NÃO HÁ GOSTO SEM PESAR
Naquele tempo, em terras de além Douro, que rico homem era mais poderoso
e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castelo por
vales, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavaleiros metiam
o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu pendão.
Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Astúrias, raça de bronze
nos ódios, e de ferro nas vinganças. A idade gasta os mais fortes, e açor velho
não se remonta às águias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas
brancas, D. Ordonho sentia que os anos não haviam passado em vão. Só a
neta, a formosa Auzenda, único amor da sua vida, podia distraí-lo das horas de
tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, um
sorriso dela quebrava-lhe a vontade, e uma lágrima só daqueles olhos lindos,
transformava em cordeiro o leão embravecido.
Os atalaias vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens
de armas cruzam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa
cavalgada, que se espera?
O sol já se escondeu de traz do último
outeiro; desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de pedra;
levantou-se por fim a lua sobre as campinas, e nenhum cavaleiro, ou sombra dele,
se avista em larga distância ao redor.
No castelo era véspera de noivado.
Auzenda, a bela Auzenda, ia casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a
festejada véspera de São João, e por horas também estavam a cumprir-se quatorze
anos desde que os monges negros rezaram o ofício de finados em volta da tumba
do cavaleiro assassinado.
Porque se via Auzenda tão pensativa
olhando do seu balcão para a coroa do outeiro, que fica defronte? Córdoba e
Granada, os dois Édens da formosura, entre mil não se ufanavam de possuir
perola de igual valia. Aquela beleza era sem par. Sorria-lhe o céu nos lábios;
ondeavam os cabelos em tranças douro soltas à brisa; e os olhos azuis,
aonde amor suspira, oh! quem pudera vencê-los depois de vencidos por eles!
Delgado cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O véu de tisso bordado ora
folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante.
Ao raiar da alva tinha saído. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha,
fogem tão leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra íngreme. As rosas
acendem o rubor na face acetinada desmaiando os lírios. Boninas e cecéns tecem a
coroa silvestre pousada na fronte. Ajoelhou à cruz solitária, e a oração
matinal subiu casta e pura do coração ao trono do Senhor, no meio das fragrâncias
da aurora. O vestido branco desenha confusamente as formas, e visto de longe
flutua nos vapores da madrugada. Dir-se-ia visão celeste que os raios da
primeira luz vão desvanecer. Ela a chegar, e um cavaleiro a correr do lado oposto.
O açor do Douro remata-lhe o capelo de aço. É D. Moço Ansures. Ajoelha a seu
lado e juntos oferecem a Deus as primícias do amor.
— Voltais logo? perguntou a donzela
corando.
— Ao cerrar da tarde! responde metendo-a
na alma com o apaixonado olhar.
— Tão tarde!?
— Quereis que fique? Mas o voto que
fiz?!...
— Não! Mas!...
— Ao cerrar da tarde, vivo ou morto,
estarei aqui!
Separaram-se. Ele despediu o cavalo
pelas gargantas da montanha, ela seguiu-o com a vista, saudosa até desaparecer
por traz do último outeiro.
Porque chora a bela Auzenda? O que lhe
diz o coração? É por isso que a donzela cismava sozinha ao cair do dia no seu
balcão? Seriam receios de noiva a combatê-la, ou saudades de namorada? Baixou a
tarde, fechou-se a noite, e quando as estrelas começavam a tremer na abobada do
céu, recolheu-se suspirando. Quase ao mesmo tempo soava a sineta da atalaia.
Donas, cavaleiros e pajens principiavam a entrar no castelo, atraídos pelos
festejos. As armas reluzentes, as plumas de cores diversas, os tabardos de
matizes variegados deslumbravam, vistos à luz dos fachos. O som das trompas, os
latidos dos lebréus, os relinchos dos cavalos, e as vozes dos peões animavam de
mil ruídos alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobressaía no meio de
todos pela estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo
da sombra. O seu brado vencia o estrépito.
— Pajens! Escudeiros! Fazei honra!
exclamava cortejando os recém-chegados com a boca cheia de riso.
Falta, porém, um homem na festa e com ele
tudo falta. A última hora do dia, segundo sua promessa, deveria tê-lo trazido
aos pés de Auzenda, e com a noite cerrada não chegava!... Do lado das montanha não
havia rebate de mouros. As almenaras apagadas não davam sinal de inimigos. Que
motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e
desejado? Por que se ausentara naquele dia, em que tantos extremos o convidavam
a não se apartar dos belos olhos que o prendiam? Um juramento sagrado! Um voto!
Prometera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das duas casas, passar
doze horas ajoelhado sobre o túmulo de seu pai. Por isso deixara Auzenda junto
da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade
impaciente da noiva as contava tão vagarosas!
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Revisão ortográfica: Iba Mendes (2023)
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