3/01/2023

Lira da Mocidade (Poesia), de Faustino Fonseca

 



LIRA DA MOCIDADE
PRIMEIROS VERSOS



A MEU AVÔ
O SENHOR ANTÔNIO RODRIGUES DE FREITAS

 

LIRA DA MOCIDADE

Os versos na mocidade
 Todos fazem, e a razão
 É serem necessidade
 Aos risos do coração.

O futuro cor de rosa,
 O mundo cheio de encantos;
 A nossa alma jubilosa
 Não chorou amargos prantos.

Desde o ar que se respira,
 Ao céu da cor de safira,
 Tudo ri e diz— Amar!

E contemplando a beleza,
 O sorrir da natureza,
 Sabemos todos cantar.


ELA

O busto escultural e primoroso,
 O braço torneado, a linda mão,
 O rosto aveludado e tão mimoso
 Que da rosa assemelha-se ao botão.

O cabelo dum negro tão lustroso,
 A boquinha vermelha, ó perfeição!
 O olhar dum fulgor tão radioso,
 Que beleza e ternura de expressão!

Ao vê-la devaneio, fico louco,
 Creio que o meu amor todo inda é pouco
 Lembrei-me, e se deixasse de a adorar?

Pode deixar de amar-se os astros lindos,
 Do céu e terra os dons os bens infindos,
 A luz doce e tão pura do luar?


O MAR

Gigante irrequieto, imenso mar,
 Inspira-me tão funda nostalgia
 O teu sonoro e doce murmurar!

Quando ao sol posto a areia luzidia
 Tu vens tranquilamente rebeijar
 N'alma despertas maga poesia.

O teu esverdeado transparente
 Fala-nos meigamente de esperança
 A ondular poético, dolente,

Beijado pelas auras da bonança;
 Parece-me o brincar puro, inocente,
 Inofensivo e meigo da criança!

***

Mas quando agitas o teu seio imenso
 No voltear das vagas alterosas
 Rugindo com fragor enorme, intenso,

Já não tem expressões harmoniosas
 Teu palpitar e nessa hora eu penso
 Em coisas bem sinistras, pavorosas.

Ó monstro, no teu seio tens sumido
 Vitimas aos milhões, causas terror,
 Tens navios, cidades engolido.

Será um coro de vingança e dor
 Das vítimas, ó mar, o teu rugido,
 Ou do remorso o pávido clamor?


31 DE JANEIRO DE 1891
(Aos Revolucionários do Porto)

Foi há um ano já! Leais, ardentes
 Filhos do nosso querido Portugal,
 Viva, viva a República! Valentes,
 Bradaram em hosana triunfal,

Ao som da Portuguesa revoltados,
 Hastearam ao sol nosso pendão,
 E pelo Justo Ideal, rudes soldados,
 Lutaram sempre até morder o chão!

Os cerbéros fiéis da monarquia
 Afogaram, porém, a rebeldia
 Em ondas de bom sangue, carniceiros!

E os bravos que lutavam com esperança
 Caíram a bradar: Ódio! Vingança!
........................

 É tempo já! Vingar os Companheiros!


O GUERRILHEIRO
(Excerto)

..........................
..........................
Na luta, sim! Na luta! Ela há de ser perigosa,
 Tem força o estrangeiro e nós desamparados,
 Na luta, sim, na luta! Antes a morte honrosa
 E contra o invasor todos somos soldados.
Na luta, sim, na luta! A pátria tão querida
 Não querem ambições estranhas respeitar;
 Não sabem que para nós ela é santa guarida
 Onde temos família, a mãe, a esposa, o lar!
A pátria! O berço querido aonde nós brincamos,
 As doces ilusões, formoso éden de amores,
 O prado onde corremos, onde balbuciamos,
 Onde tudo são risos, onde tudo são flores.
Imaginar alguém que pode impunemente
 Roubar, acometer a nossa boa terra!
 À luta havemos de ir desassombradamente,
 E por todos os meios lhe faremos a guerra!
À luta! Hão de correr os rudes camponeses,
 À luta! Hão de chegar os destros marinheiros,
 À luta! Hão de acudir todos os portugueses,
 À luta! Havemos de ir contra esses estrangeiros!
Os rios, a montanha, as selvas, o arvoredo,
 As pedras da calçada, os vagalhões do mar,
 O solo, o próprio solo! A voz do fraguedo,
 Tudo isso contra eles se há de levantar.
À luta! Há de ecoar num gigantesco brado
 Da extensa planície ao recôndito vale,
 O povo há de acudir. Um homem um soldado,
 Um soldado um herói para salvar Portugal!


PORQUE TE AMO

Amo-te porque és tão linda
 Como é linda a luz do sol,
 Tens o frescor da alvorada,
 Tens a cor afogueada
 Como os tons dum arrebol.

Amo-te porque és tão bela
 Como é bela a flor mimosa
 Que viceja num jardim,
 A açucena ou o jasmim,
 O lírio, o cravo, uma rosa.

Amo-te porque fascinas
 Com esse olhar fulgurante
 Que asseteia os corações,
 Desses olhos dois carvões,
 A graça do teu semblante.

Amo-te porque és bonita
 Com esse preto cabelo,
 Em anéis fulvos, sedosos,
 Cobrindo os ombros formosos
 Fulgurante, crespo, belo.

Amo-te enfim porque és meiga
 Qual pomba que arrulha mansa,
 Porque és boa e carinhosa,
 E esta alma angustiosa
 Precisa de amor, criança.

Precisa de amor! Não sabes
 Que é lutar o viver?
 O homem sofre amarguras
 Por isso busca ternuras
 No seio duma mulher.


A SAUDADE

Era de tarde ao pôr do sol, a brisa
 Vinha fagueira a remexer as flores,
 Iam velozes sobre a fronte lisa
 Do Tejo de ouro de ideais amores,

Ligeiros barcos, avezinhas mansas.
 Desferidos em harpas geniais,
 Por virgens de olhar meigo e loiras tranças,
 Vinham trenos sublimes, ideais.

O mundo todo pleno de harmonia.
 Eu, só, fitava a solidão do mar
 Dominado de ideal melancolia.

E que buscava então na imensidade?
 É que me vinha fundo cruciar
 O acerado espinho da saudade!


ESPERANÇA

Fitei o teu retrato tristemente
 Cansado do trabalho, sem alento,
 O espírito meu nesse momento
 Sofria acerbamente, amargamente.

Contemplei-o e dei-lhe um beijo ardente
 Para desafogar o sofrimento,
 Pareceu-me que sorrias, pensamento
 Que me passou no cérebro latente.

E fui abandonado pela tristeza,
 Recobrei para a luta mais vigor
 Trabalharei tenaz e com firmeza.

Vou-me tornar estoico contra a dor.
 Eu vi nesse sorrir de tal beleza
 A firme esperança dum eterno amor!



À MEMÓRIA DE ALFREDO LOPES

Viver! O que é viver! Arrastar a existência
 No vasto labirinto onde só reina a dor;
 Num pouco de matéria é guia a consciência
 Quase a perder-se a força, a faltar o valor.

Morrer! Passar além! Da luta repousar,
 Deixar por uma vez do mundo as agonias;
 Descer à terra mãe, os lírios fecundar,
 Servir de refeição aos vermes nas orgias.

Mas coisa alguma nasce e coisa alguma morre.
 Transforma-se a matéria em mil combinações:
 Seiva, no vegetal as hastes lhe percorre;
 Sangue, faz palpitar os nossos corações.

Tu então não morreste; apenas desta lida
 Imensa, em que mostraste o fulgido talento,
 Descansas. No teu corpo há ainda essa vida
 Que palpita da terra ao próprio firmamento.

A vida da matéria. Então belas, formosas,
 Por cima dessa campa onde agora repousas,
 Hão de brotar de ti as lindas flores viçosas
 Na vaga poesia harmônica das coisas.

Rosas a recordar teu risonho futuro,
 A tua juventude os cravos em botão,
 O martírio o finar na dor tão prematuro,
 O cipreste a lembrar teu grande coração!


A REVOLUÇÃO

Campeia a tirania, esmaga, oprime,
 E da vontade o déspota faz lei,
 Do povo a justa voz cala, reprime,
 Ou ditador, ou presidente, ou rei.

Calca aos pés os direitos mais sagrados
 E trucida os que querem reagir,
 Apoiam-no as baionetas dos soldados
 Não teme pois da plebe o rebramir.

Mas de repente os ódios comprimidos
 Estalam sanguinosos, em rugidos,
 Irrompem como a lava do vulcão,

Fazem voar o trono em estilhaços,
 A liberdade impõe com rudes braços,
 É a tua grande obra — Revolução.


ASPIRAÇÕES

Oh! Quem me dera beijar-te
 A tua face rosada,
 Esses lábios de carmim.
 Oh! Quem pudesse abraçar-te
 E gozar, ó gentil fada,
 Carícias ternas, sem fim.

Quem pudesse contra o seio
 Estreitar-te e essa boquinha
 Sorvê-la num beijo quente,
 E sentir-te em devaneio
 Palpitar, gozar, louquinha,
 Carícias de amor ardente.

Desprezando os preconceitos
 Selemos com esse amor
 Potente da nossa idade,
 Estreitando os nossos peitos,
 Em plena vida de amor,
 Mil juras de felicidade!

Que dizes, linda, pois coras?
 Antegozas as delícias?
 Suspiras rubra de pejo?
 Ou na tua mente enfloras
 Esses milhões de carícias
 O amoroso dum beijo?

Pois bem, gozemos, meu anjo,
 E sejamos sempre queridos
 Um do outro, minha flor,
 E das delícias o arcanjo
 Venha achar nos sempre unidos
 Gozando do nosso amor!


OS CREPES DE CAMÕES

Portugal jaz por terra! Esta pátria querida
 Dos fortes, dos heróis, dos rudes marinheiros,
 Esta nação valente, homérica, aguerrida
 Que soube rechaçar outrora os estrangeiros,

Jaz por terra abatida! A bandeira de glória
 Que fulgurou ovante ao sol de cem combates
 E sempre há de brilhar, aqui, em toda a história
 Que foi desde o Brasil às regiões do Gates.

Hoje roja-se no pó! De tudo o que tivemos
 De brio, heroicidade, altivez e coragem
 Nada nos resta já! Parece que viemos
 Perdendo tudo, tudo, em fúnebre viagem!

A própria honra se foi! Um insulto cruel
 Fez agitar um dia o lodaçal enorme,
 Houve gritos de raiva, amarguras de fel
 Mas já tudo passou! E o povo dorme... dorme!

O derradeiro arranco! Ao pobre moribundo
 Não resta de esperança um lampejo fugaz,
 Hoje existe somente a mostrar-nos ao mundo
 Um sepulcro marmóreo, um fúnebre aqui jaz.

Sintetizou outrora um esperançoso ideal
 Em honra do cantor das nossas tradições,
 Hoje existe de pé por sobre o tremedal
 Um símbolo de morte:
 O luto de Camões!


A BORDO

Vamos no alto mar, a noite lentamente
 Encobre pouco a pouco a abobada celeste;
 Há pálidos clarões das bandas do ocidente
 E sopra uma rajada aguda de Nordeste.

Corre a todo o vapor, com ímpeto potente
 O navio rasgando a superfície agreste
 Do gigantesco oceano. As ondas febrilmente
 Tem o tom verde-negro e triste do cipreste.

Só vemos céu e mar, o horizonte enorme,
 Cercados pelo gigante imenso que não dorme
 No monótono circo é plena a solidão.

Nessa tremenda luta o pensamento humano
 Mostra pujantemente, ao dominar o oceano,
 Um cérebro o que vale! o que é um coração!


ROSA EM BOTÃO
(A. E. S.)

Que lindo botão de rosa,
 Oh! como é bela esta flor,
 E tens inda mais valor
 Por seres oferta amorosa.

Gentil, risonha e mimosa
 Elvira imitas na cor;
 Ela é pura como a flor
 E tu como ela és formosa.

Mas, apesar da parecença,
 Sempre existe uma diferença
 Em que te distinguis dela;

É que a rosa tem espinhos,
 Elvira ternos carinhos,
 Que a tornam inda mais bela.


TEMPESTADE E BONANÇA

Soprava rijamente o vento Norte
 E caía um terrível aguaceiro;
 Enorme escuridão, lembrava a morte...
 Mas não descria o rude marinheiro!

Rugia o mar e ao sofrer o corte
 Da proa revoltava-se altaneiro,
 Varria o tombadilho. Sempre forte
 Ia o vapor correndo audaz, ligeiro.

Ecoava o trovão. Mas de repente
 Ao vendaval sucede-se a bonança,
 O nevoeiro esvai-se lentamente,

A chuva para, o oceano amansa;
 O sol mostra seu disco reluzente,
 Nos rostos pairam os sorrires de esperança.


AS ESTRELAS

Da minha alegre janela
 Vejo uma nesga do céu;
 É noite serena, bela,
 Espaireço o olhar meu,

A contemplar as estrelas
 Que cintilam diamantinas,
 Recorda-me sempre ao vê-las
 Tuas graças peregrinas.

Que queres, pois se te não vejo,
 Como outrora, na varanda
 Trocando frases amantes?

Por isso mando-te um beijo
 Na brisa suave, branda,
 Fitando os astros brilhantes.


CEMITÉRIO

No cemitério alvejam mausoléus
 De pedras rendilhadas e custosas;
 Elegantes, guindados coruchéus;
 Epitáfios, legendas caprichosas.

Ali jazem os ricos. Nas pomposas
 Inscrições se vai ler os nomes seus.
 Em outras campas só se veem rosas,
 Goivos, martírios, contemplando os céus.

A jazida dos pobres. Trabalhando
 Morreram e ali estão alimentando
 A terra onde essas flores se vão nutrir.

Enquanto os outros distraídos, fúteis,
 Viveram ociosos, sempre inúteis,
 E nem sequer de estrume vão servir!


A PROSTITUTA

A rua é miserável, suja, estreita,
 Como um terrível antro criminoso,
 E duma porta a prostituta espreita
 O transeunte lubrico, cioso.

É repelente, quanto mais enfeita
 O cabelo postiço e untuoso.
 Teve ilusões, quem sabe, hoje desfeita,
 A graça desse rosto alvar oleoso,

Veio cair naquele lodaçal
 Onde se espoja torpe, embriagada,
 Até ir decompor-se no hospital

Se o amante que tem a desgraçada
 Não lhe der caridoso, bestial,
 O descanso para sempre à navalhada.


AMOROSO

Eu amo-te, amo-te tanto
 Talvez não saibas o quanto
 Meu coração fazes pulsar;
 Talvez não saibas, ó linda,
 Como a tua graça infinda
 Me faz viver para amar.

Amo-te a face formosa,
 Amo-te a boca de rosa,
 Amo-te o negro cabelo,
 Amo-te o gesto mavioso,
 O sorrir casto e bondoso,
 O olhar gracioso e belo.

Adoro-te a singeleza
 Que é engaste da beleza,
 Amo-te o lindo rubor
 Com que te purpurizaste,
 Quando tremula escutaste
 As juras do nosso amor.

Encontrei-te, o meu coração
 Satisfez a aspiração
 E tenho um novo viver.
 Acho mais belos os prados,
 Os tons do sol mais dourados,
 Em tudo o amor julgo ver.

Oh! se o teu amor assim
 For tão ardente por mim,
 Não haverá nada igual
 À pura felicidade
 Dos dias da mocidade,
 Ao meu risonho ideal.


A CARIDADE

I

Caridade, quem és! Quem te inventou?
 Para que serves, quais os meios teus,
 A tua agência, assim, quem ta arranjou,
 Para que vens falar-nos sempre em Deus!

Em Deus! Quando o universo ele criou
 Legou a alguém riquezas ou troféus!
 Quais foram os brasões, que bens doou?
 Venderia indulgências lá dos céus?

Mentes, que nunca fez separações,
 Nem fez a fome nem as privações,
 O mundo concedeu à humanidade.

Mas como é que há então ricos e pobres?
 Como é que existem os plebeus e os nobres?
 Que significas pois, ó caridade?

II

Rebanhos a pastarem nas campinas,
 As aves a cruzarem-se no ar,
 O serpear das águas argentinas,
 Os frutos a dourarem no pomar;

A pureza das auras matutinas,
 Os dias que o bom sol nos vem dourar,
 As flores acetinadas, purpurinas,
 As poéticas noites de luar;

Os campos no sorrir da primavera,
 A selva, as fragas onde vive a fera,
 O universo em toda a imensidade,

Nunca foi concedido por herança.
 Era para humanidade a esperança
 De um dia conquistar a felicidade.

III

Os maus, porém, puderam com presteza
 Empolgar o que a todos pertencia.
 O sangue era direito a uns — Nobreza —
 E aos de hoje o dinheiro — A burguesia —

E foi assim que os bens da natureza,
 Que o criador a todos concedia,
 Se viram disputados com fereza,
 Se viram empolgar com ousadia.

E apareceu a fome. Então aos pobres
 Os ricos atirando com uns cobres
 Inventaram um Deus de caridade.

Mas haverem lutar, embora custe,
 Depor de todo a Caridade-embuste.
 Hastear a bandeira da Igualdade!


AS REVOLUÇÕES
(Excerto)

... Um de nós que cair
 Das entranhas da terra há de fazer surgir
 Milhares de vingadores prontos a combater.
 Pela causa da pátria a quem custa morrer?
 O sangue vai regar a árvore bendita
 Da santa liberdade! O fogo que crepita
 Aldeias a queimar, cidades e castelos,
 A forca gemebunda, os gumes dos cutelos,
 As algemas de ferro, as fortes legiões,
 A chuva da metralha, a boca dos canhões,
 Sacrifícios cruéis, o jugo do tirano,
 Esmagando o direito, o pensamento humano,
 Isso tudo o que vale! Conseguirá deter
 O carro do Progresso?...
... Tu lembras-te de ver
 O mar quando revolto agita o dorso hirsuto,
 Num palpitar gigante, ameaçador e bruto
 O que faz ao navio, o mais forte que seja?
 Sabes a vaga enorme que ele altivo dardeja,
 Como destrói as naus mais ricas e possantes,
 As frotas que sepulta numerosas, gigantes,
 Como galga furioso anteparos muralhas.
 Ele joga os rochedos como se fossem palhas,
 E vai cavando sempre e sempre transformado
 A miséria, a ruína, o lodo sepultando?
 Detenham-no vão pôr-lhe um dique, uma corrente
 Para que não avance, obstáculo potente,
 Ele deve temer os fortes paredões.
 Galga tudo porém!...
... Assim as revoluções
 Por sobre a sociedade avançam triunfais
 Entre os hinos de amor e fúrias de chacais,
 Entre rios de sangue e tremedais de lama
 Hasteando por fim libertadora flama
 Os povos redimindo!...


EM VIAGEM

Noite de lua cheia, pura brisa
 Agita caprichosamente o mar
 Onde o navio rápido desliza,

Dentro da superfície circular
 Formada pelas águas buliçosas
 Que a abobada celeste vem tapar.

As nuvens, em manadas caprichosas,
 O vapor desafiam na carreira,
 Passando em turbilhões vertiginosas.

Defendendo o navio, precavida,
 As águas vai tingir de rubra cor,
 A lanterna vermelha, suspendida,

E faz correr do flanco do vapor
 Um jacto cor de sangue, qual baleia,
 Ferida pela mão do trancador.

A proa corta a vaga que volteia.
 Há um arfar gigânteo, convulsivo,
 Dum imenso coração que bate e anseia.

E daquele organismo, forte, vivo,
 Saem soluços de estridor medonho,
 Saem rugidos dum toar altivo.

Esse gigante que se ri do oceano
 É criação, quase milagre, sonho,
 Doutro gigante, o pensamento humano!


LIRISMO

Quisera possuir a lira harmoniosa
 Dos vates geniais, dos reis da poesia
 De Camões ou do Tasso, o Dante ou Címaros
 A bela inspiração a doce melodia.

Para te descrever em rima caprichosa
 O meu amor sem fim, ir com a moda queria,
 Dedicar-te um poema e chamar-te formosa
 Tratar-te por Marilia em vez do teu Maria.

Mas os versos por mais que faça vão errados,
 Não soam nunca bem e fogem à medida,
 E por isso não quero estar com mais cuidados.

Gosto muito de ti, bem o sabes querida.
 Mas não posso imitar os outros namorados
 Piegas que em idílio arrastam toda a vida.


MINIATURA

O céu puro e sereno,
 O mar auri-fulgente,
 O ar tépido, ameno,
 O campo sorridente,

A rama do arvoredo,
 A frança dos salgueiros,
 A voz do fraguedo,
 Que límpidos ribeiros!

Ao fundo entre a folhagem
 Beijada pela aragem
 Risonha reclinada

Estavas tu, Elvira.
 Eu empunhando a lira
 Cantei a minha amada.


DESCRENÇA

Trabalho. E cada dia que decorre
 Vem trazer-me maior desilusão.
 É mais uma esperança que me morre,
 É mais um fundo golpe ao coração.

E acreditava, louco, no direito!
 E cria, visionário, na honradez!
 Inda abrigava puras no meu peito
 Ilusões que este pântano desfez!

A ganancia, a ambição, a intriga vil,
 Como sapos e rãs num lodaçal,
 Asquerosos, vão tudo macular.

Vence o ladrão, o néscio, o imbecil
 Oh! Quem tivesse o rir de Juvenal,
 Um raio para orgia fulminar!

 

LUAR

Como é linda esta noite de luar!
 Nos raios de fulgor fosforescente
 Vejo recordações do teu olhar!

Fico então a cismar. Mas de repente
 Uma nuvem pesada, vagarosa,
 Lembra-me de que estás saudosamente

Tanto longe de mim! E pesarosa
 Fica minha alma a contemplar o céu
 Enamorada, crente e desditosa.

E contudo diviso um sorrir teu
 No puro azul destrelas cintilante
 Onde vagueia o pensamento meu!

Tudo consola um coração amante.
 A crença de que estás também fitando
 O lindo céu de mundos fulgurante,

O nosso puro amor idealizando,
 Isso me basta ao coração amante,
 E me vai a saudade mitigando!


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo 2023.

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