ÍNTIMAS
INVASÃO DO INFINITO
Ambiziosi miei folli pensieri...
Metastasio — Demetrio
Olha... Ouves meu hino, o hino eterno, o hino
Que a esfera rasga, e ascende, e entre as estrelas fica
Como outra estrela, que teus passos magnífica,
É encima a ode imortal do teu nome divino?
Ouves?... Não sabes?... Nesta obra eu lido e me obstino:
Babilônia de sons atiro aos astros, rica
De faustosos vergeis; — um trecho peregrino
De universos o amor idealiza e fabrica.
Sóis dela, orbes de luz, catedrais de harmonia
Em pedaços de céu, feérica arcaria
De volatas, que o ar recorta, e que o infinito
Toma nos turbilhões sidéreos dos seus braços,
Ante os quais Deus recua e busca outros espaços,
Vendo os sóis de outro Deus e a invasão de outro mito!...
AB OVO
Ela cravou-se em mim de anos sem conta,
Como a estrela polar pregada à esfera,
Cujo olhar de ouro verde à noite aponta,
Quem ninguém ver dali mudada espera.
Eu, quem já fui? — Não sei. — Ela, quem era?
Não sei. — Minha alma a ideal mudez afronta:
Sobe: a cifra, hipógrifo enorme monta:
Volta, e diz: — Foi talvez na primavera!
Riam, com ela a rir, os lírios. — Onde?
Quando? Em que dia e mês? Não sei: ignoro.
Pois dela o Tempo, um dedo à boca, esconde
Terra, país, lugar, pai, mãe, e toro...
Mas eu bem sei, já que ninguém responde:
— Desde que houve mulher, a vi, e a adoro...
AND MORE, MUCH MORE...
A pedra estruge... rum... para a berlinda:
Desço, os corcéis sofreados: — entro: — um jorro
Ouço de água a clacar no tanque; infinda
Foge a alameda; rápido um cachorro
Vem, resmoneia, late: — afago-o — Corro
A casa toda; a casa toda é linda,
Tem perto o mar, não muito perto o morro...
Mas tu... não estavas tu lá dentro ainda.
Que rumor alvo e olente o sol fazia
Pelos quadros da sala; e que alegria,
O louco! em torno a um mármore da Milo.
O Paros bom, a cópia sã, correta...
Faltavas tu, porém, alma do poeta,
Para dar luz à luz de tudo aquilo...
FEVER
Entrei: e ouvi uma harmonia doce,
E um silêncio tão baixo, e assim tão triste,
Como se tudo ajoelhado fosse:
Na mesma posição fiquei: tu viste.
E ao ver-me então na sala, te sorriste;
Do riso teu meu coração banhou-se;
E quando logo a persiana abriste,
De pedras de ouro todo o chão calçou-se.
Beijei-te a mão, e achei-a árida e quente,
E acompanhei a sala descontente
No mudo treno, em que ela te embalava.
Vinha das coisas trêmulo soluço;
E a voz dormia à sombra do teu buço,
Num leito onde há só pérolas e lava.
IN HER BOOK
Ela andou por aqui; andou. Primeiro,
Porque há traços de suas mãos; segundo,
Porque ninguém, como ela, tem no mundo
Este esquisito, este suave cheiro.
Livro, de beijos meus teu rosto inundo,
Porque dormiste sob o travesseiro
Em que ela dorme o seu dormir, ligeiro
Como um sono da estrela em céu profundo.
Trouxeste dela o olor de uma caçoula,
A luz que canta, a mansidão da rola
E esse estranho mexer de etéreos ninhos...
Ruflos de asas, amoras dos silvedos,
Frescuras d'água, sombras e arvoredos
Dando seca aos rosais pelos caminhos...
EXTRAMUROS
A tarde de ontem!... Longe da cidade,
Eu a esperava à porta do Passeio:
Quando via ir chegando um carro: — há de,
Pensava, ser o carro em que ela veio.
Não era. — Então ficava em novo enleio:
Cada momento era uma eternidade;
E entre a esperança, a dúvida, o receio,
Que inquietação, que angústia, que ansiedade!
Mas de repente o rápido ginete
Estaca, o faeton para, as longas clinas
Sacode o pônei fino e cor de leite:
Sai a deusa: o sol ri, e das colinas
Rola-lhe aos pés a luz, como um tapete
Que ela esgarça na ponta das botinas...
O CARTÃO
Vem; mais nada: o cartão, e um nome casto...
E, — sabem? — logo vi não sei que monte,
Dos visos dele as curvas do horizonte,
E em torno tudo azul, azul e vasto.
E fui. — A branca, a rósea espuma afasto,
Do que senti; nem sei como isso conte;
Disse, em vulcões de pérolas a fronte:
— Como estão vendo os sóis, que aos pés arrasto! —
Chego e murmuro: — Em nuvens de ouro assomo,
Rolo de um astro, ou desço de um engano?
Por um oásis a miragem tomo? —
Ela ria-se; e o olhar divino e humano
Pairava em cima de minh'alma, como
A lua em cima d'água do oceano.
SINAIS DE LOBO
A alcova canta a estrofe duma trova,
Enquanto um grave crime estranho espia:
No rir, no gesto ela há de achar a cova
Em que esconde o esqueleto da alegria.
O teto, o leito, os móveis à porfia
Buscam em mim qualquer ligeira prova;
E cada olhar, coveiro mau, renova
Pesquisa cruel, tirânica, sombria.
Tu estás um pouco reclinada: o seio
Parece arfar de dor, e arfa de enleio;
Vai-te bem o palor: a luz no globo
Dorme com sobressalto de centelhas;
E anda por tudo um frêmito de ovelhas,
Que ouvissem perto ali vir vindo um lobo.
PREFERÊNCIA
Na joia de uma estante pequenina
Tinha na alcova os livros, que escolhia:
E a branca mão de Fídias estendia
Para tomar um deles; imagina:
Ante o esplendor daquela mão divina,
Que outro livro ler mais alguém podia?
Lê-los ela, era ouvir cantar o dia,
Era ouvir ler a graça peregrina.
No ouro da voz andava ou Dante ou Homero;
E eu a escutava preso, atento, e mudo,
E dizia-lhe após, já triste e austero:
— Quanto mais te ouço e quanto mais estudo,
Sinto que o mesmo céu e o sol não quero,
Que um beijo teu é que prefiro a tudo. —
ONLY
... dela todo me enchi...
Bernardim Ribeiro — Romance
Seu leito lindo; a cama alva e faceira,
Branca de espuma, fresca como um rio,
Tendo por cima o eterno murmúrio
De uma alma de mulher bela e solteira.
Junto à sua otomana uma cadeira;
Cortinas leves de alvejante fio;
Livros aqui e ali, e o calafrio
Do silêncio na sua cabeceira.
Em duas jarras, rosas, bem cuidadas,
Ridentes, fulvas, lúcidas, molhadas...
A mobília riquíssima e singela...
Um cheiro de mulher cobrindo tudo...
E eu sozinho, inquieto, aflito, mudo,
Loucamente abraçando a sombra dela...
PER TACITUM NEMUS
Tu não querias... eu também não tinha
Vontade de ir (falava-se em passeio)
Senhoreava-te um medo... um tal receio...
Igual talvez à própria angústia minha!
Mas tudo foi... Enquanto se caminha,
Ouço-te o coração bater no seio:
E numa volta abrupta, entrando a linha
Do laranjal, disseste-me: — Enfim veio!...
Como minha alma então ficou mais louca!
Oh! que luar caía na esplanada!
Estava tão doce a voz do mar que é rouca!
Guardo a memória toda enluarada
Do instante em que te pus um beijo à boca,
E do ai que deste, trêmula, assustada!...
CULTO SOLITÁRIO
Não quero que ninguém nos olhe e veja:
Põe lá fora esta luz; que fique à porta:
Cerrada a casa, como casa morta,
Cheia de sombras só, como uma igreja.
Aquele vaso... a flor que ali viceja,
(Olha, a ventura a inveja não suporta)
Deve sair: o mais, que nos importa?
Solene noite o leito nos proteja.
Enquanto só aqui contigo exulto,
A minha boca encontra a tua boca,
Trêmulo palpo o teu marmóreo vulto.
Será da terra e céu a influência pouca
Para impedir que em paz ao amor dê culto
Um louco atado à mais divina louca...
PÁLIDA LOURA
Oh! esta... era de um louro esplendoroso,
De olhos meigos, azuis, crepusculares,
Crespo de raios, como o azul dos mares,
Quando o sol bate nele inda em repouso.
De uma brancura de jasmim sedoso,
Como envolta de aromas singulares:
Ninguém adivinhava os seus pesares;
Ninguém... nunca lhe soube ao fundo o gozo.
Nunca a dor lhe enturvou o rosto lindo;
Nunca disse a ninguém o que almejava;
Viam-na sempre pálida e sorrindo...
Às vezes, quando estava só, rezava:
E acaso alguém, que um dia a achou dormindo,
Viu-lhe um rosário, que entre as mãos rolava...
SICUT IN ARA
No gradil, que ante a porta se elevava,
Guardando o estado (era uma precaução)
Uma só rosa de roseira brava
Ardia... Era tão rude o inverno então!
A roseira em mil voltas se enredava;
Naquela ingrata e úmida estação:
Vento, chuva; o sol vinha, o sol voltava;
Toldava a inútil erva em torno o chão.
Da porta em meio, como uma figura
De santa em nicho, à frente de uma ermida,
Deixada ao tempo, via-lhe a brancura.
Tinha o palor do mármore sem vida...
E o ardor do sol, que nele se mistura,
Mas... sem nunca lhe dar a cor perdida.
VIVA-MORTA
Ouvem? Não ouvem?... Bom: o último prego!...
Feito é o caixão; deitaram-na: — inclinou-se:
Eis tudo extinto: e o seu olhar tão doce,
Luz... quer luz, pede luz, imóvel, cego...
Vi-a cair, rolar... Que dor!! Não nego:
Curva a bonina um ósculo de fouce!...
De lágrimas, amor, teu corpo rego,
Como se ele só meu, não doutros, fosse.
Adeus. Perdi-te: que fazer? — Chorei-te.
Tudo acaba. Houve em épocas recentes
Uma mulher de mármore e de leite,
Que os dias meus doirava aos sóis mais quentes,
E um sol metia em cada riso... aceite
Essa o meu pranto: essa morreu. — Não sentes?!...
COME IN
Como um rufar das asas fugidias
De um bando de invisíveis rouxinóis,
Como uma vaga sombra de harmonias,
Estava a sala cheia, e a um tempo a sós.
Abriu-se a porta, entrei... e tu saías,
Deixando o abismo incógnito entre nós...
O piano aberto e a música que lias
Tinham ainda o olor de tua voz.
Numa emoção febril, e tiritando,
Passeei distraído a sala em roda
Umas gravuras usuais olhando;
Sem ver, dez vezes percorri-a toda...
Até que num luar surgiste, ondeando
Na mortal palidez de Ofélia doida!...
OS DOIS LUARES
Era esplêndida a noite: e ali nessa hora,
Como serrando a pálpebra um momento,
O ambiente morno adormecia ao vento,
Como suspensa em rede áurea de aurora.
Ela doente o leito deixa embora,
E através das vidraças e ao relento,
Que as esfriava, foi haurir alento
Na festa que ia pelo céu em fora.
Por seus jardins passava àquele instante
Quando vi o seu pálido semblante,
E erguida a fronte para o azul dos ares...
Pairava o anjo da dor na face sua;
E então de luz tudo inundava a lua:
E arfei preso ao clarão dos dois luares...
PÉROLA E AURORA
E como estava nua a sua argila,
Pingava luz em lívida centelha;
E a Aurora, a sua linda irmã vermelha,
Fitando nela a lúcida pupila,
Donde um suave pranto irrora, — ajoelha,
E em cada cílio a gota, que cintila,
Astro infante, a brincar ali, semelha,
Enquanto o céu de puro azul se anila;
Como um amante envolve a amante em beijos
Ela envolvendo-a em luminosa auréola,
Nascer fazia o vago dos desejos.
E, — estás tão branca, lhe dizia, ó Cérula;
Deixa avivar-te à luz dos meus lampejos,
Dar mais quentura ao teu palor de pérola... —
TO HONEY
Quando saí dos lírios do teu seio,
Como quem sai das rosas do infinito,
Tremia de terror e de receio,
Que se ouvisse o silêncio do meu grito...
Canto de amor, de embriaguez, de enleio,
Ouvia o próprio ar cantar-me aflito!...
E Deus irado, e a rir, tirava... eu creio...
Astros novos de luz de um tal delito:
Como as Madonas Virginais de Rubens,
Sóis ao lado, por cima e embaixo nuvens,
Um céu azul em cada olhar em calma;
Muitos sóis nesse olhar... naquele instante
Junto de ti, Madona flutuante,
Entre nuvens e sóis era minha alma!...
OU NO CÉU OU NO MAR
Ir para ela assim é pouco ainda:
Como uma águia buscar o sol parece,
E voa, e além no céu desaparece,
Sem se lhe ver se o voo ou paira ou finda.
Não me lembra se foi gentil, se é linda,
Sei só, que ao vê-la, o meu desejo cresce:
Eu não lhe faço alguma inútil prece,
Eu não lhe digo: — Sejas tu bem vinda.
Se anda-me a terra e o céu em torno, a rodo
Sinto o ar frio, e ao mesmo tempo quente.
Quero tudo deixar, e como um doido...
Ir só de um salto grande, e de repente
Cair, meter-me dentro dela todo,
Como dentro do mar mergulha a gente...
ANDANDO PARA O INFINITO
Sou aos teus pés, como o areal sedento:
A água toda do céu nunca o sacia;
E pode, a noite remendada ao dia,
Cair-lhe de pancada, ou lento e lento.
Sou um faminto a precisar sustento,
Sempre a febre, que o forno acende e cria,
Morda-lhe o seio esplêndido e opulento,
Beba-lhe à boca, um cíato, a ambrosia.
O meu amor trabalha em refazê-la,
Quando a gole ou de vez a vou haurindo...
Creio que engulo estrela sobre estrela,
Feita das carnes do seu corpo lindo:
Já não me afundo em céus: — para contê-la,
Sinto o infinito em mim abrindo... abrindo...
DIÁLOGO
Melancólico, eu ontem te dizia,
(Olha: — estar triste em mim é estar contente)
― Que todo o céu e o que ele tem queria,
Por te calçar com ele o chão somente,
Como à Virgem fazer nos quadros via,
Entre estrelas, e a lua no crescente. —
À luz de um riso, que em teus olhos ria,
Disseste: — Falta: esquece-lhe a serpente. —
Sim, eu quero isso tudo um só instante,
E entre os sóis e o luar do teu semblante,
Ver que em ti a Madona se renova:
Pouco e pouco ir perdendo os meus sentidos,
E entre o aroma sutil dos teus vestidos,
Achar, na cova dos teus pés, — a cova.
VAGA
Vaga é o seu nome; o dessa criatura
Feita de um talho de nascente Aurora,
Branca... mais branca do que a neve pura,
Do que a neve que os píncaros decora.
É irmã dela o Abismo. — Azul em fora
Passa, movendo as asas, na brancura
Do amplo espaço, que esplende, e se abre agora,
Ave que o voo embalde o olhar procura:
Tão alto vai, que o céu enfim termina
Por fundi-la consigo ao próprio seio,
No seio azul de sua luz divina.
Volta, depois do longo devaneio,
Busca-me, e aos ombros calma a fronte inclina...
Acha em mim céus azuis também? — Dizei-o...
LAETITIA
Morre: ninguém te há de querer tão fria,
Nem contigo dormir no mesmo leito;
Ninguém mais ouça, dentro do teu peito,
Bater-te o coração como batia.
Na tua alcova há de cantar o dia;
E o ninho, onde emplumou teu corpo, feito
Do que o céu tem de bom e há de harmonia,
Fique a estranho ludíbrio enfim sujeito.
Leva contigo a luz da tua aurora,
Leva a cruz branca dos teus braços, corta
Tudo que a ti me prende e vai-te embora.
Como és bela inda assim!... isso que importa?
Enquanto em torno tudo é triste e chora...
Oh! que alegria eu sinto em ver-te morta!...
NAS ASAS DO DRAGÃO
Vamos. — Arfa o dragão de ferro, espuma, anseia,
Sopra, bufa, sibila, uiva, estende anelante
No ar, que enrola de fumo, as asas de gigante,
Mas preso e manietado à indômita cadeia.
Ouve: foge do sol; o sol faz mal; golpeia
Com venábulos de ouro e pontas de diamante,
Que hão de manchar decerto a translúcida teia
Dessa pele alva como um biso deslumbrante.
À sombra: bem. — Agora olha em frente a garganta,
E a serra, que outra serra às espáduas levanta:
Por nós um grande mundo em retalhos flutua.
Olha o vale, olha o rio, olha o risco da estrada:
Espera-nos, ao fundo, a casa alvoroçada...
Espia-te, agarrada às árvores, a lua...
NUNC VICTI
Foi. — Quando eu descansava no teu seio,
Dos olhos teus à sombra, era um contento,
Era um íntimo gozo, um vago enleio,
Bebido gole e gole, e lento e lento.
Todo em ti me afundava, como o vento
Pelo céu dentro a aflar, num vão gorjeio,
Asas leves e azuis, de azuis sedento...
Lembras-te, eu sei; — hás de lembrar-te, eu creio.
Temos na roupa um cheiro e um pó de aurora!...
Se é de ontem... e já teu beijo o meu pranteia,
E o meu, viúvo do teu, faminto chora...
Que dor! mas vai buscar teu corpo, e cheia
Vem dele, e saibos traz, que eu sei... E agora?
Ai! um mundo entre nós num grão de areia!
CARGA TITÂNICA
... amata diu!
Propércio – Elegia
Que universos, ao tê-la, em mim carrego!...
Se tomo os seus cabelos e desfaço-os,
Chovem raios de estrelas dos espaços,
Numa abóbada de ouro os olhos prego.
Vendo o nimbo que a envolve, alheado e cego
Creio em mundos bater, movendo os passos;
Para não me perder, nas mãos lhe pego,
E ato ao meu colo os seus dois níveos braços.
Pesa o infinito a esplêndida corrente!
Há dois céus, o que eu sinto, e o que ela sente,
Deuses que ela semeia, e sóis que eu crio:
O ambiente cheira; a luz tem luz mais pura...
Ela ri, ela chora de ventura:
Ai! também de ventura eu choro, eu rio!
DUAS METADES DO CÉU
Tu metes entre as tuas mãos benditas
A esfera azul, que tímida sacodes:
E o tinir das estrelas infinitas
Tem a harmonia musical das odes.
Nelas conter um pássaro não podes,
E, rindo, às nuvens os teus olhos fitas:
Hão de buscá-las, sim! não te incomodes,
Que os sóis são pombas de ouro, a luz são fitas.
Como já fulgem de incendida aurora!
Vestem-lhe as curvas anilada gaze:
Vê: metade do céu lá dentro mora.
Andas num luxo oriental de frase,
Numa pompa olimpíaca e sonora,
Que é a outra metade... outro céu quase!
FOR A TIME
Sóis, podeis ir, convosco eu mais não mexo:
Descei, ide brilhar noutras esferas...
Minh’alma, agora... agora enfim, que esperas?
Como foi pronto o lúgubre desfecho!...
Que largos céus azuis dourados deixo,
Bordados de riquíssimas quimeras!...
A solitária estrela ali tu eras!...
Deuses, não... não de vós, de mim me queixo.
O último raio de ouro em ti só tinha,
Naquele olhar divinamente terno
Idílio bom, que embala a quem caminha.
E eu que julgava este meu sonho eterno!...
Fugiu do céu a última andorinha!...
Era possível vir tão cedo o inverno?!...
ATLANTE
Por que sou triste? — Esmaga um globo Atlante;
Pesa-me aos ombros o universo; e penso
Que a tristeza, que cisma em meu semblante,
É a sombra, é o eco desse mundo imenso.
Olha: como enche um templo, em rolo, o incenso,
Todo um céu se enevoa; — e além, distante,
Fora, por cima, ao longe, há sempre o iriante
O puro espaço, o espaço azul suspenso.
E o universo, que levo, és tu. Exprimas
Num só beijo, em que sóis dentro em mim vazas,
Num riso bom de amor, com que me animas,
O amor, com que de amor maior me abrasas...
Não ouves logo a dança astral das rimas,
No rumor de ouro dumas grandes asas...
ORATÓRIO
A minha longa noite, eterna noite escura,
É um fundo de quadro em que ela me aparece
Como uma estátua, que simbolizando a prece,
Tem todo o olhar azul do céu sobre a escultura.
Metida nessa treva essa branca figura,
Um estranho fulgor de astro novo a enaltece,
O espaço abre-lhe o espaço, ela crescer parece:
Nela a piedade é nimbo, o riso iluminura.
Só vejo a luz que o seu divino corpo gera;
E o ar, que hauro, e o meu sangue ou precipita ou calma,
É do que aroma e acende a sua primavera.
Das ondas do seu seio, ilhas cheias de palma,
Mundos novos de amor ver levantar-se, espera,
Aos seus cabelos de ouro agarrada, minha alma...
AND MORE...
Quando um dia tristíssimo e cinzento
Da muita névoa, que no céu havia,
Quase à beira da noite, (e era tão fria,
Que era um ninho de penas o aposento)
Eu te pedi que fosses um momento
Ver como a luz sangrenta inda escorria
Longe, do flanco nu da penedia,
Por aberta, que ao céu rasgara o vento:
E insisti, e partimos: vendo o poente
Deserto, e turvo o espaço simplesmente,
— Então? — gemeste trêmula, e espantada:
Antes que alguém atrás de nós chegasse,
Eu te beijava o seio, o colo, a face,
―Céu e luz, te dizendo, és tu; mais nada... ―
OURIVESARIA
Também erguer um monumento anelo:
Trabalho grande, e a um tempo delicado,
Como o universo que anda despenhado
Dentro de uns grãos de areia, que cinzelo.
Um grão de areia... um verso lapidado
Com a paixão, com todo o amor do belo,
Como joia em que houvesse a alma entalhado
Brunelleschi, ou Cellini, ou Donatello.
Ao centro, aberto em fina miniatura,
Metera o olhar velado de recato,
O rosto oval, de esplêndida brancura,
Meticulosamente o corpo exato;
E, pendurado ao tempo, a astral criatura
Teria, como os sóis, o seu retrato.
EVER... FOR EVER
Sim! tudo em ti é para mim sagrado,
Seja o que for: eu amo o teu presente,
Eu amo loucamente o teu passado,
E loucamente o teu futuro ausente.
Amo-te triste, amo-te contente,
Apenas sou o teu leão domado,
E até adoro a esplêndida corrente
Em que ando à sombra dos teus pés atado.
Quando o teu riso, como de alta esfera,
Caísse do teu lábio, que não zomba,
Não como flor que solta a primavera,
Mas como um raio, que das nuvens tomba,
Se alguém irado te dissesse: — Fera... —
Eu te diria mansamente: — Pomba... —
VENDEDOR DE JOIAS
Arranquei das lagoas de Veneza
Esta pérola única, sem jaça,
Branca, com um longe azul, que não a embaça,
Como vemos na louça japonesa...
A doce languidez, a que anda presa,
Que eu não posso apagar, por mais que faça,
É como o vapor de água em fina taça,
Que lhe esconde metade da beleza!...
É dos raios do sol ela o primeiro:
Guardo-a, como a melhor joia em meu cofre,
Comprei-a em seu país a um gondoleiro...
É de muito valor, mas fraca e sofre!...
E a pérola gentil o joalheiro
Tremia ao crer das mãos rolar de chofre.
STABAT
Ao vê-la, há pouco, em seu olhar mais puro
Alto chorava a angústia de um segredo,
Num lamento de mar sobre fraguedo,
Longe a praia, o sul forte, o ambiente escuro.
E o que ela então buscava, inda o procuro...
Inda o procuro, tateando e a medo,
Como quem anda ao pé do abismo tredo,
Como quem quer, e foge do futuro.
E enquanto!... Jó em minha voz gemia,
E o Stabat ela em sua voz cantava...
Mas Pergolese, ouvindo-a, entenderia
A voragem de sons em fogo, em lava,
Que ela, num grito, largamente abria,
E que ao seu treno lânguido faltava?!...
PREGHIERA
O teu olhar penetra-me, perfura
A minha carne, como despedida
Seta por deus ignoto; e enche a ferida
Todo um luar, que o sangue me satura.
Sinto-me, à luz que rola em mim, criatura
Que nuns mundos de cima andou, caída
Nestes marnéis sem fundo, e melhor vida,
Em qualquer região melhor, procura.
Prendem-me aos homens pois bem tênues laços:
Rasga-me em flores todo meu caminho;
Podes, sei, inda à mão guiar meus passos,
E abrir-me um céu, para viver sozinho,
Abrindo o céu, no céu dos teus dois braços,
Curvando o céu, como se curva um ninho!...
GENTILE AMICA BIONDA...
Triste... Que cismas lendo a sonorosa
Estrofe, que aos teus olhos canta e passa?
No gesto leva essa divina graça,
Que é tua, e o odor, que é teu e é de uma rosa.
Tênue, ligeira sombra vaporosa,
Como a que há dentro de vazia taça,
Teu rosto embebe, teu olhar enlaça...
Sofre tua alma, e inda sofrendo, goza.
Sai do meu canto artístico e brilhante
Uma alegria, que te alarga o seio,
E a mágoa, e a dor, que ecoa em teu semblante,
Hino, que o amor azula, e à aurora enleio,
Risca-o, às vezes, grito lacerante,
Como o mármore branco escuro veio.
NON SCORDARE
Eu escrevo pensando em ti somente,
Triste, aflito, inquieto; — ao pé, ao lado
Tu olhas mole, tímida, prudente,
Num abandono doce e reservado.
Severamente calma e negligente,
Freme-te o coração de perturbado;
E a alcova tem, silenciosa e quente,
Um gesto sério, irônico, afetado.
A porta está entrecerrada: entulha
A alcova a sombra espessa das cortinas;
Vê-se pela vidraça o mato; — a bulha
D'água, que geme embaixo entre boninas,
Mescla-se ao ar, que em torno a nós fagulha...
Enquanto escrevo, e lânguida imaginas!...
A LONG FAREWELL
Adeus: nele minh’alma te dedica
Uma saudade longa e merencória;
Um culto foi a nossa breve história,
De puras emoções somente rica.
De ti rasto de sândalos nos fica;
Estrelaste a passagem transitória,
E vais, — a fronte a irradiar de glória —
Em loureiros, que a terra multiplica.
De noites, que se embebem de luares,
Foste visão de ondina em verdes mares,
Foste apenas um belo e vago sonho.
Deixas a terra doce dos palmares,
Mas sobre o aroma e a luz dos seus altares
A tua imagem, que inda beijo, eu ponho...
ALMA VIRTUS
Pasmo, como um astrônomo diante
De um astro novo, que no abismo achasse,
Presos guardo por sua linda face
Meus dias, em cadeia rutilante.
Com que música gira a cada instante
O zodíaco astral, que vem, que nasce
À sombra dos seus cílios, triunfante,
Como se o céu seu rosto prolongasse.
Sinto-me bem, estou ali contente
Nessa edênica luz, e quando afrouxa
Minh’alma acaso, surge o onipotente
Riso bom, que em seus lábios desabrocha,
E sai de dentro dela transparente
Como um pedaço de cristal de rocha.
EXCELSIOR
Por ti, alma gentil e luminosa,
Como rútila esfera recurvada,
Onde o cheiro da luz harmoniosa
Canta da noite à plácida calada;
Por ti a lira doce e sonorosa
Abriu-se em raios, como flor, que nada
Entre o tépido odor da madrugada
E o orvalho em gota trêmula e chorosa.
Pedi canções às terras do Oriente,
E às nossas matas; em caçoula ardente
Pérolas pus; pus astros, e corais,
E os diamantes do vale, e o ouro da serra;
Dei-te o que há de melhor no céu, na terra:
Se é pouco, para dar-te, eu tenho mais.
NO CORREDOR
Era como no fundo de uma gruta,
Como num bosque, como num desvio,
Como detrás da pedra de algum rio,
Como num canto azul do céu... escuta,
Aquele corredor, onde a permuta
Deu-se de um beijo noutro: um calafrio
Do indizível prazer tomou-nos, viu-o
Em teu rosto, em tua alma resoluta.
Vinham todos após, e ninguém veio,
E ninguém viu, e como num deserto,
Enlaçava o teu corpo meio a meio.
A aquarela da luz cobriu decerto
Esse instantâneo idílio; e também creio
Que houve um deus, nosso amigo, ali por perto...
TERROR DO MARAVILHOSO
Os prodígios do corpo teu, sabê-los,
Penetrá-los, querer ouvi-los, tanta
Ansiedade em mim traz, que já me espanta,
Como um deus... deus qualquer, não me dá vê-los.
Do nicho de ouro astral dos teus cabelos,
Como a aurora, ao mostrar-se, esplende e canta,
Deves nua sair, irisando: e em zelos
Já dobro à terra o coração e a planta:
Já num êxtase grande, em vasto gozo,
Silencioso, mudo, imóvel, quedo,
E ao mesmo tempo inquieto e sem repouso,
Na aparente atitude de um rochedo,
Dentro vulcões de amor tempestuoso,
Caio pasmo aos teus pés, a arfar de medo...
MIRAGEM
Não vens? — Pois inda assim estás muito perto;
Pensas em mim agora mesmo; e pensas
Em que ermo largo vivo horas imensas!...
Ermo, a miragem crio, um sonho, é certo.
Sofro? Não, vê: adorno de sentenças,
Trago de flores dos vergeis coberto,
E de asas de ouro quérulas suspensas
Recorto o meu vastíssimo deserto.
Ponho-te dentro dele; e sinto o ambiente
Todo embebido de um clarão macio,
Que vem de longe, e vem de ti somente.
Não há um canto escuro ali vazio:
Tudo ocupas, ó deusa onipotente;
E com teu riso bom ri tudo, e eu rio...
IL RITRATO
Achei, como Colombo, o que queria:
Haurir de vez seu corpo melindroso,
E sentir esse imenso e infinito gozo,
Que era um delírio, um sonho, uma utopia!...
Como nas asas de ouro o sol metia,
O que anda, ou voa, ou está preso ao repouso,
E em seu ósculo grande e luminoso
Céu, terra, e mar, enfim tudo cabia.
Venci! Também numa alegria louca
Abro ebriado a minha ardente boca,
Como quem vai sorver todo um regato:
E bebo num só beijo o corpo dela;
Pois que eu a tenho, tímida gazela,
Doce, branca, a tremer no seu retrato...
ENTRE O IDÍLIO E O ABISMO
Ah! nescis, quod facinus facias.
Catulo — Carmen
Deixa cair seu braço em cima do meu braço,
Passa-me as mãos à barba, e calma continua
Numa conversa grave e inocente: e flutua
Entre coisas da terra, e entre coisas do espaço.
Fala de Deus, do céu, de uma criança nua,
Loura, bonita, pobre, e que anda com um cansaço
Que mete pena, só, a tossir pela rua...
E o argueiro, e a flor, e a estrela aperta o mesmo laço.
Bate-me um pouco, grita... e ante essa alacridade,
Onde há tanta inocência e tanta ingenuidade,
Tudo está sério — o céu, o campo, o domicílio...
Mas no seu casto olhar... casto até o cinismo,
Torce-se um sol em chamas, enrola-se um abismo:
E à beira desse abismo ando a rir nesse idílio!...
IN DOMO
Vem numa roupa simples e caseira,
Sem ter preocupações, naturalmente,
Como quem sabe o que possui, e sente
Que a flor há de ser flor, queira ou não queira.
O cabelo enrolado à nuca, a arteira
Saia de deusa em frêmitos cadente,
Nem uma joia, e o rosto esplendecente
Como manhã na aparição primeira.
Traz o calor do sol, o alvor do arminho,
E o azul que se dilui, estende, espalma
No céu cavado, como um grande ninho.
Oh! quando chega assim risonha e calma,
Nodoa de ouro e luz o meu caminho,
Mancha de branco as sombras de minh’alma!
EMBRIAGUEZ DO CÉU
Mas isto assim?... Para que fazes? — Chegas
Simples... tão boa!... O teu chapéu de palha
Tiras, tiras a luva... e o que se espalha
É o som gentil de umas palavras meigas,
E um outro céu, mais luz, mais sol, mais veigas...
Sândalos, sim!... (e a mata que farfalha,
Eu ouço, eu cheiro) e o olhar que me agasalha,
Calmo, da calma das estátuas gregas.
Potestades! meu voto está lançado:
Beber o céu num cíato dourado
Cheio de estrelas, vou, sabei-o pois.
Ai! todo o firmamento azul num beijo...
Deuses, silêncio: sóis, eu não desejo
Que alguém veja o que houve entre nós dois.
SURPRESA
Vais dormir. — Como sai do oceano a aurora,
Entras a alcova: rola-te nas costas
O feixe astral das tranças; tens de fora
As duas mãos nas longas coxas postas.
De prata nova é cada estrela agora,
Mosqueando o espaço, e ebriada o espaço arrostas,
Revendo-as uma a uma; eis soa uma hora:
Rompe a lua, iluminam-se as encostas.
Fulge acesa a vidraça: o éter de opala
Afunda-se, de estranhas coisas cheio;
Larga nódoa de luz manchou-te a sala:
Toma-te um frio, um dúbio, um vago enleio...
E ante a carícia, em que o luar te embala,
Ris... recuas a rir... e arfa-te o seio.
DEA
Um dia conduziu-me o meu destino
A ver-te nua, bela e deslumbrante:
Tinhas a langue palidez da amante,
E a atitude gentil de um ser franzino...
Sobre o colo esplendente e alabastrino
Caía a nuvem do cabelo errante:
E a luz primeira duma aurora infante
Envolvia o teu corpo em véu divino.
Sob os teus grandes cílios desfranjados
Mostram teus olhos o tremor violento
De estrelas pelos céus ilimitados.
Era um ninho de sândalo o aposento
Aquecido ao calor dos cortinados,
Macio, perfumoso e sonolento!...
À...
Quella che imparadisa la mia mente.
Dante — Paradiso
Foi, talvez, ideal dos meus amores,
Pálida estrela do meu céu querido,
A cuja sombra apenas hei vivido
Não sem dores, porém com menos dores;
Foi num mundo, em que tu me espalhas flores,
Mundo virgem, de mim tão só sabido,
Que em teu rosto gentil todo embebido,
Dei ao meu canto dele as brandas cores.
E o perfume que tem, que o envolve e exala,
A luz suave, que o penetra e o doura,
É o perfume e a luz, em que se embala
Teu corpo duma forma encantadora,
Em cujas linhas todo o céu me fala,
E universos de sóis Deus entesoura.
LOVELACE
Sabes, amor? eu sou um Lovelace;
Corro após criaturas deslumbrantes:
Quero ir de encontro à multidão de amantes,
Mas com teu sangue, e coração, e face.
Achei quem neste céu me acalentasse,
Dando-me à fome as carnes palpitantes:
Este banquete eu não sonhava dantes;
E eu pudera, sem ti, sonhar que o achasse?
Como de sóis à noite o céu faísca,
Inopinada, esplêndida odalisca,
Vem daqui, sai dali, irrompe, nasce.
Outras, outras, milhões, vêm de improviso:
É teu corpo isso tudo, — um paraíso,
E eu só aí dentro, e eu só o Lovelace...
CUMPLICIDADE DO CÉU
Um dia — era de tarde — e sonolento
O sol buscava a lúbrica princesa:
Ela me tinha entre seus braços presa...
E a coma de ouro lhe agitava o vento.
Seguia cada qual seu pensamento...
Quanto da boca de rubis acesa,
— Ave que salta trêmula e surpresa —
Saltou-me à fronte um beijo!... Em tal momento
Tinha o seu rosto um não sei que de brando,
Que ajoelhei, e lhe beijei de rasto
Os pés, não sei se rindo ou se chorando...
Eu te agradeço esse teu beijo casto!
E os olhos meus dos olhos teus tirando
Vi sobre nós o céu profundo e vasto!...
IN SEE AND HEAR
Que isto tinha ela, que inda não ouvi
dizer que o tivesse outra.
Bernardim Ribeiro — Menina e Moça
Semelha o resto de umas coisas santas
Em que a sombra de um deus deixou seus traços,
Vaga harmonia de harmonias tantas,
Que andam pelos azuis de etéreos passos.
Dormem-lhe nuvens flutuando às plantas,
Pousam-lhe estrelas pela fronte a espaços;
E quando os olhos para o céu levantas,
Sentes entre ela e os sóis possíveis laços.
Do corpo seu fremindo a aurora acorda
Com essa fresca música de brisa,
Que há do oceano, que amanhece, à borda.
Oh! quando ela caminha, o chão nem pisa:
E mó de pombas a ruflar em corda
Parece que na pele lhe desliza.
DEPOIS DE MULHER
Ela era assim: suave e pequenina,
Cheirando, como cheira o ninho, e a flor;
Risonha, alegre, tímida, franzina...
Metia a todos medo o seu palor...
Tinha de um lírio a lívida menina
A linha tênue e esbelta, o aroma e a cor...
E um sangue quente sob a pele fina,
E à fronte adivinhava-se o esplendor.
Quando aos sábados vinha do colégio,
Todos notavam seu semblante régio,
Sua cabeça altiva, porém boa;
Tem hoje ares de deusa, que não tinha;
Mas guarda os grandes gestos de rainha,
E uma tristeza, que a engrandece e c'roa...
LUZ PARA O DIA
Só há um mundo para mim mais largo,
Vida bem longe de momento amargo,
Onde o relógio nunca tem ponteiros,
Onde o sol não se põe, e jamais nasce:
É quando estou beijando a tua face,
Quando estou junto a ti dias inteiros;
Tudo o mais noite intensa é que vacila
Na treva dura, enferma e pavorosa,
Por onde, como cintilante rosa,
Uma estrela não abre e não cintila.
Só pode dar-lhe cor tua pupila,
E cor e brilho à Hora luminosa;
Para o dia ter luz, há de pedi-la
A ti só, alma em flor da luz formosa...
A MÚSICA DO SEU CORPO
Deus fez a luz: a luz inda não era:
Imagina essa noite imensa, extrema,
Que em treva densa role cada esfera,
E em cada mundo solitário gema.
Ao pé do cisne tropeçando a fera:
Por toda parte lúgubre celeuma;
E esculturada em corpo a primavera
Sem a c'roa de luz, seu rico emblema.
De repente rasgou-se o manto escuro:
De cada ponto aberto e cada furo
Sai luz líquida em grande jorro unido.
E essa sonora música triunfante
É que ouço em ti, cantando a todo instante,
Se o corpo moves dentro do vestido.
O LUAR DO SEU ROSTO
Sinto que embaixo dos meus pés oscila
O orbe da terra, coxo, e ao lado o eixo:
Furou-lhe o tampo a lúcida pupila;
Deu-lhe a cegueira e a escuridão de um seixo.
Pocilga de homens, sem poder fugi-la,
De vermes entre o enxame o corpo mexo:
E aos deuses vãos da região tranquila,
Aos deuses vãos, irado, eu não me queixo.
Transido, e alheio, e extinto, e triste, e mudo,
Tu de repente vens, vens de improviso;
Eu me levanto, eu corro, eu te saúdo:
Metes em mim o céu do teu sorriso,
O luar do teu rosto inunda tudo...
E é um mundo de ouro, o mundo então que eu piso...
O CABELO
À sombra da floresta do Oriente,
Onde o odor rubro em turbilhões se evola,
E onde o sândalo, e o nardo, e a mirra ardente
Dançam, girando, as danças da Espanhola;
Sob a abóbada azul do céu, que rola
A cauda apavonada e resplendente,
De fitas de astros, como argêntea estola
Atravessada... é bom passar a gente...
Mas o melhor, sabei, é star deitado
Sob a cascata de ouro derretido
Do seu grande cabelo perfumado,
Como um luar aurífero caído
Por seu colo, de veias enrolado,
Como estrias de um mármore polido...
A FRONTE
Sua alvíssima fronte é nesga de Carrara
Por mãos de um deus, ou de um Cellini trabalhada,
Onde do seu cabelo, esplêndida tiara,
Rola uma mecha, como um sonho, esculturada.
Em dois globos assenta, obra artística e rara,
Por onde a noite inteira afunda-se estrelada,
E lhe ilumina tão suavemente a cara,
Que deixa à testa toda a luz, em que ela para...
E essa estrada lirial, brilhante, unida, e lisa,
É onde uma Quimera o Pensamento atrela,
Onde o prazer gorjeia, e se arrouba, e desliza...
Às vezes qualquer névoa espalha-se por ela:
É a dor, que engrandece a forma, e a idealiza,
Sombra, donde a mulher sai maior e mais bela.
OS SUPERCÍLIOS
São, de um pássaro o ninho seu buscando,
Pontas das asas, fim talvez, apenas,
Descendo dumas regiões serenas
Num voo brando... cada vez mais brando;
Negras, como as do corvo negro, quando
Saem-lhe da noite fúlgida das penas
Áscuas azuis, de encontro ao sol brilhando.
Onde ides vós, gentis asas pequenas,
Supercílios de ônix?... Ou sóis dois marcos,
Deixando ao tempo, em dois formosos arcos,
A história dos seus olhos vencedores?
Por baixo deles vão passando agora,
Em festa, aos gritos, os aclamadores,
E as músicas de dentro ouvem-se fora...
O OLHAR
O seu olhar magnético fascina,
Como o abismo do mar, como os abismos:
Há nele o rir de todos os cinismos,
Apiculado de uma voz divina...
Música em grita, música à surdina
Por mulheres em loucos paroxismos:
De anjos bons oratórios, e lirismos,
Onde um céu de rumor azul domina.
E anda uma Ofélia nisso tudo, flores,
Solaus lançando aos lagos encantados
Dos seus dois grandes olhos cismadores.
Neles me atiro, os membros lacerados,
Sentindo aí dentro as deliciosas dores
De sóis em cio e deuses namorados...
A ORELHA
À concha úmida ainda ela semelha;
Todo o escrínio, que as tem, não tem mais bela;
Foi a de Vênus modelada nela:
Não tem a aurora a boca mais vermelha,
Mais brancura não tem uma centelha:
Benvenuto, que a prata e o ouro cinzela,
Que, como um Deus criando, se revela,
Não enrolara essa divina orelha.
É como um lírio em Maio, há pouco aberto,
Cujo nítido alvor, — mistério e engano, —
Do sangue doutra flor se viu coberto.
Mas... por que ela me lembra o infiel oceano?
Que tem ela de vaga em si decerto?
E o que há de mar num coração humano?...
O NARIZ
Um marfim novo, que Cellini pole,
Mínimo vaso etrusco, ou bizantino;
Na iluminura dum missal divino,
Cristo à borda do poço, o gesto mole,
O riso triste, que o buril mais fino
Grava em crocais de boca, que não bole,
Haurindo lentamente, e gole a gole,
A mulher, que atravessa o seu destino;
Brinco feito em caulim com tal cuidado,
Que um chim só de genial cinzel fecundo
Nunca o dera por nítido e acabado:
Eis seu nariz: tirá-lo, fora um mundo
Não ter céu para a luz de um sol dourado,
Não ter sol para o azul de um céu profundo...
A BOCA
É sua boca um cíato cavado
Num rubim grande, de um valor sem preço,
Onde hauro e esgoto o líquido sagrado,
Que me ebria, e com que do mais me esqueço.
Houve no céu azul um sol dourado?
Contam que há rosas? Pelo vale desço,
Não há mais rosas: é maninho o prado:
Astros?... Sei?... Isto é fim, ou é começo?...
Como se vive? A terra é terra ainda?
Ouvi dizer que a Aurora era uma louca,
Branca, alma de Ofélia branca e linda?
É certo? A água do mar é já bem pouca?
Falam de Laura, Beatriz, Clorinda?...
Não sei... Que olvido então lhe sorvo à boca?...
O RISO
Quando o véu melancólico, que enchia
De graça austera e força radiante,
Num momento melhor de humor rompia
No riso, que humanava o seu semblante;
Quando nos lábios ele aparecia,
Buscava-a um anjo, e vinha inda distante,
Mas quando ele cantava, e quando ria,
Quando esse riso ria-se bastante,
Eu via tudo em torno acompanhá-la:
Um rouxinol dos ângulos da sala
Cantava, e ria alegre o espaço ao vê-la.
E para não ouvir naquele riso
Cantar o firmamento, era preciso
Não saber como canta o céu e a estrela.
A SUA VOZ
Sai-lhe a voz entre vagas sonorosas,
Como cabeças de anjos sorridentes,
Por entre um basto turbilhão de rosas,
Movendo as largas asas transparentes.
Nela se espelham coisas luminosas,
Fulgem nela constelações ardentes,
Iluminuras de missais, por crentes
Feitas num claustro em noites delirosas.
Querubins de joelhos, formosuras
Medievais na atitude recolhida,
Frescos das velhas catedrais escuras,
Cristos numa aquarela esmaecida,
Vias lácteas, luar das noites puras,
Passam boiando em sua voz querida!
O COLO
Seu colo é como um lírio, alvo e elevado,
Tendo o esplendor dos mármores brunidos,
Sobre a espuma das rendas dos vestidos,
Como a de um mar em pontas desdobrado.
Ondula, como em lago o cisne a nado,
Brando volita em todos os sentidos:
Tem os giros dos sóis nos céus perdidos,
E cheira, como o abrir-se em flor um prado.
Fez dele obra de artista florentino
Base em que assenta o rosto seu divino,
Que de noite e de dia a beijos bordo,
E a cabeça, em que um astro anda desfeito
Em raios, que dão luz à espádua e ao peito,
E a cuja sombra de ouro eu durmo e acordo...
OS SEIOS
Nunca te vejo o peito arfar de enleio,
Quando de amor, ou de prazer te ebrias,
Que não ouço lá dentro as fugidias
Aves, baixo alternando algum gorjeio...
Aves são, e são duas aves, creio,
Que em ti mesma nasceram, e em ti crias,
Ao arrulhar de castas melodias,
No aroma quente e ebúrneo do teu seio;
Têm de uns astros irmãos o movimento,
Ou de dois lírios, que balouça o vento,
O giro doce, o lânguido vaivém.
Oh! quem me dera ver no próprio ninho
Se brancas são, como o mais branco arminho,
Ou se asas, como as outras pombas, têm...
O CRAVO
Tinhas ao seio um cravo; era vermelho;
Tiraste-o, e a mão tremia ao dar-me, — e o deste;
E então tua alma em teu olhar celeste
Eu vi, como ao cristal de um fino espelho.
Não pude ao menos pôr em terra um joelho,
Beijar-te as fímbrias da formosa veste:
Como o infeliz mais infeliz fizeste!...
Quem pôde dar-te esse fatal conselho?
Sabes? Nessa hora adivinhei que viste
O meu semblante lânguido e prostrado,
E o riso meu profundamente triste...
Com que gesto, ao lançares-me um punhado
De ti mesma, comigo repartiste,
Na flor, teu sangue límpido e encarnado!...
O COTOVELO
Era um canto do céu não visto, e vê-lo
Era um desejo, uma ânsia, uma agonia!
E ela sentada em meus joelhos ria
À ampla sombra enrolada ao seu cabelo.
Louco da fome das estrelas, pelo
Martírio longo e dor maior pedia...
Até que enfim, quase indiferente, um dia
Mostrou-me, erguendo a manga, o cotovelo.
Vi-o, e ebriei-me, como de um escombro,
Num revérbero convoluto, o assombro
De um capitel de artista jônio ebriou-te.
Vi-o, como entre nuvens de repente
Das madeixas, que caem do luar, se sente
O hino branco da luz cantando à noite...
AS DUAS MÃOS
Já vi pelas campinas verdejantes,
Entre os raios do sol cheirando as flores,
Correr dois rubros colibris brilhantes,
Iguais no voo, iguais nas lindas cores:
Duas crianças loiras, cintilantes,
Dois belos olhos, calmos salteadores,
Que atrás de uns cílios negros, palpitantes,
Pareciam dormir, fazendo horrores:
Mas o que hei visto de mais doce e brando,
Num ponto o céu e a terra misturando;
Mas o melhor, que hei visto, em coisas mil,
Foi sempre tuas duas mãos pequenas,
Cheias desse rumor da luz, que apenas
Nelas faz ao cair, mulher gentil...
A MÃO
Leve como arabesco florentino
Feito da espuma de amorosa ideia,
Treme-lhe à mão o azul da tênue veia
Em brancuras do mármore mais fino.
Cinzelou-a a capricho o peregrino
Buril, que a luz e o lírio delineia;
E entre as coisas do céu, de que está cheia,
Guarda o segredo do melhor destino.
Da nívea concha, que se eleva e arqueia,
Carícias como pérolas semeia;
Tem o rumor cheiroso de uma aurora:
Quem anda perto — sente-lhe a quentura;
Quem a beijasse — dera-lhe a ventura
Tempo de ver o que ela em sóis põe fora.
A UNHA
Quantas vezes na tépida brancura
Daquela mão, que em ninho se entreabria,
Dos meus lábios um beijo ali caía,
A cantar, como achando o que procura.
Era a calhandra da manhã mais pura,
Que as asas pelo céu azul abria,
Rasgando, às vozes de ouro, a noite escura,
Para que entrasse, como um rei, o dia.
Mas... no fim do seu dedo onipotente,
Haste dum marfim novo, onde a luz quente
Freme, e brinca, e se esconde, quem supunha
Tê-lo a guardar formosa sentinela,
Duma folha de rosa à sombra, — aquela...
Aquela tênue e irresistível unha?!...
A COXA
Era o rosto das virgens de Murillo,
Das virgens de Correggio era o cabelo;
E, para enfim aos séculos dizê-lo,
Não digo mais: o mais era um sigilo.
Vi-lhe uma coxa: a coxa era a de Milo
No contorno ideal, no ideal modelo;
Minha vida bateu, parou naquilo:
Foi meu pasmo, e ficou meu pesadelo.
Achar o resto, a trechos refazê-la,
Vai, nesse empenho, todo o meu destino;
Meu sonho agora é levantá-la, erguê-la,
Mesclado ao grande mármore divino,
Como os de Fídias, esse olhar de estrela
Das madonas santíssimas de Urbino...
A PERNA
Esta é bem como o limiar augusto
De Éden, em que ninguém inda há vivido:
Que causa, a quem quer ir, terror e susto,
Pois guarda-o um anjo de clarões vestido.
Quem o caminho dele sabe ao justo?
O carreiro das rosas é sabido;
Das pombas brancas ao pombal hei ido:
Mas... como ao paraíso ir mesmo a custo?
E todavia aquela perna indica
Que muito longe dela o céu não fica:
Tentar, como um Titão de um raio em troco?
Aquela ponte de marfim maciço
Passar, subir... quem pode fazer isso?
Um louco? — Eu vou... Quem há do que eu mais louco?
O JOELHO
Nódoa, nem mesmo leve, acaso tinha;
Deusa, nunca o dobrara aos deuses; — era
Como a primeira flor da primavera,
Que ninguém viu no vale, e abriu sozinha,
Vivendo em harém de oriental rainha;
Filho da neve, neve, que viera
Do sonho, que fecunda uma quimera,
Quando com ela o sonho, a rir, caminha,
Fora o gentil joelho: um joelho liso
E alvo, como um marfim, que era preciso
Pintando-o, e vendo-o assim em luz tamanha,
Ter uma nota estrídula e guerreira,
Como num modelado de Ribeira,
Como na cor de um quadro a arder de Orcagna...
OS PÉS
Hum!... Qualquer coisa como um passarinho
Nevado e azul, polido e luzidio,
Como o fluido cristal d'água de um rio,
Que a luz cinzela, e aroma o rosmaninho...
Alvo... da casta alvura de um arminho...
Azul... do azul do céu, franzino, esguio,
Trêmulo, arfando, em susto, em medo, eu vi-o
Buscando o fundo tépido do ninho.
Ela no leito tinha-o prisioneiro;
E a mim me parecia que o infinito
Era o que ele queria... o espaço inteiro...
— Deve ser lindo, disse-lhe, e esquisito:
Não deixes ir, sem dar-mo a ver primeiro...
São dois?!... — Sentou-se, e às mãos os pôs num grito...
A UNHA DO DEDO MÍNIMO DO PÉ
É um gigante, e acaso uma hora excede-o:
O seu alto valor se verifica
Quando, em noite de amor tão curta e rica,
Crê-se tudo acabado e sem remédio.
Vence o cansaço e o sono; o sono e o tédio...
De ambos a inércia é a morte, e a calma a explica:
Vênus e amor são grupo em bronze, e aí fica...
Eco um beijo inda pede... embalde pede-o...
Mas esta unha, num dedo escuso, é certo,
Roça-te a carne, um nada, aos pés... desperto
Logo, logo o teu sangue — às armas — grita.
Ferve dentro de ti toda uma aurora;
E vibra a seta, a seta rubra agora
De um sol, que o céu, em todo fundo, agita...
O MONTE DE VÊNUS
É neste monte que ela, a encantadora,
Que ela, a Afrodite esplêndida, aparece:
É aí que ela cogita, e pensa, e tece
Do rosal negro, ou seara fina e loura,
Que o cobre todo, e todo em roda cresce,
Esse estema auroral que ela entesoura,
Como se do universo a chave fora,
Ou fora do porvir a vida e a messe.
Ninguém aí vai sem ter primeiro amado,
Sem que ela veja um halo de tristeza,
Que faz um deus de um pobre alucinado.
Psiquê o viu, à mão lâmpada acesa,
Ticiano fiel o copiou, mau grado
Trazê-lo oculto ao flanco a Natureza...
CAVERNA RUBRA
Quando, caverna rubra e monstruosa,
Onde habitam os deuses deslumbrantes
Sobre coxins de sedas cor de rosa,
Talhados para toros de gigantes;
Quando paro ante ti alguns instantes,
Na raiva doida, lúbrica, ansiosa,
Sombra no rosto, os membros palpitantes,
À porta augusta, viva e esplendorosa;
Eu quisera furtar-me à cobardia
Dos sóis, dos universos afrontados,
Hirtos de inveja, horrendos de ironia,
Caindo em teus abismos estrelados,
Caverna rubra, aberta na harmonia
De um corpo feito de clarões coalhados...
O EMERGIR DE UMA LUA
Não é mais bela a estrela a iriar dentro de um lago,
Da luz crepuscular ao irradiamento vago,
Quando não o emarlota entre as asas o sul;
Nem a pérola branca à concha inda agarrada,
Que ela nessa atitude imóvel reclinada,
Sobre as pomas as mãos, o olhar no vasto azul;
O olhar buscando o azul, em cima do seu leito,
Sem nada que a perturbe, ou passado ou porvir,
Num delíquio que é sono, e não é sono, o peito
Nu, como um céu que entreabre um céu, que vai abrir.
E, um instante, morosa e incauta, com efeito,
Ante a roupa, que cai, e a que veste ao dormir,
Vê-se da noite do seu cabelo desfeito
A lua do seu corpo esplêndido emergir...
A PELE
O que p’ra ti me leva, arrasta, impele
É uma terna e surda cantilena,
Que ouço gemer na palidez serena
Do rosto, e que gorjeia em toda a pele.
À rosa branca, à cândida açucena,
Ao alvo marfim da estátua de Cibele,
Do cisne à pena, à imaculada pena,
Teu níveo corpo em luz e cor excele.
E canta: e o canto é um hino iriante e baixo,
Que à noite só entre as estrelas acho,
E ouço na luz, no luar, na aurora, e quando
Ouço-o em teu corpo, e todo corpo o canta,
Penso que nele orquestra oculta e santa
Tens de um ninho, em que sóis abrem chilrando.
DEPOIS DO BANHO
Sai do banho: o seu corpo alabastrino
Goteja: a água murmura do abandono;
Vê-se abatida, lânguida, com sono...
Lança mão do lençol, quase sem tino.
Mostra-lhe o espelho o corpo peregrino:
Ela o admira, e busca ver-lhe o dono...
Anjo, merece um céu; mulher, um trono:
Cisma, e sacode as tranças de ouro fino.
Senta-se, e mostra a orla avermelhada
De uma estrela, que imerge no infinito,
Sob uma névoa loura inda molhada.
Seu rosto inquieto oscila alegre e aflito:
Mas... numas longas asas confiada,
Pensa fugir ao mais ligeiro grito...
VITA NUOVA
Sono de bronze rijo, ou pedra dura,
Profundamente quem não dormiria,
Enquanto o sangue e a lágrima murmura,
E as coisas ruem no horror de hirta agonia.
Mas a treva mais densa ela perfura,
E lhe põe dentro um riso de alegria,
E, como tinta feita em luz do dia,
Deita-lhe a luz da sua formosura.
Não há mais ver e ouvir. — Sai da voragem;
Vamos ao campo, aos pássaros, aos ninhos,
Vida nova, me diz, — uma viagem:
Iremos nós, nós dois... nós dois sozinhos,
Quadros de mestres ver entre a folhagem,
Em cima, embaixo, em mó, pelos caminhos...
CREDO
Não vale a glória um dia em teu regaço;
Prefiro estar contigo um só minuto
A ter os sóis, que rolam pelo espaço,
Ou da terra ou do mar banal tributo.
Teu colo à mão, tua cintura ao braço,
Ouço a inveja dos deuses, com que luto;
Enquanto o céu todo estrelado enlaço
Em ti, e em ti meu ser mesclo e permuto.
Forra-me o amor todo o horizonte, todo
O vale em flor se rasga, e ouve-se o bando
Dos silfos nus gemendo, em cio, em rodo,
Quando te envolvo em largo beijo, quando
Crendo em tudo, e em ti mesma crendo, doido
Vejo-te dentro dele ebriada e arfando...
ET NUNC ET SEMPER
Até quando virei bater-te à porta?
No limiar do teu palácio espero;
Tu sabes bem o que desejo e quero:
Não? — Outro dia eu voltarei; que importa?...
O vento frio zune, os ares corta;
Vim assim mesmo. Enfim?... Eu não me altero;
Não? — E dizes, voz rouca, e o olhar severo;
Sim, dize enquanto eu vivo, e não estás morta.
Hás de tu ver-me eternamente triste,
Hei de vir ver-te, e hei de partir: embora.
Como o teu duro coração resiste,
A quem vai, a quem vem, e torna, e implora!
O que eu peço, em ti só eu sei que existe:
Por que não dizes, meu amor, — Agora?!...
A VENTURA
É o eterno trabalho da Danaide,
Eterno, o mesmo sempre, e sem repouso;
Nele está meu tormento, está meu gozo;
Raio, que acende a grenha à tempestade,
Longo raio, em que desce a divindade,
Desceu em mim seu corpo luminoso;
De mim quero arrancá-lo: em vão! não ouso:
E arrancá-lo de mim sem mim, quem há de?
Somos dois mas num só, como o perfume
É da flor, e que dura o que a flor dura;
Flora de ouro em meu flanco, altar e lume,
Lume e altar, levantado à formosura!
Sem ela eu nunca conhecera um nume,
Nem soubera, sem ela, o que é ventura...
AGORA!...
Quando no sótão de uma casa escura
Vivias pobre e alegre de uma agulha,
Silenciosamente, só, sem bulha,
Nessa calma que um sonho inda não fura;
E que a neve de alvíssima costura
Invejava tua alma inda mais branca,
E que tua janela estava franca
À luz somente, outra formosa alvura;
Quando de tarde e de manhã teu braço
Claro, redondo, e tua mão de fora
Moviam-se ao regar teu vaso, o espaço
Ria-se acesso da divina aurora,
Que andava neles: mas o tênue laço
Das coisas virginais rompeu-se... E agora!...
O SUFICIENTE
E este soberbo e olímpico desprezo,
Que eu sinto e tenho por que hei visto e vejo,
É porque já não ando à terra preso:
Confio, como um pássaro, no adejo,
Que há de levar-me ao monte, ao cimo, ao teso,
E à sua boca, — o céu, e à aurora, — o beijo:
Não acalento em mim outro desejo,
Nem aspiro outro sol na vida aceso.
Aos triunfos do dia enfim me alheio;
Sou surdo à voz, ou vã, ou dura, ou meiga;
Nem mais me irrita o ódio a quanto odeio.
Fujo à flor, que perfuma o vale e a veiga,
Porque me basta o aroma do seu seio;
Porque, para viver, ela me chega...
A FORMA
Em força isto que existe, existiu dantes:
Em forma o espaço novos mundos deu-nos,
E águias enormes, pássaros pequenos,
Vales profundos, cúspides gigantes.
Outra tu foste já, formosa Vênus,
De carne branca e espáduas deslumbrantes,
Ouviste idílios, sei, e ouviste trenos
De um tempo, que inda mal nos lembra instantes.
Orbes mortos... O estilo é novo agora:
Este universo nada tem do antigo
Que um dia andou por este espaço em fora.
Se inda uma vez partir, irei contigo,
Em outros sóis, de um modo estranho embora,
Novo ser a teu ser me prendo e ligo...
A FESTA DA FESTA
Se há festa em casa, é vê-la de rainha:
Ela por si já é a festa toda;
Anda como uma borboleta doida,
Quero dizer que voa e não caminha.
Há primavera? É que há uma andorinha:
Há regozijo? É ela: ela acomoda
Aqui, ali, de todos se avizinha:
Passa... e um pó de alegria ergueu de roda...
— Levantemos ao instante um canto, e altares,
Que em retábulo azul bordado temos, —
Diz rindo: e desse riso enchendo os lares,
A branca espuma dos seus dentes vemos,
Como a que um bote deixa pelos mares,
Fechando e abrindo o leque dos seus remos...
A PRINCESA
Entre nós interponha-se o oceano,
Cave-se o céu entre ela e o meu desejo,
O meu caminho a insídia, o crime, o engano,
Erice-o todo, no fim dele a vejo;
É por ele que vou. — Urdi meu plano:
Observo atento a hora, o instante, o ensejo;
Ouço a chamar-me a música de um beijo
Nesse seu lindo rosto soberano.
Cega-me, acaso, o meu amor ardente?
A luz de mais nos cega com certeza:
Mas tenho-a presa à indômita corrente.
E não me cansa, vê, tamanha empresa,
Das deusas todas desprezar, somente
Por amar esta lirial princesa.
À JANELA DO JARDIM
Disse-lhe: — Vou, espera-me à janela.
Fui. Lá está; — e azoinou-me a modo um bicho:
É a madona erguida em rico nicho,
Relevo do portal de uma capela.
Curva-se a luz, moldando o corpo dela:
Do tanque do jardim rompe um esguicho,
Que empoeira o ambiente, e a envolve no capricho
De um véu de ouro, que a faz ainda mais bela.
O vento adrede agita-lhe os cabelos,
Como espreitando a cor do seu perfume:
Tentam pousar os pássaros ao vê-los,
Falam-lhe aos pés as flores em cardume;
Canta o ar, ri o céu: — chego a ter zelos:
Eu não sou deus, e ela parece um nume.
AZUIS
Olha, eu te digo, e é sério: ouço a orquestra sonora
Da luz, que canta, e dança, e pisa a terra e o espaço,
Enquanto tens não sei que medo, e a mim te enlaço,
E ouvimos, canto e canto, a Odisseia da aurora.
Que fresca viração aí vai pelo mar fora!
Fura o cheiro da mata o acre odor do sargaço:
Há, de um grande pintor, lá... longe um largo traço
Metendo ouros no azul, que enche o céu todo agora.
Soam trompas o azul deste azul matutino,
Azul, como o que veste as madonas de Urbino,
Azul como a pupila azul, que tu possuis.
Como a manhã, que sai de um fundo azul, eu creio
Que é toda azul tua alma, é todo azul teu seio,
Que, como os sóis, teu mundo é no meio de azuis.
AO DEITAR-SE
Cai-lhe o revolto turbilhão fremente
Dos seus cabelos, como uma cascata
Que se espalha em seu colo reluzente,
E eflúvios mornos, no descer, desata.
Por sobre o leito, em que o lençol algente
Mostra a brancura de brunida prata,
O rosto sonolento, o olhar dormente,
De uma princesa na atitude inata;
Deita-se grave, e acautelada ainda,
Os pés desnus, e da camisa aberta,
No esmaiado rubor da carne linda,
Luzem seios, que às duas mãos aperta...
E enchem-lhe sonhos — a oração mal finda —
A alcova, que ela pensa estar deserta.
RESPOSTA
Recebi teu bilhete escrito às pressas.
Tu me dizias que eras obrigada
A ir ver uma irmã, irmã amada,
Que à noite adoecera; e ser, confessas,
A sofrer duas vezes condenada:
— Não me abraçar, para abraçá-la: — e nessas
Frases, sem dar bem fim ao que começas,
Da sombra de tua alma amargurada
Ouço a mancha puríssima chorando,
A dor de ir vê-la em susto, e achá-la morta;
A dor de me deixar sem ver-te, quando
Sabes que eu tenho a vida à tua porta,
Que há festa, e céus lá dentro em ti, a entrando...
E, que, se há mais além, o mais que importa?
SEU NINHO AO LUAR
Perto da casa o seixo descalvado
Pelo martelo do canteiro; um basto
Renque de troncos pelo dorso; o casto
Véu de Cíntia por cima desdobrado.
Mais longe, um de outro aos ombros levantado,
Monte e monte, e por cima, e em tudo o rasto,
Só carícia, de um vento perfumado
No lilás, no rosal do jardim vasto.
E a luz macia, verde, macilenta,
Esbatida em brancura sonolenta,
Molhe, como um olhar de alma amorosa,
Envolvia nas asas o seu ninho,
Com tão inquieto e trêmulo carinho
Que vi minh’alma do luar queixosa...
STARS'S NEST
A noite era profunda, azul, banhada
Da luz branca de opala transparente;
E ela dentro da alcova reclinada
Numa atitude aérea de doente,
Que é uma Ofélia, que ao princípio nada,
Como um lírio, por cima da corrente,
Tinha na roupa um cântico fremente,
Como arrulhos de pomba, na alvorada.
Caía nota e nota o argênteo trilo:
E o ar em torno repetia aquilo
Que cantava o seu corpo de alabastro:
Que doce! que suave murmurinho!
Como se nela mesmo houvesse um ninho,
Onde andasse a querer pousar um astro...
O LAGO
Mulher, és como um lago em flor, que se ilumina
Ao sol, e como a flor abre o seio esplendente;
Eu me banhava em ti desassombradamente,
Água, flor da manhã, branca flor da campina.
Dos pássaros em torno a canção matutina
Fazia rir de gozo e arfar de amor o ambiente;
Cantava pelo espaço a primavera olente,
Cantava a aura do céu, cantava a luz divina.
Mármore unido, que veia azul brando apenas,
Parecias ouvir, cismando, as cantilenas,
Que enchiam toda a veiga, abrasada de aurora.
Ó lago, eu me banhava em ti; mas de improviso
Fui ao fundo, e no fundo achei o paraíso:
E aonde o paraíso está, eu sei agora...
OS DIAMANTES BRUTOS
— Eis dois diamantes brutos! — Seriamente,
Como um sábio, com todo amor do estudo,
Rolando-os, vendo-os, e revendo tudo,
Agora alegre, agora descontente,
Levava aos olhos úmidos a lente,
Que tirara do escrínio de veludo:
E eu a encontrava, vez primeira, mudo,
Por essa nova face surpreendente.
— Um rondiz: esta pedra, — ela dizia,
Lapidado em pirâmide, deixando
Funda a culassa, é um irmão do dia.
Um lindo rosa esta outra, um rombo; quando
À noite brilha, um astro o inveja... — E eu ria,
E mal a ouvia, a ouvir-lhe a voz cantando...
PER AGROS
Vejo-a, depois da última mudança,
Menos triste, mais sã, e mais bonita:
E mesmo, excelentíssima, permita
Que o diga: o campo como a fez criança!...
Uma rosa no peito, outra na trança;
No olhar a luz da abóbada infinita,
Onde a sereia loira da esperança,
Em rede de ouro se embalando, habita.
É mais seca, também não é tamanha
Esta casinha; é longe da montanha:
Há no jardim um veio transparente...
E, enquanto assim falava, ela sorria:
E, ao vê-la rir, ao mesmo tempo eu via
Trêmulo o bosque, o céu, a luz, o ambiente...
PEDIDO AOS DEUSES
Como sinto que tudo está contente
Por saber que a não vi durante o dia!
A voz surda das coisas, que diria
Ao seu aroma, que ficou no ambiente?
Faz mal minha ventura a tanta gente,
Que é para si um caso de alegria
Em tudo ouvir meu grito de agonia,
E a tudo perguntar por ela ausente?...
Sabe de alguma coisa a madrugada?
Que disse à rosa, que no vale chora,
A água, que aos pés lhe riu, parando ondeada?...
Deuses, vossa piedade amiga implora,
Quem a vós outros nunca pediu nada!
Dizei-me: — O que ela está fazendo agora?...
WITH ALL MY LOVE
Mármore branco, mármore sem vida,
Na atitude que imprime o ideal e o amor,
Sombra de pedra da mulher querida,
Quero escaldar-te a um fogo criador:
Quero ver-te convulsa, estremecida,
A carne quente, num incêndio a cor,
Buscando alívio ao seio meu pendida,
Na face a angústia, a lágrima, o terror...
Não ser, o que és: quero-te a andar: acorda
Mesmo de um mundo de vulcões à borda;
De ti este desejo audaz nasceu:
Move-te, estátua: criação sublime,
Sê minha: é crime? custe-me esse crime
A dor eterna, a dor de Prometeu!
SICUT FLUMEN
É como um rio: enrola-se, murmura,
De espumas rendilhando-se: desenha
A floresta, que nele se despenha,
Sob a clareira azul do céu, que a fura,
Ou sob a espessa sombra de verdura
Passa cantando; e chora, e se desgrenha,
Se rasga o seio de cristal na penha;
Da terra augusta espelha a formosura:
Sim! como um rio, ou trêmula corrente;
Minh’alma passa, e entrando de repente
Sob os dois arcos dos seus pés, se enleia
E nos meandros do seu curso largo,
Agora veio doce, agora amargo,
Reflete a luz dos sóis que ela encadeia...
DEUSES MUTILADOS
Mó de ultrajados Paros que atravanca
Inda a Acrópole, e inda hoje acusa um crime,
Lembra-me, ao ver-lhe a carne dura e branca
Em restos soltos de um lavor sublime.
Como porém Pigmalião arranca
Da pedra a vida, e nela um fluido imprime,
Que a voz lhe sai da boca arqueada e franca,
E o ar o largo peito ergue ou comprime?
Leva-me assim de rastos aos seus passos,
Ela, o ideal da forma peregrina,
Por ver-lhe, a trechos, colo, seios, braços,
Fronte altiva, que um nada o orgulho inclina,
Como uma deusa esplêndida aos pedaços,
Caída um dia de um altar em ruína...
COM ELA SÓ
Ah! se descubro um mar, e um mundo enfim conquisto,
Em que eu só viva, em que eu o rei só dela seja,
Onde ela só comigo eternamente esteja...
É obra de Sísifo e nela eu louco insisto...
Quero havê-la de modo a que ninguém ma veja:
Devorá-la talvez, como se engole o Cristo!
Mas faz-se em toda parte o mesmo, e em toda igreja!
O que eu quero decerto, ó Jesus, não é isto.
Beber seu corpo e sangue, enfim bebê-la toda...
Nesse trabalho imenso a minh’alma anda doida...
Viva e dentro de mim: — viva em mim, como tê-la?
De boca em boca andar; andar de noite e dia,
Não é isto o que eu quero, ó Deus, o que eu queria
Era um céu meu, só meu, e nele a minha estrela...
EX UMBRA
Quando ela sente que feriu deveras,
Bate o último golpe, e ante nós passa,
Como um fio de pérolas sem jaça,
O alvo grupo das suas primaveras.
De que longínquas, lúcidas esferas
De repente surgiu com tanta graça?
Há quem assim do chão irrompa e nasça,
Quando apenas da larva um verme esperas?
Ontem era a crisálida imatura,
Não despertando um só dos teus olhares:
Hoje é isto: a divina formosura,
Pedindo cultos, exigindo altares,
Como uma Vênus nova, de mistura
Com toda a espuma e todo o azul dos mares...
A SEDE
Quando me veio o amor, o prazer foi-se embora:
Se eu fosse um infeliz, esta dor não sofrera;
Passasse eu encostado à sua porta, à ombreira
Do seu divino céu, do céu em que ela mora,
Não sentiria nunca isto que sinto agora,
Amargo e doce, e fel, e luz, e ferro, e cera,
Que faz que tudo dentro em mim por ela chora,
Que faz que eu goze e sofra assim por vez primeira...
Ferido o coração, como um rasgado lenho,
Entorno seiva, sangue, e lágrimas... porejo-os,
Saem-me do corpo; eu sou um doido enfim: convenho.
Sou: mas preso à tenaz enorme de desejos,
Bebo-lhe à boca um beijo, e outro, e mais outro e tenho,
Ai! tenho cada vez mais sede dos seus beijos...
À TARDE
Perhaps, oh, sylph! perhaps 'tis love?
Thomas Moore — Misc. Poems
Disse: — Amo um sonho. — Um sonho? A tua voz celeste
Vibrou, como um violino às mãos de Paganini,
Coisa que ninguém vê, e que ninguém define,
Que tem asas de aroma, e de luar se veste!...
Um silfo atrás da flor, e que talvez requeste
A Titânia, que a habita oculta, e que imagine
Que a pode ter, enquanto a deusa a selva investe,
Corre-a, e foge, sem que no refúgio o silfo atine!...
De venábulos, rindo, afiados de perguntas
Me encheste: eu tinha as mãos frias, trêmulas, juntas...
Livro ao acaso, abri, fechei; — tomei-te o leque...
Varava o sol, ao poente, a feérica arcaria
De uma Balbek em chama; o ouro, em brilhos, fundia...
Voltei-me... e em teu olhar chispava, a ruir, Balbek!...
O MEU UNIVERSO
To...
behind, a dream.
Shakespeare — Sonnets
O que é contigo estar um só momento,
Eu sei, não podes compreender, nem ousas:
Olha: é ter tudo, tendo o esquecimento
Do céu, de Deus, dos homens e das coisas;
Desnodoar disso o vasto pensamento,
E onde as mãos brancas e azuladas pousas,
Ver afundar-se enorme firmamento,
Cheio de sóis, flamantes mariposas.
Em ti começa para mim e finda
O universo, e de todo acaba, quando
Perco à distância a tua imagem linda,
E caindo na vida, exclamo, olhando
Os que passam: — Pertenço-vos ainda,
Clowns miseráveis, sou do vosso bando.
PULCHRITUDO
Por que treme? não sei: — tremer não deve.
Mas sempre há sido assim, — assim, que a vejo;
E, como gota d'água em concha breve,
Deito-lhe à mão, irmã de um lírio, um beijo.
E uiva então dentro em mim feroz desejo:
Branca, fica mais branca, do que a neve;
Ouviu-o, e foge, e vai sutil e leve,
Como um pássaro ao céu, num largo adejo;
E ergue, entre nós, dois palmos de deserto:
Oh! que deserto entre o perfume e a rosa!
E ei-la tão longe, estando ali tão perto;
Rubra a boca de polpa deleitosa,
Furada a um riso, como o furo aberto
Por um diamante em pérola formosa!...
PINTURA IRREALIZÁVEL
Estou tão cheio como se ingerisse
O céu todo de vez no meu caminho:
Levo estrelas em mim: mas vou sozinho,
Seria um louco para quem me ouvisse...
Riso, piedade, lágrimas, meiguice,
É sua alma, é seu tépido carinho:
Sob as asas de um pássaro no ninho
Lanugem doce, é quanto dela eu disse.
Embalde escolho o íris da palheta,
Para ter qualquer cor; embalde pinto
O quanto ela de si, cheirando, deita:
Azul do céu mais claro, ou céu mais tinto...
Prender o hálito bom de uma violeta...
Pôr numa concha o mar... não posso: eu sinto.
PER UNA SELVA OSCURA
Um beijo... — E dize, após, feitas as pazes,
Que falas tu, quando não falas, quando
Quase de rasto, vê, quase chorando,
Peço-te o que o lilás pede aos lilases,
O que tímidos lírios, mais audazes
A outros lírios, num dia, em gesto brando,
Baixo, num surdo anseio, e arfando... arfando
Levam... — E é isso o que quero, e tu não fazes.
Andam, como em delíquio, os teus sentidos
Num bosque: e é bosque assustador tua alma,
Sem fisgas, nada... sem clarões perdidos.
Salvador Rosa assim por noite calma,
Num claro agrupa um rancho de bandidos,
E a selva escura, em torno, enrola e espalma...
PERDIÇÃO PELO AMOR
Para chegar além dos sóis preciso
É entrar pelo horror da sepultura;
Que há de fazer na terra quem procura
Chegar a ti, vedado paraíso?
Sacrificar a vida, honra, e juízo,
Perder tudo, lançar-se à vala impura,
E após de extinto, ó bela criatura,
Vivo erguer-se ao clarão do teu sorriso.
Entro no abismo, está ditada a sorte:
E o espaço fundo e rútilo, que fito,
Tem um astro ancorado ao polo norte.
Deixem-me pois: — irei, sem dar um grito,
Como quem cai na escuridão da morte,
Para encontrar o céu pelo infinito.
AO PÉ DA PRAIA
Uns após outros vão os teus dias serenos,
Como as ondas do oceano, a cantarem-te aos pés:
Como ele a murmurar, nem murmuras ao menos,
Ó deusa, tendo a palma, e não tendo os lauréis.
No altar, em que entretanto erguem-te todos, Vênus,
Sei a quem ajoelho, e sei quase quem és,
Rainha, que num gesto engrandece os pequenos,
Feita só para os reis, ou para os menestréis.
Dá-me pelos degraus do trono, que mereces,
Como uma melodia eterna, desatar
Minh’alma a desfazer-se em soluçadas preces:
Como esse úmido treno azul, que vem do mar,
Que, quando os olhos teus por ele abaixo desces,
Nem sabes se é sorrir, nem sabes se é chorar...
PERTO E LONGE
Quando estou junto dela a luz é leve,
O azul, que envolve a terra, o ouro chameia,
O aroma canta, o espinho é doce, escreve
Cada raio do dia uma Odisseia,
Que em sonorosas rimas se encadeia:
Não há cadência que mais saiba e enleve;
Um pouco é como a vaga a dar na areia,
Quando já uma veio, e outra vir deve.
É que o mar mexe e aviva um mesmo vento;
Enquanto ela me embala, e eu a acalento,
Sol e céu, dois, na mesma gota de água...
Quando estou longe dela, isto é diverso:
Misereres soluça-me o universo,
Caem-me chumbos de noite em fogo à espádua...
A AUSÊNCIA DELA
Tudo respira um tédio de tristeza,
Tudo vasqueja em leito de agonia,
Há o suor de um moribundo dia
À dor sem nome atado com surpresa.
O que houve? O que há em tudo com certeza?
A alma das coisas está tão quieta e fria!
De que se faz então uma alegria?
Faz-se de uns olhos na pupila acesa.
Hoje a não tive: quando ela fulgura
A luz tem luz, a vida vida; ausente
É tudo para mim a noite escura.
Ela é meu sol, meu sol de amor ardente:
Sem ela rir jamais pôde a ventura,
E é o universo um pobre descontente.
FATALITAS
Mas... com que abandono ela faz tudo!
Tem a calma das deusas deslumbrantes;
E quanto mais a peso, e a sondo, e a estudo,
Sei menos dela que sabia dantes.
Que soube eu nunca ouvindo-a alguns instantes?
Sei só que por seus olhos, — triste e mudo, —
Ouço tinir os passos rutilantes
De uma alma incauta, que anda e brinca a miúdo.
Triste... da dor que aflige um deus vencido,
Mudo... do susto, do terror, do medo...
Medo de ter e de não ter vivido.
Ouvem-te, ó coração! Vê lá, segredo,
Que desencontro a nossa vida há tido!
Ela vir assim tarde, e eu vir tão cedo!...
ALMAS E SOMBRAS
Triste... Por que estou triste? — Saber queres?
Esta tristeza é a alma da alegria,
Sombra que fica quando acaba o dia,
É enfim toda a sombra que fizeres...
Eu sei que a sombra é coisa morta e fria,
Que o prásio e a opala e a vida é que preferes:
Mas busco embalde o que me ficaria
Sem teu amor, sem ti, flor das mulheres.
Esta sombra que cai, que não suportas,
É a sombra de extintos resplendores;
Põe-se o sol: para a luz fecham-se as portas.
Passam perfumes logo, — almas sem cores,
Almas errantes das quimeras mortas,
Entre as almas sutis das mortas flores.
NAVIOS
Ao ver, como albatrozes do oceano,
Manchando o céu azul de fumo denso,
Abrindo as asas rútilas de pano,
E arfando e ondeando nesse giro imenso,
Chegar, partir, voltar, ir ano e ano...
Ao ver a chusma dos navios, penso
Nos longos dias de trabalho humano
Às perfídias do pélago suspenso.
O ouro, que trazem, levam, rola e passa,
Jamais trocara pela etérea graça
Com que me lanças teu divino olhar.
Sem ti, nem céu, nem Deus o espaço encerra:
É um argueiro, que desprezo, a terra,
É gota d'água, que não vejo, o mar.
A RIVEDER LE STELLE
Há um clarão... Descobrem-no as argutas
Vistas: num pó de cheiro bom caminha
Alguém: e um ruído no meu verso escutas,
Como o de ave que aí anda a voar sozinha.
Onde está ela? Guardo-a, escondo-a, é minha;
Mas não a entrego à sombra ou furto às lutas,
Como na calma azul, que forra as grutas,
Foge do vento a pérola marinha.
Entre as estrelas luminosa estrela,
Quem a um canto do céu, num céu tão vasto,
No amor do olhar, que a acende, há de entendê-la?
E eu só a entendo... e ebriado, inane, gasto,
Quando a deixo... quem sabe onde fui vê-la
Ou, por onde até ela, em luz me arrasto?
A PRESTIDIGITADORA
Não há mistério em teus furtivos passes;
Quem não sabe o que pode a formosura?
E eu sei por que te sobe e se mistura
Ora palor, ora rubor às faces,
Como se a luz à treva misturasses;
Há fluido estranho em tua essência pura,
Que te faz ver, como se tu, criatura,
Com um pé no céu e outro na terra andasses.
Ai! do que ouviu a tua voz entanto
Branca e azul, como a cor dos teus artelhos,
Fosse ele um deus, fosse ele embora um santo...
Se por ter de um teu riso os tons vermelhos,
Chora-me o coração, e esta alma em pranto,
Após ti, onde vais, vai de joelhos.
PELO CAMINHO
E assim pensava: deve estar contente...
Vergeis num cheiro verde arfam agora;
Cedo gorjeia entre os rosais a aurora;
Lírios em bando espalham-se à corrente...
Que íntimo gozo a natureza sente!...
Se esta mulher a faz mais bela!... embora
Não seja flor do vale propriamente
Voa aroma, que é seu, por vale em fora...
Que saudades seguiam-me, à surdina
Kyrie meigo gemendo, como um brando
Luar, todo em penugem de neblina,
Quando a medo, por vê-la, a alma de bruços,
Eu ia rindo, e em lágrimas pisando,
Pisando e rindo encima de soluços...
A FLASH OF LIGHTNING
Como te quero, amor!... — Formosa, acaso,
Sem adrede o buscar, estive a teu lado:
Que fluido olhar! foi líquido de um vaso
Que deixa a quem o absorve intoxicado.
Não morro: e sofro a vida em que me abraso;
Rujo, como um titão, à dor pregado!
Mas há momento em que o universo arraso,
E, como à voz de um deus, rui ao meu brado,
Ante o meu ódio grande, aberto e franco...
Depois no vasto arneiro a vista espraio:
No pó dos mortos sóis a encontro e a arranco...
E ei-la a emergir da nuvem de um desmaio!
E sobre escombros luz seu corpo branco,
Como uma branca flor poupada ao raio.
LEITO DE BEIJOS
Ai de quem amor prende! ai de quem ama!...
Eu, como santa a adoro, e de joelhos
Quero beijar-lhe os pés, e os dois artelhos,
A longa trança de ouro, o rosto em chama...
Se ouvisse da alma os ávidos conselhos,
Em torno à luz que o corpo seu derrama,
Eu iria acordar, na própria cama,
Seus doces beijos, tépidos, vermelhos.
Pesam mundos, amor, os teus desejos!
As mãos aos sóis, para apanhá-los, deito:
Da tua boca os sóis fugindo, vejo-os.
Mas quando dentro em mim teus beijos meto,
São vespas doidas, mordem-me teus beijos...
E eu que de beijos teus fizera um leito!...
MUNDOS DESCONHECIDOS
Vi erguer-se de um beijo a América e o Eldorado,
Mais feliz que Colombo e que Cabral, — sem meios,
Sem frota, só ao meu horóscopo agarrado;
Vi-os entre os vaivéns das ondas dos seus seios.
Estes morros são meus, são meus estes gorjeios
De pássaros de um céu de novo constelado,
Os rios colossais, o bosque emaranhado,
Estes virgens sertões são todos meus: — achei-os.
Viverei só aqui por vales e barrancos,
Onde tocam os suis as frautas dos palmares,
Onde a luz é mortal florindo em lírios brancos:
E, dia, há sol e sombra, e, noite, azul e luares,
E há nos cabelos ouro, e há mármore nos flancos,
E há na boca corais e pérolas dos mares...
LONGING
Foi ontem... (e a que séculos não há?)
Quando na alcova, em torno de uma mesa,
E à luz apenas de uma vela acesa
Conversávamos nós, tomando chá.
A mãe (e ia bem alta a noite já)
Como um raio na sombra da devesa
Pingava um riso em cima da tristeza,
Que o tempo à velha face humana dá.
Depois, cerrando molemente os cílios,
Por nossos castos, rútilos idílios
Parecia dormir acalentada.
Tudo morreu, bem como a luz da vela...
E só ficou, o que nos resta dela:
— As lágrimas da cera derramada.
INQUIETAÇÃO DO UNIVERSO
Não! não me ocupa a estrela luminosa,
Úmida e iriada de um vapor ligeiro,
Que da água emerge, como do balseiro
À margem, branca e solitária rosa.
É outra, irmã talvez daquela; inteiro
Me possui todo, em si minh'alma a goza
Fremente, e ouço-lhe à boca silenciosa
O hino do riso, a Ilíada do cheiro.
E inquieta, acende, irrita tudo aquilo
Que sai dela e lhe canta em torno, e de ano
A ano eternizo em ouros, que burilo.
Eu sei: como a que amou o poeta indiano,
Ao nascer nada mais ficou tranquilo,
Deuses, homens, e céus, e terra, e oceano...
FORA DO TÚMULO
Depois a vi, como hirta e alheada, à porta
Do túmulo, inda a medo, e em pé, Julieta:
A vi depois... Vê-la depois, que importa?
Pérola falsa, e andar por boa aceita!
Radiosa estrela, a alma da noite enfeita,
Como uma joia de Ceilão, e a corta
Em vasta zona, funda, azul e preta...
Porém não vive já: há muito, é morta.
Como ela para mim. — Foi do seu leito,
Que eu a copiei, bem como Tintoretto,
De um lençol alvo, de umas cróceas flores
Passava à tela a filha extinta e amada;
Um grito mudo a cada traço, a cada
Traço imortal a cor de imortais dores!...
QUE É ISTO?
Há pedaços de mármores de Atenas,
Uns restos bons de coisas deliciosas,
Cálidos cheiros, órficos, de rosas,
Como, em surdina, vagas cantilenas,
Que ouvimos vir, que vão passando apenas,
Grupos de áureas coréis voluptuosas,
Lírios em cisma, espáduas deleitosas,
Como uma ave, que espalha de brancas penas.
Agora é o vento: é o vento agora; ou a espuma
Talvez do mar, que se derrete ao vento...
Vacila a serra ao longe, e em azul se esfuma...
Que sinto! o ar me embebeda, e lento e lento
Vejo tudo, e não vejo coisa alguma:
Que é isto, quando ao pé de ti me assento?!...
DOLOR
Ver-te arrancada pela terra inteira,
Rojada ao espaço infindo volitando,
Ver teus olhos de olhar triunfante e brando,
Fixos no céu, não sei de que maneira;
Ouvir-te a voz que ouros cascalha, e cheira,
Perder-se nos salões festivos, quando
Em loucos turbilhões te vão levando,
Como a folha, que o vento adunco erguera;
Ver que a luz te enche toda, e te embriaga,
Sentir que o mar te pede em cada vaga,
Ver que para o teu colo a flor colheste;
Ver-te, como as demais viver, sentindo
O universo agarrar teu corpo lindo...
É minha dor; meu sofrimento é este...
ONDE ESTAVA ENTÃO
Enquanto eu festejava o horror do meu destino,
Ela estava em seu quarto, um ninho doce e quente,
Onde tudo é conforto, onde em tudo se sente
Esse aroma que exala o ambiente feminino.
Seu corpo desatado em leito resupino
Dava mancha aos lençóis de neve reluzente;
Sua boca entreaberta, ao hálito fremente,
Parecia inda rir de um riso peregrino.
Sua esbelta cabeça entre a espuma das rendas,
Sem sonhos, sem terror, sem comoções tremendas,
Era um busto de aurora enchendo o travesseiro.
Dos seus olhos gentis na fronte sepultados,
Sem chuveiros de luz, sem raios verberados,
Era o sono tão só o pálido coveiro...
MÁRMORES QUEBRADOS
O luar, música vaga de um libreto,
Onde o silêncio azul do céu murmura,
Todo o luar da sua formosura
Ela encarcera num vestido preto.
Só a cabeça, como Tintoretto
Pinta alguns anjos, vê-se calma e pura,
E embalde o olhar no abismo longo meto
Por onde foge a sideral brancura.
Em parca nesga rútila do braço,
Na linha apenas do redondo colo,
Tolda a ode triunfal da carne o espaço.
Como se inteira o mármore de Apolo
De esplendorosos restos, de um pedaço
Também completo a deusa, e me consolo.
UM DEUS MORRENDO
Viver de um sonho azul, ridente e belo,
Sem trégua, sem descanso e sem repouso;
Ter nele sempre o imenso, o estranho gozo,
Que em rimas de ouro fúlgidas revelo...
Viver dentro de um sonho luminoso,
O meu encanto, acaso o último anelo;
Prender o céu, e ao céu os sóis num elo,
E a esse elo um nome, que dizer não ouso...
Qual, das mais liriais, e mais formosas,
Ser não quisera, quem meu gênio alteia,
E a lira mete em turbilhão de rosas?
E eu, como um deus, a mão de estrelas cheia,
Morro, como entre espumas sonorosas,
Morre, cantando, o mar num grão de areia...
UM DUELO DE MORTE
Ao ver-te assim, ó virgem deslumbrante,
Sinto a ferocidade da pantera
Quando nas curvas garras dilacera
A carne em sangue quente e palpitante.
Tu tens o olhar de caçador triunfante,
Que o salto do animal feroz espera,
E está firme, na tua mão possante,
O ferro, em que se atira, urrando, a fera...
Por isso estou de longe a ver-te: estudo
A voz, o riso, o teu silêncio, o porte...
Triste, irado, brutal, furioso, mudo...
E a emoção, que te abala o peito forte,
O que te enerva, cega, irrita... tudo...
Pois, ou morro, ou te dou num beijo a morte...
SÍNTESE
Bacon... Descartes... Newton... e volumes!...
Levar a vida a resolver problemas!...
Amontoar essas questões supremas
Que à razão furtam fugidios numes!...
Mulher, que o belo universal resumes,
A quem prendem translúcidas algemas
A luz dos sóis, a essência dos perfumes,
E a eterna fonte de ideais poemas,
Que vou buscar, que valha mais, ou tanto,
Como tu, se mais nada além desejo
Que da existência a dor lenir, e o pranto
Mudar em riso ao fogo do teu beijo;
Que quando quero amor, e haurir-lhe o encanto,
Tento achar de ti fora, e em vão! não vejo!...
AS DUAS ALMAS
Oh! como eu te amo, e como eu te hei amado!... Entanto
Que haverá de infinito entre nós dois, e nisto?
Em meus braços cingi-te, em teus braços me hás visto
Ora banhado em riso, ora banhado em pranto.
Eu sei o que há podido em mim seu grande encanto,
Pois que não me pertenço, e só por ti existo;
E numa angústia enorme, e num terror, num misto
De prazer e de dor me deito e me levanto.
Deixar de amar-te agora, impossível: — agora
Caiu minha alma na tua alma, e aí dentro mora;
Misturaram-se aí; são dois lábios da boca,
Beijam-se eternamente, um em cima, outro embaixo;
Chiam na mesma luz, que sai do mesmo facho:
Das duas ninguém sabe a melhor, a mais louca...
ORGULHO
Esta ferida assim larga, como uma porta,
Por onde o sangue meu precipita-se a jorro,
É singular, porque estou morrendo, e não morro,
E sinto a vida em mim cada vez menos morta.
Eu beijo a mão, que empunha a espada que assim corta:
Eu me ajoelho, e curvo, e peço-lhe socorro:
Peço ao meu matador gentil, a quem recorro,
Como bálsamo, o amor: — quem é ele? que importa?
Ela parece rir, porque me abato e humilho!
E fora uma ironia o seu olhar de um brilho
Eril, se o não molhasse a dor num véu ligeiro...
Digo-lhe então: — Por ti ando a lavar-me em pranto;
Eu, que aos deuses me não prosterno, eu, que entretanto
Tenho o orgulho de um sol dentro de um céu inteiro...
O HORROR DA VIDA
Quando morrermos... Vê: o que me assusta
É morrer sem morrer, e andar no espaço,
Sem que te enleie de um e de outro braço,
Nem saber mais de ti, ó Forma Augusta.
Da vida a seiva límpida e robusta
É para a morte o último embaraço:
Do pó a um sol, de um sol aos sóis um laço
Eterno prende a vida e a morte susta,
Nem Deus a vida a um pobre morto corta.
Que quero eu mais, se a Forma está vencida?...
Sem teu corpo, o existir em mim, que importa?...
Não serás mais a Beatriz querida,
E hás de ainda viver depois de morta,
Porque a morte, ai! a morte é sempre a vida...
REVIVERE
Da mihi basia mille...
Catulo — Carmen
Grandes ideais que amei, adeus; — fogacho
Tênue de glória, em vós mais nada sondo;
Lanço-me ao azul profundo, e a paz não acho;
Torno à terra... e na terra é tudo hediondo.
Morrer... fugir ao mundo infame e baixo,
E até de ti, que o enches de luz: redondo
Besante de ouro, escabelado facho,
Grão de areia maior, ó sol, me escondo.
Mal clamo, vejo logo o seu protesto
No olhar patrício, no fidalgo gesto,
Num corajoso riso de bondade...
Então viver... viver... viver desejo:
A vida vale o seu divino beijo:
Quem com seu beijo a vida amar não há de?
IDA E VOLTA
Cada estrela é uma lágrima que irrora
O céu, que a noite desenrola em cima
Do mar, que geme, e mete aflita a aurora
Num grande pranto, e que ela acorda e anima.
E, tudo quanto ria dantes, chora,
Quando a hora tremenda se aproxima:
Ai! quando ela nos deixa, e vai-se embora
Alegrar nova terra, e novo clima...
Abre-se o campo em flor, e se levanta
Um astro de ouro em cada flor; e ameiga
Um riso a pedra, que não ri, e a planta:
Tem uma estrela em cada orgulho a veiga;
No céu o riso em cada estrela canta,
Ri o mar, ri a luz, quando ela chega...
AMANDO, PENSANDO
Teu voluntário escravo, ó soberana,
Amo a tua vida, e dela a teia e o drama,
Que na minha existência se derrama,
Como um eco sem fim da vida humana.
Como tudo é formoso, e tudo engana,
A flor, o aroma, o céu, o sol, a chama;
E encontra, percorrendo toda a gama
Do universo, a dor só a mente insana.
De dia a dia as rútilas quimeras
Vão ao fugir das nossas primaveras...
Um nome!... a eternidade do passado...
E o que é a eternidade do futuro?
Um nome ainda... um nome mais escuro
Num grande abismo de silêncio... alheado...
NOITES DO POLO NORTE
Não conheceis a noite do poeta...
A minha noite, a noite em que volteio,
E o turbilhão de trevas do meu seio,
E a angústia negra já sem fim nem meta?...
Pois continua a noite escura e inquieta:
Mas encheu-se de pássaros, e creio
Que um raio que a feriu, como uma seta,
Foi dos raios dos olhos seus que veio.
Frios céus todo a arder no polo Norte,
Os meus agora têm a vossa sorte:
Redondas taças leite a transbordar,
Chamejam cheias de uma luz divina:
E o sol, que assim as doira e as ilumina,
Ninguém vê de que ponto anda a brilhar...
O INEVITÁVEL
Quando às vezes estou sonhando em teu regaço
À flava sombra do teu cabelo espalhado,
Vagamente lançando os olhos pelo espaço,
Fixo o azul sobre nós, num pálio desdobrado,
Notas que fico a tudo em torno um pouco alheado,
Que vou caindo, como um pássaro ao cansaço,
E em frente ao meu silêncio o teu, ajoelhado,
Busca ouvir dentro dele o rumor do que faço.
Assusta-me, ao pensar, que acaba a formosura,
Que o amor se perde e dele a essência augusta e pura;
Que há cem noites num gozo, e há somente uma aurora.
Como troncos vivendo em meio a secos ramos,
Pedaços mortos de nós mesmos carregamos,
Até que o tempo agarra o último, e o devora!...
UM DEUS ESCRAVO
Todo o grande prazer, todo o grande tormento,
Que pode suportar um coração humano,
Trago dentro de mim: é como o imenso oceano
Tendo por cima todo o imenso firmamento.
Ora o amor dentro em mim é um contentamento;
Ora o amor dentro em mim é um feroz tirano;
Na alma um céu me despenha, as estrelas aguento,
Ou parece fugir-me, e eu sinto um medo insano.
Sei que podem chamar de insensatez a isto:
Mas foi mais leve a cruz, e o suplício de Cristo,
Do que este sofrimento atroz que me flagela...
Eu quisera contudo haurir esta ventura:
Ter um qualquer martírio, uma qualquer tortura,
Para ser deus, e ser um deus escravo dela...
VIAGEM PERPÉTUA
Ver terra é um capricho sem descanso,
Mas o país que adoro, endeuso, e louvo,
É se em praias de pérolas avanço,
Se piso areias de ouro iriante e novo,
Se é de esmeralda o grande lago manso,
Se é de esplêndidos mármores o povo,
Se acho os céus sobre o olhar, quando o olhar movo,
Se acho os céus sob os pés, quando os pés lanço.
Há uma nódoa branca em meu futuro;
Em torno dela o meu viajar não finda:
Quando amanhã voltar estou seguro
Que hei de dar num país mais novo ainda,
Que hei de encontrar um céu e um sol mais puro,
Que hei de ter, na mulher, mulher mais linda.
FORÇA
O clarão doce, que de ti radia,
Mete-me em quente esfera gloriosa;
Tens a brancura triunfal do dia,
Coisas de mar, e brisa caprichosa.
Meu nimbo é a sombra só do teu, formosa:
Bloco de luz veiado de harmonia,
Em ti deu corpo um mago à estrelaria
De um luar na água, em noite perfumosa.
Onde vais tu, fanal do meu destino,
Levas aos pés acorrentado um hino,
Que o tempo lança em urnas de ouro e expande.
Quem és? — O gênio que a cantar, revelo,
A minha força, o meu amor do belo,
E a voz, que anda a ebriar-me, e diz: — És grande.
MINERVA
Ter-te assim, hirta, a carne a palpitar-te,
O coração a te subir à boca,
O olhar, vulcão de luz, a frase louca
Nos lábios, como vaga, a marulhar-te;
O sangue rubro as faces a aurorar-te...
Não é na vida, não, coisa tão pouca
Ver-te um momento desvairada e louca,
E a alma nua a fremir, rugir sem arte.
Mesmo debaixo dos teus pés pisado,
Quero o teu gesto largo e apaixonado,
Na atitude do orgulho e da defesa...
Odiei sempre a serpente, que se enerva:
Em ti prefiro as iras de Minerva,
Ó deusa em fúria, ó pálida princesa...
TRANSFORMAÇÃO
Oh! é melhor saber-te morta e inerme,
Sombra vã, sem futuro, e sem passado,
E eu no térreo dormir bem ao teu lado,
E ambos nos dentes de asqueroso verme!...
Que sobre nós um tronco verde germe,
Paraíso melhor que de outro lado!...
Não sendo assim, será desesperado
O destino que a sorte ou Deus fizer-me.
Aquém e além do túmulo o deserto:
Num ponto só tudo tão bom... tão perto!
Sol tão lindo em azul afrouxelado!
Basta banhar-me em seus clarões divinos
Para sair em grito, e ao som dos hinos,
Num grande deus um grande desgraçado!
A GRANDE BÍBLIA
Queres saber que máxima bendita,
Que Evangelho, que Bíblia, ou Veda, ou Igreja,
Como um clarim, que brada, e que concita,
Une o homem por mais feroz que seja?
Minh’alma, ao ouvir-te, em páramos adeja,
Alegre, doida, asas abrindo, grita,
Como uma águia na abóbada infinita,
Como tua boca, quando ela me beija:
É o amor, que a sanha do leão reprime;
É o amor, que transmuda em luz o crime;
Que enche de sóis os céus, e anda a fazê-los;
É o amor, que no lar os entesoura,
Pois há em cada criancinha loura
Uma estrela a brilhar nos seus cabelos...
AOS ETERNOS DOMINADORES
Quem é?
Quando gloriosamente ela passa e semelha
A essa mesma, que é toda a alma da lira minha,
— Eis a harmonia em corpo, a música vermelha,
Que vai naquela deusa, ou naquela rainha,
Perante qual um deus, quase um deus se ajoelha:
É cada verso um carro de ouro, e se adivinha
Pelo rumor que faz, e por onde caminha,
Quem leva, pois que o atrela olímpica parelha. —
Essa, que aí vedes, é a bela imagem sua:
Ela não pisa o chão; é no azul que flutua;
Trapos de céu que rasga, atira sobre nós;
Dominadores, reis, poetas, quereis vê-la?
É por longe, num mar, na barca de uma estrela
Indo: Pois não sabeis a direção dos sóis?...
MESMO SEM NOME
Não, não são bolhas ocas e brilhantes
Talhadas com destreza e habilidade
Os meus hinos, rigíssimos diamantes,
Que hão de levar teu nome à eternidade,
Atravessando os séculos distantes:
Se não o digo, esplêndida beldade,
Hão de dizê-lo o amor e a Mocidade,
Repeti-lo hão de, em todo tempo, amantes.
E o nome da mulher gentil, que importa?
Essa que nunca mais há de ser morta,
É aquela que canto, e jamais canto:
Essa, em que a alma dos versos meus descubro,
Cuja boca se estrela em riso rubro,
E que em pérolas muda a água do pranto...
ESCUTA...
Por que sóis, por que céus, e sempre? — Escuta.
É a síntese da felicidade:
Por que o poeta ao amor dizer mais há de,
Quando ele canta triunfador na luta?
Quando vence afinal a força bruta,
Quando enlaça num beijo a imensidade,
Quando tudo é alcova, a sombra, a gruta,
Quando altar tem em tudo a divindade?...
Meter o espaço a se afundar num grito,
Pôr dentro de um olhar todo o infinito,
E o que ele tem de carinhoso e bom,
Encarnar na mulher formosa um nume...
Não basta, quando a vida ele resume.
Ter sóis ou céus, uma só frase, um som?...
HINO À MULHER
Mulher, lírio puríssimo do vale,
Eva criada, Eva renascida,
Só para amar e para ser querida,
Há perfeição acaso que te iguale?
Antes que o alento extremo o poeta exale,
Sabe que de ti sai perene a vida:
Que sendo a Virgem-Mãe preconcebida,
Ninguém na terra ou céu hoje te vale.
Há um clarão sutil e peregrino
Que em ti corre e te faz um ser divino,
Tens em ti, alma e corpo, a luz dos sóis.
Há um Deus? — És a Mãe: Ele é teu filho;
Há um Herói? — De ti lhe vem o brilho:
Mulher, ó Mãe de deuses e de heróis.
VERTIGEM
Sóis, meus poemas, rútilas correntes,
Com que em vós eu prendia os sóis sonoros,
E em danças doidas, lúbricas, candentes
Via-vos sempre em serpejantes coros.
Queimava ao pé de vós cheirosos toros
Pelas noites profundas e silentes,
Para ver um sorriso entre seus dentes
E ouvir dizer à sua boca: — Adoro-os.
Parecia que Deus vinha aplaudi-los
Às portas dos seus dois olhos tranquilos,
E dizer-me: — Que Deus és tu? Quem és?
― Eu sou: lhe respondia; e os universos,
E os sóis que crio, em turbilhão de versos,
Faço-os rolar na curva dos seus pés.
***
ASPÁSIAS
A ESCADA DE ROMEU
Carpe diem...
Horácio — Odes
Chego. — Estou só: de pé tudo examino;
Mobília, estofos, quadros, bronzes, jarras
De caulim da Ásia, de um desenho fino;
E um Dante em soco terminado em garras.
Fora, ao sol que requeima, inda alto, em pino,
Chilram por perto estrídulas cigarras:
Longe, a algum fauno, pelas verdes parras
A estrelaria d'água enrola um hino.
Torno: abro um vidro, inalo o seu perfume;
Vejo a música nova, ergo o volume,
Que inda lê, o jornal, que há pouco lia...
Por degraus de ouro e seda da esperança
Subo ao céu que ela acende, e onde descansa...
Desço... ouvindo a risada à luz do dia...
EU E NERO: ROMA E ELA
Cantando os versos do imortal Homero,
Juntando aos sons da lira o imortal canto,
Entre o ulular das vítimas e o pranto,
Via Roma ir ardendo o César Nero.
Também teu corpo a arder em fogo eu quero...
Ligar na história um nome a um fato horrendo
Sob os beijos de brasa em que te acendo,
Anjo de olhar imperioso e austero!
Cai Roma ao horror das chamas convulsionadas,
Entre a cinza dos grandes monumentos,
Entre um povo de estátuas derrocadas,
E ela sorrindo entrega a coma aos ventos,
A face linda à luz das alvoradas,
E ao fogo, em que ardo, os seios opulentos.
NEÉRA
Fervem luzes na sala primorosa;
Das portas descem amplos cortinados;
Jovens convivas riem-se espalhados
Em grupos de atitude graciosa.
Um lê: outro conversa, e observa a rosa,
Que enche um vaso chinês, e extasiados
Ante quadros de mestres afamados,
Falam de arte em resenha curiosa.
Cantam, tocando o piano, uns escolhidos
Trechos de Meyerbeer; outro toma
De um bronze, e lembra, a olhá-lo, os preferidos...
Mas... do céu, quem caiu, que estrela assoma?
Neéra!... é ela ainda! inda aos vestidos
Arrasta os mundos que arrastava em Roma...
APATIA
— Capricho de mulher!!... E não te importa
Essa lasca de mármore sem vida,
Negra, como a tua alma pervertida,
Doce, como o colchão que te suporta?
Guardas a escrava — um longo dia — à porta:
Ficas no leito... e a cama revolvida,
E o gesto mole, e a fronte descaída
Do travesseiro, como gente morta?... —
Não respondeu. — Naquele descalabro
O jorro de um pequeno candelabro
Manto de ouro e de luz macia arrasta.
A estátua branca e nua de Diana
Num plinto, a um canto, em bela forma humana,
Tinha menos nudez, e era mais casta.
CLOROSE
Eu dizia-lhe um dia: — Essa brancura
De tua carne outrora resplendente
Não vem de um sangue rubro, um sangue quente,
Como pedia a tua formosura.
Que mágoa funda os seios te amargura?
Ninguém sabe que sofres realmente,
Diz-me porém o coração ardente
Que em ti se encontra o amor que se procura.
Quanto mais em ti desço, e mais te sondo,
Quase louca paixão por ti eu sinto...
Aos dois pomos de neve as mãos te pondo,
Nua, e em pé, como estátua sobre um plinto.
Loura cabeça ao colo alvo e redondo,
Murmuraste, inclinando: — Eu nunca minto. —
A SEREIA
Surgiu: uma das Horas destacada
Era do carro de uma Aurora: frio
O ambiente e azul: honesta no atavio,
Banal no gesto, grave e perfumada.
Lançou à companhia, descuidada,
Um oco olhar de estátua, olhar vazio:
Cantava a sala ricamente ornada
O hino do luxo olímpico e macio.
Baixo, em surdina, de ironias cheia,
Respondia, de longe, cada coisa
À meia luz de esplêndida candeia.
Fugir, quem pode, e inda a poder, quem ousa?
Tudo já cede ao encanto da sereia,
Como, ao encanto da chama, a mariposa.
FUNDO HIPERBÓLICO
Eu tenho na alma encadeado um grito
Maior que irado urrara um tigre hircano:
Sede que haurira as águas do oceano,
Quando ele entrasse os antros do infinito.
E é contra aquele belo vulto humano,
Louro, risonho, pálido, esquisito.
É por aquilo, em que ando e vivo aflito,
Pequeno lume, altíssimo tirano?...
Débil, parece que não come e dorme...
E é-lhe o desejo como abismo enorme...
Há espaço sem termo ou mar sem fundo?
Ó! para enchê-lo, num supremo esforço,
Parto aos céus, vou trazer-lhe os sóis no dorso...
E há de entrar nele o que é de mais p'ra um mundo?...
A PASSAGEM DE VÊNUS
Ela engordara mais: na palidez de neve
De novo ardia a cor das rosas desdobradas;
Ouvia-se uma estrofe em cada pé, de leve
Na areia do jardim cantando-lhe às passadas.
Ia-lhe um riso preso ao céu da boca breve,
E as espáduas gentis, magras e um pouco arcadas,
Mostram agora azuis das brancas madrugadas,
E as curvas sensuais que um pássaro descreve.
A trança farta, e a frouxo, — esplêndida cratera, —
Caía pelo dorso, ouro e mais ouro em rumas,
Sob esse pó que espalha a luz da primavera.
Graças novas não tinha, e ainda perdera algumas:
Fugiu-lhe o mole ondear da vaga: já não era
Mais a Vênus do mar, a deusa das espumas.
AFAGO DE CENTAURO
Sabes? paixão brutal, paixão furiosa em riste
Traz um zelo feroz, que não há mitigá-lo:
É preciso saltar às vezes este valo,
Para chegar a ti: a este encontro caíste.
Eu senti dentro em mim, não sei bem se tu viste
Pelo véu que enoitou meu rosto então de um halo,
Minh'alma ajoelhar-se ante o teu grande abalo,
A minh'alma amorosa, imortalmente triste.
Cruel, como a tormenta, essa tormenta passa;
Irrompe do heroísmo antigo de uma raça
Em que a fera acabava a colossal criatura;
É como o espinho à rosa, e, como ao trigo o joio,
E, com a areia fulva ao cristalino arroio,
Há no cio do leão o amor que um deus mistura...
MARGARIDA
Vive apenas num quarto. Na janela
Duma jarra de barro viçam flores:
São aos raios do sol as doces cores
Que lhe doiram os sonhos de donzela.
De uma Virgem Maria a imagem bela,
Por entre nuvens de anjos e esplendores,
Para contar seus cândidos amores,
Guarda sobre uma cômoda singela.
Era tão boa, era tão pura entanto
Que sua alma nos olhos tinha o encanto
De um sol acorrentado a um grão de orvalho.
Criança um dia pelo amor traída,
Lançou ao crime de repente a vida,
Como se lança um diamante ao malho!...
FEMINA
Um Polifemo indômito, um gigante
Hirto, e jamais a acariciar afeito,
Há de agarrá-la à alcova, e, alçando-a ao peito,
Dos braços na eril cova inumá-la, ebriante.
Ela terá um riso cintilante,
Sol em raios nos lábios seus desfeito,
Do largo aperto do ciclope aceito,
Surgindo assim mais bela e deslumbrante.
Lembra o prurido roxo de uma chaga,
Do oceano o fundo misterioso e covo:
E, débil, que se crê que um beijo a esmaga,
E cariátide que aguentara um povo;
E inda Vênus na concha, e em roda a vaga,
Seu leito é sempre cada vez mais novo...
ASAS PERDIDAS
Pobre mulher!... mentir é teu destino,
É a tua paixão, teu sonho amigo;
Tu te mentes a ti a sós contigo,
É mentira o teu ósculo divino.
É tua clava forte, ó ser franzino!
Podes mentir, bem vês, não te profligo;
Tem profunda raiz um vício antigo,
Que manejas com força, audácia e tino.
Tu desceste do vício à extrema escala;
O amor, o pejo, a graça feminina,
Aromas, que a alma da mulher exala,
Ficaram, com teus sonhos de menina,
No guarda-roupa de uma velha sala,
Onde brincavas casta e pequenina.
ANTÍTESE
Na alcova reina confusão: cortinas
Corridas; abafado o ar e olente;
Frouxo clarão de lâmpada pendente;
Jarras chinesas cheias de boninas.
Fulgem no aparador as pedras finas
Do colar: duas pérolas somente
Dos brincos têm num horizonte quente
A luz do olhar da dona, que imaginas.
Entra alguém: sai alguém. — Babel informe!
Há quem, entre os lençóis, num beijo, deixa
Garras de fogo duma estrela enorme...
Ela isso tudo descuidada enfeixa,
Atira ao escrínio, e bocejando dorme...
Dorme!... ao rumor talvez de estranha queixa!...
FIAMMETTA
De formosura grande e encantos cheia,
Na voz arfam-lhe mundos de harmonia:
Alma feita de sons, porém vazia,
Como uma bolha à luz, que o olhar enleia.
Como quem nada sabe, e em nada creia,
Junto às sirtes, no mar, te deixaria,
A enlevar-te, a cantar, como a sereia,
Ao colo teu deitada, noite e dia.
Entre um delíquio e as áscuas de um carinho,
Disse-lhe alguém: — És rara flor deixada
Fora da cerca, à margem do caminho:
Não te fizeram para ser amada,
Mas para ser bebida, como um vinho...
Um vinho fino em taça delicada...
ANDORINHA QUE EMIGRA
Para que bosques foges, andorinha?
Por que emigras daqui? ― Por esses ares,
Vais pôr teus pés gentis noutros palmares?
Vais ser noutro país também rainha?
Da concha branca, ó pérola marinha,
Se entre as vagas azuis do mar rolares,
Quem sabe que esplendíssimos altares
Terás do ouro e da luz, que lá se apinha?!
Deixas-me a sombra nos meus hirtos braços;
E, no ninho de sândalo, tão quente!...
Repete o aroma o hino dos teus passos!...
E é isto apenas que minh'alma sente!...
Tu tens o amor dos sóis pelos espaços,
E contas, como os sóis, com Deus somente.
A BONECA
Como a louca boneca da Alemanha,
É farta, gorda, alegre, boa; os seios
Amplos, olhos sem luz, mas negros, cheios
De um barulho de rua e de harpa estranha.
No rosto, inda o auroral clarão, que o banha,
Tem o verniz da infância; o riso enleios;
E, como a onda balança e a praia ganha,
Não anda, ondula em lânguidos meneios.
Vai em breve rolar nalguma sala.
E às mãos de alguém de forma sedutora,
Que há de, em beijos gulosos, acabá-la;
E da cova, que o crime empluma e doura,
Cair noutra, sem cor, sem voz, sem fala,
A pobre!... a pobre da boneca loura...
DUAS NUMA
Tu tens de Aspásia, e tens de Margarida
O luxo, a inteligência, e a cor aérea;
E um pejo a rir de si: e és, como Impéria,
Grande nos palcos fúlgidos da vida.
Da coroa virginal, cedo caída
Da fronte, falas quase honesta e séria;
Choras: lamentas a fatal miséria,
Ó Madalena, nunca arrependida.
As tuas níveas carnes palpitantes,
Como as asas de um pássaro à corrente,
Que tinha o céu por seu a alguns instantes...
Nos olhos teus a lágrima tremente...
Finges tudo, se às garras lacerantes
Te cai uma alma tímida e inocente...
A QUEDA DE UM ANJO
Há mais profundo abismo que o oceano,
E inda que o abismo azul, e que o infinito;
Pois quanto mais pondero, e mais reflito,
Acho abismo maior o peito humano.
Um anjo, esta criatura, que o profano
Vulgo encontrou um dia em voo aflito,
Fê-lo de um ser lirial um ser maldito,
E engrossou-lhe a ciência de ano em ano.
Que livro aberto à esplêndida criança!
Mas, o triste saber, como um veneno,
Matou-a, até matando-lhe a esperança.
E achando o mundo alvar, no olhar sereno
Ela coalhava a alma banal do Pança,
No rir vesgo de Pã, o capro obsceno...
O CÉU E O INFERNO
Sei que teus olhos são dois charcos de água
Tão negra como noite de agonia,
E que tua alma lúgubre e sombria
Luz, sem asco, lá dentro, e dor e mágoa.
Ergues do estranho azul iriante espádua,
Que famulenta boca, noite e dia,
Fere e morde, e retorce, o que faria
No bronze o malho ao chiar de ardente frágua.
Busca-te em leito de brejais, sereia,
Quem, com tinir de pérolas, fragante
Ouvir-te a voz, que em si céus encadeia.
Tu sabes dar a carne palpitante
A quem a agarra, a prova, a engole, a enleia,
Como Ugolino uivando à prole, em Dante...
FORTE COMO A MORTE
Todo enlaçado, como Laocoonte,
Ao teu amor, edênica serpente,
Ou como Prometeu atado ao monte,
Eu sinto as garras do teu beijo ardente.
Quer ar meu peito, os olhos no horizonte
Buscam deus, que me salve, um deus potente,
De ti, salgueiro de encurvada fronte,
Que Ofélia quebra, aos pés tendo a corrente.
Tu és, mulher, a branca irmã da morte;
E como a mesma morte exangue e forte:
Louca noite de orgia haure-te em vão.
Quantas vezes de ti, eu só, dizia:
— Quem pudera lutar, vencê-la um dia,
Hércules fora sufocando o leão... —
O SEGREDO DUMA RAINHA
Branca, um pouco de luz por cima, tinha
A coma negra, espessa, ondeante e fina:
Beleza estranha, rara, peregrina,
Impõe nuns largos gestos de rainha.
Alta a cabeça, com desdém caminha,
Coroada duma auréola divina;
Guarda a leveza de haste, que se inclina,
E treme à aura amorosa, que a acarinha.
Ela sabe que mágica vergasta
Tem nos encantos do seu corpo a éreo;
De si a própria sombra o vulgo afasta.
Mas... quem a beija, arranca-lhe o mistério:
Céu, que cai, e consigo os sóis arrasta,
Tudo entrega: alma, corpo, orgulho, império...
MISÉRIA POR MISÉRIA
Nem da virtude tendes a impostura!...
Sóis como sóis: erráticas falenas;
As Hetairas lúbricas de Atenas
Prolongam-se até hoje por ventura.
Quem vos busca, inocências não procura:
Vós não tendes, ó pálidas pequenas,
Senão de vossa carne as açucenas,
E os sóis de vossa ardente formosura.
São vossos rubros beijos fementidos:
Mas vos chamais Friné, Aspásia, Impéria;
Não trazeis vossos vícios escondidos.
Quantas dariam sua vida séria,
Sem torpes joias, sem banais vestidos,
Por vossa negra e esplêndida miséria!...
SONO DE PEDRA
Quando um dia te vires desprezada,
Onde, não sei... atrás de um pobre muro,
Como te diz às vezes o futuro,
Quando pensas na extinta camarada;
Morre, não gemas: vai, não digas nada:
Cai no fundo do abismo imenso e escuro;
Talvez te mande Deus um anjo puro
Iluminar-te a tenebrosa estrada.
Entra na morte com soberbo entono,
Alta a cabeça, sobranceiro o peito,
Como rainha que conquista um trono.
Ninguém ver-te-á sem dor e sem respeito,
Quando dormires um profundo sono,
Tão duro como a pedra do teu leito.
SEPARAÇÃO SECULAR
O nimis fero corde!
Catulo — Carmen
Ai! louca, quando tu murmuras: — Parto:
Meto pés em caminho de abatises:
— Que vais buscar além? Eu vou buscar-to;
Mas a minh'alma tão sem dó não pises.
Tu, a beijar-me e a rir, então me dizes:
Que a sede, como Tântalo, não farto,
E que viva alguns séculos felizes,
Guardando o escrínio rico do teu quarto;
Que deixas do teu corpo a sombra e o cheiro,
E o eco do órfico canto dos teus passos,
E um luar de linho ao leito prisioneiro,
Que estrela agora o céu dos teus dois braços... —
Mas... volta a ver o beijo derradeiro
Farpeado em mim, azul, inda aos pedaços...
O HOLOCAUSTO DUM ANJO
Que fronte nobre e cândida tem ela!
Como o túmido seio ondula e cresce!
É um anjo do céu que aqui fenece,
Mulher que esfolha a virginal capela;
Rubra aurora de luz, que se enovela
Na nuvem, que ao horizonte lhe aparece,
Espiga de ouro de opulenta messe,
Que a fouce a fronte pelo chão nivela...
Quem é? Os olhos tímidos resguarda,
As mãos fremem convulsas sobre o peito,
O lábio reza ao seu anjo da guarda.
Como são brancos os lençóis do leito!...
Ai! como o anjo, que a defende, tarda!
Chegou... mas o holocausto está já feito!...
VELHA HISTÓRIA
Quando for velha, e a estúpida carcaça
Cair do tempo à garra, que a esfacela,
Quando a estrela fugir do corpo dela,
Há de inda enleá-la a última desgraça;
O sarcasmo feroz da populaça,
Que à pobre em trapos, trôpega se atrela,
E o asco do ancião, que em moço a quis donzela,
E viu-a bela, cínica e devassa.
Alguns que a olharem dos balcões festivos,
Entre luzes, e músicas, e galas,
Ricos, tristes, já gastos, mas ativos,
Dirão consigo, das ridentes salas:
― Onde os beijos cantaram-lhe furtivos,
Cospem-na os vermes lúgubres das valas.
O BELO FEMININO
És tu, beleza, a cortesã primeira,
És tu quem desce sobre o corpo dela
No dia em que era esplêndida donzela,
E que a fizeste tua prisioneira.
Tu, não ela, tu és a verdadeira
Prostituída e vil: és tu quem gela
E mata da alma a candidez singela,
Tu, beleza funesta e traiçoeira.
Por que não vestes só as almas castas?
Por que não deixas tu as almas mortas?
Por que vais às regiões mais vastas?
Por que não foges para os céus? Suportas
Esses anjos sem luz, e não afastas
Quem vai bater ao céu de suas portas!...
SASSO DURO
Ela tinha o universo a si seguro:
Do céu a aurora em fogo, o sol do espaço,
Dos astros a harmonia, em seu regaço
Viviam sem passado e sem futuro.
Tornou-a o orgulho o mármore mais duro
Que na Itália só morde a lima de aço;
Tenaz e resistente ao golpe, ao braço
Que quer nele imprimir um traço puro.
Aos olhos negros, lagos luminosos,
Como uma névoa fina e delicada
Nunca trouxeram zéfiros chorosos...
Nem lhe pingaram lágrima orvalhada,
Que torna os astros de ouro cetinosos
Na noite deles lânguida e molhada...
UM MÁRMORE
Formosa!... Ela era o anjo do cinismo!
Foi-lhe velada a luz dos olhos magos,
Como na sombra dos vergeis dois lagos,
Que ondulam no cairel de escuro abismo.
Não tinha amor, não tinha fanatismo,
Nem as inquietações dos sonhos vagos:
Jamais lembrou que o tempo traz estragos,
Indiferente à dor e ao heroísmo.
Brilhou seu corpo níveo de açucenas,
Cheiroso, como os bálsamos mais caros,
Sob a noite profunda das melenas.
Alta, flexível, sobre os pés tão raros,
Quando um dia morreu... a morte apenas
Levou à cova um mármore de Paros.
CAPRICHO DE DEUSA
Às vezes esta deusa, esta princesa
Despe a clâmide branca, a toga austera,
E dos degraus de estrela donde impera
Baixa à terra — numa hora de fraqueza.
Quer ser mulher e entrar na natureza,
Vem até mim, como domada fera,
Beija-me a boca e foge, e não espera...
Ateia a chama e a chama aí fica acesa.
De longe, só por molestar-me, insiste
A olhar-me, a olhar-me!... E após, ao ver-me triste,
Na voz um riso, um riso na retina,
Meu coração agarra, agarra e estrinca,
Como quem, por passar o tempo, brinca
Com um pomo preso ao galho que se inclina...
CIÊNCIA PREMATURA
Um cadáver de luz, não é?... — A idade
Dos anjos do Senhor e das auroras
Nunca em mais graciosa mocidade
Radiou festiva, desfolhando as horas.
Tinha embaraços, timidez, piedade,
Nimbo áureo da mulher gentil que adoras:
Vê se beijando este esplendor não há de
Doer-te o coração; vê se não choras.
Velava a luz dos olhos soberanos:
Na voz macia, um lago de inocência,
Dormia o alfaqui, — a perfidez dos planos.
Nas dobras de uma lânguida indolência
Ocultava o saber de muitos anos...
Tinha mais de cem anos de existência...
FALSA PENÉLOPE
És como a aranha vil, que a fina teia
Em círculos concêntricos prepara;
E entre as malhas, que faz com arte rara,
O inseto alado, multicor, enleia.
Grupas sem graça a vã, banal cadeia,
Que um pé vulgar num ímpeto quebrara:
E eu, como Vênus, te queria em ara,
Sobre concha do mar na branca areia...
E eu, que juntava ao mármore o granito,
E entre colúmnios de ouro levantava
Torre augusta, de um molde amplo e esquisito,
E no zimbório altíssimo bordava
Teu nome... e ouvia o espanto, o espanto e o grito
Dos astros lendo-o, o céu já todo em lava!...
UMA EXPLOSÃO
— Elas invejam nossa liberdade,
Nossos diamantes, nossa formosura,
A pele fina, olente de frescura,
Enfim a nossa iriante mocidade.
Uns mentirosos olhos de piedade,
Onde se enroscam uivos de impostura,
Vêm da casta mulher, da virgem pura
Fazer-nos rir da sua honestidade.
Quando souberem perfumar seu ninho,
Nenhuma mais de nós, que uma hora viva,
Há de aos pés flores ter por seu caminho.
Não é só a virtude o que cativa,
É mais o doce e lânguido carinho,
Que faz de todas nós a eterna diva...
PESADELO DOS MORTOS
Cismava. — Cai-me em pó de luar sombrio
A lembrança dos entes que hei amado!
Amor!! — Sombra de amor, um desvario,
Ao ser beijada em leito perfumado.
Como o dorso fantástico de um rio
Rola-os mortos em ritmo compassado!
O mar, que busca, vasto, ilimitado,
Ursos, que há dentro em nós, terá, e é frio?...
E foram moços, lúbricos, ardentes!
Vejo-os todos cobrindo o mesmo espaço!
E andamos juntos séculos contentes!...
E hei-los, que aí vão, arfando de cansaço,
Deitados sobre as vagas reluzentes,
Agora erguendo a perna, agora o braço!...
HORA OPORTUNA
Reinas: e o que não faz uma princesa
Assinalada pela formosura?
Graça, desgarre, um vago de loucura
Dão-te mais do que pode a natureza.
Ergues a fronte, de um estema acesa,
Teu firme olhar insulta a mulher pura:
És quase uma fantástica criatura;
Iludem-te infinitos com certeza.
Entanto o tempo por ti toda corre,
E deixa traços, como o mar na areia:
Que há noite após o dia, não te ocorre.
Morre pois cedo, esplêndida sereia;
Antes que fiques velha e feia, morre,
Que a morte aos sóis os vermes encadeia.
EPÍLOGO
Quando tiver o sol da nova ideia
Largamente irrompido do horizonte;
Quando não existir mais nada de ontem...
Quando o céu de Jesus, que já baqueia,
Rolar de vez na enchente, que se alteia;
Quando o inferno a ninguém mais amedronte,
E Belzebu galhofe com Caronte
Do novo Deus, em que o universo creia...
Destas vastas e esplêndidas ruínas,
Donde não surgirão as bestas-feras
Mas hão de rir-se os ninhos e as boninas,
Inda, coroado de verbena e de heras,
Há de o poeta, — em rimas peregrinas, —
Cantar seu Deus: — o amor e as Primaveras.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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