2/27/2023

Horas (Poesia), de Eugênio de Castro


HORAS



ANTELÓQUIO

Silva esotérica para os Raros apenas:

abertas as eclusas, corvetas, como catedrais flutuantes, seguindo inéditos itinerários por atlânticos virgens; 

terraço ladrilhado de cipolino e ágata, por onde o SÍMBOLO passeia, arquiepiscopal, arrastando flamante simarra bordada de Sugestões, que se alastra, oleosa e policroma, nas lisonjas;

concerto de adequadas músicas implorativas ou morosas, raro estridentes;

complicadas decorações de legenda velha mantelando o pudor dos episódios simples;

preces dum herege arrependido, votos castos dum antigo libidinoso, pesadelos e irreligiosas hesitações dum recente convertido.

Tal a obra que o Poeta concebeu longe dos bárbaros, cujos inscientes apupos, — tal não é de esperar, — não lograrão desviá-lo do seu nobre e altivo desdém de nefelibata.

E, se DEUS TODO PODEROSO lhe der gênio e saúde, para breve novas colheitas.

Coimbra, janeiro de 1891.


***


A EPIFANIA DOS LICORNES

E como para se lucrarem as
muitas Indulgências, que são concedidas
aos que praticam este Santo
Exercício, é precisa a contemplação
dos seus respectivos Mistérios,
devem eles estar bem patentes aos
olhos da Alma.


Fr. Francisco de Jesus Maria Sarmento.

Kyrie eleison, Christe eleison!
Lua deitada, marinheiro a pé...
Lua deitada, marinheiro a pé...
Kyrie eleison, Christe eleison!

Ó toda vestida de Ihama, e luciolante de pedrarias,
Ó sempre em meio das sororais polifonias
Dos burcelins, das nubélias gementes, das violas,
Ó sempre insinuante e virginal entre os turíbulos acesos,
Derramadora de eucarísticas esmolas,
Estrela dos Mareantes, das Orfandades e dos Presos,
Consoladora dos que tombam do andaime
Da Ilusão, Santa Maria, Mãe de Deus, auxiliai-me!
A minha Mocidade tem cabelos brancos:
Sou o menino que, uma noite, os Saltimbancos
Roubaram; sou o Lis à janela dum palácio em fogo,
E a Noiva lirial numa casa de jogo.

Que é dos idos esplendores
dos Soes mortos: noivados
profanos em relvas de pastoral,
vinhos cascateantes,
ombros ninfais, caravelas
auriflamadas buscando
quiméricas Américas?

Tive puníceo manto que era, no chão, puníceo azeite;
Adaga temperada em Nuremberg,
Em cujo punho uma safira, entre opalas de leite,
Era uma tulipa azul em Spitzberg.

Tive falcões e falcoeiros,
E nas de pórfiro varandas
De meu castelo, arrabileiros
Tocavam, resplendentes de opalandas;
Tive castelo de granito,
Granito róseo de Siena,
Tive taça d'âmbar do Egito,
E colchão d'escolhida pena;
Tive leito de faia (tal Salomão), sob cortinas
D'áureos tissus,
Por cobertas, flexuosas popelinas
E colchas tecidas com fios de luz;
Anões em seda alva de jaspe,
De meu castelo no átrio mudo
Sobre as lisonjas de diaspe,
Erguiam caudas que eram rios de veludo;
Balsamirrando o manso ar,
Em de cobre babilônicas caçoilas.
Fumegavam resinas do Madagáscar,
Do fogo entre as ruivas cenoilas;
Num celeiro ladrilhado de sardônia
Tive tulhas de pedras raras:
Torquesas do Cairo e da Macedônia,
Diamantes frigidos, sem taras,
Peridotes, obsidianas,
Rubins de Dgiamschid, raiados de esínopla,
Sueiras, esmeraldas de Juba, cimófanas,
Rosicleres de Visapura, jacintos de Constantinopla.

— Os franceses levara-me
tudo: a adaga nuremberguesa,
a taça d'âmbar do
Egito, os rubis de Dgiamschid
e as turquesas da
Macedônia. Para quando o
armistício, para quando?

Tive um parque cheio de lagos
E de cegonhas brancas, como litúrgicas pratas,
Povoado de aromas vagos,
De murmurâncias de cascatas,
E de figuras de basalto;
Onde, em tanque d'ágata, um hidro
D'ônix vomitava alto
Uma girandola de vidro;
E onde, soberbos como Núncios,
Com suas caudas d'ouro ardente,
Iam pavões, sob quincúncios
De rododendros, lentamente, lentamente, lentamente...

Agora o parque é triste,
a cascata calada, os lagos
secos: pelas ruas, por vezes,
penas soltas dos pavões,
que se foram para outros
parques.

Amores venais, concupiscências luciferinas:
Rute, a formosa bruna, e Basalisa, a loira,
Teodora, a ruiva como as tangerinas,
Mas, sobre todas: Basalisa, a loira...
Oh os seus olhos! suas unhas em amêndoa! e em cálix
O seu colo! e seus dedos de digitalis!
E quando, numa noite de flagrâncias,
(Lembrando isto todo o coração me doe!)
Forte enleei, após violentas relutâncias.
Suas ancas de Deusa em meus braços de Herói!

Mordoraram-se as apoteóticas
púrpuras da Luxúria: depois do Escarlate o
Branco. Agora sou casto
como um Cenobita.

Senhora dos Aflitos! que d'ora em diante Vos pertençam
Todos os meus instantes, meus cuidados e fervores,
Que Vossas Bentas Mãos, num gesto augusto, em benção,
Diáfanas, mimosas, como aprilinas flores,
Se cruzem, brandas, sobre os meus cabelos frios,
E me unjam com os Santos Óleos do Perdão!
Cometi barbaridades, desvarios.
Fui ambicioso, libidinoso, mau cristão...
Mas da Ignorância a era embolismal fanou-se,
E Vosso Olhar anunciativo, avelutado.
Alpendre dos friorentos, tagante, benéfica Fouce,
Em minh'alma segou a erva do Pecado!

E eis-me agora a Vossos Pés, a agradecer os Benefícios preciosos
Do Vosso Amor, Mãe do Amor! dos Tristes, dos Criminosos,
E a pedir-Vos, de joelhos, que apresseis
A Epifania dos Olhos-Reis,
Dos Olhos-Reis da que é cheirosa como o nardo,
Da muito amada Esposa, que ora aguardo,
Daquela, que hei de beijar somente com os olhos,
Daquela, que hei de tocar somente com a vista,
Companheira de meus jejuns e de meus passeios,
Nos quais Vos colheremos rosas de toucar e açucenas,
DA Bordadora, que há de enfeitar com finos entremeios
As toalhas dos Vossos Altares, para as místicas Novenas!

CERTA VOZ
Eu sou bela como as corvetas
E as florestas virgens, à tarde,
E a mirra, que, nas caçoletas
De Satsumá, untuosa arde.

Minhas mãos longas, familiares
Das simbólicas liturgias,
Exorcismam os maus Pesares
E as violáceas Melancolias.

Alma d'ouro de fino som.
Foge do mundo, fria Rússia,
E vem dormir sob o edredom
De meus olhares de pelúcia.

Vem ouvir os castos ditames
Desta minha boca solteira,
Cactus rubro, que tem por estames
Botões de flor de laranjeira;

Vem! subamos prestes, depressa,
A Torre de jaspe da Graça,
Onde mora, — branca Professa, — 
A PRECE, toda em alva cassa.

Fujamos do mundo nefando,
Onde os Amores metafísicos,
Pobres Amores! vão murchando,
Como pálidos noivos tísicos;

Doeste mundo perverso e vão
Destes desertos glaciais,
Onde a esponsalícia união
De nossos corações leais,

Sob um céu de luto no qual
Agonias, Lúcios se amorfam,
Seria trágica, augural
Como o batizado dum órfão.

Vem! Que de Esperanças te adornes!
Vamos à ilha dos Licornes!

Subamos às Ilusões gratas
Num voo de nefelibatas!

Hosana! Glória a Deus
nas Alturas, a Deus que deu
vista a quem não via. E
nunca a Lua me pareceu
tão de prata!

Vejo duas noviças num quartel:
No azul epitalâmico, entre palmas,
Enlaçam-se em ditongo as Duas Almas,
Longe do Mundo bárbaro e cruel...
Dalmaticadas d'alvo brocatel,
Mitradas d'ouro, vão cruzando, calmas,
Ao som do ascior de ressonâncias almas,
Seus olhares num monograma fiel.
Da Cidade do Mal aumenta o estrépito
Numa rubra hemoptise o Sol decrépito,
Golfeja sangue pelo céu grisalho...
Turíbulo da Tarde, um lago fuma,
E, na sua assumpção, a Lua é uma
Branca Primeira-Comunhão num Talho...

Bárbaros: uma Voz de cetim
branco chamou por mim.
Todo vestido de linho, vou
para a Torre do Conceito
Puro. Fui o Fraco e o Negligente
e o Diamante de Golconda
engastado em zinco:
hoje sou o Beato e o Mago.
Não tenteis compreender-me:
não me compreenderíeis.
Fazei clangorar o
olfante das Paixões ruins.
Serei surdo. É vinda a
hora, muito esperada, do
Livramento.

Ó minhas mãos! formai um eletuário de aromas,
De espicinardo, de assadulcis, de vetiver e de sarcantus,
E ungi minh'alma para que ela surja, clara como os axiomas,
Redolente de aromáticas gomas.
Toda perfumada ante a Rainha de meus cantos...

O meu Coração é tímido e medroso! À porta,
Ó Lua! da Torre Branca, ó Lua pálida! conduze-o,
Lá onde a voz da Vida chega esvaída, quase morta.
Como a canção do mar num búzio...

 

DONA BRIOLANJA

Complicadas decorações de legenda
velha mantelando o pudor dos 
episódios simples.

I
Dona Briolanja vai com suas aias
Sob as cor de mosto vesperais olaias.

Vai com suas aias, leva fino leque,
Cauda de veludo pálido, de Utrecht.

Leva broche aonde sangra uma espinela;
Pende-lhe da cinta sonora escarcela.

Cantam na escarcela níspias e sequins,
São de Ihama os seus rútilos chapins.

Leva anéis de cobre com aventurinas,
Brincos de sueiras, manto de agnelinas.

Dona Briolanja vai com suas aias
Sob as cor de mosto vesperais olaias.

II
Eis que chega à beira da cascata clara
Cuja água canta sonora, sem tara.

Ei-la que se assenta, cheia de torpor,
Entre as suas aias postas em redor.

Eis que diz a uma: Meus chapins descalçamos,
Unge meus pés brancos com cheirosos bálsamos.

E diz à segunda: Vai, corre à cascata,
Enche de água viva meu copo de prata.

E diz à terceira: Dá-me, ó minha aia,
O meu alvo lenço, leve, de cambraia.

Vem os meus cabelos, prestes, desprendê-los,
Que um dourado pente morda meus cabelos.

E diz para a quarta: Trai-me o pesado
Meu anel de núpcias d'ouro martelado.

Uma em cujo dedo brilha verde euclasia
Unge-a com dormentes bálsamos da Ásia.

Outra à sua boca virgem, granadina,
Chega argênteo copo d’água adamantina.

A terceira os belos, longos seus cabelos,
Põe-se a penteá-los, põe-se a desprende-los.

E a quarta em seu dedo branco e fuzelada
Põe o anel pesado d'ouro martelado.

III
O poente é ruivo, ruivo de laranja,
O poente é ruivo... Dona Briolanja,

Olhos no morrente sol congestionado,
Olha o seu futuro, lembra o seu passado.

Lembra os idos tempos, idos num momento,
Lembra o refeitório branco do convento,

Mais as tardes claras do Mês de Maria,
Mais o dormitório, mais a portaria.

Mais a cerca onde passeou travessa,
Mais as doces falas doces da Abadessa.

Lembra isto e pensa, coração em gala,
No fiel Eleito, que há de vir buscá-la,

No Leal e Gasto, no Imaculado,
Como o leite branco, como o mel dourado,

Cuja Alma pura, pura e consolante,
É uma Primeira linda Comungante,

Cuja Alma pura, plena de perfumes,
É um Lausperene de fulgentes lumes.

IV
Alvo como as alvas baptismais cambraias,
Dos astros o pólen polvilha as olaias.

E a Padeira-Noite põe-se a peneirar
Na peneira-Lua a farinha-Luar.

De repente, à beira da cascata clara,
Chega um Cavaleiro de beleza rara.

Traz espada e escudo, escudo e capacete
Com de brancas plumas branco martinete.

Traz guantes de ferro, guantes e gorjal,
Brigandina d'aço, traz lança e punhal.

— Quem é o Ousado, que, por horas mortas,
A transpor se atreve minhas férreas portas?

Quem sois vós, dizei-o, que vindes assim
Tão ousadamente? que quereis de mim?

Quem sois vós, dizei-o! se é a minha mão
Que pedir me vindes, não vo-la dou, não.

Quero conservá-la pura, como a neve.
Para o meu Esposo, que há de vir em breve.

Ide-vos embora, meu Querer é Rei
Ide-vos embora, não vo-la darei...

— Empós os Invernos os dourados Dias,
Empo: as Esperas as Epifanias!

Dona Briolanja, flor de meu Cuidado,
Sou o vosso Esposo, sou o vosso Amado.

Venho de bem longe, trago os pés em sangue,
Venho quase morto, combalido e exangue.

A vossa procura, dormi aos relentos,
Atravessei rios, prados lamacentos.

Sem desvelos calmos, sem mansos carinhos,
Piquei-me nas urzes duras dos caminhos.

Dai-me que eu descanse, sob o luar sidério,
Em vossa Alma, brando, tépido agnistério!

Sou Leal e Casto, sou Imaculado,
Como o leite branco, como o mel dourado.

Fino grão dourado d'âmbar de Sabá,
Meu Amor honesto vos perfumará!

Dona Briolanja ouve atentamente
Sua linda boca, toda rescendente,

Abre-se num riso sem palavras, mudo,
Num sorriso mudo todo de veludo.

E com gesto ingênuo dá ao seu Amado
Seu anel de núpcias d'ouro martelado.

V
Os sinos despertam montanhas e vales,
Os músicos tangem trompas e atabales.

A Capela é toda, toda iluminada,
Toda atapetada, toda perfumada.

Ciriais de prata luzem sobre o Altar,
Turíbulos d'ouro dançam pelo ar.

No ar lento fumam gomas aromáticas,
Brilham as navetas, brilham as dalmáticas,

Brilham os lincúrios belos do cibório,
E no de brocado fofo faldistório,

De brocado caro, que o lustre salitra,
Está o velho Bispo de báculo e mitra,

Todo de alvas rendas, todo de vermelhos,
Com o gremial posto nos joelhos.

Eis que alfim lá surge, gracilmente esbelta,
Cabelos em domo, fresca boca em delta,

Orelhas em concha, busto albirrosado,
Dona Briolanja com seu Noivo ao lado.

Vai de branco e pura como as brancas palas,
Frágil véu de rendas, peitoral de opalas.

Toda, toda branca, toda em seda branca.
Sua cauda é lácteo tanque que se estanca.

Vai ajoelhar-se o branco par noival
Num de rica lhama rico sitial.

Gemem os saltérios, gemem as violas,
Brilham as casulas, brilham as esteias.

Ciriais de prata luzem sobre o Altar
Turíbulos d'ouro dançam pelo ar,

E o Bispo, arrastando sua rubra capa,
Lança aos dois Esposos a benção do Papa.

 

LONGE DOS BÁRBAROS

Foeda est in coitu et brevis voluptas
Et taedet Veneris statim peractae.

(Petronius).

I - A POMBA DA ARCA

Fim das Discórdias, das Querelas.
Entram no porto claro as esperadas caravelas!

O Arco-íris fulgurou depois dos Lutos do Dilúvio,
O Hospital abandonado foi mudado em alva Creche...
O Hospital abandonado está mudado em alva Cheche,
O Arco-íris fulgurou depois dos Lutos do Dilúvio.

Com ramos verdes d'oliveira,
Que a minh'alma branca de leite,
Com ramos verdes d'oliveira,
Que a minh'alma branca se enfeite
Com ramos verdes d'oliveira.

Fora um reinado mau de Ignorância e Pecado.
Mas sobre o meu ferido peito, Deus louvado!
Brilhava ainda a prateada, a medalhinha benta,
Que ao meu pescoço dedos maternais haviam posto,
Antes da hora da Tormenta,
Antes da hora do Desgosto.
E o Filho-Prodigo voltou arrependido,
E o tresmalhado, o cordeiro perdido,
Voltou para o redil, depois de andar pelas charnecas áridas;
E as víridas cantaridas
Cessaram de voar sobre a valeriana,
E onde o rubim sangrava branquejou a cimófana,
E depois da Tourada houve Mês de Maria...
E est'alma que era, neste mundo sem abrigo.
Como noite nupcial em leito d'enfermaria,
Como um casamento na capela dum jazigo,
Est'alma viu surgir por fim a sua Gémea, a sua Eleita,
Sob um palio de luz, a amena Flor perfeita.
Lábios abertos num sorriso anunciativo.
Todo católico, de amor, e nada erótico,
E doce e pura, como um Serafim que um Primitivo
Iluminasse num Evangeliário gótico!

Graças Te dou, ó Mãe de Deus! ó Clemente!
Que pisaste com Teus Pés brancos a Serpente.
Graças Te dou e Te peço, ó Torre de Marfim,
Que protejas a minha Esposa e que me protejas a mim,
E a comunhão das nossas almas geminadas,
£ o comercio de nossas vontades paralelas;
E, agradecidos, do Teu Altar nas toalhas bordadas
Rosas esfolharemos e acenderemos velas.

E o nosso amor será todo honesto e sem beijos!
Será um jubileu de cândidos Desejos,
Amor cheio de paz eucarística,
Amor de Poeta doido, amor de Infanta mística,
Amor sereno, amor sem paroxismos,
Amor levado até aos mais leais bizantinismos.

E numa casa longe dos que mentem, dos Maus,
Onde não chegue a voz do irreligioso caos.
Longe dos Hereges, dos Perversos,
Lerei a Bíblia, e cantarei, em doces versos,
Tua divina formosura, teus encantos,
Os teus milagres e os milagres dos Santos;
E Ela, com suas mãos ogivais,
Bordará crucesignatos corporais.


II - A CISTERNA FIEL

As horas vesperais, em musicais teorias,
Tranças floridas com aromáticas ervas,
Rindo com bocas que eram harpas e peônias,
Vinham chegando, lentamente as lindas Servas,
As horas vesperais, em musicais teorias.

Às horas vesperais, entre o nevoeiro lácteo,
Vinham chegando em grácil ritmo lento e nobre;
E, a sorrir e a cantar, na cisterna do pátio,
Enchiam gracilmente, as ânforas de cobre,
As horas vesperais, entre o nevoeiro lácteo.

Para que enchiam suas ânforas as Servas?
Assim que as ânforas esguias eram cheias,
Logo as despejavam e enchiam e, entre as ervas,
A água da cisterna ia formando cheias...
Para que enchiam suas ânforas as Servas?

De mil constelações à luz discreta e flava,
Musselinas de névoa erravam pelas áleas...
Riam as Servas e cantavam... e soava
No mármore do chão o couro das sandálias...
De mil constelações à luz discreta e flava.

Doce, branca e fiel Rainha das Amadas,
Que afagaste com mãos d'arminho a minha Mágoa,
O mármore do chão é gasto das passadas,
Mas a cisterna tem ainda muita água,
Doce, branca e fiel Rainha das Amadas!


III - VASO DE ELEIÇÃO

Ó Senhora d'olhos castanhos,
Ó Cibório da minha ideia,
Ó divina estação de banhos
Onde a minh'alma veraneia,

Lá do fundo do meu Desterro,
Do meu miasmático paul.
Baile branco depois dum enterro,
Ouvi a tua voz azul.

Ouvi tua voz cristalina
Como um vinho astral de labrusca,
E, à luz da lua de platina,
Parti logo, vim logo em busca

Do teu amor, sonhada Meca
Redolente de frangipana,
Amor que do mal que me obceca
É guarita, alpendre e otomana.

Foragido dum mundo falso,
Onde estive em áspero exílio,
Todo cheio de pó, descalço,
Venho pedir o teu auxilio.

Meu peito débil e doente,
E minhas mágoas, purifique-as
O teu olhar, candil ardente,
Lucescente como as Relíquias.

Esta minha melancolia,
Ó Senhora núbil! dilui-a
Na crepuscular calmaria
De teus olhos, branca Aleluia.

Sê, ó Lis feudal mal aberto,
Ó alma e fina Alma terna,
A cisterna do meu deserto,
E a estrela azul desta cisterna.

E sê a cerca do hospital,
A cerca amiga, a cerca imensa.
Toda vírida e vesperal
Para a rainha convalescença.

Dá-me força no Sofrimento,
Meus doridos males abrangê-los,
Que a tua voz, cheiroso unguento.
Da minha tarde seja o Angelus!

Que o teu algente busto d'Hóstia
Se encoste branco nos meus ombros
Que essa láctea brancura d'Hóstia
Me revista como um Véu d'ombros.

Sê o vetiver e a escalônia,
O zimbro, o nardo, o ciclâmen,
E aromatiza-me per omnia
Soecula soeculorum. Amen.


IV - PELAS LANDES, À NOITE

Pelas landes e pelas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Pelas landes e pelas dunas.

Olhos de fósforo, esfaimados,
Numa pavorosa alcateia,
Andam, andam buscando ceia,
Olhos de fósforo, esfaimados.

Nas landes grandes, junto às dunas,
Um menino perdido anda,
Anda perdido, a chorar anda,
Nas landes, junto às brunas dunas.

Senhor Deus de Misericórdia,
Protegei o róseo menino,
Protegei o róseo menino,
Senhor Deus de Misericórdia,

Porque nas landes e nas dunas
Andam os magros como pregos.
Os lobos magros como pregos.
Nas grandes landes e nas dunas.


I - UM CACTO NO POLO

Julguei que se tinha levantado um obelisco místico
no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra
azul; e que tinham acendido um fogão no quarto
úmido; e que tinham dado alta ao doente.

Julguei que nascia o sol à meia-noite; e que uma
boca muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre
o meu peito; e que havia uma novena ao pé do Jardim
d'Aclimação.

Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de
tênue que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu
o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.

E o clown entrou, folião, na Igreja; e fez jogos
malabares com os Cibórios e os Turíbulos; e tornou
a nevar; e, após os brandos etésios, soprou o mistral
forte.

E na alcova branca entrou a Dama expulsa, cujo
corpo é d'âmbar e cera e todo rescendente dum matrimonio
aromal de mirra e valeriana, a Dama dos
flexuosos e vertiginosos dedos rosados.

E seus cabelos de czarina eram claros como a estopa
e finos como as teias d'aranha; e seu ventre alvo, de
estéril, era todo azul, todo azul de tatuagens.

E a Educanda fugiu do Recolhimento; e com a
Dama expulsa passei a noite em branco; e a noite foi
toda escarlate.

E no dia seguinte, em vez dos sacros livros, que de
ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei Artur
Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os
Doutores da Igreja.


VI - QUANDO A MORTE VIER

Quando a Morte vier,
Será por uma madrugada pálida...
Quando a Morte vier,
Quero que estejas junto de mim, medrosa e pálida,
Quando a Morte vier...
E serão bem comovidos nossos adeuses.
Quando a Morte vier,
E hei de dizer adeus aos teus olhos doridos como adeuses.
Quando a Morte vier;
E deitarão serradura de madeira à porta,
Quando a Morte vier,
Por causa dos carros que passarem à porta,
Quando a Morte vier;
E tu irás buscar as colchas de Damasco,
Quando a Morte vier,
E deitarás sobre o meu leito as rubras colchas de Damasco,
Quando a Morte vier
E os sinos graves hão de chamar à Extrema-unção,
Quando a Morte vier,
E o Padre há de vir dar-me a Extrema-unção,
Quando a Morte vier;
E o povo nas escadas cantará o Bendito,
Quando a Morte vier,
E hás de estremecer ao ouvir o Bendito,
Quando a Morte vier;
E a lamparina será branca ao pé dos frascos dos remédios.
Quando a Morte vier;
E o enfermeiro deixará de me afligir com mais remédios,
Quando a Morte vier;
E a minh'alma será toda confusa, ó meu Deus!
Quando a Morte vier,
Por se ver prestes a subir à morada de Deus,
Quando a Morte vier;
E o relógio da sala de jantar há de dar horas,
Quando a Morte vier,
E então estarão contadas minhas horas,
Quando a Morte vier;
E a minha cabeça descairá no travesseiro,
Quando a Morte vier,
E tu ajeitarás minha cabeça no travesseiro,
Quando a Morte vier,
E, vendo baços e parados os meus olhos,
Quando a Morte vier,
Compadecida, cerrarás meus baços olhos,
Quando a Morte vier
Duas Irmãs de Caridade hão de velar junto ao meu leito.
Quando a Morte vier,
E não te afastarás um só minuto do meu leito.
Quando a Morte vier
E como há de ser preciso um caixão para o meu cadáver.
Quando a Morte vier,
Um homem de negro virá medir o meu cadáver,
Quando a Morte vier;
E vestirão o meu quarto de trabalho todo de luto.
Quando a Morte vier;
E os criados andarão de preto e tu de pesado luto;,
Quando a Morte vier
E fecharão as portas das janelas,
Quando a Morte vier,
E a luz mal poderá entrar pelas fisgas das janelas.
Quando a Morte vier
E teus olhos andarão, pobres olhos! todos pisados,
Quando a Morte vier,
E de quando em quando hão de umedecer-se teus olhos pisa
Quando a Morte vier;
E por toda a casa será um cheiro d'alfazema e fenol,
Quando a Morte vier,
E há de perturbar a tua pobre cabeça o cheiro do fenol,
Quando a Morte vier;
E toda a gente andará nos bicos dos pés.
Quando a Morte vier,
E será bem singular ver toda a gente nos bicos dos pés,
Quando a Morte vier;
E, sem corda, o relógio deixará de dar horas,
Quando a Morte vier;
E, decorridas vinte e quatro horas.
Quando a Morte vier,
Chegarão os Padres, em sobrepeliz, e o Prior,
Quando a Morte vier,
E será de veludo preto a estola do Prior,
Quando a Morte vier;
E tu que me tens visto tanta vez.
Quando a Morte vier,
Hás de querer ver-me ainda outra vez,
Quando a Morte vier;
E, enxugando as tuas lágrimas com o teu lenço,
Quando a Morte vier,
Cobrirás meu rosto de marfim velho com teu lenço,
Quando a Morte vier;
E depois hão de levar-me para a Igreja,
Quando a Morte vier,
E começarão os ofícios na Igreja,
Quando a Morte vier;
E após hão de levar-me ao cemitério,
Quando a Morte vier;
E, para ver o enterro do Poeta, o povo inundará o cemitério,
Quando a Morte vier;
E depois hão de abrir meu pesado caixão,
Quando a Morte vier,
E hão de encher de cal o meu caixão,
Quando a Morte vier;
E nessa noite não dormirás um segundo,
Quando a Morte vier,
E há de parecer-te um século cada segundo.
Quando a Morte vier;
E, por minha alma, mandarás dizer trezentas missas,
Quando a Morte vier,
E, não mais sairás a não ser para as missas,
Quando a Morte vier,
E ninguém tornará a ver teus mansos olhos,
Quando a Morte vier,
E nunca mais haverá alegria nos teus olhos.


VII - BALADA

Um hospício de velhas alienadas,
Sem cerca, sem Irmãs, sem enfermeiras;
Mortas de fome, as pobres desvairadas
Eram tão brancas como as travesseiras;
As jarras sobre o altar ermas de flores,
Ia já longe a última novena.
Crescia a erva pelos corredores...
Mas TU vieste sororal e amena.

Ninguém tratava as velhas doidas presas
Uma planeava rutilas viagens;
Outra, doida por luxos e riquezas,
Julgava ter castelo, manto e pajens;
Outra fantasiava sensuais
Requintes de luxúria; e a mais serena
Sonhava amores fieis, espirituais...
Mas TU vieste sororal e amena.

Um incêndio auroral como um poente
O hospício destruiu em fúria flava,
E das velhinhas escapou somente
A que em amores só leais pensava.
Mas em seu corpo quanta queimadela!
Queimados os cabelos, dava pena
Vê-la em meio das ruínas, pobre dela!
Mas TU vieste sororal e amena.

Princesa, a ti meus versos! Se, alva e esguia,
Não afrontasses, branca, as de verbena
Chamas, a pobre louca morreria...
Mas TU vieste sororal e amena.


VIII - EPÍLOGO

Não perpetuemos a Dor, sejamos castos,
Sejamos castos, duma castidade maga,
Tu como Inês, a santa de cabelos bastos,
Eu como o puro e honesto São Luiz Gonzaga.

A Pureza convém às almas como as nossas,
As mucosas só tentam as almas vulgares;
Rosácea mística o sorrir com que me adoças
Seja! e argênteo Pax-tecum sejam teus olhares.

Não são tuas gracilidades de pucela
Que me prendem. Do Archanjo o resplendente gladio
Decapitou a Luxuria que fere e gela:
O que eu adoro é teu coração de vanádio.

Em tempos mortos folheei velhos infólios
De Calepédia, infólios velhos, bem quiméricos;
Porém da Continência os puros Santos-Óleos
Ungiram-me, e, nos leais planaltos esotéricos,

Onde meu coração católico e monárquico
Ora vive distante dos perversos trilhos,
Sempre distante das Paixões do mundo anárquico
Peço a Deus Poderoso que nos não dê filhos.

Nossa vida de reclusos brancos alinde-a
O Lis: a Volúpia condenável alague-a
Dos Licornes o olhar! E que nunca da Índia
Tenhamos de mandar vir a PEDRA DA ÁGUIA.

Será lamentável não ver toda florida
De risos filiais a palmeira do amor;
Porem tu sabes, Casa d'Ouro! o que é a vida,
Sejamos castos, não perpetuemos a Dor.

Lascivas seduções, nunca mais me tenteis.
Vós que outrora do corpo meu rainhas éreis!
Virgo fidelis, que haja em teus Sorrisos-Reis
O perene frescor do Riso das Estéreis!



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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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