores veias serpeados, —
Que, sórdidos já hoje, se baralham
Com fragmentos de espadas, de montantes.
Com morriões e arneses abolados,
Confuso misto que por cima avulta
De inumeráveis ataúdes, onde
Enfileirados os defuntos dormem:
Podes vê-los em lúgubre aparato,
Ao macilento albor que inda os visita
Por fisgas breves de sombrias grades.
Mas nem por isso desistiu a Guerra
De entrar por estas lôbregas cavernas,
Com torva profusão disseminando
Das sepulcrais abóbadas ao longo
Seus tesouros sulfúreos, que se elevam
Empilhados em massas volumosas
Junto dos ressequidos esqueletos.
Aqui, durante o cerco, haviam feito
Seu paiol os Cristãos: longo rastilho,
Desde agora entornado, se encaminha
Do templo a estes sítios; e eis o extremo
Recurso inabalável de Minotti
Contra o poder das irruentes turmas.

XXXII
O inimigo enche tudo; e poucos tentam
Inda arrostá-lo, ou mui de balde o arrostam.
Ele, à falta de vivos, vai nos mortos
Saciar da vingança a voraz sede,
Que exacerbou-se agora; ele os invade
Com sacrílegos golpes, e decepa
Cabeças já finadas, e dos nichos
As estátuas despenha baqueantes,
E as aras despe de oblações opimas,
E com as calosas mãos profanadoras
O argento empolga dos sagrados vasos.
Chegada apenas a caterva infrene
Ante o altar principal, detém-se e pasma:
Oh qual o adorna resplendor pomposo!
Sobre a pedra lhe surge bem patente
O consagrado Cálix, ouro estreme,
Presa que enleva os depredantes olhos,
A fulgurar maciça e ponderosa:
Hoje conteve o sacrossanto vinho,
Que Cristo em sangue seu mudar dignou-se,
E com que, ao romper d'alva, os seus cultores,
Antes de pelejar, fortaleceram
As almas ao dever e ao céu votadas:
Inda no fundo remanescem gotas;
E também, circundando a sacra mesa,
Em simetria esplêndida dispostas,
Ardem lâmpadas doze de ouro fino:
Este o mais opulento e último espólio.

XXXIII
Apinham-se ali todos; e o que estava
Da presa mais vizinho, faz-se avante,
E quase quase que a empolgava, quando
O longevo Minotti aplica a tocha
Ao rastilho fatal; — ei-lo se inflama!
Campanários, abóbadas, altares,
Espólio, vivos, mortos, moribundos,
Cristãos vencidos, Turcos vencedores,
E o templo esboroado, e quanto há nele,
Se ergue aos ares com hórrido ribombo,
E finda envolto na explosão terrível!
A cidade abalada — o chão coberto
De edifícios, de muros demolidos —
As ondas que recuam, de assustadas —
Os montes, senão rotos, vacilantes,
Como se os sacudisse um terremoto —
De milhares de objetos misto informe
Que os céus toldando vai de fogo e fumo.
Ao rebentar da horrítona lufada —
Não cessão de apregoar que nestas praias,
Ha longo tempo, aflitas, terminou-se
Dos combates o mais desesperado.
Como acesa em girândolas festivas,
Lá roça os astros a confusa mole.
Varões não poucos de estatura ingente,
De aparência gentil, ora abrasados,
Curtos como pigmeus, descem dos ares,
Em torrado carvão juncando a terra.
Grossa chuva de cinzas se despenha:
Muitas recebe o golfo, e, ao recebê-las,
Forma em torno escarcéus, que se desfazem
Num progresso de círculos undosos;
Muitas recebe a praia, e vão, por longe
Disseminadas, recobrir todo o istmo:
São cinzas de Cristãos ou de otomanos?
Suas mães se aproximem, venham vê-las,
E digam se as conhecem! — Porventura
Houve alguma de vós, ó desgraçadas,
Que quando aos peitos lhe pendia o filho,
Ou no embalado berço o adormentava,
E, sorrindo de amor, se comprazia
Naquele brando repousar danoso,
Ai! houve alguma então que nem por sombras
Esperasse este dia, ou ver dispersos
Da cara prole os lacerados membros?
Nem sequer, nem sequer as extremosas
Matronas que no ventre os alojaram
Estremar sabem os nascidos delas;
Um só momento lhes tirou de todo
Forma e semblante de homens; resta apenas
Algum disperso pericrânio ou osso.
Barrotes, vigas flamejantes descem,
E em redor se derramam; vem caindo
Engastadas em barro infindas lajens,
Que o solo oprimem fumegantes, negras.
Todo o vivente a quem troou no ouvido
O abalo estragador, pregão de morte,
Ou jazeu ou sumiu-se: espavoridas
O voo afastam carniceiras aves;
Bravios cães vão-se arredando em uivos,
Nem se lhes dá dos insepultos mortos;
O camelo as prisões deixou quebradas;
O touro, ao longe, se desfez do jugo;
O corcel, que o fragor ouviu de perto,
Rompendo a silha, espedaçando as rédeas,
A galope alongou-se pelo plaino;
As íncolas dos charcos lutulentos,
Alçando a boca sobremodo aberta,
Clamor soltaram importuno em dobro;
Uivaram pelas furnas das montanhas
Os lobos, quando ali a trovoada
Em ecos retroou; lá mui distantes,
As alcateias dos jackais bramiram
Com misto som, que, lamentoso e agudo,
Ora imitava criancinha em choros,
Ora lebréu ganindo fustigado:
Esbaforida acelerando os voos,
A águia desamparou a rocha alpestre,
Onde aquecia o ninho, e remontou-se
Mais próxima do sol, achando crassas
Em demasia as sotopostas nuvens,
Que vinham, de atro fumo conglobadas,
Roçar-lhe o bico amedrontado, hiante,
Mais e mais excitando-a a sublimar-se,
E o grito a reforçar. — Eis de qual modo
Conquistada e perdida foi Corinto.



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...