Disputadíssima na sociedade, a nenhum dos que a
rodeavam deu preferência, e isto mais ascendeu a cobiça dos homens.
Julgavam-na fria, insensível e má sem pensar que no
coração ninguém manda, que não se é obrigada a amar um homem só porque este
seja inteligente ou rico... é necessário que ele seja o homem esperado, o que, durante anos e anos,
constituiu o nosso "ideal".
Com Fernanda de Castro se deu isso: esperava o homem amado, aquele que devia vir: daí o seu altivo desprezo aos que cobiçosamente a requestavam.
Todavia chegou a ser noiva, um pouco por piedade, um
pouco por orgulho, de um primo que a amava desde criança.
Mas Fernanda era uma mulher franca e sincera: sentia
que não amava o primo, gostando
apenas dele. E assim encheu-se de coragem um dia e delicadamente fez-lhe ver
que não o faria feliz. O rapaz, compreendendo, desfez o compromisso de noivado
e, desesperado com aquela recusa que lhe aniquilava a vida, partiu para o
extremo norte, nunca mais dando notícias de si a pessoa alguma.
A jovem sentiu-se aliviada daquele "pequeno sacrifício", como dia o chamava, e partiu para o recife, em visita a uns parentes.
Foi ali que, já desiludida de encontrar o seu
"ideal", indo a uma exposição de pintura, numa troca de olhares fatal,
sentiu dominar-lhe o peito uma dessas paixões que destroem como um vendaval,
estraçalhando a vontade e a razão, mais poderosa que as leis humanas, mais
forte do que a morte.
Feitas as apresentações, pela sua grande inteligência, pelos seus beijos de fogo, pelo veneno imponderável que exalava seu corpo flexível, o Dr. Ruben Moreno, distinto médico espanhol, viu-se completamente cativado pela sedutora brasileirinha e não tardou a unir seu destino ao dela, num casamento deslumbrante que marcou época no Rio de Janeiro.
Grande sensação trouxera a Fernanda o casamento e,
mulher bondosa e inteligente, cumulou de carinho e felicidade o ente a quem se
entregara de corpo e alma, adorando-o, ora em grave silêncio, ora em verdadeiro
arroubo infantil.
Plena a sua felicidade, porém efêmera, como sempre soe
acontecer.
Quando, na fusão completa do seu amor, na compreensão absoluta da vida sexual, a natureza lhe anunciara um filho e esse filho, lourinho e bonitinho, lhe nascera numa risonha manhã de abril, desmoronara-se, como um grande bloco de pedra a cair num abismo, a felicidade que ela julgara conservar toda a vida.
Mês e meio após o nascimento da criança, quando,
recostada nos travesseiros, dia a amamentava, fixando-a bem, ficou um instante
atordoada, perplexa: tomou o bebezinho que chorava, virou-o, ergueu-o, abriu-lhe
os olhos, limpando-os do pranto, estudando-lhe as feiçãozinhas delicadas ainda
não bastante delineadas... Santo Deus! por um desses caprichos cruéis da
natureza, a que a ciência chama de "impregnação afetiva", seu filho
saíra exatamente parecido com o noivo desprezado! A mesma cor de olhos, o mesmo
talho exótico da boca, a mesma linha do nariz!
Repentino choro nervoso sacudiu-a toda e os seus
longos cabelos castanhos, desprendendo-se dos grampos que os seguravam,
espalharam-se pela cama, cintilantes, dourados pelos raios solares que entravam
pela janela.
Era então por isso que seu marido, num desprezo
brutal e grosseiro, a abandonara aos cuidados da enfermeira e da governante, dela
não se ocupando mais!
Para que esse castigo tremendo? Oh! antes houvesse morrido no parto, em vez de sofrer tanto nele!
Odiou, então, a criança. Desejou-lhe até a morte.
Mas veio-lhe o remorso, gritou-lhe nas entranhas o amor materno e,
recolhendo-se à sua grande dor, entregou-se toda à criação daquele inocente
que, sem saber, lhe viera amargar para sempre a vida.
Sofria verdadeira tortura com o desprezo do esposo. Almoçava e jantava sozinha e, se o
procurava, era repelida com rudeza.
Começou então a desanimar, a sentir uma desagradável sensação de depressão hipocondríaca e a convencer-se da inutilidade de qualquer esforço no sentido de readquirir o amor dele.
Quando, tempos depois, a criança apanhou um forte
resfriado, foi necessário que o pai viesse vê-la, pois estava passando mal.
E a verdade repulsiva e asquerosa do seu desprezo,
ela a teve numa frase grosseira que se desprendeu da boca do marido enquanto ele
examinava a criança enferma.
— Oxalá morra, este filho do adultério!
— Como? O que dizes?
— Digo-te que és mais desprezível do que eu julgava.
Conservares o fruto do teu amor culpado, para me veres sofrer, dia por dia,
hora por hora... és nojenta e vil. Repara como ele é parecido com o teu amante!
Tudo! Todos os traços! E eu só vi teu primo em retrato. Mas outro dia, abrindo
uma de tuas gavetas, achei uma carta dele para ti, num tal exagero, de lamentos
de amor fracassado que me deu asco! Se tu não o amasses não conservarias aquela
carta! Imagino as recentes como devem ser, agora que ele já te possuiu!
— Oh, meu amor, não me ofendas assim! Ouve! Eu só amo a ti! Tenho-te guardado absoluta fidelidade, pois és tudo o que tenho na vida! Eu sou inocente! Não me condenes! Não tenho culpa dessa semelhança tão extraordinária de meu pobre filhinho com uma pessoa da qual não sei há dois anos! Essa carta, conservo-a porque prometi a meu primo, na hora em que partia para sempre, que a guardaria como uma lembrança do seu amor puro e desgraçado. Escuta-me...
— Mentes! Nunca mais acreditarei em ti! E eu que te amava tanto! Como tiveste coragem de trair-me. a mim que sempre te tratei com o maior carinho? Parva! Então não podias ver que Deus castiga os criminosos? Vamos, se queres ainda que te olhe, dá essa criança a alguém. Não posso vê-la. Odeio-a! Odeio-a!
— Tu não tens coração. És egoísta e mau. Neste
momento em que se decide o nosso destino, em que te deixo de amar. porque agora
quem me dá asco és tu, repito-te que esse menino é teu filho legítimo. Tu bem o sabes. O teu ciúme canalha é que te
leva ao extremo de repudiá-lo e ofender-me no que tenho de mais sagrado, que é
a minha honra. Mas não faz mal. Seja o que Deus quiser. Porém te digo que
jamais abandonarei meu filhinho. Acima de tudo eu sou mãe. Tu não podes compreender
o que seja essa palavra sublime!
— Fica-te com ele, criatura infernal! Mas ambos me
pagareis! Eu saberei vingar-me!
E saiu, batendo estrondosamente a porta.
***
Já há muito tempo não conseguia chorar, pelo que se convencera de que ia enlouquecer. Fraca, cansada, com palpitações violentas, sentia uma pressão desagradável ao longo da coluna vertebral e vertigens constantes tornavam-na irritadiça e ás vezes desagradável para com as pessoas que a rodeavam.
Parecia-lhe ter um chapéu apertado na cabeça e sua
vista enfraquecia a ponto de não lhe permitir costurar as roupinhas do filho.
Zuniam-lhe os ouvidos, tremia de frio e tinha formigamentos e câimbras.
Fora o abalo moral fortíssimo, a fraqueza das funções
físicas que a haviam abalado assim.
Ia morrendo aos poucos, não pela neurastenia (que a neurastenia
se cura), mas pela dose mínima de arsênico
que alguém diariamente punha na sua
escassa comida...
Percebera isso logo depois que rompera com o marido.
Porém preferia morrer a queixar-se. Tinha a certeza da sua inocência e isto lhe
bastava.
Doía-lhe, porém, deixar o filho em mãos estranhas.
Mas que fazer? Uma peritonite aguda levou-lhe o filho, após vinte dias de sofrimento.
E ela ficou só no quarto, num arranque brutal de
dor, sem lágrimas, sem palavras. Tremia-lhe, porém, o pobre corpo desgraçado e
começou a passar os dias embalando o bercinho onde dormia a criancinha; e no
seu delírio sorria debilmente ao ver a figura do bebezinho a estender-lhe os
braços...
***
— Estou vingado! Agora basta de arsênico. Lavei a
minha honra sem alarde, gozando e sofrendo ao mesmo tempo com a tortura dela. E
não consigo esquecê-la. Amo-a ainda! Ah! se o "outro" não a houvesse possuído!
Monologando assim, subia o Dr. Moreno a ladeira de um subúrbio carioca, a fim de atender o chamado de um amigo enfermo.
— É cedo ainda, disse. Eles só me esperam ás seis
horas. Estou de barba crescida. Nunca me barbeei fora de casa. Vou experimentar
agora.
E entrou, assobiando, na barbearia. Solícito, o
barbeiro começou a barbeá-lo. Distraído, o Dr. Moreno pegou uns jornais velhos
que estavam numa cadeira, ao lado e pôs-se a lê-los.
Eram uns jornais do Amazonas, que datavam de 1931.
Abriu-os com preguiça. Seus olhos correram sem interesse pelos problemas da madeira e da borracha, quando de repente se fixaram numa pequena noticia: "Manaus, 17. Foi ontem assassinado a tiros de revólver, nesta cidade, o engenheiro Dr. Fernando Pinheiro, que há pouco tempo voltara do Alto Acre, onde permaneceu cerca de um ano, a serviço do governo. Matou-o o conhecido larápio "Tinoquinho", com o intuito de roubá-lo. O famigerado gatuno já se acha recolhido ao xadrez.”
Teve força de vontade suficiente para permitir que o
barbeiro acabasse o serviço.
Depois tomou um táxi, mandando o chauffeur tocá-lo a toda a velocidade
para o Rio.
A inocência de sua esposa estava comprovada, pois o ex-noivo morrera antes dela casar e a criança nascera treze meses após o casamento...
A noite, gélida e sem estrelas, mais lhe angustiava
o coração, aquele pobre coração que ainda vibrava de amor e que desejava
desafogar junto da vítima inocente as lágrimas que por tanto tempo havia retido
em seu âmago torturado.
Subiu célere as escadas e chegou ao quarto da
esposa, no qual reinava completa escuridão.
— Quem e? — disse uma voz estranhamente velada.
— Eu, Fernanda...
— Ah! chegaste a tempo... eu tinha tanto medo de morrer sem te falar primeiro... Deus ouviu a minha súplica... eu queria te dizer que sou inocente e que sabia do arsênico... mas foi tanta a minha dor que eu nem tentei reagir... nem sei como tiveste coragem... deverias der consumado o ato mais depressa... assim tão devagar doeu mais à alma do que ao corpo...
— Fernanda, perdoa-me! A calúnia que levantei de ti é das que não se perdoam. Mas eu te amava tanto! E sofri como um desesperado ao pensar que me havias traído! Noites e noites passei em claro! Mas não foi só a ti que envenenei. Eu também me viciei na cocaína. Eu também estou condenado! Fernanda, Fernanda, perdoa-me! Foi por amor que te envenenei! Ouve-me, dize-me que me perdoas, que ainda seremos felizes como dantes! Pronuncia essa palavra consoladora, a fim de que eu possa acender a luz, para ver-te, para contemplar-te, para orvalhar-te o resto com as minhas lágrimas que queimam como o fogo! Fernanda...
Esperou alguns minutos, numa ansiedade indescritível.
Ouviu, num leve cicio, a palavra "perdoo" debilmente balbuciada.
Depois, longo silêncio. Depois, nada!
Como um autômato, acendeu a luz e caiu, chorando,
sobre a cama da esposa.
Com a bela cabeleira espalhada pelo lençol,
transparente como uma figura irreal de porcelana. Fernanda jazia morta sobre os
travesseiros, as mãos cruzadas sobre o peito, como se rezasse o salmo do
perdão...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2023)
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