2/12/2023

Não há gosto sem pesar (Conto), de Rebelo da Silva

 

NÃO HÁ GOSTO SEM PESAR

Naquele tempo, em terras de além Douro, que rico homem era mais poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castelo por vales, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavaleiros metiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Astúrias, raça de bronze nos ódios, e de ferro nas vinganças. A idade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta às águias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os anos não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Auzenda, único amor da sua vida, podia distraí-lo das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, um sorriso dela quebrava-lhe a vontade, e uma lágrima só daqueles olhos lindos, transformava em cordeiro o leão embravecido.

Os atalaias vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de armas cruzam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa cavalgada, que se espera?

O sol já se escondeu de traz do último outeiro; desmaiaram os derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, e nenhum cavaleiro, ou sombra dele, se avista em larga distância ao redor.

No castelo era véspera de noivado. Auzenda, a bela Auzenda, ia casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada véspera de São João, e por horas também estavam a cumprir-se quatorze anos desde que os monges negros rezaram o ofício de finados em volta da tumba do cavaleiro assassinado.

Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a coroa do outeiro, que fica defronte? Córdoba e Granada, os dois Édens da formosura, entre mil não se ufanavam de possuir perola de igual valia. Aquela beleza era sem par. Sorria-lhe o céu nos lábios; ondeavam os cabelos em tranças douro soltas à brisa; e os olhos azuis, aonde amor suspira, oh! quem pudera vencê-los depois de vencidos por eles! Delgado cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O véu de tisso bordado ora folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da alva tinha saído. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra íngreme. As rosas acendem o rubor na face acetinada desmaiando os lírios. Boninas e cecéns tecem a coroa silvestre pousada na fronte. Ajoelhou à cruz solitária, e a oração matinal subiu casta e pura do coração ao trono do Senhor, no meio das fragrâncias da aurora. O vestido branco desenha confusamente as formas, e visto de longe flutua nos vapores da madrugada. Dir-se-ia visão celeste que os raios da primeira luz vão desvanecer. Ela a chegar, e um cavaleiro a correr do lado oposto. O açor do Douro remata-lhe o capelo de aço. É D. Moço Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos oferecem a Deus as primícias do amor.

— Voltais logo? perguntou a donzela corando.

— Ao cerrar da tarde! responde metendo-a na alma com o apaixonado olhar.

— Tão tarde!?

— Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...

— Não! Mas!...

— Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!

Separaram-se. Ele despediu o cavalo pelas gargantas da montanha, ela seguiu-o com a vista, saudosa até desaparecer por traz do último outeiro.

Porque chora a bela Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a donzela cismava sozinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva a combatê-la, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noite, e quando as estrelas começavam a tremer na abobada do céu, recolheu-se suspirando. Quase ao mesmo tempo soava a sineta da atalaia. Donas, cavaleiros e pajens principiavam a entrar no castelo, atraídos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de cores diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos à luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebréus, os relinchos dos cavalos, e as vozes dos peões animavam de mil ruídos alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobressaía no meio de todos pela estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O seu brado vencia o estrépito.

— Pajens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recém-chegados com a boca cheia de riso.

Falta, porém, um homem na festa e com ele tudo falta. A última hora do dia, segundo sua promessa, deveria tê-lo trazido aos pés de Auzenda, e com a noite cerrada não chegava!... Do lado das montanha não havia rebate de mouros. As almenaras apagadas não davam sinal de inimigos. Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e desejado? Por que se ausentara naquele dia, em que tantos extremos o convidavam a não se apartar dos belos olhos que o prendiam? Um juramento sagrado! Um voto! Prometera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o túmulo de seu pai. Por isso deixara Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas!


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Revisão ortográfica: Iba Mendes (2023)

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