Sol, rei astral, deus dos sidérios azuis, que fazes cantar de luz os prados verdes, cantar as águas! Sol imortal, pagão, que simbolizas a Vida, a Fecundidade! Luminoso sangue original que alimentas o pulmão da Terra, o seio virgem da Natureza! Lá do alto zimbório catedralesco de onde refulges e triunfas, ouve esta Oração que te consagro neste branco Missal da excelsa Religião da Arte, esmaltado no marfim ebúrneo das iluminuras do Pensamento.
Permite-me que um instante repouse na calma das Ideias, concentre cultualmente o Espírito, como no recolhido silêncio das igrejas góticas, e deixe lá fora, no rumor do mundo, o tropel infernal dos homens ferozmente rugindo e bramando sob a cerrada metralha acesa das formidandas paixões sangrentas.
Concede, Sol, que os manipanços não possam grotescamente, chatos e rombos, com grimaces e gestos ignóbeis, imperar sobre mim; e que nem mesmo os Papas, que têm à cabeça as veneráveis orelhas e os chavelhos da Infalibilidade, para aqui não venham com solene aspecto abençoador babar sobre estas páginas os clássicos latins pulverulentos, as teorias abstrusas, as regras fósseis, os princípios batráquios, as leis de Crítica-megatério.
E faz igualmente, Sultão dos espaços, com que os argumentos duros, broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro como incisivas pedradas fortes.
Livra-me tu, Luz eterna, desses argumentos coléricos, atrabiliários, como que feitos à maneira das armas bárbaras, terríveis, para matar javalis e leões nas selvas africanas.
Dá que eu não ouça jamais, nunca mais! A miraculosa caixa de música dos discursos formidáveis! E que eu ria, ria – ria simbolicamente, infinitamente, até o riso alastrar, derramar-se, dispersar-se enfim pelo Universo e subir, aos fluidos do ar, para lá no foco enorme onde vives, astro, onde ardes, Sol, dando então assim mais brilho à tua chama, mais intensidade ao teu clarão.
Pelo cintilar de teus raios pelas ondas fulvas, flavas, ó Espírito da Irradiação! Pelos empurpuramentos das auroras, pela clorose virgem das estepes da Lua, pela clara serenidade das estrelas, brancas e castas noviças geradas do teu fulgor, faculta-se a Graça real, o magnificente poder de rir – rir e amar, perpetuamente rir… perpetuamente amar…
Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos passos esplendorosos e lá para sempre viver, se eternize através das forças firmes, num álacre, cantante, de clarim proclamador e guerreiro.
DOLÊNCIAS
Tu, na emoção desse encanto doloroso e acerbo da Arte, te sentirás, um dia, velho, fatigado, como um peregrino que percorreu ansiosamente todas as vias-sacras torturantes e perigosas.
Essa maravilhosa seiva de pensamentos, toda essa púrpura espiritual, as vivas forças impetuosas do teu sangue, agindo poderosamente no cérebro, irão aos poucos, momento a momento, desaparecendo, num brilho esmaecido, vago, o brilho branco e virgem das estrelas glaciais.
A tu’alma será condenada à solidão e silêncio, como certas formosuras claustrais de monjas que brumalmente aparecem por entre as celas, deixando no espírito de quem as vê, quase que o mistério de um religioso esplendor…
E, já assim emudecido e gelado para as nobres sensações do amor, ficarás então como se estivesses morto – sem cabelos, sem dentes, sem nariz, sem olhos – sem nenhumas dessas expressões físicas que tornam os seres humanos harmoniosamente perfeitos.
Em vão te recordarás da doçura de mãos aveludadas e brancas, da amorosa diafaneidade de uns olhos claros…
As tuas Iedos, as tuas Lésbias e as tuas Aldas, fluidamente te passarão na memória, alvas e frias…
Pó infinitamente tratar de ideias como de astros prodigiosos, sonhaste com os opulentos, dourados prestígios da Glória; pensaste na Elevação, como na solenidade augusta das montanhas.
Mas, velho já, lembrarás um sol apagado, cuja forma material poderá persistir talvez ainda e cuja chama fecundadora e ardente se extinguirá para sempre…
Não crer em nada, não sentir nada, não pensar nada, será tua filosofia da senilidade. E, neste estado do ser, mais cruel que Budismo, deixarás, como disse Heine, que a morte vá enfim tapar-te a boca com um punhado de terra…
No entanto, pela tua retina cansada, desfilará tudo o que tu outrora amaste com intensidade: os ocasos, de verberações de metal sobre o mar e sobre o rio. Os finos frios radiantes, de azul resplandecente. A Lua, como estranha rosa branca, perfumando o ar, derramando lactescências luminosas nos campos alfombrosos. Os navios, as escunas e os hiates, todas as embarcações admiráveis, que fazem sonhar, balouçando nas ondas, em relevos nítidos, em gravuras esmaltadas ao fundo dos horizontes.
Tudo o que pensaste, o que trabalhaste pela Forma, com nervos e com sangue; tudo o que te deixou despedaçado, na amargura da luta com o estilo e com a frase, cantará grandioso, solene, como os Salmos de Salomão.
Com essa natureza mística, quase religiosa, que possuis, o Mundo te parecerá uma catedral vastíssima, colossal, de bilhões e bilhões de torres de cristal, de safira, de rubi, de ametista, de ônix, de topázio e d’esmeralda.
E, à hora longínqua de profundo luar glacial e imóvel, de cada uma dessas torres sugira um espectro branco dos teus sonhos, como uma ronda fantástica, e os sinos plangentes vibrarão ao mesmo tempo, com tristezas noturnas e lancinantes, por todo o sepulcramento de teus Ideais.
E tu, velho, embora, na torre verde d’esmeralda, ficarás egrégio, vencedor, imortal, eterno, só e sereno, ao alto, sob as estrelas eternas.
OCASO NO MAR
Num fulgor d’ouro velho o sol tranquilamente desce para o ocaso, no limite extremo do mar, d’águas calmas, serenas, dum espesso verde pesado, glauco, num tom de bronze.
No céu, de um desmaiado azul, ainda claro, há uma doce suavidade astral e religiosa.
Às derradeiras cintilações douradas do nobre astro do dia, os navios, com o maravilhoso aspecto das mastreações, na quietação das ondas, parecem estar em êxtase na tarde.
Num esmalte de gravura, os mastros, com as vergas altas lembrando, na distância, esguios caracteres de música, pautam o fundo do horizonte límpido.
Os navios, assim armados, com a mastreação, as vergas dispostas por essa forma, estão como a fazer-se de vela, prontos a arrancar do porto.
Um ritmo indefinível, como a errante etereal expressão das forças originais e virgens, inefavelmente desce, na tarde que finda, por entre a nitidez já indecisa dos mastros…
Em pouco as sombras densas envolvem gradativamente o horizonte em torno, a vastidão das vagas.
Começa, então, no alto e profundo firmamento silencioso, o brilho frio e fino, aristocrático das estrelas.
Surgindo através de tufos escuros de folhagem, além, nos cimos montanhosos, uma lua amarela, de face chara de chim, verte um óleo luminoso e dormente em toda a amplidão da paisagem.
SOB AS NAVES
Àquela hora, meio tarde no dia, não sei que compunção evangélica me assaltou, me invadiu a alma, que eu penetrei no templo iluminado.
Altas naves sombrias pela névoa crepuscular da tarde, já em tons violáceos, abriram-se aos meus olhos, numa solene paz mística.
No alto do altar-mor vinha uma austera eloquência da Religião, da Fé Católica, de Rito Romano.
Velas amareladas e frias, de chama nobre e ardente, elevavam-se em tucheiros cinzelados, numa luz oscilante, trêmula às vezes por alguma momentânea aragem, com almas na indecisão de viver.
Na capela do Santíssimo, rutilante de caros brocados e douraduras custosas, de fulgentes pratarias, de tons azulados e brancos de jarras esbeltas, uma lâmpada fulgurava, toda em esmalte de prata, por entre meia-tinta aveludada da hora, através do silêncio eucarístico, monástico da capela.
Uma serenidade de força divinal, de majestade tranquila, enchia o templo de um grande ar panteísta.
Nos altares laterais, os santos, histerismos mumificados, no imortal resplendor das coisas abstratas, dos impulsos misteriosos que alucinam e por vezes fazem vacilar a matéria, tinham dolorosas e fortes expressões de luxúria.
Eu sentia, sob aquelas rígidas carnes mortificadas, frêmito vivo do sangue envenenado e demoníaco do pecado.
E, de repente, não sei por que profana, tentadora sugestão, vi nitidamente Nossa Senhora descer aos poucos do altar, branca e muda, arrastando o manto estrelado, e, vindo anelante para mim, de braços abertos, dar-me, com os olhos claros de azul, profundos e celtas, infinitas, inefáveis promessas…
Ah! naturalmente eu sonhara acordado, porque Tu, durante este meu sonambulismo de sátiro lascivo, subitamente entraste, trêfega, com vivacidade de pássaro, no templo iluminado; e eu então logo senti que os lindos olhos claros de azul que virginalmente se encaminharam para os meus, na ardência de um desejo, eram, por certo, os teus olhos, sempre meigos, sempre amorosos, ó luz, ó sol, ó esplendor dos meus olhos!
PAISAGEM
Na colina da vila trepada no alto agrupam-se as casarias. Há sol. E na frente das casas caiadas de branco a luz vibra nervosamente, fazendo tremer a vista sob a crua irradiação da soalheira, como sob os flamantes bicos vertiginosos do gás da ribalta; enquanto que nas casas pintadas de amarelo e de vermelho quebra-se a forte intensidade da luz.
Nestas ubérrimas regiões agricultáveis, de loiras messes de produto, amanha-se a terra para a plantação da cana, da mandioca e do milho — do milho que nasce e cresce as com suas folhas compridas, flexíveis e largas como lustrosas, acetinadas fitas verdes.
E vê-se agora, na grande extensão do campo, entre a verdura fremente de sol, a gente da lavoura, aplicada ao arado, ao alvião e à enxada, — homens, mulheres e crianças, com os trajes da labuta, trabalhando e cantando queixas passadas que ecoam no ar tranquilo, emprestando a essas paragens o pinturesco tom da vida de um desenho quente e colorido de leque chinês.
Mais abaixo da roça, além de uma estreita ponte de pau a pique, que se atravessa a um de fundo, está o mar, fulgurante, profundamente calmo e liso, espelhando o céu, e cortado, às vezes docemente por canoas a vela e a remo de voga que seguem para o mar grosso, ou por canoas a remo de pá que vão e voltam da pesca, cheias de peixe fresco que salta dentro, prateado e luzente, ainda vivo, com olhos vidrados de madrepérola, as guelras rubras e as barbatanas membranosas palpitando, no último anseio de se moverem na água.
Ao lado direito da lavoura estão os engenhos de açúcar, de farinha e de arroz, com seu ar rústico, emadeirados de novo, no aspecto simples dessa vida rude de trabalho nos campos.
Ao lado esquerdo há uma vasta eira de sólida argamassa de cimento romano, mandada fazer pelo proprietário desses terrenos campestres e férteis, na qual se põe a secar, se debulham e limpam os cereais, pelo tempo das eiras, no outono, e onde os pequenos lavradores daqueles arredores brincam o tempo Será, de cabeça nua ao fresco dos luares serenos que espalham grandes silêncios soturnos e misteriosos nas brancas estradas dos sítios.
Quem anda por ali, nas estações primaveris goza do panorama ridente da vila, refrescado de auras leves e puras, que vêm do mar; da resina que exalam as árvores à noite, salubrizando a atmosfera e dando às verdejantes campinas a frescura e a nitidez de uma gouache encantadora.
E, quem for artista, e quiser percorrer ao longo da costa, até a uma gruta de pedras brancas, que ali há, formando um vulto agachado ou ao longo da paisagem toda, nos descampados; ou ao comprido dos atalhos marginados de ervas agrestes e tufos de espinheiros abrindo em flor, ou ao direito do chão claro, arenoso e úmido das praias, há de sentir as mais pitorescas e vivas comoções da Natureza.
De manhã, o gado que desce os vales, lento e dócil, aspirando a temperatura azotada, seguido pelo tropeiro que canta alegre no seu cavalo; os leiteiros, que vêm de longe, que passam para a cidade com o leite dentro de latas bojudas colocadas em paus que eles atravessam no ombro direito; as graciosas raparigas da roça, que levam a apascentar o rebanho das cabras monteses que saltam barrancos e carcavões, alígeras, lépidas, com os seus pequenos chifres pontudos, a Mefistófeles; os carros de boi, que chiam devagar, morosamente, na poesia de seu campestre ritmo simpático, atulhados de lenha e de cana rosa e guiados pelo campônio que vai na frente, munido de varapau, rosto grave e sóbrio, governando os benignos animais com a velha técnica arrastada e tremida na aspereza da voz — abençoada técnica que já vem lá dos seus antepassados e que os seus queridos filhos e netos, depois, mais tarde, quando ele fechar os olhos, terão de a recebe também, intacta sempre a mesma, saturada do íntimo perfume intenso do passado, como uma herança eterna.
À tarde, o gado que volta para abeberar-se, de arejar no campo, ao suave ocaso do dia, quando tintas multicores se esbatem no fundo dos espaços côncavos; os leiteiros que voltam com a féria arranjada, pitando, ou, de cigarro atrás da orelha, assobiando meigas cantigas que aprenderam na infância e que se fundem à melancólica, à dolência da loira luz que morre — quando, do cimo da encosta, após a última badalada saudosa do Ângelus, apagam-se os esboços e os contornos dos horizontes, caindo então sobre a terra a neblina cinzenta do crepúsculo…
ASTRO FRIO
Por entre celas místicas, silenciosas, lá te foste emudecer para sempre, ó harmonioso e célebre pássaro do canto, nos pesados claustros.
Cor de rosa e de ouro na iluminada sala dos teatros, trinava para o alto inefavelmente, e, agora, não sei por que tormentosa paixão que te desolou um dia, ficaste infinitivamente reclusa, sob os fuscos tetos de um convento, como uma rara rosa opulenta numa estufa triste, fugindo ao sol dos prados.
Fria e muda estarás, talvez, a estas horas, ajoelhada na capela de um Cristo glacial de marfim sagrado — branca, mais glacial e de mais branco marfim do que esse Cristo, com as níveas mãos de cera e face também de cera macerada pelos jejuns e pelos cilícios, dentro de sombrias vestes talares.
E, assim muda e assim fria, perpassarás como a sombra de um vivo afeto ou de um profundo sentimento artístico, ao frouxo clarão de âmbar das lâmpadas lavoradas.
O teu alado perfil, as tuas linhas suaves, serão, no religioso crepúsculo da capela, como que a recordação do aroma, da luz, do som que tu para a Arte foste.
Nos olhos, apenas uma centelha, uma leve faísca evidenciará o passado esplendor, o encanto que eles tiveram, quando amaram, cá fora no mundo, com as violências do desejo, com os ímpetos frenéticos, vertiginosos da carne.
E os corações que te adoraram, que te ouviram outrora os incomparáveis gorjeios da garganta, que te sentiram a carnação formosa palpitando sob a vitória dos aplausos, ficarão saudosos e perplexos ao ver-te agora assim para sempre enclausurada, para sempre gelada aos fulgores e sensações do mundo, mergulhada, enfim, na necrópole de um convento, como um astro através de frígidas e espessas camadas de neve…
BÊBADO
Torvo, trêmulo e triste na noite, esse bêbado que eu via constantemente à porta dos cafés e dos teatros, parara em frente do cais deserto, na alta, profunda hora solitária.
Espadaúdo, de grande estatura, ombros fortes como um cossaco, costumava sempre bater a cidade em marchas vertiginosas, na andadura bamba dos ébrios, indo pernoitar depois ali, perto das vagas, amigas eternas de sua nevrose..
Um luar baço, enevoado, de quando em quando brilhava, abria, rasgando as nuvens, num clarão que iluminava amplas fachas do céu de um tom esverdeado, como folhagens tenras e frescas laçadas pela chuva.
O Mar tinha uma estranha solenidade, imóvel nas suas águas, com uma larga refulgência metálica sobre o dorso.
Da paz branca e luminosa da lua caía, na vastidão infinita das ondas, um silêncio impenetrável.
E tudo, em torno, naquela imensidade de céu e mar, era a mudez, a solidão da lua…
Junto ao cais, olhando as vagas repousadas, a taciturna figura do bêbado destacava em silhouette sombria.
E ele gesticulava e falava, movia os braços, proferia palavras ásperas e confusas, como os tartamudos.
Eu via-lhe as mãos, todo o corpo invadido por um convulsivo temos, que não era, decerto, a desoladora e enregelada doença da senilidade.
O seu aspecto, ao mesmo tempo piedoso e feroz, traduzia a expressão terrível que deixa o bronze inflamado da dor calcinando naturezas nervosas e violentas.
Trôpego, espectral, fazia pensar, pela corpulência, na massa formidanda de um desses ursos melancólicos, caminhando aos boléus, como que numa bruma de pesadelo…
Os seus grandes olhos d’árabe, muito perturbados pelo álcool, tinham o brilho amargo de um rio de águas turvas e tristes.
Era talvez um desses seres nebulosos, gerados do sangue aventureiro e venenoso de uma bailarina e de um judeu, sem episódios pitorescos, frescos e picantes de alegria e saúde.
Um desses seres tenebrosos, quase sinistros, a quem faltou um pouco de graça, um pouco de ironia e riso para florir e iluminar a vida.
Alma sem humor — essa força fina e fria, radiante, que deu a Henri Heine tanta majestade.
No entanto, quanto mais eu observava esse fascinado alcoólico, pasmando instintivamente, na confusão neblinosa da embriagues, para as ondas adormecidas na noite, mais meditava e sentia as profundas visões de sonâmbulo que lhe vagavam no cérebro as saudades e nostalgias.
Porque o álcool, pondo uma névoa no entendimento, apaga, desfaz a ação presente das ideias e fá-las recuar ao passado, levantando e fazendo viver, trazendo à flor do espírito, indecisamente, embora, as perspectivas, as impressões e sensações do passado.
Nos límpidos espaços nem um movimento, um frêmito leve de aragem perturbava a harmoniosa tranquilidade da noite clara, por entre os finos rendilhados prateados das estrelas.
Mais amplo, mais vasto e sereno ainda, o silêncio descia, pesava na natureza, sobre os telhados, que pareciam, agrupados, aglomerados nos infindáveis renque das casas, enormes dorsos escuros de montanhas, de elefantes., de dromedários.
Sobrepujando, avassalando tudo, com expressões misteriosas de Idade Média, as elevadas torres das igrejas, como vigias colossais de granito, eretas para o firmamento na luminosa sonoridade do luar, tinham a nitidez dos desenhos.
E a luz do astro noturno e branco, da Verônica do Azul, congelada de mágoas, envolvia a face atormentada do bêbado como num longo sudário de piedades eternas…
SABOR
Os ingleses, fidalgo entendimento de artista, para significar — o melhor — dizem na sua nobre língua de prata: the best…
O que os ingleses chamam the best é finamente o que eu quero exprimir com a palavra — sabor — que, para a requintada espiritualidade, marca alto na Arte — filtrada, purificada pela exigência, pelo excentrismo da Arte.
Após a delícia frugal de um lunch de frutas silvestres e claros vinhos, numa colina engrinaldada de rosas, quando o sol sob nuvens aparece e desaparece, numa confortante meia-sombra de luz, não é apenas o gozo das frutas e dos vinhos que te fica saboreando no paladar.
O asseado aspecto do dia levemente frio, agulhante nas carnes, o ouro novo do sol em cima, a cor bizarra, correta do verde luxuoso, o gelo fresco e cristalino nas taças sonoras espumantes de líquidos vaporosos, e o viçoso encanto de formosas mulheres, indo em bocas de aurora e dentes de neve. — toda essa impressionante, alegre palheta de pintura à água, aflora num esplendor de gozo a que tu bem podes chamar o raro sabor das coisas.
A clarividência na atitude dos perfis que a essa hora pintalgam a paisagem de colorido variado, o aroma que de tudo vem e que de tudo sobe para a serenidade azul, o ritmo simpático do momento, a lassitude branda de nervos, que engolfa as ideias numa larga felicidade amável — como em amplos coxins de arminho — todas essas preciosas maneiras e pitorescos estilos que dão linha, grande tom ao viver, fazem, enfim, que de tudo se experimente um radiante, aguçado sabor.
Não basta, pois, o paladar. Esse, apenas, materializa. Não é, portanto, suficiente, que se sinta o sabor na boca, que o examine, que se o depure, que se o saiba distinguir com acuidade, com atilamento. É necessário, indispensável que, por um natural desenvolvimento estético, se intelectualiza o sabor, se perceba que ele se manifesta na abstração do pensamento.
Por fim, as palavras, como têm colorido e som, têm do mesmo modo, sabor.
O cinzelador mental, que lavora períodos, faceta, diamantiza a frase; a mão orgulhosa e polida que, na escrita, burila astros, fidalgo entendimento de artista, deve ter um fino deleite, um sabor educado, quando, na riqueza da concepção e da Forma, a palavra brota, floresce da origem mais virginal e resplende, canta, sonoriza em cristais a prosa.
Para a profundidade, a singularidade de todo o complexo da Natureza, o artista que sente claro, entende claro, pensa claro, saboreia claro.
LENDA DOS CAMPOS
Por uma dourada tarde azul, em que os rios, após as chuvas torrenciais, sonorizam cristalinamente os bosques, os camponeses de uma vila risonha, numa unção bíblica, conduziam ao tranquilo cemitério florido o louro cadáver branco de uma virgem noiva, morta de amor, tão bela e tão nova, umedecida no féretro, como se tivesse acabado de nascer da rosada luz da manhã.
Infantil ainda, viera outrora da Alemanha através de castelos feudais, de montanhas alpestres, de árvores velhas e enevoadas…
E, então, desde o dia de sua morte, uma lenda espalhou-se, como a dos Niebelugen, em todas aquelas cabeças ingênuas, rudes e humildes.
Ela era a deusa fantástica, a visão encantada dos antigos palácios medievais de vidraçaria gótica, onde as rainhas mortas apareciam brancas ao luar, à flor dos lagos e rios, suspirando toda a tragédia histérica dos convulsivos amores passados, que os ventos de hoje como que ainda melancolicamente repetem…
Era a monja das aldeias dos castelos feudais, graves e solenes, cheios de névoas alemãs, atravessados de fantasmas que fazem mover alvas e longas clâmides de linho no ar neutralizado da meia-noite…
E, por altas horas, em certos dias, ao luar, a imaginação apreensiva dos homens e mulheres do campo, via uma virgem loira, de ignoto aspecto de ondina mágica, surgir do solo em exalações fosforescentes, o coração traspassado de flechas inflamadas, arrastando soturnamente pela areia luminosa uma vasta túnica branca, os cabelos de sol soltos para trás, candidamente pálida, cantando a canção sonâmbula do túmulo e desfolhando grandes grinaldas de flores de laranjeiras, cujas frescas e níveas pétala cheirosas redemoinhavam, agitadas por um vento frio — pelo vento gelado e soluçante da morte.
NOTAMBULISMO
Enquanto, fora, na noite, gralha, grasna e grulha o Carnaval em fúria, vai, Mergulhador, rindo para o espaço a tua aguda risada acerba.
Os luminosos lírios das estrelas desabrocharam já nos faustosos brocados do Firmamento, como que para ritmar em claras árias de luz a tua torva risada triste.
Apavora-te o Sol flamejante, eterno, na altura infinita. Não queres a aflitiva evidência do sol, que tudo põe num relevo brusco, que pinta as chagas de vermelho, faz sangrar as dores, perpetuar em bronze o remorso.
Amas a sombra, que esbate os aspectos claros, esfuminha os longes, turva e quebra a linha dos corpos.
Queres a noite, longas trevas amargas que confundam máscaras hediondas de Gwimplaines com faces loiras de deusas.
Noite igualmente deliciosa e dilacerante que te anule para os sentimentos humanos, que te disperse no vácuo, dissolva imortalmente o espírito num som, num aroma, num brilho.
Noite, enfim, que seja o vasto manto sem astros que tu arrastes pelo mundo a fora, perdido no movimento supremo da Natureza, como um misterioso braço de rio que, através de fundas selvas escuras, vai, por estranhas regiões, sombriamente morrer no mar…
A noite tem, para a tua delicada sensibilidade, o majestoso poder de apagar-te dos olhos esses sinistros animais terríveis que babujam ao sol e desfilam, diante de ti, na truculenta marcha cerrada de pesadas massas formidandas.
Enquanto, pois, lá fora, o Carnaval em fúria gralha, grasna e grulha, num repique macabro de guizos jogralescos, uivando uma língua convulsiva e exótica de duendes e notâmbulas bruxas walpurgianas, prende-te, ó deus do Tédio, Mergulhador dos Mediterrâneos da Arte! Às imensas asas da fria águia negra das multidões – a noite – e ri, ri! Sob as claras árias da luz das estrelas, a tua venenosa risada em fel e em sangue…
NAVIOS
Praia clara, em faixa espelhada ao sol, de fina areia úmida e miúda de cômoro.
Brancuras de luz da manhã prateiam as águas quietas, e, à tarde, coloridos vivos de acaso as matizam de tintas rútilas, flavas, como uma palheta de íris.
Navios balanceados num ritmo leve flutuam nas vítreas ondas virgens, com o inefável aspecto nas longas viagens, dos climas consoladores e meigos, sob a candente chama dos trópicos ou sob a fulguração das neves do Polo.
Alguns deles, na alegre perspectiva marinha, rizam matinalmente as velas e parte ─ mares afora ─ visões aquáticas de panos, mastros e vergas, sob o líquido trilho esmaltado das espumas, em busca, longe, de ignotos destinos.
Á tarde, no poente vermelho, flamante, dum rubro clarão d’incêndio, os navios ganham suntuosas decorações sobre as vagas.
O brilho sangrento do ocaso, reverberando na água, dá-lhes uma refulgência de fornalha acesa, de bronze inflamado, dentre cintilações de aço polido.
Os navios como que vivem, se espiritualizam nesta auréola, neste esplendor feérico de sangue luminoso que o ocaso derrama.
E mais decorativos são esses aspectos, mais novos e fantasiosos efeitos recebem as afinadas mastreações dos navios, donde parece fluir para o alto uma fluida e fina harmonia, quando, após o esmaecer da luz, a Via Láctea resplende como um solto colar de diamantes e a lua surge opaca, embaciada, num tom de marfim velho.
EMOÇÃO
Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como se meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal vibrando as sonoridades mais delicadas.
Um ombro aveludado e trescalante a frescura aromática, que pelo meu ombro levemente roce na rua, num encontro fortuito, produz-me um estado tal de volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por entre incensos, festivamente paramentado como o sacerdote que ergue o cálix acima da cabeça, ao alto do Altar-Mor dos templos dourados, sentindo que um aluvião de almas crentes o adora de joelhos.
A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de formosa mulher que por entre a multidão aparece e desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem vezes, também, me alvoroça e agita o sangue.
E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza afetuosa de um gesto carinhoso – a essa delicada mão avara e milionária que, para mais avara tornar-se ainda, se fora esconder na maciez elegante da luva fresca, vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu contato.
Então, assim, a emoção que desperta todos os meus sentidos, no curioso giro que faço com o pensamento acompanhando a feminina mão fidalga, não é uma emoção de indiferença, por certo, mas uma emoção de despeito.
Estranhamente, como força hercúlea que me prendesse à terra, chamando-se à iniludível Realidade, desço das inauditas, siderais, regiões a que subira.
Vejo-me logo, então, profundamente vencido no tempo, e, no meu rosto, à maneira dos fundos sulcos que as charruas abrem nos campos, imprevistas rugas se evidenciam, como se eu tivesse de repente envelhecido um ano.
Da dor poucas vezes sinto só o que ela tem de selvagem, de rugidora.
Emoções delicadas, sutis, que me doem também fundo na alma, porque me melancolizam, deixam-me um ritmo de música, uma afinada dolência de suavíssimos violinos, e que por fim delicia.
É como se alguém vibrasse de brando as cordas de um instrumento e ele, trêmula, amorosamente, ficasse a gemer no mais meigo, no mais doce dos dedilhados acordes...
A emoção é que me faz amar os eucaliptus altos, afilados, retorcidos convulsamente, como a dor dum gigante.
É ainda essa mesma emoção que me faz perceber e ouvir o misterioso som dos metais: o claro riso diamantino da Prata e o trovejante rumor do bronze.
O que o mundo chama fatalidade, negras e assoberbantes catástrofes, como um incêndio, não posso bem com nitidez que emoção me causa.
Realmente, num incêndio, todas aquelas chamas são maravilhosas!
Não sei que raro, que estupendo Rembrandt veio de surpresa encharcar de um rubro violento, sanguinolento e flamejante, todo aquele belo edifício que, há pouco, era um rendilhado palácio ou uma igreja gótica, um Louvre em Pompas ou um faiscante chalet d’esmalte.
E não sei até como essas chamas formando miríades de fantasmagorias, ilusionismos, entre os quais às vezes perpassa a deliciosa cor azulada, aveludada, de poncheiras colossais, não devoraram tudo logo a um tempo!
Têm sido, talvez, benévolas, piedosas demais as chamas, porque há já bastante horas que o fogo alastrou, minou, rastejou, como um verme de incêndio, pelos alicerces do edifício e só agora que os trovejamentos desabem, as paredes caem, como se fossem de cera, milhares de fogozinhos correm eletricamente como microscópicos insetos luminosos pelo luxuoso papel das paredes, enquanto todo o resto da madeira estala e range, num crac-crac seco, caindo desmantelada como os mastros e vergas de um navio que afunda na fúria dos aceanos, sob o rijo estourar das tormentas.
Alucinamento, nevropatia, embora, eu não sei bem, na verdade, se um incêndio me apavora ou me delicia, — o que sei é que intimamente me sobre-excita.
Também o mar, a emoção que experimento ao vê-lo, verde, amplo, espelhado, dá-me uma saúde virgem, uma força virgem.
Sinto o gozo repousante de sondá-lo, de descer à imensa profunda necrópole gelada onde uma florescência de algas vegeta; e, ao mesmo tempo, diante do mar, sinto o peito alanceado de incomparável saudade de países vistos através do caledoscópio da imaginação, dos sonhos fantasiosos – países lindos e felizes, floridos trechos de terra, ilhas tranquilas, províncias loiras, simples, de caça e pesca, donde a sombra amorosa da paz benfazeja fosse como uma sombra doce, protetora, de árvore velha, e onde, enfim, a lua tudo imaculasse numa frescura salutar de pão alvo...
A emoção, a sensibilidade em mim, quase sempre desperta uma meditativa amargura, uma grande e mística dolência do passado, que enevoa tudo – como o indefinido mistério perfumado dessas soberbas mulheres de Versailles, carnações fidalgas e perfeitas que estremeceram de luxúria e apaixonadamente amaram pelos velhos parques abandonados, rojando sobre as areias sonoras das alamedas a cauda astral das vestes de deusas.
OS CÂNTICOS
No templo branco que os mármores augustos e as cinzeluras douradas esmaltam e solenizam com resplandência, dentre a profusão suntuosa das luzes, suavíssimas vozes cantam.
Coros edênicos inefavelmente desprendem-se de gargantas límpidas, em finas pratas de som, que parecem dar ainda mais brancura e sonoridade à vastidão do templo sonoro.
E as vozes sobem claras, cantantes, luminosas como astros.
Cristos aristocráticos de marfim lavrado como fidalgos e desfalecidos príncipes medievos apaixonados, emudecem diante dos Cânticos, da grande exalção de amor que se desprendem das vozes em fios sutilíssimos de voluptuosa harmonia.
O seu sangue delicado, ricamente trabalhado em rubi, mais vivo, mais luminoso e vermelho fulge ao clarão das velas.
Dir-se-ia que esse rubi de sangue palpita, aceso mais intensamente no colorido rubro da luxúria dos Cânticos. Que despertam, ciliciando, todas as virgindades da Carne.
Fortes, violentas rajadas de sons perpassam convulsamente nos violoncelos, enquanto que as vozes se elevam, sobem, num veemente desejo, quase impuras, maculadas quase, numa intenção de nudez.
E, através das volúpias das sedas e damascos pesados que ornamentam o templo, das luzes adormentadoras, dos perturbadores incensos, da opulência festiva dos paramentos dos altares e dos sacerdotes, das egrégias músicas sacras, sente-se impressionativamente pairar em tudo a volúpia maior – a volúpia branca dos Cânticos.
FULGORES DA NOITE
Desce um desses crepúsculos violáceos em que parece errar no espaço a enevoada música das casuarinas...
Envolvem gradativamente a imensidade os veludos negros da Noite.
Num céu frio d'inverno, que umas mais frias estrelas esmaltam pouco a pouco, começa prodigiosamente a surgir a Lua, alta e misteriosa, lembrando baladas.
Dias d'ouro, ricos e raros, resplandeceram já com o sol na luxúria verde da folhagem.
E agora, o luar, que veste as noites de noivas, desdobra suntuosamente as suas tules delicadas e os seus luxuosos cetins brancos, imaculados.
Fecundam-se os grandes campos, quietos na nívea luz da Lua, no clarão que dela jorra, dormente e doce.
E os animais que repousam na amplidão dos vistosos gramados, gozam tranquilos um sono brando, acariciador, como que produzido pela amorfinada claridade da lua límpida e profunda.
As águas, as frescas águas das fontes e rios, as largas águas dos mares serenamente adormecem, num esplendor cristalino
Apenas uma surdina leve que sai delas, como um leve ressonar, lhes denuncia, no silêncio claro da noite, a natureza sonora.
E enquanto a rumorosa paisagem, todos os frementes impulsos do dia calam-se, em redor, na noite, a lua e as estrelas amorosas acordam e brilham, num recolhimento de Santuário, todas de branco, como virgens para a primeira comunhão.
PSICOLOGIA DO FEIO
Peters, esse humorismo ao mesmo tempo alucinante e alado; o pessimismo paradoxal de Alphonse Karr e Gustavo Groz, tão semelhantes nas linhas gerais; todo aquele pungente, doloroso, estranho Livro de Lázaro, de Henri Heine, tudo isso, fundido numa cristalização de lágrimas e sangue, como a flamejante e espiritualizada epopeia do amor, exprimiria bem, talvez, a noite de tua psicologia negra, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio.
Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma ancestral comum dos seres organizados: eu te vejo bem as saliências craneanas do Orango, o gesto lascivo, o ar animal e rapace do símio.
As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a confluência interior dos desesperos e das torturas, abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes uma gesticulação epiléptica, nevrótiva, clownesca, faz impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto a tua voz coaxa e grasna, numa deprecação de morte, com ásperas e absurdas variabilidades ventríloquas de tons.
O teu horror não é deplorável só, não causa só piedade – mas é um obsceno horror – e as abas compridas e esfrangalhadas duma veste que te fica em rugas, em pregas encolhidas na largura neste teu corpo esquelético, e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que houvessem desenterrado – as esquisitas abas desta veste, sob o chicote elétrico do vento, alçam-se em voo, deblateram para trás de ti, ansiosas, aflitas, puxando-te, num arrebatamento histérico, como se fossem fúrias tremendas que te quisessem arrojar pelos ares, num delírio de darem-te a morte.
Outras vezes, porém, lembram as asas de um grande morcego monstro, imensas e membranosas, causando asco nauseante e enchendo tudo duma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e esvoaçamentos medonhos.
Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vegetais em flor; campos verdes, afofados na verdura tenra, como estofos de veludos e sedas rutilosas e orientais, não são já para a tua alegria, recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da torturante desilusão de seres Feio.
Os perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o teu coração; e, aí, tudo o que dele se aproxima, outros corações que te buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante da tangibilidade gwinplainesca da tua fealdade.
Só eu, numa suprema hora de spleen, de esgotamento de forças psíquicas, em que me falte extensamente o humor – essa bondade hilariante do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio! que da luxúria pantagruélica dos vermes devoras na treva os sonhos – porque não os podes alimentar, nem ver florir, nem crescer! Sem que a diabólica verdade flagrante esteja a rir de teu amor e a pintar picarescamente caricaturas na quase apagada perspectiva da tua existência.
Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis, quase feminis, podem amar-te; enquanto que as individualidades ocas, estéreis, áridas, duras, sem vibração sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem aroma, fugirão para sempre de ti como à repelência asquerosa de um putrefato.
Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! porque és a escapelante ironia da Formosura, a sombra aurora da Carne, o luto da matéria dourada ao sol, a cal fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta correção das Formas perfeitas e consagradas, conquanto tenhas também, na tua hediondez, toda a correção perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa argila, tem, no entanto, a repelente correção própria do sapo; ─ como a estrela, fulgindo, lá, em cima, no precioso Azul, tem a serena e etérea correção própria d’estrela.
Por uma espécie apenas de schopenhaurismo é que eu adoro-te, ó feio! e quereria bem rolar contigo nesse Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da morte, vendo surgir, como de lagos de quimeras, em estalagmites de neve, diante de mim, sombrios e álgidos, pesadelos de mulheres amadas; pálidas Ofélias, Margaridas loiras, Julietas tormentadas, visões, enfim, como nas tragédias de Mcbeth ou a nevoenta Visão germânica do Graal.
Numa seda negra d’Arte, vestidos de negro, à semelhança desse trágico Hamlet da Dinamarca, iríamos os dois, através dos largos e profundos cemitérios silenciosos, consultar as rígidas caveiras das virginais Ilusões que se foram, e que, à nossa aproximação, sorririam, talvez, felizes, como se lhes levássemos a palpitante matéria animada de nossos corpos para cobrir, fazer viver as suas galvanizadas carcaças frias.
Mas ah! eu quisera bem, por vezes, também, ter o rude materialismo analítico de Buchener, que, certamente, não sentiria por ti, ó Feio! esta extravagante, excêntrica, singular influência mórbida que nas funções de meu cérebro vem, contudo, como doença amarga, um tédio amarelo e pesado de chim que o ópio estuporou e enervou.
Não houvesse dentro em mim, através das Ilíadas do amor, das Bacanais do Sonho, um sentimento melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio!
VITALIZAÇÃO
Há uma irradiação larga e opulentíssima nos ares.
Esbraseamento do sol do fim da tarde dá fortes verberações quentes à paisagem, que resplandece, e de cuja vegetação estuante de calor parecem rebentar as raízes túmidas de seiva, como veias imensas latejando de sangue oxigenado e vivo.
Nessa elaboração enorme da Terra que procria e fecunda, na gestação desses mundos que, como astros, gravitam talvez em cada grão de areia, pululando e vibrando, a Natureza é como uma grande força animada e palpitante, dando entendimento e sentimento à matéria e fazendo estacar a vida no profundo ocaso da morte.
E, daí a pouco, a Lua, através das matas do vale, anelante e álgida, surgirá, rasgará d’alto as nuvens do céu, acordando os aromas adormecidos, cristalizada, vagarosa e tristemente, como uma dor que gelou…
GLORIA IN EXCELSIS
Num recolhimento sugestivo, como se o meu espírito estivesse longinquamente a orar n’alguma velha abadia, penetrei na catedral em festa.
Não sei que de nevoento, vago, dolente e nostálgico me invadira de repente e por tal forma, que eu fui, como que sonambulamente, à solenidade.
Todo o templo, ornamentado, resplandecia, numa imponência, numa augusta suntuosidade, a que o grande esplendor das luzes dava majestades romanas.
A onda humana, compacta, densa, murmurejava, numa compunção.
Alvuras e incenso envolviam, como que em brumas imaculadas, em flocos matinais de neblina, o vasto recinto da igreja.
Lustres imensos pendiam pomposamente da abóbada branca, numa infinidade de pingentes que tiniam e cintilavam, como polidas, facetadas lâminas metálicas, num brilho molhado.
Do coro, para o alto, os instrumentos de corda choravam, salmodiavam, num crescendo de notas, através do vivos metais sonoros.
Eram excelsos, eram egrégios aqueles sons sacros, religiosos, que subiam pelas naves, à maneira que os incensos subiam.
No peito, como numa urna de cristal, o coração batia-me, anelante, na ânsia, na vertigem de vê-la por entre todo aquele confuso e amplo borboletar de cabeças.
E, quando houve um alegre e diamantino tilintar de campas e o sacerdote elevou no cálix o vinho Sagrado, o coração, como estranho pássaro de sol, fugiu-me do peito, num alvoroço arrebatado, maravilhado na grande luz do templo, em busca dos olhos dela, que, de repente, me fitaram, longos, negros e veludosos, quando, por entre níveas névoas d’incenso, o glória in Excelsis, exalçando os Evangelhos, triunfava nas vozes e levantava um festivo rumor no templo.
E foi, para meu coração lancinado de amor, como se Ela, naquele instante, me trouxesse toda essa Glória luminosa nos olhos.
PÁGINA FLAGRANTE
Inflamados de sol, como pássaros no esplendor da aurora, partiam Ambos a digressões singulares, por manhãs alegres, da alegria impulsiva e bizarra das Hallalis de caça.
Uma virginal exalação de leite, um aroma finíssimo de lilás e rosa errava pelos prados sãos e férteis, na grande luz alastrante e germinadora da primavera.
Na franqueza heroica da força que a expansão vigorescente da Natureza lhes infiltrava, experimentavam Ambos uma sensação aguda de espiritualidade, um eletrismo de ideias, que os agitava, dava-lhes intensa vibratilidade, uma embriaguez fascinante de acre aticismo mental, por entre os radiantes orientalismos de luz.
E eles partiam nervosamente, alvoroçados, finos, fulgurantes, como sobre a impressão da alta e convulsionante música wagneriana.
De uma abundante e luxuriosa vegetação psíquica, enclausurados na Arte, como numa cela, lá iam sempre nessas continuadas batidas, nesses verdadeiros assaltos ao Ideal, num fausto de Império romano, arrebatados pela grande borboleta iriante, fugidia e fascinadora da Arte.
Vinham, então, os livres exames, os amplos golpes de Crítica, ao fundo e ao largo, através dos turbilhões luminosos do sol.
Quase feroz, cheio de bárbaros venenos e ao mesmo tempo untuoso como os inquisidores, um deles fazia vagamente lembrar a urze das montanhas áridas, sobre a qual, entretanto, o azul canta de dia os hinos claros do sol e à noite a luminosa barcarola da lua e das estrelas.
O outro, recordava, também, por sua exótica natureza, perpetuamente envolta numa bruma de mistério, um Cristo célebre de Gabriel Max, corpulento, viril, de aspecto igualmente aterrador e piedoso, que vi uma vez numa galeria…
Organizações dúbias, obscuras, de acridão agreste, que representam, na ordem animal, o que representa, para as camélias e para as rosas, o cróton.
E aquelas duas almas, intelectualmente impulsionadas, abriam-se em chamas altas, aos deslumbramentos de sua estesia.
As ideias fugiam, cabriolavam, penetravam todo o arcabouço do assunto, tomavam formas, aspectos estranhos, macabros; e era tal a intensidade, a veemência com que brotavam do cérebro, que pareciam viver, radiar, ter cor, vibrar.
A verve esfusiava, mentalizada pela Análise, pela Abstração e pela Síntese; sátiras frias, cortantes como rijos e aguçados cutelos, espetavam capras a carne tenra, viçosa, próspera, de Sua Majestade Imbecil; e, para supremamente assinalar todas as surpresas e elevação do Entendimento, uma psicologia rubra, flamante, sangrava, sangrava em jorro, torrencialmente sangrava.
E eram boutades maravilhosas, a charge leve, pitoresca, ferreteando, zumbindo sobre os homens circunspectos, que passavam, o andar solene, ritmado, em cadência, como na marcha das procissões.
E Ambos riram, riram, numa risada sonora e forte, como se festins cintilantes, bacanais, triclínios, todas as vermelhas orgias do Espírito, lhes cristalinamente no riso.
De repente, como uma pausa repousadora nesse crepitante incêndio de verve, penetravam sutilmente com delicadezas extremas, nos pensamentos mais curiosos, mais sugestivos, nos amargos dolorimentos e pungências latentes da Arte.
Diziam coisas aladas, quase fluídas, que determinavam a abstração do ser que os animava e floria; tinham essa percepção, esse entendimento profundo, tanto luar como o sol, que explica, mais ainda do que o que se perpétua em flagrância num livro, a poderosa força criadora, a ductilidade, a emoção e a contensão nervosa de raras naturezas artísticas.
Refletiam que certo modo de colocar, de por as mãos, de certas mulheres, lhes fazia longamente considerar, meditar nas monjas…
Pensavam que no mundo há naturezas tão excêntricas e nebulosas que, pelas condições complexas em que se encontravam na vida, precisariam de uma filosofia nova, original, para determiná-las. Eram como que existências eriçadas de abetos alpestres, carnes que se rasgavam, se despedaçavam…
As rosa, pareciam-lhes belezas opulentes, pomposas, da Inglaterra…
E todo o universo estava agora tão atrozmente perseguido por tédios mortais, que os homens já naturalmente falavam em morrer, como quem fala em viajar ou em rir…
Quanto à Arte, queriam que a expressão, que a frase vivesse, brilhasse, sonora e colorida, como um órgão perfeito. Que tudo o que disseram ficasse imperecível, eterno, perpetuado no Espaço e no Tempo, com os sons que os circundavam, a cor, a luz, o aroma que os atraía.
As palavras deveriam ser, para se eternizarem, cravadas no ar límpido, como num forte cristal de rocha.
Era a ânsia dos requintes supremos, a exigência das formas castas, que os fascinava, que os seduzia, tentava, como nudez formosa de mulher virginal. Tudo, enfim, na Arte, deveria ficar luminoso e harmonioso, como um cantar d’astros.
E lá caminhavam, inquietos, vertiginosos, no esplendor matinal, que os alagava e fecundava, como um prodigioso rio de ouro e diamantes, terras maravilhosas e produtivas.
Iam à conquista das Origens verdes, das puras águas brancas da Originalidade, dentre o vibrante alarido de cristal dos seus temperamentos austrais, ardentes e sangrentos.
Como orquestrações largas, sinfonias vivas de emoções e ideias, rompiam dia a dia nessas batidas frementes, numa transcendência de princípios e sentimentalidades – talvez no íntimo dolorosos, lancinados pelo Miserere das Ilusões elevadas.
E, muitas vezes, já alta madrugada, sob o sereno e suave adormecer das estrelas alvorais, não era sem uma derradeira Apóstrofe à soberana Chatice que essas duas existências chamejantes se separavam, num grande clarão espiritual de afetos.
Então, um deles, numa aclamação, num gesto singular e profético, arrojava, além, para os séculos, esta charge infernal, suprema:
─ A divina Estupidez, a onipresente Imbecilidade ficaria eterna, ao alto, junto às nuvens, sobre uma estranha Babel de milhões de degraus de bronze, como num trono colossal, bufando e roncando, a dominar as imensidades, fantasticamente, onipotentemente, guardada por cem mil esquadrões ferozes, monstruosos e formidáveis, de hipopótamos e búfalos!…
TINTAS MARINHAS
Mar manso, pelo fim da tarde.
O ouro fulvo dos horizontes no ocaso a pouco e pouco esmaece.
Pela manhã chovera, mas antes do pôr do sol o dia levantara e as perspectivas úmidas e frescas embebem-se agora no eflúvio salutar das marés.
No espaço há uma grande acumulação de nuvens áureas e róseas de um forte colorido de silforama.
Para além, da outra banda do mar, a faixa larga e prateada da praia, em curvas, coleando, está de uma extrema doçura e nitidez inefável. A retina mal pode apanhá-la.
Os olhos pestanejam, nas infinitas vertigens e nos prismas visuais sutis e cambiantes de míope, diante do encanto dos tons de luz leve, rarefeita, espiritualizante e fina, como um tecido tenuíssimo.
Há em toda a marinha um aspecto amável, uma suavidade de aquarela d’après nature, quase êxtase.
Dá um esplêndido efeito à visão ótica e um revigoramento humorado às faculdades artísticas, este belo trecho sadio e agradável de vagas, em cuja superfície a luz frouxa da tarde se encarrega, com as suas pinceladas de fantasista, de fazer as mais extravagantes e rendilhadas decorações.
O mar, aquietado, sereno, está de um verde glauco ativo e salgado, convidando a viajar, e, sobre ele, navios balouçantes, embarcações, soltas como aves, de delicadas formas artísticas, com afinidades abstratas de certas linhas fugidias de um perfil de mulher, conservam, então, como lenços de adeuses, as suas velas brancas estendidas, os seus panos a secar da chuva da manhã.
Balançam-se um pouco, numa cadência harmônica, num ritmo musical, com os altos mastros erguidos para o céu em posição de vigia.
E, assim, com os mastros e as velas, na aglomeração das adriças e dos cabos, os navios fazem vagamente lembrar, na calma da tarde, enormes e estranhas plantas de ornamentação.
Ao fundo, na recortada e esfuminhada linha das montanhas, uma queimada faz evolar para os ares o seu azulado penacho de fumo.
E, no meio da pitoresca delícia da marinha alegre e lavada, de um acre sabor de azote, uma ou outra gaivota esvoaça, além num voo incisivo, rápido, ou pousa junto aos liquens ou junto às algas, mergulhando e roçando na vítrea vaga a nevada plumagem de arminho.
Então, de toda a paisagem, larga, aberta, revigorativa e cheia de uma grande ar primitivo de virilidade, vem um sopro intenso, confortador e pagão de Heroísmo e de Mocidade, fazendo inflar o peito, e um sentimento anelante e virgem de pesca, no bravo mar Alto, entre tropicalismos primaverais de sóis sangrentos e de dias azuis, sobre as rasgadas ondas mormurejosas.
ESMERALDA
No fundo verde da tela avulta em claro uma Cabeça macilenta, dolorosa, como que envolta num albornoz branco.
Toques da mesma cor garça põe-lhe leves nuances nos cabelos, nos olhos cismativos, anelantes, que têm a expressão de um desejo nômade.
Desse cromatismo de tons verdes, idealizou o artista o nome de sua viva cabeça imaginária – que parece uma dessas fisionomias raras que só naturezas especiais sabem distinguir e amar, uma dessas cabeças de mulheres singulares que a dolência da paixão enervante calcinou e turvou de dores.
Do golpe rubro da boca escapa-lhe um sentimento de amargor, que a travoriza e acidula, como se um acre veneno ardente lhe estivesse sangrando os lábios.
E essa boca, assim em golpe rubro, purpurejada por um vinho secreto de ilusão antiga, destacando álacre no palor do rosto frio, como que excita aos beijos, turbilhões de beijos como de chamas…
E descendo da boca aos seios alvos de lua, a imaginação vai fantasiosamente compondo todo o corpo de Esmeralda e despindo-o, à proporção que o vai compondo, despindo-o e gozando a carne cor de papoula.
E, as tintas, na tela, vivendo de impressionabilidade artística que um pincel de mão original e nervosa lhes infiltrou, como que exprimem, no colorido e no ideal da contemplativa Cabeça, a emoção vaga, aérea, de alguma formosa e amada Esmeralda virgem, perdida e morta dentre as verdes pedrarias do mar solene…
FIDALGO
Pé esguio, fino, à Mefistófeles, para galgar, não já a Roma pomposa e purpúrea, enflorada em glória; nem mesmo já a Grécia estoica, de ouro e de mármore; mas para supremamente galgar as regiões infinitas e virgens da deslumbrante Originalidade.
Colorido de graça, madrigalesco e maravilhoso, a luva negra vestindo a mão real de louro e fantasioso Excentrista, a face meditadora e branca voltada para as estrelas, donde surgiriam as leis transcendentes da Arte, penetrarias os pórticos suntuosos de palácios d’esmeralda e safira, subindo por escadarias de prata e pérola.
E, prodigiosamente, em sedas e ouros de luz, aí te perpetuarias nos azuis imortais da Eternidade, onde o Espírito deve ter, não a claridade coruscante e clarinetante do Sol, mas o brilho de paz, de incomparável repouso são da lua solene e sonolenta.
A tua Obra, vasta e fecundadora, seria então singularmente traçada em panos mais largos que os de tendas do deserto e mais alvos ainda do que as neves imaculadas.
Com um fio d’astro cinzelarias, darias esmaltes indeléveis e marchetarias ideias, como um tecido d’estrelas, liriais e siderais.
E, para que a correção inteira, a harmonia perfeita irradiasse na Obra, em luz mais clara, um pássaro estranho, cor de brasa, branco, azul, conforme o tom do teu Ideal, cantaria, gorjearia em ruflagens d’asa ao alto de tua nobre cabeça fidalga, como que para te ritmar as ideias.
E tu, como um deus mítico, afinarias pelo ritmo inefável do canto os pensamentos delicados da grande Obra, até produzires nela a harmonia, a cor, o aroma.
Músicas excelsas e tristes, como uma combinação de roxo e azul profundo, dariam frêmitos, vibrações às tuas páginas, que ficariam vivendo com o Som, perpetuamente.
Bonzos, Manitus, não gralhariam e grasnariam jamais em torno de teu ser abstrato e tranquilo, feito para florir, cantar e resplandecer.
Como as pérolas guardadas em cofres do Oriente, envoltas em areia do mar Vermelho, para não perderem o raro esplendor, a tua Obra, coroada pelas rosas triunfais da Originalidade, ficaria afinal, ó Fidalgo da Arte! envolta nos mistérios do Sol, egregiamente cantando e chamejando, na helênica resplandecência da Forma.
ANGELUS
O sol em sangue alastra, mancha prodigiosamente o luxuoso e largo damasco do Firmamento.
Opulentos, riquíssimos esplendores de púrpuras luminosas dão uma glória sideral à tarde.
E, pela sugestão cultual, quase religiosa da hora, os deslumbrantes efeitos escarlates do grande astro que desce, d’envolta com doiramentos faustosos, fazem lembrar a magnificência romana, a ritual majestade dos Papas, um festivo desfilar católico de bispos e cardeais, através dos resplandecentes vitrais do Vaticano, com os báculos e as mitras altas, sob os pálios aurilavrados.
Embalsamam a tarde aromas frescos, sãos, purificadores, como que emanados da saúde, das virgindades eternas.
Um ar olímpico, talvez o sopro vital dos mares verdes e gregos, eterifica harmoniosamente a curva das montanhas, ao longe, contorna-as, recorta-as, dá-lhes a nitidez, o esmalte do aço.
Como a Natureza, neste esmaecer do dia, tem mocidades imortais e como que as forças, as origens fecundas da terra, desabrochem em rosas.
O rubente esplendor solar gradativamente smorza numa cor de rosa leve, de veludosa suavidade.
Serenamente, lentamente, uma pulverização neblinosa desce das amplidões infinitas…
Névoas crepusculares envolvem afinal a imensidade, no recolhimento, na paz dos ascetérios.
Os campos, as terras da lavoura, a vegetação dos vales e das colinas adormecem além, repousam num fluido notambulismo…
Por estradas agrestes pacificadas na bruma, uma voz de mulher, dispersa no silêncio, clara e sonora, canta amorosamente para as estrelas que afloram rútilas e mudas.
Canta para as estrelas! e parece que a sua voz, errante na vastidão infinita, vai inundando do mesmo perfume original que a alma viçosa e branda os vegetais exala na Noite…
NÚBIA
Amar essa núbia – vê-la entre véus translúcidos e florentes grinaldas, noiva exitante, ansiosa, trêmula, tê-la nos braços como num tálamo puro, por entre epitalâmios: sentir-lhe a chama dos beijos, boca contra boca, nervosamente – certo que é, para um sentimento d’Arte, amar espiritualmente e carnalmente amar.
Beleza prodigiosa de olhos como pérolas negras refulgindo no tenebroso cetim do rosto fino; lábios mádidos, tintos e solferinos; dentes de esmalte claro; busto delicado, airoso, talhado em relevo de bronze florentino, a Núbia lembra, esquisita e rara, esse lindo âmbar negro, azeviche da Islândia.
O seu sangue quente, aceso em púrpuras de luxúria, através da pele sombria e veludosa, recorda avermelhamentos de aurora dentre uma penumbra de noite, como o deslumbramento boreal das regiões polares…
No entanto, amar essa carne deliciosa de Núbia, ansiar por possuí-la, não constitui jamais sensação exótica, excentricidade, fetichismo, aspiração de um ideal abstruso e triste, gozo efêmero, afinal, das naturezas amorfas e doentias.
Senti-la, como um desejo que domina e arrasta, querê-la no afeto, para fecundá-lo e flori-lo, como uma semente d’ouro germinando em terreno fértil, é querer possuí-la para a Arte, tê-la como uma página viva, veemente, de paixão humana, vibrando e cantando o amor impulsivo e franco, natural, espontâneo, como a obra d’arte deve vibrar e cantar espontaneamente.
Crescida, desenvolta aos poucos no meio culto, entre relações de simpatia inteligente e harmônica, sob um sol saudável de cuidados, de apuro de tratos e de maneiras, que tornou mais leve e penetrante, iluminando, o seu cérebro simples, de ignorância ingênua, a Núbia abriu em flor de carícia, alvorou com a doce meiguice dos tipos galantes e preclaros de mulher e recebeu também, em linhas de conjunto, do mesmo meio onde desabrochou, essa suavidade e graça núbil que é todo o encanto vaporoso, aéreo, do ser feminino.
No seu rosto oval, de uma penugem sedosa de fruto sazonado, há, por vezes, certa expressão de melancolia, de cisma dolorosa, que punge e contrista; o tênue, já quase apagado raio errante de uma lembrança vaga, – como se Ela de repente parasse na existência e se sentisse no vácuo, perdida, e só nos caminhos desolados, desertos, de onde veio outrora, sem leito, e em lágrimas a caravana gemente de sua raça…
Então, nesses momentos em que um dolorimento secreto, misterioso, a conturba e magoa, ela parece serena divindade aureolada de martírios, macerada de prantos; e é talvez bem pequeno, bem frágil todo o amor do mundo para proteger, para amparar, como numa redoma sagrada de Misericórdia, essa humilde criatura que o fatalismo das forças fenomenais da Natureza condenou à indiferença gelada e à desdenhosa ironia das castas poderosas e cultas.
Assim, adorá-la em compunção afetiva, trazê-la no coração como relíquia rara num relicário estranho, claro é que não significa banal emoção transitória, que o rude desdém da análise fria pode, apenas com um golpe brusco, extinguir para sempre.
Essa emoção, esse amor cada vez mais profundo e espiritualizante, penetra impetuoso no sangue como a luz e o ar, deliciando e ao mesmo tempo afligindo como a Ideia e Forma igualmente deliciam e afligem…
E, nem mesmo, no fundo íntimo de qualquer ser tocado de uma intuição maravilhosa da origem terrestre da felicidade, podem resplandecer, mais do que na Núbia, as belezas de neve da Escócia e da Irlanda ou as formosuras originais da Armênia e da Circássia.
Tudo ela possui de luminoso e perfeito, como a noite possui as estrelas e a Lua, visto e sentido tudo através da harmonia espiritual, da alta compreensão requintada e subjetiva de quem a ama e deseja.
A sua alma, de forma singela e branca de hóstia, tem ritmos de bondade infinita, meigas, claridades brandas e consoladoras de piedade e enternecimento, e a sua voz sonorizada, com a vivacidade nervosa e o alado timbre argentino, claro e fresco, de um gorgeante cristal de pássaro, derrama por toda a aparte a música emocionante, sugestiva e curiosa, de violino afinado…
E nenhum peito dedicado de nobre dama medieval nobiliárquica será mais gentil e delicado que o seu peito, donde jorra, com firmeza e força, em onda original, talvez manado dessa simpleza de obscuridade, um inefável sentimento verdadeiro e virgem como o tenro broto verde dos arbustos.
Ela é a Núbia-Noiva, singular e formosa, amada com religioso fervor artístico, com a fé suprema, a unção ritual dos evangeliários do Pensamento; e todo esse feminino ser preciosos brota agora em exuberâncias de afeto, em pompa germinal de extremos lascivos, floresce em rosas juvenis e polínicas de puberdade, abertas sexualmente nos seios pundonorosos e pulcros…
SOM
Trago todas as vibrações da rua, por um dia de sol, quando uma elétrica corrente de movimento circula no ar…
Mas, de todas as vibrações recolhidas, só me ficou, vivendo a música do som no ouvido deliciado, a canção da tua voz, que eu no ouvido guardo, para sempre conservo, como um diamante dentro de um relicário de ouro.
Cá está, cá a sinto harmonizar, alastrar em som o meu corpo, todo, como flexuosa serpente ideal, a tua clara voz de filtro luminoso, magnética, dormente como um ópio…
Muitas vezes, por noite em que as estrelas marchetam o céu, tenho pulsado à sensação de notas errantes, de vagos sons que as aragens trazem.
As fundas melancolias que as estrelas e a noite fazem descer pelo meu ser, da amplidão silenciosa do firmamento, dão-me à alma abstratas suavidades, vaporosos fluidos, sinfonias solenes, misticismos, ondas imensas de inaudita sonoridade.
E, calado, na majestade sombria da Natureza, como num religioso recolhimento de cela, vou ouvindo, esparsos na vastidão, smorzando nos longes, entre redondos tufos escuros de folhagem, onde se oculta alguma luxuosa existência de mulher, inebriantes sons de peregrinas vozes ou de invisíveis instrumentos.
E os sons chegam, vêm até mim, na estrelada tranquilidade da noite, frescos e finos, como através de rios claros que nevassem ou de vagas embaladoras que o frio luar prateasse.
E eu penso, então, nessas simpáticas, corretas atitudes e expressões da música.
Vejo, na nitidez de cristal do pensamento, a harpa, sonora asa de ouro, com as cordas tensas, dedilhadas por brancas mãos aristocráticas que arrancam dela frêmitos, soluçantes dolências, plangências incomparáveis.
Escuto a pompa, a imponência sonorizante de um órgão de catedral, quando, pelas altas naves, sobem rolos alvos de incenso, e, o sol, fora, com as flechas dos raios constela de astros microscópicos as polidas e góticas vidraçarias.
Ou, pressinto ainda, num fidalgo salão do tom, onde os perfis ostentam valorosidades de linhas ducais e a luva impera galantemente, a assinalada elegância dos concertos da graça, quando os violinos, zurzinando notas que esvoaçam do arco resinado às cordas retesadas, zumbindo e ruflamente prendendo-se à voz que resplende, triunfa na sala, sonorizando-a e iluminando-a mais que os fúlgidos lustres e os candelabros facetados, como se, da garganta de quem cantasse, a aurora alvorecesse e vibrasse.
E cuido logo ver uma mulher – alta, beleza grega, formas esculturais primorosamente cinzeladas.
A cabeça, de uma discreta severidade de deusa, pousa-lhe no rico, abundante torso inteiriço do corpo forte.
Há uns meigos tons louros no aveludado cabelo que, por entre a luz, mais louro e aveludado brilha.
De pé, ereta, o perfil nitidamente marcado, no meio da cauda astral da veste de seda rara, ela desprende, evola a voz da garganta de aço novo e esta espiral de voz revoluteia no salão, fica algum tempo aquecendo e sonorizando o ar.
Como um astro, essa voz flameja, palpita e gira na iluminada órbita da sala cheia da multidão que a escuta, e, como um astro, cai, fulgurando, semelhante a exalações meteóricas, no fundo do meu ser como num golfo…
Nobremente, pela cadência do canto, o corpo da imaginária mulher tem certas flexões delicadas e eletrismos de gata voluptuosa, e o seio, fremente da melodia que o emociona, se afervora e pulsa.
E a voz ala-se, ala-se, gorjeada, arrulhante, trinada, ave de luz harmoniosa que ela enfim solta do aviário do peito.
Todos esses dulçurosíssimos efeitos musicais me impressionam singularmente, distribuindo por mim a mais aguda vitalidade mental, que me sensibiliza os nervos da atenção, como se todo eu me achasse sob uma atmosfera salutar e tonificante.
Ou, então, cobrem-me também de opulências de gloriosas soberanias, as vivas forças orquestrais, onde perpassam ruídos largos de floresta, clarins, inefáveis misteriosas melodias de pássaros.
Mas, do som, da música, não me exalça, não me enleva só o ritmo leve, educado, que deixa uma suavidade acariciando, bafejando o ouvido como um perfume bafeja, acaricia, o olfato.
Ficam nos sentidos, nos nervos, calafrios sutis, ligeiros narcotismos, pequeninas vibrações que, não sei de que rútila chama, parecem faiscar…
E começo, após um engolfamento de sons profundos, a ter penetrabilidades intensas, estranhas emoções que me despertam infinita série de fatos já gelados no tempo, como passadas fases de lua.
Evideciam-se-me ideias, impressões, sugestões curiosas, certos obscuros estados mórbidos da alma, que em vão a espiritualidade humana tenta transplantar para os livros, mas que só o ritmo aviventa, levanta aos poucos da nebulosa das existências, como um sol sempre amado, mas já antigo, já velho, remotamente apagado nos sentimentos…
A GATA
De neve, de uma maciez de arminho e lactescência de neve, de uma nervosidade frenética, era luxuosa, principesca, decerto, essa orgulhosa gata.
As esmeraldas de seus olhos claros fosforeavam sensualmente, eletricamente, quando alguém, no conforto da casa, lhe acarinhava de manso o dorso, o focinho tenro, polposo, espiguilhado de prateados fios sutis; e, no seu lindo pelo cetinoso e alvo, como numa fresca e virginal epiderme de mulher aristocrática, perpassava um frisson de ternura, um estremecimento, como se em toda ela vibrasse alguma brisa de espiritual e amoroso.
E era então fidalga nas sensações, no ronronar apaixonado, ao luar, sob o cintilante cristal das estrelas, pelas caladas vastidões da noite, ou, nas horas de sesta, nos quentes, enlanguescedores mormaços, preguiçosa e fatigada, anelando o repouso, numa onda de gozo e volúpia, enroscada, serpenteada, torcicolosa e convulsa, como um organismo suave e débil que um vivo azougue eletriza e agita.
Talvez fosse a alma de uma vaporosa rainha que ali vivesse nesse precioso animal, alguma misteriosa visão polar dentro daquele feltro branco, daquela pelúcia rica, daqueles focos eslavos; algum sonho, enfim, errante, vago, perdido nesse nobre exemplar felino de formas lascivas, flexuosas e delicadas.
Às vezes, mesmo, ela errava, como a nômade que perde a rota da caravana pelos desertos escaldados de sol, em busca de alimento; e os seus olhos, penetrantes no verde úmido e agudo das luminosas pupilas, mais até fantasiosa a tornavam e mais nevoeiro davam à sua lenda de fadas.
E assim, arminho girante, que as quatro veludosas patas faziam fidalgamente caminhar, miando histérica, era como uma sonâmbula idealizada e amante que soluçava e gemia implorativamente a sua dor, através dos aposentos, na indiferença de quase todos.
Um dia, porém, uma doce mão feminina e perfumada quis tê-la junto de si e elevou-a consigo para a tepidez e a pompa das alcovas cheirosas, vivendo com ela ao colo, passando-lhe os íntimos alvoroços de seu sangue de Virgem – como se a gata fosse um profundo seio de afagos a que ela confiasse todos os seus mistérios e segredos de noiva ainda presa no claustro cerrado, como as monjas normandas, da carne inquietante e alucinadora.
Agora, com a formosa seda do pelo vibrando à carícia, alta e feliz a cabeça artística, vive nesse colo impoluto, em sonhos deliciosos e gozos infinitos de orientalista, o belo exemplar felino, voluptuoso e dolente como a lua embalada e cismando, imaculadamente, no seio azul das esferas.
DIAS TRISTES
Apesar do sol, que imensa tristeza para certos seres, que dias tristes, esses, de uma melancolia e dolorosa névoa…
Os ruídos todos, o esplendor da luz, convergindo em foco para o coração, deslumbram, fascinam de modo tal e tão e tão profundamente, que o abatem, infiltrando-lhe essa tristeza infinita que não se define e que está, como um fundo de morbidez, nas almas contemplativas e nômades, que vão armar a sua tenda nas desconhecidas e longínquas paragens abstratas do Pensamento.
Dias triste, muita vez, os dias de sol.
Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos irresistíveis, como numa intensa e luxuriosa paixão, os aspectos que se lhe manifestam na Natureza são amargos, atravessados dessa pungência aflitiva, dessa magoante desolação e atormentadora ironia que há na essência de todas as coisas e ideias.
E, como o pensar dá uma grande tristeza, põe no cérebro uma incomparável tortura, o Pensamento, à evidência da luz, da alegria do sol, deixa-se possuir de um nervosismo triste, de um meio luar turvo e trágico de impressões agudas, dilacerantes.
Os dias tristes, para raras naturezas intelectuais, são quase sempre os dias triunfantemente alegres, sonorizados de pássaros, quando há uma alta irradiação no ar, um repouso, uma paz feliz em toda a vegetação e que o sol, numa vitória astral, vai, como um deus pagão, em festins de luz…
Como que filtros de dolorimento partem de todas essas luminosidades, todo esse fulgor solar verte uma nostalgia cruciante, que fere e fende o peito, incisivamente, como as flechas letalmente envenenadas dos hindus.
Quanto a mim, amargamente sinto esses dias tristes.
À larga luz de um templo vasto, na suntuosidade de uma festa católica, quando pela infinidade de rutilantes lustres acesos há facetas de estrelas, íris fulgurantes e pelos douramentos dos altares borboleteiam faíscas, acendem-se chamas nas velas amareladas, e vozes flébeis, numa compunção religiosa, sobem para as naves com a vaporosidade dos brancos incensos, dentre músicas festivas, – um angustioso anseio me insufla, me enche infinitamente o peito.
E, batido de uma pungência, vibrado de uma recordação, alanceado por uma ideia, subitamente para logo, toda a aparente radiação de alegria foge e eu me vejo então dentro dos meus dias tristes em que alguém, dos longos do Passado, acena-me, ou com um lenço amoroso, para as recônditas e virgens emoções do coração, ou com uma bandeira de combate, para as impulsivas faculdades do cérebro.
Se um riso me aflora aos lábios, nervosamente, se uma verve satânica os inflama; se uma esfuziante sátira os eletriza, é ainda assim uma maneira de ser triste, apunhalante sarcasmo às tempestades mentais que se dão por dentro, – humorismo doente, que para se convencer de que é alegre e de que é são, flori em rosas de riso, abre em Via Láctea de riso.
O esplendor das salas iluminadas, na abundância de cristais e flores, entre auroras de mulheres e luxuosas roupagens, dá-me também, a pouco e pouco, um abatimento, um afrouxamento aos nervos e daí nasce-me logo, como uma tentaculosa planta negra e de morte, essa indescritível tristeza, que é a feição ingênita de tudo, que cobre tudo como que de uma neblina crepuscular sensibilizante…
Assim também, ao almoço, pelas claras manhãs, quando a toalha branca da mesa, as flores das jarras, o pão, o vinho, atitude correta das pessoas, a limpidez simpática da hora, fazem lembrar resplandecências, alvuras claras, paramentações de altar para a evangélica celebração da Missa, um sentimento de inexplicável tristeza me invade, nascido de toda essa disposição harmoniosa de objetos e de pessoas. E, abstratamente, como num nebuloso sonho, durante toda a alimentação desenrola-se lenta, vagarosa e fluida no meu ser, uma surdina oceânica que parece estar, na plangência de sons abafados, lembrando todas as abundantes fontes de afeto que para mim já para sempre secaram, todos os astros prodigiosos de enternecedor carinho que para mim já eternamente se apagaram.
Mas esses dias tristes, as horas, os momentos desses nevoeiros d’alma, tão densos, tão cerrados, nascem apenas de uma Visão que se adora, que nos abre inefavelmente os braços, que o espírito ama no seu recolhimento, na sua cela sombria e muda! essa Visão seráfica, nervosa histérica, ideal – a Santa Teresa mística da Arte.
PAISAGEM DE LUAR
Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal, as estrelas crepitam…
Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da Via-Láctea.
Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna a noite mais solitária e profunda.
O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e rutila, agitando o dorso Glauco.
E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse.
A lua cheia transborda em rio de neve na paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da iriação das estrelas, a lua jorra do alto.
Por ele afora, pelo vasto mar espelhado, pequenas embarcações se destacam agora, alígeras, lépidas, à pesca da noite, velas brancas serenas, sob a constelação dos espaços.
A água repercute, na amorosa solidão do luar, a barcarola sonora dos pescadores, que, de entre a glacial amplidão da água, mais fresca e sonora, vibra.
Um aspecto de natureza, verde, virgem, que repousa, estende-se nos longes, desce aos prados, sobe às montanhas e infinitamente espalha-se nas mudas praias alvejantes.
E, à proporção que a lua mais vai subindo o páramo, à proporção que ela mais galga a altura, mais as pequenas embarcações de pesca avançam nas vagas resplandecentes, com as asas das velas abertas à salitrosa emanação marinha.
Com o brilho fúlgido, aceso, d’esmeralda facetada, uma estrela parece peregrinamente acompanhar de perto a lua, num ritmo harmonioso…
Perfumes salutares, tonificantes eflúvios exalam-se da frescura nova, imaculada dos campos, como dum viçoso e casto florir de magnólias, na volúpia da natureza adormecida numa alvura de linhos, dentre opulências de noivados.
ARTISTA SACRO
Na catedral, com toda pompa e liturgia, celebras-se a Semana Santa.
Pela Ressurreição, às quatro horas da manhã, há na igreja um ar vago de alvorada, em amarelo cidrento, trazida da rua pela larga e polida vidraçaria que se conserva alerta – ar menos vago, contudo, do que a névoa que turva fora os aspectos, em virtude dos lustres acesos, da variada profusão de luzes e da gala sagrada que enche de resplandecências e solenidades toda a extensa Nave onde os devotados católicos murmurejam num crescendo de mar tormentoso e cavado…
O Altar-Mor está vistosamente ornado, deslumbrante, viçando de flores colocadas em jarras azuis e douradas, numa frescura e colorido cromático de jardim, rodeado de grandes tocheiros arabescados que faíscam, flamejam com chamas ensanguentadas e amarelas.
Em cima, até onde os olhos sobem mais, num trono de luzes, entre uma pesada cortina de damasco vermelho, de tons profundos, caída para os lados em pregas longas e largas, vê-se o Cristo, na alegoria de Redivivo, com a chaga simbólica no flanco direito, tendo numa das mãos um ramo verde.
Nos altares laterais os Santos, como que ainda mostram possuir a auréola triunfal da Aleluia, sorrindo seraficamente, quer os mártires, quer os gloriosos.
Pelo teto abobadado, dentre as melífluas harmonias, as melancólicas sonoridades dos violinos, das flautas, dos violoncelos e do órgão pianíssimo, ecoam majestosas as vozes que irrompem do coro, beatíficas no Kirie Eleison.
Os sacerdotes, festivamente paramentados, com as suas casulas custosas, relampejantes, bordadas a flores de ouro, em alto relevo; de estolas rutilantes e franjadas pendidas no braço ou com as sobrepelizes alvas e rendadas destacando forte na batina preta, curvam-se genuflexos diante do Altar-Mor, erguendo-se após com mesuras graves e medidas, enquanto os acólitos, ao fundo, em linha e reverentes, fazem balançar, cadenciada e ritmamente, turíbulos lavorados, de onde se exalam espiralados incensos…
E o Cerimonial prossegue, na minudência exata, escrupulosa, do Rito romano.
Mas, nas suntuosidades da festa, ressalta de magnificências, esmaltadamente, um esbelto sacerdote novo e formoso talhado em estátua branca, e que ergue no meio das outras vozes, a sua clara voz sonora cheia de unção religiosa como de um sentimento, amoroso e carnal.
Chagado há pouco de Roma é essa a primeira cerimônia de mais estilo em que toma parte com o seu tipo amável, doce e misericordioso, amantíssimo, de São Luiz Gonzaga.
A sua linda cabeça suave, direita, correta, através da vaporosidade incensal, domina pela saúde e pela mocidade, que resplende no rosto liso, escanhoado, onde os olhos brilham com raios místicos…
O seu porte ornamental, que aprece afirmar o poder de uma força divina, conserva-se aprumado, ereto; e, quando a voz se lhe desprende untuosa dos lábios, como que ele paira num esplendor espiritual, vaga num nimbo etéreo, cercado por alas de querubins inefáveis e de arcanjos de asas fulgentes…
De toda essa pessoa clerical como que vêm fluidos magnéticos, que fascinam e prendem certos olhares juvenis femininos, que a seguem, que a buscam em todas as direções, em todos os movimentos, sofregamente, deliciados da sua prodigiosa figura que ali naquele recinto sagrado tão imperiosamente e tão alto se destaca, como que revestida de poderes celestes.
E o sacerdote instintivamente percebe os êxtases, os enlevos que desperta nas mulheres belas, porque então dá mais nitidez às mesuras, requinta nas curvaturas solenes, fica mais excelso e egrégio ainda, deixando escapar com brandura um sorriso paradisíaco, que é talvez a promessa sacrossanta dos dons maravilhosos, das graças, do Perdão infinito que a sua onipotência consegue.
Nas suas mãos aristocráticas, delicadas e níveas como hóstia, sente-se quando ele as eleva no ritmo do Cerimonial, um ligeiro estremecimento amoroso que o embaraça, fazendo com que logo, para apagar essa impressão pecadora, exagere o Rito, afetadamente.
Os olhares femininos, deslumbrados pelo êxito daquelas maneiras evangélicas, não deixam jamais de seguir o airoso sacerdote, as linhas harmoniosas da sua figura, o seu másculo vigor de deus viril e vitorioso, como seguem, no circo, os movimentos ágeis, dúcteis, e a plástica, firme e forte, dos corpos cinzelados acrobatas célebres e atraentes…
Realmente, na sua carne, que os incensos perfumam, circula o sangue em labaredas de instintos sexuais e a sua cabeça primaveril, que a Arte da religião abençoou em Roma, tem o encanto, a fascinação diabólica, satânica, da venenosa Serpe bíblica.
Mas, o decorativo apóstolo, resplandecendo nas vestes talares, imponente, magistral, faz simbolicamente lembrar, assim venerado pelas mulheres, com fervor beatífico, um Sultão em palácio, no Bosforó, como Abdul-Azid, amado por odaliscas e sultanas.
De vez enquanto, no templo, passam fios etéreos de harmonias de instrumentos e cânticos, que ondulam, que flutuam no ar…
E o Eclesiástico, numa volúpia sacra, com toda essa Arte ritual de símbolos, de missais, de eucaristias, de pálios, de pedras de ara, de corporais, de âmbulas de santos óleos, de chamalotes, lavrados e damascos, íris, lhamas de prata e ouro, recebe a opulência, o brilho feérico, o luminoso esplendor de um astro.
De lá, do seu sólio real de aparatosos efeitos, entre sedas, chamas e pedrarias, ele rege, com renomes episcopais, solene e sereno, a sinfonia das eternas Dúlias.
É o ateniense das formas católica-romanas, triunfando no idealismo de um gótico, de um medieval, através de cinzeluras de templos, com refulgências siderais de constelado…
Casto cenobita, recluso nas celas do Cristianismo, ficará, talvez, para sempre com enlanguescimento histérico, na muda contemplação das cismadoras imagens liriais dos hagiológios.
Ou, batido da realidades carnais, sentindo a avidez das paixões terrestres, verá passar, ante os olhos mortificados na marmórea veneração de Jesus, à luz de círios ou de lâmpadas, violentamente, a visão cor-de-rosa das virgens vitais – fina, transparente epiderme da gaze auroral das papoulas.
Então, dirá decerto ao mundo, extasiado por essas vivas expressões carnais que o transfiguram e humanizam, todos os mistérios, todos os inauditos clarões da Eternidade, que Ele, artista Sacro, transcedentalmente conhece, lendo sempre, para dar mais abstração ao Miraculoso, os arcaicos latins apocalípticos e antifônicos…
VISÕES
Num brilho cintilante de tiara persa a Via-Láctea encurva-se do alto por sobre mim, nas alvas flores cristalinas das suas estrelas.
Encurvas-se sobre mim na pompa negra da noite densa, vagamente lembrando o luminoso esplendor de uns olhos dentre a pompa negra de aromados cabelos.
Como em arejados pátios claros de castelos renanos por que desfilassem visões germânicas, wills enamoradas e vaporosas, sílfides serenas e encantadoras, ao luar das baladas, década estrela frígida, branca, desfila, vai desfilando nas rutilantes esferas uma Ilusão, um Sonho e cada Sonho e cada Ilusão se corporifica, toma consistência dos nervos e cinzelada escultura de linhas, e eis então aí fascinadoras, deslumbrantes mulheres avassalando o firmamento como ampla Via-Láctea de corpos ondulantes e níveos…
Ah! mulher que eu procuro e deseja da tenda nômade da Arte, peregrina e fugidia sereia! que as harmonias deliciosas da tua carne não sejam misteriosas para mim como a Via-Láctea, a cujas estrelas, que representam cada uma Ilusão e um Sonho, está infinitamente presa, num amoroso eletrismo, esta alma ardente, alanceada e nervosa…
A JANELA
Dava para o mar a larga janela verde, em frente às águas também verdes e turbilhonante às vezes, outras limpidamente quietas, num remanso de golfo sereno.
Velas saudosas de navios, enfunadas ao impulso das correntes aéreas; mastreações caprichosas e confusas, misteriosamente interrogando o céu; os montes ao fundo, formando panoramas álacres com seus cabeços azulados e colossais, e a grandeza olímpica das ondas fechadas pela natureza numa extensa área do terreno: tudo gozava e sentia além viver a janela; e, ao longo de indefinida barra dos horizontes esfuminhados, a linha vaga, melancolizada, das imensas distâncias intermináveis.
Dum lado e doutro da janela, subindo-a, galopando-a festivamente em caracóis negligentes, a expansão, a nevrose de folhagens trepidantes que busca em ânsias o ar…
Rosas vermelhas e rosas jaldes alastravam numa primaveril e casta alegria radiosa de Via-Láctea, o quadrado verde da janela, enquanto amorosamente um jasmineiro florido, entrelaçado às rosas, com flores alvas e cheirosas desabrochadas em forma de pequeninas estrelas, punha um encanto romântico e noival de janela de Julieta na larga janela verde que dava para o mar.
E as embarcações, os iates, os navios, os paquetes paravam no mar dormente, lá iam todos afora, – ambulância marinha, dorsos de tritões ferozes e soturnos, vogando na superfície das ondas…
Iam talvez perto: a países meridionais, sob céus elegantes e azuis, ou – mundo adentro – às eternas neves glaciais das geleiras do polo: às regiões setentrionais das flamejantes auroras boreais: a Islândia, a Lapônia, a Noruega, Poe entre as frias e brancas estalactites fulgurantes da lua…
Em frente à janela, eram terrenos desapropriados e planos, que um rente folhedo luxuriante cobria.
Depois era o mar, sempre o mar, todos os dias, a toda hora, a todo instante, cortando, no entanto, com a monotonia do seu aspecto, a agreste monotonia daqueles sítios suaves.
Mas, contudo isso, o mar nenhuma monotonia parecia inspirar, porque dava à janela, àquele original recanto, àquele desconhecido retiro isolado, aberto na parede como o nicho de uma Santa, à recordação de todo o vasto ruído atordoante e culto da vida de longe: os rumorosos cais frementes, as movimentadas cidades alegres, os grandes portos febris da efervescente efusão cosmopolita de mil exemplares de povos.
Pela manhã, aparecia à janela, como um lindo sol feminino, uma bela mulher, forte, alta, loira, de flavos cabelos talhados dum golpe numa quente e perfumosa massa de luz e de sangue, clara da epiderme macia e clara nos rendados vestidos em fofos e folhos que lhe afogavam soberbamente a garanta bourbônica, arrematados por fitas de azul leve e doce, graciosamente enlaçarotadas sobre o sedoso colo oválico.
E logo seus olhos azuis como as fitas, da mesma meiga frescura e candidez de hóstia transparente, pareciam adejar, voar, como dois pássaros inquietos e deslumbrados, pela amplidão das vagas verdes e vivas, como se ambos quisessem nelas colher alguma certeza ou derramar alguma esperança.
E o seu perfil, sob o sol, alvorecido na janela, lavado nas frescas essências salitrosas que emanavam do mar, tinha florescimentos, resplandecências, um vivo fulgor d’ouro novo, derramando no ambiente eflúvios de magnólia.
Às vezes ela deixava-se ficar por mais tempo à janela – e era então ali uma deliciosa e cristalina ária de trinados, de matutinos gorjeios de pequenas aves que por entre a viçosa verdura da janela esvoaçavam em ruflos e contentamentos d’asa, em palpitações elétricas de plumagem, cantando para o espaço todo esse sonoro amor infinito dos pássaros que a sua estreita laringe metálica tão maravilhosamente sabe desfolhar em notas, como se essa mulher loira fosse a corporificação da própria aurora que raiasse dourada no acanhado horizonte enquadrado na florida janela verde.
E ficava ali constantemente a olhar, a ver o mar, talvez na esperança de algum sonho de afeto que de repente lhe surgisse e cuja enamorada lembrança lhe vibrasse o coração anelante, fazendo dolentemente o seu colo arfar, agitar-se numa onda nervosa de convulsão e alvoroço, inflado desse tormentoso e vago desejo irresistível do amor, que um dia vertiginou o mundo, e que, quanto mais afastado se está de quem se adora, mais fundo, mais entranhado fere e martiriza.
Pelas noites, quando o hostiário das estrelas abria a sua rendilhada cintilação de prata nos sidérios espaços calmos, ou as finíssimas gazes lácteas da lua flutuavam, velando tudo, ela, virgem noiva, branca e muda como a lua, por lá ficava ainda a viajar na gôndola da imaginação e fantasiosa saudade que a emocionava, através do mar, ao encontro sonhado do seu afeto querido.
E, tonta, magnetizada, narcotizada na emoliente volúpia da lua, na quente exalação dos aspectos, lá adormecidamente ficava a amar, presa na fluida teia luminosa das estrelas e da lua…
— Agora um muro enriquecido e alto que o musgo e o limo maciamente vestem de um veludoso verde escuro de tapeçaria, veio para sempre obstar a ampla vista azotada e alegre do edificante panorama do mar.
Para além, como um gigantesco protesto que a pedra opusesse às jubilosas, triunfantes, águas marinhas, o vai, longo e impenetrável, estendido em pano ríspido de parede socavada e cerrada, que tudo do mar avaramente encobre – levantado da terra como um brusco e bronco biombo de terra à livre expansão da luz.
Austeros homens egoístas, no intuito de edificar, apropriaram-se dos terrenos e para ali ergueram, dividindo-os, semelhante à rija muralha d’imperecível fortaleza, esse imenso muro empedernido, rochoso, como que feito de um só bloco inteiriço de calcária matéria rude.
Então, sem a perspectiva da alacridade vitoriosa e bizarra das ondas, sem aquela vastidão consoladora, salutar, das águas salgadas, e sem a visão branca dessa mulher, vive agora quase sempre fechada, triste e fria a reluzente vidraça clara eternamente descida, na meia sombra crepuscular da persiana, a idealizada janela verde – a florejante janela que abria, como um desejo vago, para o mar infinito…
UMBRA
Volto da rua.
Noite glacial e melancólica.
Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque nem a lua, nem as estrelas, ao menos fulgem no firmamento.
Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério.
Faz frio…
Cai uma chuva miúda e persistente, como fina prata fosca moída e esfarelada do alto…
À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros, veem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade.
A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos, revolta e calcária, com imensa quantidade de pedras brutas sobrepostas, dá ideia da derrocada de terrenos abalados por bruscas convulsões subterrâneas.
Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica onde se calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na morte…
MODOS DE SER
Com uma nobre emoção da Arte dizia Balzac que faltariam sempre cordas à lira de uma alma que nunca tivesse visto o mar.
Na verdade, sem o mar, sem esse organismo vivo, movimentado, vibrante, as perspectivas como que são indecisas, vagas, a retina pouco se desenvolve e educa sem essa larga vastidão das ondas, de onde parece subir, nascer para o alto, como uma luz original, todo o sentimento indutivo das coisas.
Diante do mar, à sua influência vital, que é a influência da força, do vigor do pensamento, as faculdades de cada um recebem impressões estéticas muito consideráveis, ampliando o seu modo de ser, dando-lhe a sugestão das latitudes geográficas, correspondentes também, para um espírito de indução e dedução fina e atilada, à amplidão das ideias.
Gozar o mar é viver, sentir a eflorescência da carne, crer n’algum poder forte e épico que nos encoraje, dê ao pulso e ao cérebro essa poderosa segurança de existir que levanta sobre rijos alicerces os princípios e crenças de cada homem.
Do mar vem essa emanação virginal, salutar, que traz o impulso às ações, o vigor nobre à vontade, dando a todo o organismo uma função especial, uma atividade própria, uma determinação expressivista da Natureza.
Os efeitos maravilhosos que a visão recebe do mar, como uma máquina fotográfica recebe nitidamente as fisionomias, desenvolvem-se nos temperamentos artísticos em impressões, em nuances, em colorações, em estilo, em linhas, em sutilezas de percepção, em ductilidade, em fiorituras de imagens, em abundantes floras de imaginação, tão múltiplas e luminosas quantas são as infinidades de ilhas verdes de algas e de sargaços que o mar contém em seu seio.
Ele infiltra nos órgãos emocionais e pensantes todo um exuberante eletrismo nervoso, todo um fluido de luz e originalidade, uma essência, um germe rico e novo de graça e fantasia alada.
Fica numa saudável impressão e frescura radiante de caça e pesca, numa alegria de sol undiflavando rouparias brancas e finas.
— Serenidade de Campo e Mar é esta em que estou agora.
Campo fértil, verde, como se agora mesmo brotasse, em flor, da terra.
Nas manhãs claras, de grande majestade de sol, pelos domingos, a missa da capela branca convida a digressar entre árvores, sob o festivo e claro repique do sino.
E, por estar no campo, numa extensão de relva, de verdurosas alfombras, lembro-me vivamente dos campos das paradas, ao sol, num espelhar faiscante de baionetas, rutilar de fardas e triunfal desfraldamento de bandeiras, quando, imensas, pesadas massas marciais, na evolução de um corpo disciplinar, agitam-se, num tinir e cintilar de metais, como enorme serpente de coruscantes escamas.
Com o espírito livre, em asa aberta, eu procuro arrancar das vozes mudas, inexprimíveis da Natureza, significações.
Campo e Mar estendem-se até longe, ao infinito horizonte, fulgurando às luxuosíssimas sedas do sol.
Elevados cômoros de areias alvas, ao longo das praias, conservam a aparência de grandes dorsos de elefantes brancos deitados.
Então, um ritmo me sobe da alma ao cérebro para me afinar os pensamentos em aspectos felizes, luminosos, como quando os alemães, fumando cachimbo e bebendo cerveja, por entre uma leve névoa ideal de fumo e álcool, mentalmente produzem filosofias…
Como essas raças finas e loiras a que nada mareia a pureza clara da carne civilizada, a ideia da Arte surge-me, alvoresce-me no espírito, diante das ondas, sideral, imaculada, como uma doce monja vestida de linho branco e virgem.
Estranhos, misteriosos, na magia dos feiticeiros caldeus, com o pensamento cristalizado na Forma, sinto que me ferem o cérebro, pesando fundo sobre ele, os nevropatas de agudez psíquica, mórbida, doentia, os psicólogos tenebrosos que como Huysmans, vibram num eletrismo histérico, numa dança macabra, satânica, num delirium tremens de sensações.
Ninfomaníacos mentais, como que sob a impressão de um sono de morfina ou de ópio, numa alucinação ou fascinação de hipnotizados, a alma deles flutua, desce sombriamente lá abaixo, ao antro negro da Terra, ou sobe lá acima, à infinita mudez do céu, como que em busca, sinistros e luminosos, revoltados Moisés de uma Bíblia nova, em busca de saber qual a doença que dá a morte…
Sentem-se-lhes isso na tortura da prosa, no funambulesco cabriolar do estilo, na acre violência das palavras, abertas umas em chagas e escorrendo sangue, outras brancas como noivas amadas derramando lágrimas astrais…
E, dentre esse exalar de vida espiritual dolorosa, rompem coros de catedrais entoados por veladas, místicas vozes freiráticas; ouvem-se Missas negras e abrem-se, num ritual cristão, para a contemplação dos augures e dos símbolos, os medievos Hagiológios.
NO FAÉTON
Na manhã fria, fresca de maio, por uma rua arreada, um noble esplendor de mulher iluminou-me e surpreendeu-me os olhos.
Numa elegância de pelúcias claras, o seu perfil delicado, um biscuit d’arte, surgiu em flor no faéton, alta a estatura, com a graça educada de amazona espiègle.
Nos amplos claros de aspecto arejado de gare, sob o espaço vibrante, sonoro como uma grande cúpula de cristal, o faéton girava, de manso, na doce flexão das rodas leves, como se girasse sobre macias relvas de veludo.
Os cavalos normandos, lustrosos no cetim do pelo, davam a correção, o tom das carruagens de molas flexíveis, suaves, das envernizadas caleches aristocráticas de luxo, cujos claros e polidos metais dos eixos cintilam.
Com uma linha fidalga ela manobrava as rédeas, nuns volteios audazes e galantes, a mão fremente, agitada, convulsa pelo ferir matinal do frio no sangue novo de gazela, com a orgulhosa atitude das ecuyères.
Algumas atenções paravam diante desse feminil deslumbramento desabrochado ao sol em aromas e formosuras.
No ar nítido, azul, fino do dia, duma limpidez deliciosa, o seu esbelto porte nervoso vinha ereto, num alto-relevo, destacando forte no fundo luminoso, transparente da manhã, como que cortado, talhado numa lâmina de vidro.
RITOS
A luz lirial da lua abre tu’alma, artista, como um solar antigo.
Sob a neve luminosa do grande astro noctâmbulo, as visões que um dia amaste aparecerão agora.
Ah! A tu’alma é um antigo solar, onde mulheres prodigiosas, enfloradas de beleza, peles finas, transparentes, de delicadeza de porcelana, passaram.
És um solar antigo…
Tens o ar enevoado do crepúsculo de melancolia que há nos velhos solares.
Alguma coisa de nostálgico, de evocativo, como vagos sons plangentes, à noite, ou à hora do Ângelus, na solidão dos campos levanta e acorda a tu’alma.
Teu coração é o Sagrado Viático, mais puro e branco que as claras hóstias.
De que fundo de civilização, de que ramo de raça, de que região viestes assim, numa original sensação de nervos, palpitante, convulso como o mar e como o mar sereno e também como o mar profundo e grande?!
Pelas tuas ideias, pelos teus olhos fatigados de ver e perceber de perto o incoercível mundo, passam as alegrias, as lágrimas, o intenso viver de muitas gerações.
Tu representas bem todas elas, és a essência espiritual de infinitas camadas humanas, o luminoso requinte dessas gerações que findaram e que não foram mais do que simples moléculas para formar o teu estranho, poderoso organismo de artista.
Sofreram, gozaram e pensaram – para que tu sobre elas fizesses nascer, surgir o mundo virgem das tuas impressões e ideias. E é por isso, artista, que abres tu’alma, como um solar antigo, à luz lirial da lua – apaixonada sultana que vaga à noite, que vigia e vela pela Religiões incomparáveis do Pensamento, seguida do fulgurante cortejo das estrelas odaliscas…
MULHERES
Magnólias de aroma lépido, finos astros, que elas sejam, olhos faiscantes, como águas dormentes de delicioso Danúbio que a luz sonoriza e doira, humildes e imperiosas, ninguém jamais saberá o mistério que as envolve…
Amar e gozar as nebulosas mulheres, mergulhar, engolfar a alma infinitamente, inefavelmente, em repouso, como num harmonioso luar, sem sobressaltos e ansiedades, na alma enevoada que elas ocultam sempre, só é dados às naturezas vulgares, que amam com a carne, que amam com o sangue apenas, no ímpeto brutal de todos os instintos, com a luxúria viva da carne, que fazia, desde os romanos, a carne viçosa e rica.
Os que a amam e gozam sensualmente, à lei da sexualidade, não lhes ouvem a vaporosa música embriagante do vinho dos encantos da voz e do sorriso; não lhes sentem o perfume delicado de úmidas bocas purpúreas, de níveos colos cor de camélia, de volumosos seios macios como a alava plumagem fresca de um pássaro real; não lhes percebem o amoroso ansiar de etéreas cintilações d’estrela nos olhos indagadores, que atravessam, costumam passar em visão, pesados de luz, com um brilho aceso e fagulhante de preciosas e raras pedrarias, as geladas noites brumosas do ciúme…
Para esses, que só as possuem sexualmente, elas trazem um deleite, um atrativo, como no Oriente o fumo, que dá prazeres insubstituíveis, voluptuosas graças de viver, atila e acende a imaginação, faz abrir e flamejar, incomparavelmente, de todos os pontos do mundo, os mais inauditos sóis do Espírito…
Esses, ainda outros ou todos, poderão decerto inundar-se no esplendor da beleza das mulheres, fruir delas toda a fremente carícia, possuí-las, dominá-las sem hesitação e embaraços estranhos.
Para todos elas não terão sombrias torcicolosidades de serpentes, anseios, anelos indecifráveis, enigmas tremendos, que nos deixam deslumbrados, extáticos, na mais intricada rede de perplexidade.
Elas serão para todos o eterno feminino, leve, simples, fácil a conquista, fácil a vitória, tendo para os homens os arrastamentos prontos de um animal que se abandona à lubricidade.
Ninguém saberá ver nas mulheres esse complicado segredo de nervos, que ora se patenteia claro penetrável e que ora mais se condensa, se intensifica de obscuridade, torturando, afligindo, vago, abstrato como a dor e por isso ainda mais terrível, mais esmagador e frio…
Só um ser, consubstanciado de todas as angústias, de todas as incertezas e dilaceramentos do espírito, um ser contemplativo, amargurado pelas análises, ferido sempre pela observação, pelas ideias que sangram e vivem perpetuamente a martirizá-lo, para seu gosto excêntrico e único, só esse ser as compreenderá, mudo e solene, encerrado na solidão dos seus pensamentos, como um missionário, alheio às exterioridades dos corpos delas, às linhas, ou só as amando por sentimento estético e analisando continuamente, sondando, perscrutando o feminino organismo dúbio.
Só a psicologia desse ser, que é o artista, saberá ver fundo o delicado ser das mulheres e penetrar nas sutilezas, nas direções variadíssimas e múltiplas que toma o seu espírito, à maneira das aves que voam alto, sem rumo, além, indefinidas na distância…
Esse poderá querê-las muito, adorá-las com outra chama sagrada; mas nunca as poderá amar carnalmente, friamente com os nervos – porque aparecerá sempre o analista sufocando o afeto espontâneo que não se delimita nem regulariza, o entendimento artístico, que ama a Forma, destruindo o fator humano que fecunda a carne, que perpétua a Espécie.
Quanto mais elas forem complexas, segredantes, tanto mais a análise se manifestará mais arguta, mais penetrante, de um modo experimental, nu, amplo; e as mulheres, afinal, ficarão diante do artista, como documentos palpitantes de uma dada natureza, provas flagrantes de paixões veementes, de desejos, de vontades, de uma infinidade de atributos e qualidades radicalizadas na alma feminina e que o pensamento do artista investiga, conhece, põe para fora, à toda a luz, como se expusesse, na presença do mundo, explicando a função de cada um, os milhares de glóbulos de sangue que circulam no organismo humano.
A dor de tudo isso, porém, a pungitiva dor de tudo, é que o artista não pode, assim como todos, espontaneamente amar.
Ele ama um golpe de luz, um olhar, a fascinação de uns cabelos quentes, a polpa virgem de uns seios, a graça idealizante e alada de um sorriso, o talho vermelho de uns talhos frescos, o tom das elegâncias fidalgas dessas flores escarlates das Babéis de ouro, que passam na corrente das civilizações e na febre, no delírio dos luxos fortes.
Vendo para dentro de si, como para o fundo de um mar prodigioso, ele domina com o olhar perscrutante, inquieto, que apanha de pronto as situações, a maravilhosa ductilidade das mulheres, vendo também perfeita e singularmente o que se dá dentro delas, as suas inquietudes, as suas paciências, os seus receios, os seus caprichos inesperados, as suas volubilidades doentes e curiosas, as suas resoluções bruscas, os seus ímpetos de leoa, os seus enternecimentos ingênuos e monocórdios, os seus momentos horríveis de crises hiper-histéricas, sem causa determinada, sem assinalamentos de origem, mas assoberbantes, convulsos e que de repente cessam como vieram, para tornarem ainda, mais desabridos e persistentes.
As mulheres, para o artista, para e estesia exigente, requintada, são apenas um elemento de sugestão estética amoldável às necessidades artísticas do sugestionado. Elas falam, abrem-se mesmo ao amor em rosas fecundas de sinceridade, dizem os ardores apaixonados, as recônditas sensações, a vida íntima dos eu afeto; mas o artista as ouvirá, como artista que é, a frio, simulando interesse, formando já, mentalmente, com as palavras delas, com essa confissão franca, pura e sentida, embora, verdadeiras páginas de emoção e estilo.
E, no entanto, ele as quererá amar muito, eternamente e sem reservas, abrir-lhes os braços ao amor, com todas as forças másculas, vigorosas e livres de homem, com a firmeza mais casta dos carinhos e das ternuras, estremecendo-as, idolatrando-as.
Mas, um ligeiro contato apenas, um leve roçar de lábios, um abraço desfalecido, murcho, algumas frases balbuciadas materialmente, ao acaso – e aí estará de novo o mentalizado, o espiritual, descendo a investigações, medindo cada gesto e cada olhar, inquieto, aflito com a expressão de um toque de luz numa trança de cabelos, que ele quer levar para a sua Obra ou preocupado com o fino Sèvres que fulgurou uma noite em certo boudoir, faiscando centelhas d’astro.
Contudo, quando esse luminoso torturado as vê descendo ou subindo os átrios claros de palácios festivos, altas Walquírias de neve nas pompas orgulhosas das sedas que roçagam, como que fica preso, magnetizado por aqueles aromas fluidos, vivendo na auréola majestosa do clarão que elas de si desprendem; e então, como na cauda constelada e rojante, os fulgores sedosos levam aspirações, sonhos que ficam errantes e que quereriam talvez subir ou descer, opulentamente, como as deusas resplandecentes, os mesmos festivos palácio de átrios claros.
Entretanto, não é aí o amor, o sentimento que se manifesta ainda na alma artística; não é uma expansão afetiva – mas uma verdadeira expressão d’arte, um desejo de posse, que logo invade as naturezas dominadoras, altivas, onde as ideias predominam, atuando, fatais e intensas, nos fenômenos da Vida, os mais elementares ainda.
O que excita o artista, seja nos átrios claros de palácios ou em toda a parte, é simplesmente a Forma, é toda essa roupagem deslumbrante que faz as mulheres parecerem auroras boreais; o que lhe incita a pensar nelas, a desejá-las, é a plástica olímpica, o onipresente esplendor das curvas cinzeladas, os mármores coríntios, o alabastro dos corpos flóreos... O que o surpreende, deixa atraído e fascinado é o ar gelado da carne alva das loiras, que deliciam, o ardente sol tropical da carne tentadora das morenas, que cheiram a sândalo e matas.
Amar as mulheres, profundamente, com simplicidade, com singeleza, sem cuidados latentes de observá-las a toda hora, com os mínimos detalhes, linha por linha, traço por traço, sem essa preocupação doente que as exigências provocam, não é para a concentração, para a contenção nervosa dos falangiários da Arte, que, de todas as coisas, querem arrancar o germe de que necessitam, o pólen que lhes é mister para a fecundação de sua Obra.
A linguagem feminina, algumas fiorituras das frases passageiras constituem, de certo modo, um tecido primoroso, os fios delicadíssimos com que a Arte contextura, urde a tecelagem da Forma.
Mas o desolado psicologista do Pensamento não as pode amar com intensidade e desprendimento espirituais, sem as querer observar sempre, desataviá-las das plumagens garridas e ver-lhes, à luz, o que elas sentem e pensam de nebuloso…
Por isso é que muito naturalmente, por intuição própria, elas percebem que não poderão jamais amar os artistas, tendo até para eles uma repulsão como que instintiva e sendo mesmo indiferentes às suas solicitações mais veementes e calorosas.
Vendo-se a cada instante o objeto das interpretações deles, reveladas através de seus pensamentos tão recatados como os seus seios, os pudores dos seus corpos angélicos, em tantas páginas dilacerantes e impiedosas, as mulheres não buscam sistematicamente os artistas para amar, feridas nos seus orgulhos melindrosos, nas suas vaidades excessivas e principescas, nas suas finas susceptibilidades de formosos seres triunfantes e inaccessíveis.
Só raramente, por singularidade, uma ou outra mulher ama o artista, quando já acaso existe nela qualquer corrente de simpatia mental, qualquer relação de afinidade que estabeleça entre ambos uma claridade e harmonia de sentimentos mais ou menos congêneres, equilibrados.
PERSPECTIVAS
Naquela alvejante planura de areias salitrosas, onde o mar espumeja; naquela fulgurante extensão de praias brancas, indizíveis de pitoresco, felizes os olhos que se demoram, com o carinho, o afeto das coisas, a gozar as riquezas, o encanto, a imponência imortal dos aspectos.
Nas manhãs, céus louçãos, de um leve ar azul, azotado, fresco, pacificam o porto, adoçam os horizontes, inefavelmente.
Ocasos opulentos, feéricos, imprimem às tardes a mais suntuosa e serena majestade.
No mar, ao largo, entram e saem navios de alto bordo, numa infinita beleza de excêntricas formas requintadas, em caprichosos estilos diversos, mastreações aparatosas, parecendo enormes aparelhos estranhos para maravilhosamente arrancarem do fundo das ondas o misterioso deus das algas, da lenda secular e virgem dos hirsutos tritões verdes.
Marinheiros terrosos e fuscos, como que sujos a betume; outros louros, flamejantes do sol, do ouro cantante da pele, dão à paisagem sã, revigoradora e larga, tons álacres e acres.
Das vagas, como exóticos monstros marinhos, as rubras e arredondadas cabeças das boias, aqui e além, emergem.
Os mastros avultam, enchem prodigiosamente o mar supremo, sob a flava cintilação do dia; e, assim firmes, aprumados ao alto, ao firmamento, parecem tochas imensas para a celebração do Te Deum sideral dos astros, nos templos pagãos dos navios.
À noite, peregrinadoras estrelas, em claras chamas sagradas, no espaço ardem.
Uma lua virginal, aureolada de branco, irrompe fria e magoada, com um ar antigo e desolante de histerismo atormentado, como as freiras que envelhecem nos claustros.
Hálitos, vivos estremecimentos elétricos, passam, perpassam no dorso Glauco das ondas que o luar então alastra…
Mas, o que mais enternecidamente enleva e perturba até as lágrimas, num sentimento intenso, de recôndita vibração, é um simples lenço, um adeus febril vertiginoso, em ânsia, que ali fica às vezes a palpitar ao sol, infinitamente, na emoção de uma alma, para a vela que vai já além confusa na distância, desaparecendo, perdida nos longes esfuminhados, infinitamente, infinitamente…
CAMPAGNARDE
O dia abriu um explosão d’ouro, dum ouro inflamado de forja, trescalando perfumes, cheirando acremente à terra.
Tu, gárrula vivandeira dos prados, que ao primeiro rumor sonoro do teu coração amoroso, como ao alegre rufo bizarro dum tambor de guerra ou à esfuziante vibração matinal de uma trompa de caça, toda estremeces e fremes, voltas agora púrpura dos campos onde te fecundaste, desabrochaste e floriste logo em papoula.
E voltas mais púbere, mais virtual, mais mulher, porque sorveste o leite o leite virginal e sadio aos abundantes seios da Natureza.
Quando para lá foste, o teu corpo frágil, tênue, traspassado do azulado enraizamento arterial das veias, era quase diáfano, transparente, vitrescível quase, através do qual bem facilmente a aurora coaria os seus flavos raios rútilos, como através de um delicado e aromático filó finíssimo, cor-de-rosa e translúcido.
Além disso, quando para lá foste, eras infantil ainda, ainda a ave implume, e entrarias daí por diante, como por uma zona de sol, nesse luxurioso período genesíaco da mulher, quando suas formas se ampliam, se completam e perdem essa volatilidade aérea, o borboletismo, essa tonalidade vaporosa da primitiva graça, para irem aos poucos adquirindo opulências, exuberante vigor germinativo no sangue que as alimenta, enlabareda e fecunda, arredonda e turgesce triunfais e alucinantes no colo as duas polposas saliência carnudas, das quais, em busca da instintiva subsistência, pende, mais tarde, como astros no firmamento, o encanto virgem dos filhos.
Mas, agora que de lá chegas, vens florescente como a vinha verde, dum sabor de uva branca, inundada do palpitante pólen dourado da antera dos vegetais, das emanações revigorativas da planturosa paisagem. Trazes a carne emadurecida, sazonada em fruto, exalando essências de campos, sutilíssimos eflúvios de vergéis, alastrada de brilhos quentes, de elétricas faíscas narcotizantes, como se o teu imaculado torso inteiriço irrompesse, brotasse do noivado da Natureza no mesmo veemente e original impulso das árvores e dos rios.
Perfeito, soberbamente rico e raro, Campagnarde! esse humor campestre, esse alagamento e deslumbramento de luz com que regressas da Vida, do seio livre da grande amplidão da saúde, onde tudo, afinal, são concentradas forças, pujanças novas para o sangue, renascimento para a carne.
Ninguém, por certo, calcula, a ninguém sugere, por certo, a alta realidade do quanto é salutar e é nobre e supremo bem que lá se goza nos campos e como o corpo abalado pelos inevitáveis golpes da matéria falível, resiste o espírito, o fluido nervoso, dando à existência o equilíbrio sereno.
Nenhum pincel colorista, nenhuma entranhada emoção ou visão impressionista d’arte, nenhuma perciptibilidade acústica de músico, poderá bem com exatidão apanhar a cor, o sentimento, a errante, dispersa harmonia que se eterifica na liberdade dos campos e que assim te penetrou pelo coração e pelos olhos, primorosamente enflorescendo e viçando no teu corpo de graça, lirial e formoso.
Abres a veludosa e cerejada boca e os teus esmaltados dentes rutilam – lisos e claros – enrijados nos ares puros, nas frescas águas correntes, nos frutos castos e doces. Falas, e atua voz, em músicas, desfolha notas de canção feliz da tu’alma; e a tua voz pelo espaço voa, voa, voa de eco em eco, infinitamente, inefavelmente, parecendo então reproduzir o teu nome, Campagnarde! Campagnarde! e eternamente desdobrá-lo, arremessá-lo ao longe, por colinas e vales derramá-lo, Campagnarde! Campagnarde!
RITMOS DA NOITE
Lá fora a noite é estrelada e quente.
Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés com intensidade. No Londres, uns imbecis dourados de popularidade fácil saudaram-me, e, nessa saudação, senti o ar episcopal das proteções baratas que os conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos.
Eu percebi o conselherismo e tive uma careta, uma grimace diabólica de ironia…
Oh! Oh! infinitamente incomparáveis os caríssimos imbecis dourados de popularidade fácil…
— No meu quarto, entro, enfim, agitado, da rua, com mil ideias, com mil impressões e dúvidas e fundamente considero, tenho tão estranhos monólogos mentais, que quase que me alucinam.
A luz da vela, em torno à sombra do quarto, põe uma claridade velada, penumbrada, quase morta.
Um retrato de Daudet, pendurado à parede, parece ter para mim uma piedade no seu fino perfil de Cristo alemão.
Ah! por que será que na hora dos estrangulamentos supremos, quando a dor nos alanceia e torna velhos, os objetos têm todos, para nós, uma feição singularmente diversa da que têm sempre – ou sinistra, ou agressiva, ou piedosa?
Por que será que nas longas noites desolação, quando uma ventania de desespero sopra por trompas de bronze do nosso peito, todas as coisas desfalecem aos nossos olhos, as perspectivas se anulam, os astros louros se apagam e a própria luz de uma lamparina ou de uma vela projeta claridade dúbia, que antes punge, que antes apunhala e dói, do que alumina!?
O coração cerra-se-nos de uma névoa triste, e, como um solitário monge, põe-se a balbuciar não sei para que mundos distantes, orações indefinidas, kiries eternos e nostálgicos, de um nebuloso sentimentalismo, que estão no fundo de todos os seres espirituais.
São fluidos íntimos, virginais, da alma, que sobem para o desconhecido; são incensos inefáveis de que está cheio o turíbulo do nosso amor e que, nos lancinantes momentos em que se desmorona para nós alguma força nobre, alguma força edificante, partem candidamente para as regiões do Ideal, país jamais descoberto e que só o pensamento logrou conhecer…
Vão lá saber qual é a tecla sombria que vibra o nosso organismo em certas horas, qual é a corda que pulsa, quais os nervos que se agitam!
Por uma impressionabilidade indizível, por um toque no orgulho, por uma mancha no cetim branco da Arte, lá fica uma nobre cabeça doente, sob a febre das nevroses, sentindo eboluir o sangue em chama e sentindo até que o cronômetro regular do pulso alterou a marcha das vibrações…
Tudo o que nos vem às ideias são princípios de demolição, de destruição, armados das rijas couraças e das agudas lanças da sua inevitabilidade.
O mundo surge-nos logo como uma formidável floresta dos tempos primitivos e só tremendos animais de uma colossal corpulência urram e bufam sanguinolentos.
E a noite, que verte fel no espírito, arrebatando-o não sei para que inferno de agitações, não sei para que tercetos do Dante, ainda mais peadas barras de chumbo arroja sobre o florido arbusto da Crença, cujas flores luminosas já a indiferença humana calcou a pés, ou a ruidosa, jogralesca multidão dos cafés desdenhosamente cuspiu em cima.
E, nessas batalhas, batalhas vivas, acres, onde o coração está eternamente a sangrar, a sangrar; nesses rudes combates, ao mesmo tempo tão puros e fidalgos, a carne é o menos que fica ferido, os músculos são o menos que se perde, os nervos o menos que se atrofia.
O que se perde de todo é a alta penetração da Vida, do Mundo e dos Homens, para terrivelmente se adquirir uma doença amarga, aguda e dilacerante, que se constitui das frias e tortuosas análises e que se chama – Psicologia.
SUGESTÃO
Tu, quem quer que sejas, obscuro para muitos, embora, tens um grande espírito sugestivo.
Os jornais andam cantando a tua verve flamante, pertences a uma seita de princípios transcendentais.
Na tua terra os cretinos gritam, vociferam.
Não sabem o que tu escreves. Não entendem aquilo… Palavras, palavras, dizem.
Tu tens, porém, uma tal orientação, uma tão profunda firmeza artística, que não te abalas com a vozeria que se levanta. Pelo contrário! À bateria de frases ríspidas, que te assestam, rompe do teu cérebro a bateria viva das ideias. Não recuas, escreves.
Tudo quanto a imaginação pode criar de imprevisto, original, surpreendente, vais arrancar à nevrose da composição, encrustar, como pedrarias, na escrita cinzelada, cujo estilo apuras e aprimoras com verdadeiro êxtase de uma devotada seita religiosa.
E, apesar das frases que te dirigem, cercam-te apoteoses. E isso, conquanto simules o contrário, sempre te desvanece.
Então, para que o teu esplendor seja maior e mais completo, andas a preparar um livro de estilo nobre e que, segundo pensas nas horas de nervosismo psíquico, há de fazer sucumbir no lodo da banalidade a turba triunfante dos imbecis.
E assim, com a tua elevação mental e disciplina, julgas-te profundamente feliz. Não trocarias o teu espírito pela ostentação e pompas do mundo. Ah! se tu tens a pompa das ideias!
O cocheiro mais agaloado e galante, guiando o mais elegante coupé tirado por éguas de raça, de amplas ancas carnudas e luzidias, cheias de nervosidades, de altivezes bourbônicas, com um fino sentimento mulheril nas linhas, tudo isso, artista, não vale a página mais simples, mais frouxa, sem mesmo maior ornamentação de estilo, que tu, por acaso, escrevas.
Nem tu trocarias todo o veio virgem do ouro do mundo pelo livro que daí a meses deve entrar para o prelo.
Os reclamos soam pelos jornais, como clarins. Andam já longe. Caminham. Chega já ao domínio de todos a notícia. Há ansiedade. Espera-se a obra. Vai aparecer, brevemente, cintilante, a duas cores, em tipos Elzevires, vistosos e claros, com o teu retrato, papel satin, nas lustrosas vitrinas, acendendo um clarão em torno do teu nome, como um facho de fama.
Mas, um dia, vais ao teatro, um acaso, por exemplo. Sentas-te na poltrona junto à orquestra. Num intervalo suas demasiadamente. Estás abafado do calor da noite tórrida. Precisas de ar, de refrigerantes. Um sorvete, um gelado.
E, seguro de teu vigor de mocidade, da tua saúde e do radiante rubor do teu rosto, que é admirado na rumorosa cidade onde habitas, tomas, sem o maior receio, o gelado que te trazem.
Daí sentes-te logo como que atordoado.
Não estás bem. Calafrios agudos percorrem-te a espinha. Vertigens cálidas fisgam-te a cabeça. Ardem-te os olhos e se umedecem sob a luz flagrante e crua da ribalta; mesmo o gás te dá mais febre; parece que te estalam as fontes, latejando fortemente – e tu não podes mais ficar, nem um instante sequer, na vasta sala iluminada e cheia de multidão matizada que formiga e aplaude.
Então, um de teus amigos te conduz à casa, já abatido e quase sem voz; e, mais tarde, passados dias, corre a dolorosa notícia, – ó amargurado Espírito moderno! – de que morreste de uma pneumonia aguda…
E após a tua morte ainda se haveria de contentar o teu merecimento. Muitos diriam:
─ Também não deixou um livro que significasse a sua individualidade.
E outros responderiam:
─ Mas deixou escritos nos jornais.
─ Ora, jornais! jornais são papéis avulsos, vivem o curto espaço de um minuto ou de um segundo e, muitas vezes, até sem os lermos, com os mais resplandecentes pensamentos contidos em suas colunas, os deitamos pela janela fora… Um livro sintetiza qualquer individualidade. Não se pode acreditar, portanto, não há documentos que atestem, criticamente, o valor intelectual desse escritor que morreu…
Daí então, só no preciso decurso de tempo para o teu cadáver apodrecer na soberana indiferença da terra, aparece o teu livro, aquele mesmo onde tanto trabalhaste, que fecundaste de ideias, onde tanto derramaste o vivo poder de teu cérebro, onde consumiste uma porção de sangue e de nervos, assinado, e com outro título, por uma vulgaridade batráquia, na qual toda a gente acredita, e, oh!! comparando-a contigo, acha-a mais superior, extraordinária, sem igual até.
E tu, lá embaixo, ficarás, na frialdade da terra, sem nunca teres vencido! com ironia dessa glória de néscio a rir de ti, perpetuamente, à chuva, aos vendavais e ao sol, do alto da tua cova!
SOFIA
Foi na sala branca, de leves listrões d’ouro, que eu a vi interpretar um dia ao piano Mendelsohn, Schumann, as fugas de Bach, as sinfonias de Beethoven.
Tinha um nome bíblico, lembrando palmeiras e cisternas: chamava-se Sofia.
Era alta, de uma brancura de hóstia, como certas aves esguias que os aviários conservam e que aí vivem num grande ar dolente de nostalgia de selvas, de matas cerradas, de sombrios bosques.
Nervosa, de um desdém fidalgo de fria flor dos gelos polares, e triste, traía a Arte aquele altivo aspecto, a orgulhosa cabeça ereta em frente às partituras, que os seus olhos garços liam e que os seus dedos rosados e aristocráticos executavam com perfeição, com claro entendimento nas teclas.
E de todo esse nobre ser delicado, de todo esse perfil de imagem de jaspe, irradiava uma harmonia vaga, melancólica, uma auréola de pungitiva amargura, mais desoladas que as sinfonias de Beethoven, como se todas aquelas músicas excelsas tivessem sido inspiradas nela.
— Ó aromas, sutilíssimas essências dos finos frascos facetados do luxuoso boudoir dessa musical Magnólia; aromas vaporosos, maravilhosos perfumes que incensais, à noite, de volúpia, a sua alcova, como as purpurinas bocas das rosas, falai a linguagem alada que as vozes humanas não podem falar e dizei os murmúrios estranhos dos sentimentos imperceptíveis, imaculados, que alvoroçam a alma ansiosa dessa sonhadora Sofia.
Só os aromas, só as essências terão os eflúvios castos, os fluidos luares de expressão, o ritmo inefável para contar que latentes palpitações traz Ela no sangue, que chama d’astro lhe inflama o peito, quando volta triste dos concertos egrégios e vai enclausurar-se na alcova, – muda, muda, talvez sob a névoa de lágrimas, na comovente concentração dos que morrem amando…
MANHÃ D’ESTIO
O azul hoje amanheceu numa melodiosa canção, duma consoladora carícia veludosa de arminho, duma doce e suavíssima frescura de maçã rosada – brunido, reluzente, como um raro bronze florentino finíssimo, vivamente cheirando a violetas, a jasmins e a rosas machucadas.
Na cristalina sonoridade do côncavo páramo aberto há uma etérea música que passa em fios sutilíssimos de luz e de aroma pela sua transparência diamantina e velada, como um líquido radioso e fragrante através duma primorosa safira.
E o canto de um pássaro, que além atravessa o céu é mais brando, é mais tenro, então, mais harmonioso e sereno, prende, emociona e arrebata mais porque vai cheio desta ambiente fluidez matinal, desta vaporosa e delicada tonalidade aérea, deste fino sentimento amoroso de impoluto noivado dos elementos naturais animados, destes, enfim, deliciosos tons alegres que dão um rico sabor à terra, uma vibração luminosa aos aspectos e um mais meigo encanto imaculado aos frutos que pendem das árvores e às flores que coloram, dulcificam tudo com a graça, a inefável candidez de sorrisos.
Os arvoredos recortam nitidamente no ar as suas ramagens intensas, cujo verde orvalho cintila, e as palmeiras, que mais de perto avisto, altas, sobrepujando os outros arvoredos, como a afirmação soberana do poder germinativo, aprumam-se, firmes, desdobrando no alto as suas verdejantes plumas que tremeluzem nas arfantes aragens.
Na pradaria florida os gorjeios crescem, trinados festivamente cortam o espaço, voos, rumores d’asas, claros e argentinos ruídos frescos de rios, chiantes carros dormentes de lavouras tomando o vermelho e risonho atalho murmuroso dos campos relvosos, entre a implorativa plangência mugidora dos tardos bois melancólicos; movimentos agrícolas de enxadas, de sachos e arados, todos os instrumentos e aparelhos rurais, cavando, mondando, preparando a terra para as culturas, avigorando-a e adubando-a, dando-lhe a larga força nutriente aos germes para que ela opere e produza, farte infinitamente a todos de sazonadas colheitas.
E toda essa orquestração da Natureza e do trabalho, todas essas impetuosas, palpitantes correntes da Vida, enchem o ar de alvoroço, de alarido, duma religiosa bênção panteísta e de um cântico enlevador que desce consolativamente sobre as coisas – como se toda a seiva, vegetal e humana, estivesse na gestação poderosa, da fecunda elaboração de mundos virgens e novos.
Nós, artistas, que dissipamos toda a nossa mais bela e opulenta porção de glóbulos rubros para arrancar à Natureza a sua latente verdade; que nos embevecemos na contemplação, no misticismo do céu; que de tudo ansiamos pelas recônditas, encantadas origens; que tanta vez nos mergulhamos no azedume e na inclemente maresia do tédio, achando a vida gasta, acabada, falazes e mentidos os seus lantejoulados, fascinantes enlevos, trememos de comoção, ficamos extasiados quando essas perspectivas se nos antolham assim d’esplendor, trazendo ainda à nossa desvirilizada e já quase decadente estrutura moral um pouco de alento, heroísmo e força, de sagrada virtude de pensamento e gloriosa envergadura espiritual para a luta, hauridos a plenos sorvos nos abundantes mananciais de luz, na soberba caudal imensa da Natureza fecunda e generosa.
Porque só a Natureza, germinalmente só ela, nos sabe dar à alma e ao corpo esta nobre saúde, estas estoicas atitudes épicas; porque só ela nos comunica os seus emotivos impressionismos, nos penetra os seus evangélicos, pensativos silêncios e recolhimentos alpestres, tão empiricamente transvasados no neblinoso luar dos Sonhos e tão relicariamente votados ao culto como os santuários; só é dela que vem a crença robusta que nos põe no peito como que afiadas lâminas de espada para destruirmos bizarros as mil venenosas cabeças da formidável serpente da Dúvida; só ela nos veste dessa flamante irradiação de aurora da qual emergimos vitoriosos, no fluido ouro resplandecente da aurora da Vida; e só ela, enfim, nos lava do mal, nos purifica como a salitrosa salsugem do mar glauco nas salutares e matinais travessias d’alacridade picante, quando se volta das ondas numa eflorescência pagã de Tritão marinho, no luminoso frescor primaveril e sonoro dum viçoso ramo silvestre ruflante de revoadas de coleiros e gaturamos cantando.
Um clarim, uma trompa de caça que por aqui vibrasse, como numa pastoral da idade média, nesta formosa manhã perfumada, apanharia, tomaria destes murmúrios todos, pelo fenômeno acústico da recepção e transladação dos sons, como em placas fonográficas, todos os profundos e vagos ecos e os levaria então para longe – derramando-os, espalhando-os em cada placidez sedentária de sítio, em cada remanso bonançoso de campo, fazendo renascer a brava cultura ingênita das terras, palpitar o rijo pulmão d’aço do movimento incessante, pulsar, latejar vinculativamente as artérias da fecundidade e circular em todo o sangue oxigenado, ardoroso e produtivo que gera e fortalece tudo e que não é mais do que o Sol eletricamente entranhado nas mais profundas raízes de tudo.
APARIÇÃO DA NOITE
Fria aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!
Tu vens da neve, das algidezes cruas da neve; e eu não sei bem se é a neve que te faz frio ou se és tu que fazes fria a neve.
Há, contudo, em ti, algum calor, que não é inteiramente a vida, mas que suaviza os punhalantes regelos da neve; que não é o sol da tua carne, a chama do teu corpo, mas um quente raio d’estrela, a estrela de teu olhar aceso como velas místicas no recolhido e sagrado santuário de uma Capela.
O luar seja contigo, seja contigo o luar emoliente e lascivo, este luar equatorial que não é dia nem noite, mas uma doce penumbra velada do sol do teu sorriso – como se sobre o sol do teu sorriso, para dulcificar a intensidade do foco da sua luz, quando tu eras astro inflamado, que ardias, força latente, matéria animada e pulsante, se houvesse colocado um transparente abat-jour verde, branco, azulado e amarelado, conforme é, às vezes, a refração luminosa da Lua.
Mas tu deveras aparecer-me, fria Visão da meia-noite, dentro de uma redoma de cristal, por entre um resplendor de lágrimas, para eu então poder assim crer no teu encanto, no teu mistério de meia-noite.
No entanto, aqui me aparece, metida em pelas de Astrakan, melancólica, pálida, vaporosa, livorescida quase, como aquelas belezas apagadas e tristes que vêm dos frígidos ares desolados do Norte.
Porque tu acabas de vir da Rússia agora, das fulgurantes estepes, da ostentação militar do Tzar de ferro, ouvindo os clamores da dinamite.
Vens das hirtas margens do Neva para os coruscantes fogos tropicais das terras da América. E chegas ainda virginal e pubescente para a irradiação angélica do Véu, para o simbolismo cândido da Grinalda de flores de laranjeira, para a bênção serena e perfumada do noivado.
Chegas a tempo…
E se queres um noivo, se andas em busca de um noivo, aí tens, pois, o Luar, frio como essa natureza fria, e alvo, lirialmente alvo, como tu.
Aí tens o Luar…
Envolve-se à sua clâmide de linho, mergulha-te nos seus flocos de prata, ó meiga Eslava triste, meu desmaiado amor e heliotrópio branco dos sonhos, que aqui vieste findar eternamente a vida nessa nostálgica doença nervosa de melancolia que trouxeste do teu país polar, muito longe nos gelos, e que até te dá já a névoa densa, a espessa nuvem dolorosa das ilusões que se transformam em nuvens.
Vens para sempre extinguir-se sob esses tórridos mormaços, nessa doença histérica de que ninguém na tua pátria pôde decerto determinar a pugentíssima origem, e que não é mais, nada mais é, talvez do que a doença do clima, do spleen das tardes, das exaustas paisagens sem seiva; as displicências amargas à hora dos longos ocasos taciturnos, quando adormecidamente as campinas e as planícies incultas nevam e o horizonte é uma trespassante angústia crepuscular que desola…
Aí tens o Luar…
Cobre-te nessa musselina fúlgida, veste essa finíssima gaze diáfana…
Abre os primorosos olhos de Madona, castíssimos, chorosos e macerados, e absorve pelos cílios todo esse nosso fluido e luxuoso azul; e fecha depois esses teus primorosos olhos também azuis…
Sorri ainda uma vez, como num supremo frêmito final de ave ferida no peito; agita amorosamente, languescidamente, numa poeirada d’ouro, como na última noite de beijos da remota paixão que se foi, a loira e divina cabeça astral, leonina e dourada; tem um derradeiro estremecimento convulsivo e sonoro de cordas d’harpa em todo o níveo corpo; cerra à música celeste, eucarística da voz para sempre os lábios, e, assim, nesse láteo nimbo seráfico da Lua, fica em êxtase, na doce, na infinita quimera misteriosa da morte, numa leve graça idealizante e alada de voo etéreo de querubins, como quem está dormindo ou como o sol que emperdeniu e gelou…
Fria Aparição da meia-noite, o Luar seja contigo!
ESTESIA ESLAVA
Como os embriagados de kava da Polinésia vou tartamudeando e soluçando sob as paixões, ó águia, Águia Germânica, imperiosa e dourada!
Uma estranha harmonia de “Dança macabra” de Saint-Saens me entorpece e invade em lágrimas negras de notas.
Todo o meu pensar e sentir estacou de súbito agora, como um nervoso cavalo da Arábia a que se refreia o bridão, diante da tua plumagem d’ouro da tua envergadura d’asa valente, – ó águia! dourada Águia humana e Germânica, que tudo de mim para sempre levas, esperanças e sonhos, impetuosamente arrebatado no alto, ao impulso fremente das tuas garras alpinas.
E eu fico em ânsias no vácuo, num vago anelar indefinido, como as aspirações do perfume que quer ser luz…
Mas um pedaço de horizonte ao longe marcando as infinitas distâncias e uma língua de terra aprumada em monte, tornam-me tangível o sentimento da realidade; e, então, claramente vejo e sinto, desiludido das coisas, dos homens e do mundo, que o que eu supunha embriagamento, arrebatamento de amor nas tuas asas, ó loira Águia Germânica! – nada mais foi que o sonambulismo dum sonho à beira de rios marginados de resinoso aloendros em flor, na dolência da lua nebulosa e fria, à alta paz do Azul, sob as pestanejantes estrelas rutilamente acesas…
TÍSICA
Lânguida e loira, tinha, na verdade, um ruidoso e festivo acordar de canários.
Quando o dia vem triunfalmente cantando por todas as gargantas de ouro dos pássaros, perfumado por todos os prados de rosas, rumorejando por todos os sonoros veios cristalinos de fontes, ela erguia-se também do leito, cantando, numa alegria comunicativa que iluminava tudo e ia para o piano soluçar no teclado, lindas barcarolas e valsas.
Quanta vez eu ouvi, e quantas outras a vi no rés do chão que enfrentava a minha morada, sempre com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.
Como era feliz, e que ruidoso e festivo acordar de canários tinha ela!
— Chegou, afinal, o inverno.
A emigração das andorinhas começa em voos incisivos, que frisa o espaço translúcido de ruflagens d’asas…
Os grandes frios pedem as grandes capas de lã para as mulheres, os confortáveis regalos de pelúcia, as luvas, que agasalham, que protegem as mãos, os pardessus e os largos fichus para a cabeça.
Desprende-se já do éter as fortes lestadas de vento e chuva, destruidoras e rijas, arrepiando e convulsionamente contorcendo os galhos das árvores, que amarelecem.
Amanhece-se tiritando sob o fulgurante ar frígido das geadas, que nevam os plácidos campos.
E, lá, à cima das serras altas, nas desprotegidas cabanas onde a miséria habita, tiritam também de frio e desamparadamente morrem, com uma chama azul no olhar vítreo, as loiras e morenas virgens tísicas que na estação passada levaram a trabalhar nos rudes amanhos da lavoura e a mourejar nas longas vigílias amargurosas da agulha.
— A tísica! a tísica! Essa doença simbolicamente dolorosa e triste, que devasta os lares como os cortantes invernos devastam as searas! Doença artística e desolada, que dá um aspecto eminentemente romântico a todas as mulheres, como àquela violeta de Parma, flor dolente e venenosa do amor, essa Margarida Gautier, roxo lírio inefável de melancolia plantado à margem de lagos furta-cores de quimera, e que a mais abrasadora paixão, a febre mais intensa, o tufão ardente de um fundo e desvairado sentimento para sempre emurcheceu e desfolhou!
Doença amarga! que soturnamente devorando os pulmões, põe em redor de quem a sofre um magoado impressionismo de saudade e uma névoa gelada de sepulcro…
E as virgens que morrem dessa doença tão atormentadora e serena ao mesmo tempo, levam para o túmulo, na crispação dos lábios entreabertos e violáceos, como derradeira e a mais pungente ironia da dor, o desmaiado sorriso da última esperança, do último sonho, da última ilusão que tiveram sobre a Terra.
— Há muitos dias já não a vejo, a lânguida Loira.
Não sei porque, mas a sua ausência inquieta-me.
Eu quisera sempre vê-la, como dantes, pálida, lânguida e loira, com um vermelho esmaecido, manchado, em ambas as faces.
Porém, ela não aparece, não vai, como então, sentar-se ao piano, no luminoso purpurear das manhãs, fazendo soluçar no teclado lindas barcarolas e valsas. E isso punge-me n’alma de tal modo que eu procuro saber o que é feito dela e dizem-me que adoeceu.
─ Adoeceu! E de quê?
─ Está tísica. O médico diz que não durará muito.
─ Tísica! Tão moça e tão bela! E que ar festivo tinha ela. Como cantava! Que sonoridade de voz! E tudo isso agora acabar, morrer…
— É certo, aflitivamente certo o que me disseram. Ela vai morrer!
Vejo-a continuamente de uma palidez clorótica, os olhos de um brilho cru, agudo, que faz febre; as orelhas diáfanas, muito despegadas do crânio; o nariz cada vez mais afilado e desfalecido; toda ela de uma amarelada transparência de morte, de uma magreza hirta, como essas santas mártires do cilício que vivem nos claustros fechados e austeros de pedra, olhando entre grades para céus fuscos, com olhos cheios dos fluidos místicos do Panteísmo, e que parecem subir, através de nimbos, além, às empíreas regiões dos excelsos arcanjos alvos de luz…
Vejo-a constantemente, através de vidraças, sem brilho de vida quase, como um astro vesperal prestes a apagar para sempre todo o seu clarão diamantino e virgem.
E, no entanto, nos intervalos lúcidos da doença, que lhe abrem no peito, às Esperanças, como um esplendor de força nova, de vigorosa saúde, o piano vibra de quando em quando, sob as suas mãos febris, trêmulas, nervosas e cadavéricas, alguma melodia triste de casuarinas gementes, um desvairamento histérico de lágrimas, a fina música nostálgica no fim de tudo – talvez essa suspirante serenata de Schubert, cujo ritmo saudoso tão profundamente nos invade a alma e a entristece e no qual parece haver gritos e soluços de amor entrecortados pela agonia torturante da morte…
ORAÇÃO AO MAR
Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas!
Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências…
Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial!
Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas como castas adolescentes! Mar dos sóis purpurais, sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No teu seio virgem, de onde se originam as correntes cristalinas da Originalidade, de onde procedem os rios largos e claros do supremo vigor, eu quero guardar, vivos, palpitantes, estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas.
Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre vivificante, eles se perpetuarão, sem mácula, à saúde das tuas águas mucilaginosas onde se geram prodígios como de uma luz imortal fecundadora.
Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os profundos e amargos Salmos luteranos que elas cantam eternamente, estes pensamentos acerbos viverão para sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes e mudos.
Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que conserves no íntimo da tu’alma heroica e ateniense toda esta dolorosa Via-Láctea de sensações e ideias, estas emoções e formas evangélicas, religiosas, estas rosas exóticas, de aromas tristes, colhidas com enternecido afeto nas infinitas ideias do Ideal, para perfumar e florir, num Abril e Maio perpétuos, as aras imaculadas da Arte.
Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão estes pensamentos melhor guardados do que no fundo das tuas vagas cheias de primorosas relíquias de corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes…
Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas páginas se eternizarão, sempre puras, sempre brancas, sempre inacessíveis a mãos brutais e poluídas, que as manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes e desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e claridade, que as leiam…
Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas alacridades salgadas, picantes, primaveris e elétricas que os matinais esplendores derramam, alastram sobre o teu dorso, em pompas; pelas confusas e mefistofélicas orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear, pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais, que te revolvem; pelas nostálgicas sinfonias que violinam e choram nas harpas das cordoalhas dos Navios, ó Mar!
guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as ideias que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler, a meditadoras estrelas, à emoção do Ângelus espiritualizados e, majestosamente, envolve-o, deixa que Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras olímpicas dos teus ocasos…
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...