3/01/2023

Laudas Inéditas (Poesia), de Augusto de Lima


LAUDAS INÉDITAS


LENÇO DE CAMBRAIA

Como alvíssimo lenço de cambraia,
de prantos e perfumes ensopado,
que pelo mar agita o bem amado
à bem amada que ficou na praia...

Viajor do futuro mar nublado,
minha alma agito (ó sonhos, perfumai-a)
à mocidade amiga que desmaia
nos longínquos azuis do meu passado.

Ó sonhos, perfumai-a, que de prantos,
se algum lhe falta, nestes pobres cantos
novos prantos e lágrimas abrigo.

Triste irrisão do meu martírio imenso!
o ausente leva o lacrimoso lenço,
mas minha alma ficou, não vem comigo.

 

VOZ DAS COISAS

Aos ouvidos do vulgo indiferente
passa o rumor das coisas. Quem me dera
vertê-lo em notas de harmonia austera,
o original guardando fielmente!

Quem não sabe cantar também não sente
a sinfonia que o silêncio gera
através dos espaços, onde impera
a música dos sóis eternamente.

Sons vagos, indecisos e serenos
passam por ti, ó vulgo, sem ao menos
este rumor das coisas entenderes.

Entendê-lo somente ao poeta é dado,
que é seu destino andar arrebatado
na sugestiva música dos seres.

 

VOZES NA SOMBRA

– Quem és tu? Quem és tu?
– Eu sou a Negação.
– E tu, quem és?
– Eu sou o espaço e a duração,
princípio e fim eterno.
– Eu sou a Fé.
– Eu sou o Raciocínio
– Eu sou...
– Basta de embuste: a infância humana já passou,
unamo-nos num vínculo fraterno.
Que é o numero? O Abstrato aqui, aquém e além...
O corpo é a negação do espaço que o contém,
o espaço é uma palavra,
uma palavra o tempo, a ordem, a sucessão...
Palavras de palavra: eu sou a negação,
o incêndio destruidor que, pelos mundos, lavra.
– Deixa-me que te apalpe: o nada é que tu és;
aonde alças a cabeça, onde assentas os pés?
– Ah! também tu me negas,
como eu te nego a ti: um de nós é demais...
Pois bem! Vamos lutar em condições iguais,
confiemos ao caos nossas refregas
Salve, crença universal!
– Salve, ó Nada!

 

EPÍLOGO

Luz...
Éter...
Alma...
Sombra dissipada...

 

REQUIESCAT

Dorme em paz, alma outrora altiva e forte,
dorme, agora mesquinha em tua tumba;
não mais a glória ardente que retumba
vibrará teu olhar que sela a Morte!

Sonha em paz: não há luta que conforte,
nem há vivo ideal que não sucumba;
da grilheta mortal que ao chão te chumba,
nunca mais te liberte a vária sorte.

Descansa em paz do torvelim medonho,
em que andaste envolvida, sem bonança,
em busca da Miragem e do Sonho.

Descansa, sonha e dorme. O tempo avança.
Não me sigas no abismo que transponho,
dorme em paz, sonha em paz, em paz descansa. 



OS SENTIDOS

Há uma correspondência que equilibra
todas as formas num consenso eterno:
dos sentidos humanos cada fibra
liga a nossa existência ao mundo externo.

Os olhos querem luz; flores, o olfato;
frutos, o paladar; o ouvido, arpejos;
macia polpa cetinosa, o tato;

o coração, afeto; os lábios, beijos.
Há, porém, de outras laços um sistema,
que a natureza em nós conserva inerte:
para a ciência e a fé sempre é problema;
basta, no entanto, um toque que os desperte...

E como vós, ó sensações, outrora
adormecidas no organismo estáveis,
eles dormem também, presos embora
ao turbilhão das coisas impalpáveis.

Cérebro humano, criador da Psique,
centro radial do cosmos consciente,
para que ainda mais perfeita fique,
deixa que as formas Psique nua ostente!

Em suas pomas virginais bebidas
pelos nossos sentidos, a ciência
confundirá na comunhão da vida
o homem e a terra, o amor e a inteligência.

 

NOITE DE ESTIO

Vem, dá-me a tua mão. Vamos sozinhos
amar-nos nesta noite a céu aberto...
o estio brilha nas estrelas, perto
de nós cantam de amor os passarinhos.

Devem ter mais doçura os teus carinhos
neste sítio de humano lar deserto.
Não ouves um cicio? São, decerto,
os amores das plantas e dos ninhos.

E, ao abraçar-te, louco de ventura,
envolvendo-te, amada criatura,
com meus beijos ardentes e fecundos,

A tiorba do amor canta no espaço,
o éter germina e, dentro em seu regaço,
num beijo sideral se unem os mundos.

 

NO MAR

Em verde-negro, esconso lenho,
discorro o mar, de além a além...
O céu me pede o que eu não tenho,
o mar me nega o que ele tem.

O céu me pede a crença e o pranto,
matar-me a sede o mar não quer:
mesmo com o mar posso, no entanto,
da minha mágoa o céu encher?

Quem me mandou a esta viagem?
Donde parti? Quando embarquei?
Qual meu roteiro? A que paragem?
Devo voltar? Não sei, não sei.

Que estranha voz... rumor das vagas...
sombras além... névoas talvez...
Quem sabe? Estão próximas plagas
onde aportar por uma vez.

o mar não fala. É uma ilusão.
Pensar em praia é uma loucura,
aves não há nesta amplidão.

Desmaia a luz... o vento esfria,
na água dormente a ressonar...
 Por que o tremor que me arrepia,
fitando o céu, fitando o mar?

Cai sobre mim a Noite imensa.
Que ela confunda em seu negror
as sombras vãs da minha crença,
a rouca voz do meu pavor!

Mudez e treva, olvido e nada...
Melhor. Não sinto o espectro meu.
No berço-esquife a alma encerrada
pensa, talvez, que já morreu!

 

DEVANEIO DO SUICIDA

Ao surdir da matéria, a vida aspira
a uma vida melhor, ou fauna ou flora:
a primitiva planta que respira
o animal primitivo humilde adora.

A vida adora o instinto, ao qual se curva;
o instinto inquieto um novo sonho esboça,
e pede, alçando aos céus a face turva,
um novo ser que dominá-lo possa.

E de espécie em espécie, de elo em elo,
vai a cadeia orgânica subindo...
Eis o ente humano, e a natureza, ao vê-lo,
proclama-o rei e o seu trabalho, findo.

Lançando em torno o olhar e o pensamento,
o homem é presa de fatal vertigem,
e, a debater-se no deslumbramento,
pergunta à natureza a sua origem.

E perguntando a origem donde veio,
sente-se escravo de uma entranha escrava,
e de um ignoto anelo inflando o seio,
o olhar perscrutador no espaço crava.

Ei-lo adorando a aurora no oriente;
o sol, hóstia de chamas, o intimida;
 se estala a tempestade, triste crente,
ao raio eleva a prece enternecida.

Ele adora o perigo, porque o teme,
e o perigo aos seus pés semeia abrolhos.
“Precária realeza!” Ele então geme:
“Antes à vida eu não abrisse os olhos!”

Retoma o cetro teu, ó Natureza,
e protege o teu filho derradeiro.
Não é minha a coroa; a realeza,
quando fraca, é pior que o cativeiro.”

Liberdade e razão, sina tremenda,
coroas de irrisão a um rei proscrito,
liberdade sem asas com que ascenda,
razão que não penetra no infinito!

Quero despir-me da matéria viva
e da ideia cruel que me lanceia;
quero dormir na rocha primitiva,
se na rocha não dorme alguma ideia!

 

ASPECTOS

O sol bondoso das antigas eras
por todos distribui seus raios de ouro;
sob o espaço onde esplendem as esferas,
prodigaliza a vida o seu tesouro.

– O sol destrói a seara e exaure as fontes;
se gera a luz, de treva é que se nutre.
Nas planícies, nos vales ou nos montes,
para ser pelicano, faz-se abutre.

No banquete comum da natureza,
a Flora e a Fauna fraternais se abraçam;
a Criação estende a lauta mesa
às multidões dos seres que perpassam...

– Carne e sangue de irmãos, eis o banquete
de irmãos assassinados seiva e fruto:
à Fauna forte a Flora se submete
e é sempre dos mais fracos o tributo.

Onde lhe apraz a ave tece o ninho;
em alheios trigais os melros bolem;
aos beijos das abelhas, com carinho,
oferecem as flores o seu pólen.

– A ave aquece o ninho e a prole empluma
para as garras das aves de rapina;
a abelha sangra a flor que o mel ressuma;
a própria flor não raro é uma assassina!

 

ENTERRADO VIVO
(Paráfrase)

Enterraram-no vivo. Ele desperta,
estremece num frêmito convulso,
chama: ninguém responde. Na deserta,
espessa treva só lhe acode o pulso.

Da comunhão dos vivos, vivo expulso.
Com a pupila hediondamente aberta,
tenta a cabeça erguer – baldado impulso.
Vai os braços abrir e mais se aperta.

Sente o mesquinho, o trágico despeito:
sete palmos de terra sobre o peito
e um caixão de seis tábuas por abrigo.

Alma, retém teu surto e teu lamento,
não tentes mais erguer-te ao firmamento,
dorme, enterrada viva em teu jazigo!

 

PLUX-UMBRA

Bem te conheço: és o luar mortuário,
que me arrepia nas visões noturnas;
és vago como das funéreas urnas
o fogo fátuo errante e solitário.

Clarão de ossadas e de vermes,
luminoso suor das verdes epidermes,
chama de que o morcego é a mariposa,
és mais alguma coisa?

Luz espectral, és o reflexo
da fria morte e do remorso;
para fugir, em vão me esforço,
ao beijo teu, ao teu amplexo!

Quem me dera cegar nas taciturnas
trevas das furnas!
Bem te conheço: és o luar mortuário,
meu círio, minha sombra e meu sudário.

Para fugir, em vão me esforço,
ao beijo teu, ao teu amplexo,
luz espectral, que és o reflexo
da fria morte e do remorso!

Clarão de ossadas e de vermes,
luminoso suor das verdes epidermes.
Vendo o clarão pressago,
vendo o clarão funéreo,

eu tenho um terror vago,
 a álgida sensação de um cemitério.
E, através do meu medo,
eu penso, eu sonho, eu cismo

que dessa luz na misteriosa tocha
vai surgir a palavra de um segredo,
enquanto, com sarcasmos, desabrocha
não sei que flora lúgubre do abismo.

Chama de que o morcego é a mariposa,
és mais alguma coisa!
Na noite lúgubre, és meu campanário,
meu círio, minha sombra e meu sudário!

E, quando me surpreende o mundo externo,
à luz do sol ardente que me obumbra,
tenho o semblante envolto na penumbra
das manhãs cadavéricas de inverno.

 

OS ESPECTROS AZUIS

Cansado de velar, de olhos absortos,
vejo-os passando pela noite escura,
hirtos, de melancólica figura,
os espectros azuis dos sonhos mortos.

Em meu pavor febril, detendo-os, clamo:
“Ficai, a noite é fria e sem abrigo,

o éter é tão além... ficai comigo,
sonhos defuntos que eu amei e ainda amo.
Ficai comigo, que depois, contente,
convosco do infinito no mistério,
irei, errante peregrino etéreo,
ao primeiro raiar do sol nascente.

Não temo a morte estando ao vosso lado,
não se ama a vida, quando não se sonha;
mas, com franqueza, a noite está medonha
para a viagem de um recém-finado.”

(Eu mentia aos espectros; não sentira
jamais tão forte apego à vida humana,
e supunha que a estranha caravana,
por ser de sonhos, cresse na mentira).

Parou o último espectro, e o olhar sombrio,
fitando em mim (que triste o seu aspecto!),
disse-me: “Nós não procuramos teto,
nem agasalho e abrigo para o frio.

Descansa, pobre amigo; não viemos
disputar, à matéria, a tua vida.
Tua alma, há muito, está já confundida
em nossas vidas: nada mais queremos.

Se hoje nos vês passar na noite escura,
cansado de velar, de olhos absortos,
é que em visita à tua sepultura,
sufragamos também os nossos mortos.”

E, ao primeiro raiar do sol nascente,
no infinito azulado do mistério,
dissipou-se a visão no espectro etéreo.
– Os sonhos nunca morrem, morre o crente!

 

A SOMBRA DO CAJUEIRO

Repousemos um pouco do cansaço
à sombra deste cajueiro umbroso;
à virgindade é lícito este gozo:
apanha alguns cajus no teu regaço.

Pela estrada o esmeril faísca, o espaço
inflama-se de sol. Ao teu repouso
velarei como pai, não como esposo;
se algum fauno vier, terás meu braço.

Que doce fruto e como o olfato apura!
Nem mais sabor a manga tem, madura,
nem a gardênia aberta, melhor cheiro.

Toma-o, e não saibas minha luta interna:
quanto é difícil a missão paterna,
sendo-se noivo sob um cajueiro!

 

PAISAGEM NOSTÁLGICA

Deixei meu berço por destino incerto;
mas a paisagem guardo-a na pupila,
guardo-a no coração, de onde se estila
toda a essência das lágrimas que verto.

Sons de sino perdidos no deserto...
campanários da quase oculta vila...
serros magoados que a distância anila,
mais formosos de longe que de perto!

Não vos esquecerei por me lembrardes,
enquanto, prantear do alto das tardes,
a estrela Vésper que me viu partir.

Do astro do sonho, em que minha alma adeja,
quando colher as asas, só deseja
no vosso seio maternal dormir.

 

A UM PENSADOR

Fronte que o sonho vinca e a dor enluta,
sonho que vem do céu, sidérea seta,
mágoa que sobe da matéria infecta,
onde a essência mortal se estorce e luta!

Nem completo é o teu sonho, alma impoluta,
nem a dor tua, ó corpo, é mais completa:
sonhando, buscas do sofrer a meta,
buscas, sofrendo, a abóbada absoluta!

No incêndio interior, em que te abrasas,
cérebro humano, hás de queimar as asas
do sonho e acrisolar a tua dor.

Então, asas de etérea claridade
hão de levar-te, arcanjo da verdade,
irmão da fé, para o infinito Amor!

 

MONISMO E METAFÍSICA

Cosmos, Matéria, Força e Movimento,
não mais. Espaço e Tempo, imensidades,
eternidades sobre eternidades,
reduz-se tudo a um único elemento.

Luz, que sorris; flor, que acarinha o vento,
amor que fundes duas mocidades;
gênio, que elevas e destróis cidades;
mineral, vida, instinto, entendimento;


Que mais sois? Prisioneiros da ciência,
ela vos pôs limites à existência
e reduziu-vos ao irredutível.

Só a Razão, revel e temerária,
vai prosseguindo a via milenária
pelo azulado mar do Incognoscível...

 

ORÁCULOS

Monge sem fé, mártir do pensamento,
deixei o gabinete e os alfarrábios,
e, descrente dos mestres e dos sábios,
fui à montanha e interroguei o vento.

Nos desertos rolando o meu lamento,
beijei a rocha e ensanguentei os lábios.
Quanto aos mistérios revelados, sabe-os
só quem mos revelou nesse momento.

De que me serves tu, verdade pura,
se a frase humana é tão mesquinha e obscura,
quando busca arrancar-te ao mundo interno?

Eis a forma banal deste segredo:
“hás de passar”, soprou-me o vento a medo,
e a rocha me bradou: “Serás eterno!”

 

O GRITO
(Paráfrase)

Quando a tripulação de um infeliz navio
que naufraga, ouve em torno a vaga retumbar,
e enxerga aos pés, imenso, o pélago sombrio
que logo a vai tragar,

através do rumor das ventanias roucas,
só vendo no infinito oceano e firmamento,
sentindo a hora chegar, lança por muitas bocas
um único, sinistro e supremo lamento;

Lamento vão e atroz! a altiva águia dos mares
que, além das nuvens, paira, estremeceu de horror!
E os tufões que em tropel turbilhonam nos ares
não levam para a terra o trágico clamor.

Homem, do eterno mar navegador sem velas,
erras, e hão de tragar-te as ondas ululantes,
tens a teus pés o abismo e sobre ti procelas
prenhes de furacões e raios fulminantes.

A criação é surda aos gritos do que morre!
O báratro a ferver medonho, o céu sem astros
entregue ao próprio horror, o teu navio corre
sem bússola e sem mastros.

Mas outra é a tempestade e mais horrendo o oceano
que te cerca, agitando os tenebrosos céus,
e o naufrágio mais longo. Ai! o naufrágio humano
é horrível, grande Deus!

Nas praias da Existência, ó rei dos universos,
começa o teu naufrágio ao despontar do dia,
e cedo as ilusões puras como a alegria
erguem no azul o voo em busca de outros berços.

Vão-se todas! e, à noite, a torva tempestade
açouta a embarcação, o Desespero a leva,
estrangula-a o Terror; só a Fatalidade
de asas negras sorri no espaço todo treva.

A mim todo o furor das cóleras dementes,
tripulante também do navio proscrito,
eu quero reunir, em meus lábios ardentes,
da marinhagem toda os gritos num só grito.

E, embora o céu não ouça a trágica ameaça,
o protesto da dor, ó náufrago da sorte,
este grito supremo é a alma que espedaça
um derradeiro esforço o ergástulo da Morte! 



SUPREMO BEM

Supremo bem, arcano misterioso!
A plenitude da alma satisfeita,
o abraço eterno que o desejo estreita
à posse infinda do sonhado gozo!

Quimera vã que o espírito rejeita:
como é que à perfeição de um ser glorioso
pode unir-se o desejo, filho e esposo
da humanidade efêmera e imperfeita?

Mas também possuir o ideal puro,
sem desejo, sem fibras, inconsciente...
Tédio implacável ou enigma escuro!

O desejo sem posse é o mal presente.
Se a posse sem desejo é o bem futuro,
melhor é desejar eternamente!

 

EPÍLOGO

Ideal tão sonhado, sonho puro,
inacessível à miséria humana,
tênue vapor da aspiração insana,
tanto me foges, quanto te procuro!

Sonho o bem imortal; mas o futuro,
frio estuário, ao lago do Nirvana
leva os seres efêmeros, que irmana
no mesmo nada eternamente obscuro...

Impetuoso coração, que esperas?
Basta! Que esperas através de escolhos,
de dilúvios, vulcões e terremotos?

Sangrei meus lábios de beijar quimeras;
cegos de ver miragens tenho – os olhos –
e de abraçar o vácuo – os braços rotos!



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo 2023.

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