2/27/2023

Esboço de uma Epopeia Americana (Poesia), de Luís Delfino


ESBOÇO DE UMA EPOPEIA AMERICANA


A EPOPEIA AMERICANA
(Prepara-se a ação do poema)

As rumorosas vagas sacudidas
Do dorso nu das ermas cordilheiras
As rasas chãs agora não sabidas,
Como grãos de ouro às brancas ribanceiras
Das águas das montanhas despedidas,
Já crespas só, já crespas e altaneiras,
Misturavam passando em toda parte
Aos ossos colossais ruínas de arte.

Tradição, palpitante, eterna
Encarnação do continente imenso,
(A história vive, ensina, e nos governa)
Do abismo secular no abismo extenso
Suspendeu esta mágica lanterna,
Que arranca a noite do seu véu mais denso,
E aclara, e mostra esplêndidas ruínas
Aqui num vale, ali sobre ruínas.

Sombra cinco ou seis vezes miliária
Animada de um sopro, que a eterniza,
Sempre a mesma entre tanta sombra vária,
O velho a eternidade simboliza:
Viu a civilização rudimentária,
Viu a perfeita; agora ele precisa
Sua missão cumprir, a derradeira:
Chorar na cova de uma raça inteira.

Quando o futuro carregando o arado
Por velhos sítios de florestas virgens
Procurasse a grandeza do passado,
E a história das belíssimas origens
De um povo todo inteiro sepultado,
Neste sepulcro, que dois mares cingem,
Que diria de nós, que em pó tão santo
Não pusemos sequer o hino de um pranto.

Velho filho das terras de Colombo,
Salvarás tu essa arca flutuante?
Trarás o ramo verde, como o pombo
Por terra em flor, e céus em sol errante!
Despenharás do agudo, áspero lombo
Das serranias lápida gigante,
Que tenha à pedra, ou osso, ou bronze, ou tinta
Escrita a história, que à razão não minta!

Ó Musa das Américas grandiosas,
Dá ao meu plectro um canto sonoroso
Cheio de luz, do sol, e odor de rosas,
De murmúrio de rio em vale umbroso,
De vozes de tormentas procelosas,
Das florestas, do mar, do vento iroso,
Que eu tento derramar por toda terra,
Quanto amou, e sofreu: tudo o que encerra.

Vós, o índio, a mulher que amo e me alenta,
O amor da grande pátria — a humanidade —
Encher-me-ão esta estrada áspera e lenta
De consolo, esperança e claridade;
E hão de mostrar que o velho nada inventa,
Que ele é a voz sublime da verdade,
Que quer da raça que acabou ou respira
A vida inteira eternizar na lira.

(O velho observa as tribos do alto dela, reunidas ao longe. A pororoca arrebata uma mulher).

Colosso armando de potentes asas,
Que em cada uma um furacão coubera,
Trazendo troncos e torrões com casas,
Ilhas com mato, e a flor que o mato gera,
Batendo por milhões de campinas rasas,
Lançando ao longe as ilhas que trouxera,
Erguendo o colo, ameaçando o espaço,
Fugia ao mar com hórrido fracasso.

Por cima da palmeira salvadora,
Serena e esbelta, como em noite estiva,
Antes que chegue a aurora — a virgem loura
Que as rosas da manhã no céu cultiva —
Via passar a serpe ameaçadora
O olhar brilhante, a fronte em calma altiva,
Mas nessa imóvel posição de cobra,
Que ao ver a presa, de cuidados dobra.

Chegou. — Ruidosamente, horrendamente,
Bem como um mundo em convulsões desperto:
Passou babando espuma de repente,
Como o jaguar ferido no deserto,
Como pegão que fura a selva ingente,
Como raio, que troa e voa, incerto,
Sob a alma do tempo em corpo humano,
Em forma de água a alma do oceano.

Essa palmeira parecia filha
Da palmeira dos tempos primitivos,
Que salvou — por estranha maravilha —
Jacaré com seus filhos todos vivos;
Quando Deus, que ergue agora, agora humilha,
Vendo da terra os crimes excessivos,
Segundo a tradição, só deixa inteira
Salvar-se uma família na palmeira.

Subindo o tronco esbelto... ia subindo
As folhas espalmadas estendendo,
Como a harmonia de um chilrado lindo
Em noite de luar, na água gemendo,
Como a taba espreguiça-se dormindo,
Ao pé do rio murmure correndo,
A palmeira subia... e enfim subia,
Como uma trepadeira de harmonia.

Crescia o tronco, as folhas aumentavam,
O céu perdia o azul formoso e puro,
E as nuvens brancas delas se arredavam,
E o céu ficava imensamente escuro,
E as águas ululando rebramavam
Como um mar, que remorde num seixo duro,
E a coroa da palmeira se espalmava,
E só por dentro dela o sol brilhava.

Berço de verde e luminoso vime,
Esmeralda tecida em frouxo ninho,
Essa família que passou sem crime,
Tinha as brisas do céu com seu carinho,
A luz do sol, que a cor à vida imprime
A paz no seu seguro desalinho,
A força e o alento, a fé que dobra o alento,
Se é Deus por nós, e pela barca o vento.

As tribos do Amazonas congregadas
Viu ele ao longe, sobre um vale ameno:
Velho cacique de armas emplumadas,
Na mão a maça, que dá força ao aceno
E a cor do fogo às frases arrojadas,
Movia mais seguro que sereno:
Um bramia, outro o arco experimentava,
Outro aplaudia o chefe, que falava:

Aquele enfia a flecha envenenada
Num beija-flor que mal excede à mosca,
Quando em asas gentis no espaço nada;
Outro, com expressão audaz e tosca,
Fingia andar na luta ensanguentada;
Outro, irrompendo de uma estranha rosca
Em que sumira o corpo de repente,
Dava pulos no ar, como serpente.

As mulheres na argila trabalhando,
Limando a pedra um pouco já lascada,
Outras as várias tintas misturando,
Outras rindo, outras não fazendo nada,
Outras em danças bárbaras girando,
Mas toda gente em calma descuidada,
Como um tigre uma paca leva ao dorso,
Vê uma delas, sem menor esforço.

Sem uma luta, em rápido remoinho
Cair na pororoca, que correra
Como uma cobra que devora um ninho;
Como o fogo que engole uma palmeira
Que era a esbelta princesa do caminho;
Como a igara que cai na cachoeira
Que rola em volta, em volta, e vai a pique...
Que foi? quem foi? — A filha do cacique.

Foi de pasmo o primeiro sentimento:
Foi qualquer deles pedra inanimada
Àquele brusco e temeroso evento:
Foi sobre eles montanha arremessada
Deixando-os sem razão e movimento:
Mas pouco e pouco a mó ergue-se irada,
Bem como o vento agita as selvas todas,
E as torna roucas, desgrenhadas, doidas...

(Continuação da descrição da Virgem nos braços do velho)

Ele atentava silenciosamente
Para os dois seios sólidos, pequenos,
Cheios de luz ainda; e a cor ardente
Dos dois bicos esplêndidos, serenos,
Banhados de uma sombra saliente
De cabelos finíssimos: terrenos
Raios de estrela esplendorosa e doce,
Que como em próprio ninho ali deixou-se.

Entre a separação de peito a peito,
Lá onde os dois irmãos estavam rindo,
E como inda ririam com efeito,
Pois era cada seio o sol mais lindo,
Como na fulva areia de áureo leito
Finos cabelos negros reluzindo,
Traçaram sulco, como a luz de um facho;
E iam crescendo mais e mais abaixo.

O enduape de penas variadas,
Que o ventre e as coxas todos lhe envolvia
Nos turbilhões das águas balouçadas,
Perdido, ela ficou como se via,
Nua, como as estátuas trabalhadas
Num país, que talvez existiria:
Porém tempo, invasões, distâncias, guerras
Fez perder a lembrança dessas terras.

(O Velho admirando ainda a Morta)

Havia o odor de um novo encanto nela:
Cabeça inteligente e a forma pura
Da mais formosa, indiânica donzela,
Com certa sombra de homem de mistura;
Coisa não vista, assim era mais bela.
E o velho, dentro dessa pele dura
Que igualara a das onças na aspereza,
Tinha saltos de tigres em braveza.

Assim no cimo de escalvada pedra,
Sobre uma fenda um mal seguro tronco
Prende as raízes: por instantes medra,
Coroa-lhe a fronde da procela o ronco,
O tosco ninho ao pé uma águia engendra:
Cospe-lhe o raio, a flecha, e o ápice bronco
Sacudido estremece, e se esboroa;
O ninho cai, e o tronco: a águia só voa.

O pensamento mau o ninho fora,
Fora o tronco na rocha montanhesa:
O velho tinha a Eva tentadora,
Tinha o ardente aguilhão de uma beleza,
Ai! mas a morte desconsoladora,
Fizera de ambos sua inerte presa:
Com ela morta, nesse frio horrível,
O crime, o crime mesmo era impossível.

Nem ele, quando o fogo do guerreiro
Jovem fervendo em áscuas pelo sangue
Para nas mãos erguer um mundo inteiro,
Como o cadáver de um leão exangue,
Sempre a se avantajar, como o primeiro
Na força e luta, nunca ousou um langue,
Mórbido olhar de amor lançar na amante
De outrem, quanto mais hoje, e nesse instante!

Era a honra do herói a águia: — O instinto,
Por um momento fraco e subjugado,
O dominou; por turvo labirinto,
Quem se não sente às vezes revocado?
Cai uma estátua do mais rijo plinto.
Encontrar o inimigo encarniçado,
Ter para a luta indômita coragem,
Vencer — era de herói: foi do selvagem.

Mas ele fora o Ésquilo do drama,
O Canova de mão prodigiosa,
Que as curvas linhas a cantar derrama
Estrofes pela pedra sonorosa;
Ele que tem um coração que ama,
E em tudo encontra a lira harmoniosa,
Com tantas cordas, como as tem sua alma,
Onde há amor ardente, e paixão calma.

Enquanto vai mordendo a água agitada,
Com um pé, e outro pé, que os move a custo,
Em alma de receios eriçada,
Embora em cada braço seu robusto
Haja uma tribo heroica e dedicada,
Treme-lhe o corpo, como leve arbusto:
Se a cobra vem! Se o crocodilo o investe!
É tão cobarde a cólera celeste!

Vem como um tigre, ou raio dos espaços,
Como tribo inimiga de improviso,
Quando o homem não tem os seus dois braços,
Presos no corpo morto de um sorriso,
Que inda está rindo por seus membros lassos,
Por uns olhos sem luz: hoje é preciso
Ter a estrada com sol, sem cobra o ninho,
Não ter onças em meio do caminho.

Ia pensando, e ia caminhando:
Mas o poema da mulher defunta
Tinha elegias, e um cantar tão brando!...
Quem vira assim a vida à morte junta
Como ali! O Amazonas murmurando
Parecia fazer-lhe uma pergunta;
E cada vaga que ele esmaga e corta,
Parece que lhe diz: entrega a morte.

(O Velho continua a passagem do Amazonas)

A pele... a pele fina e delicada,
Quase branca, brilhava docemente
Da luz do sol apenas afagada,
Como a lagoa branca e transparente,
Sonora, alegre, lúcida, alvejada,
Quando o arari recorta-a de contente,
Sem lhe quebrar a lâmina inteiriça,
Que a luz, num beijo voluptuoso, eriça.

Branca! assim nasce branca a flor mimosa,
A flor do manacá no mesmo galho,
Em que se azula a irmã, não tão formosa.
Cai-lhes do ar o mesmo fresco orvalho,
Doura-lhes ambas a manhã cheirosa
No mesmo berço deu-lhes agasalho
A mesma terra, e ao mesmo sol nutridas;
E ambas ao mesmo sol e céu floridas.

Esta era branca. — A cor notável dela
Fazia-a recordar antiga era,
Em que uma raça vigorosa e bela
Mesclar-se à velha raça então viera.
Quando cai nas florestas a procela,
No tempo, em que as visita a primavera,
Enquanto pelo mato as outras florem,
As flores brancas vão caindo, e morrem.

Cravava à natal língua a língua estranha:
Muitas palavras novas, que não tinha,
Quando pela esplanada da montanha
O povo novo conquistar-nos vinha,
Apesar da distância ser tamanha
Nas nossas longas tradições se aninha,
Como nos seios de uma grande história,
Dias de luta, e sangue, e queda, e glória.

Seria esta mulher daquela raça!
Naquela fronte de um orgulho inato,
Busca a morte dormir com tanta graça,
Lago branco a tremer, como um regato,
Por onde um bando de marrecas passa,
Quando para dormir procura o mato,
E passa o bando, e fica o lago, e dorme,
Onde tomba, e ressona a sombra enorme.

Chegam assim do grande rio à margem,
Com tardo e lento, mas seguro passo,
Todo embebido na esplendente imagem,
Levantado o ideal de cada traço,
E buscando as belezas na passagem
Da Virgem morta, que levava ao braço,
E deixa, não sem dor, cair do peito,
Enquanto corre, e vai fazer-lhe um leito.

Para um momento. — Sobre a pedra lisa,
Descoroada da fronde por um raio,
— Talvez um raio — o sol prodigaliza
Sobre a morte, num lânguido desmaio
Quanta luz pode dar, doce, indecisa,
Sonolenta. — O que viu! Interrogai-o:
Um outro sol no seu cabelo louro,
Sombrio, como a entranha de um tesouro.

Suspirou. — Está morta, e é bela ainda,
Tira da cinta a arma aciculada
De pedra, e a estringe, e cai a palma linda
Uma sobre outra, à roda amontoada.
Estringe, estringe... A faina não é finda:
A cama dela deve ser formada
De quanta flor pelo silvado fervilha,
De quanta baga prende de baunilha...

(Logo que o velho deixa a mulher sobre a pedra, e antes de ir colher no mato as folhas para o leito dela)

Olha para o cadáver, e estremece:
Um ponto negro, um ponto só manchava
O fundo róseo-azul do céu: conhece
A ave negra e feroz, que esvoaçava
Já sobre a presa, e o olhar se lhe entristece,
Não por si, pelo corpo que ali estava:
Rugido de onças nos brenhais o espanta,
E o crocodilo, e a cobra, e o esquilo, e a anta.

Olhos alongam em torno: a fraga apanha
Da riba; achou-a preparada em maça
Rojada do espinhaço da montanha
Pela torrente, que bramindo passa.
Foice de pedra à terra desentranha,
Que ali deixou, um dia andando à caça,
Que lhe servira a derribar o espinho,
E a rasgar pelas selvas o caminho.

Riram-se as rugas pela face adusta,
Requeimada do sol do velho atleta,
E a maça enorme numa mão robusta,
E a foice noutra, a placidez inquieta
Ao seu bárbaro e calmo olhar se ajusta;
Olha pra o céu, e diz: falta-me a seta:
Mas ai! da fera, que rugindo passa,
Se estendo a mão, e a mão carrega a maça!...

As gigantescas árvores arfando
Dobravam lentamente a fronde imensa,
A sombra colossal desenrolando
Pelas charnecas da planície extensa:
Retalhavam o céu, mil voltas dando
Bandos de aves; a luz do sol não densa
Diluía-se mais e mais, e o vento
Soprava morno, perfumado, lento.

Como a cauda de um tigre golpeado,
Que cai, e se ergue sobre as quatro patas,
E cai de novo com violência e irado,
Mordendo os troncos, lacerando as matas
E o olhar, e a boca, e o corpo ensanguentado,
Lançando ao ar as garras insensatas,
Já com o sono da morte enfim na fronte,
O sol morria além pelo horizonte.

Pelos juncais do rio doidejantes
Milhões de moscas de uma luz verdenta
Vão pontilhando as roupas palpitantes,
Que ao sol, que aos poucos cai, a noite aumenta.
Rondam sombras de aspérrimos gigantes
Dentro da selva fria, e sonolenta:
Rompem a sombra, que a salteia, e infesta,
Crebros golpes no dorso da floresta.

(Deitada a morta por sobre a pedra, começam a vir pássaros, e outros animais, uns que a espreitam, outros que voam sobre ela)

Tiriri... Tiriri. Um longo bando
De tiriris pousando na mangueira,
Parecia chamar aos mais cantando:
Como uma larga nuvem passageira
Chusma de urubutingas desatando
Asas cinzentas, gralhas na carreira,
E a rubra cor do colo misturando
À cor preta dos pés e cauda curta,
Voam ao bosque, que da vista os furta.

Os pequenos saguins de cor de prata,
Negras guaribas, papa-ocas brancos
Surgem saltando dos sertões da mata,
Com a longa cauda sacudindo os flancos:
Samaratinga de cabeça chata,
Já coleando, já formando arrancos,
De anéis verdes a pele semeada,
Se enrola à pedra, em que ela está deitada.

Entre dois grossos troncos seculares,
Que as lianas apertam nos seus braços
Macios, como azuis ondas dos mares,
Mas fortes na brandura dos seus laços,
Com chamejantes olhos singulares
De um guaipussá, que baba dos espaços,
A longa cauda fixa em rósea prende,
E a língua rubra em farpa aguda estende.

(Descrição da Virgem, morta por sobre a pedra, começam a vir os pássaros, etc.).

Estremecera a entranha da floresta:
Que aroma doce, que sutil perfume
Saía dela para pôr em festa
Esse espantoso e lôbrego cardume...
Em breve nos sertões já nada resta:
Calmo o índio viu tudo; e erguia um lume
Da rocha em torno, só por que não deras,
Virgem linda, um real banquete às feras.

(O Velho preparando uma espécie de embalsamento).

Óleos, resinas, em que o solo abunda,
Suco de plantas de suave aroma,
Em seu saber e prática fecunda
O velho junta, e junta a tudo a goma
Balsâmica, com que o corpo inunda
Da Morta, e um certo tom de vida torna,
Como fazer aos mortos é costume
Na Ásia, a pátria da luz e do perfume.

Depois entre os seus dedos triturando
Pequeno verme de sabida planta,
Que em suas mãos reúne um licor brando,
Que a cor da aurora em maciez suplanta
A rósea flor da vida vai deixando
No rosto dela com verdade tanta,
Que parece dormir assim, que existe
Morbidamente alegre, alegre e triste.

A cama é feita: o leito está coberto,
Mole, suave, perfumoso, e belo:
Que mão assim fez outro no deserto!
Falta... E nisto, pintada de amarelo
Onça, que ele não vira ali por perto
Investe-o; e ele assim como um camartelo,
A maça vibra, e diz, prostrando-a imbele:
Faltava ao leito a cetinosa pele.

Inda estendida, os descerrados dentes
Estão batendo, em torno ameaçando;
As garras hirtas, róseas, reluzentes;
Cruzam-se as patas, como inda agarrando;
O olhos rubros, já sem luz mas quentes,
Olham, como quem sonha, ou está cismando;
Da fronte, um corpo mole, e sangue escorre:
Ergue-se, treme, cai... voltou-se, morre.

(O velho Pajé, depois de morta a onça, volta à pedra. Admiração da peregrina formosura).

Um ser à parte, suspirando disse:
Delgada e forte: uns tons de láctea opala
Em véus ligeiros de ouro; ar de ledice
Sobre boca de morta, que não fala;
Mel de jataí, que alguém talvez cobrisse
Com leite branca, gerando a casca estala
Da seringueira aos golpes do machado,
E deixa o chão de espumas prateado.

Rosto comprido, fino, gracioso,
Olhos grandes rasgados, como taça
Cada um de lagoa no repouso,
Turvada pela rede de fumaça,
Que embala o fogo perto e descuidoso...
Na fronte inteligente inda que graça:
Nos lábios paira um riso desenhado,
Como à margem do rio o ini puxado.

São dois arcos vibrados levemente
As sobrancelhas: duas asazinhas,
Que se não tocam: não freme; se sente
Agora, como dantes: as marinhas
Louras praias na curva resplendente,
Que se enfeita de rútilas conchinhas,
Não se dobram com mais gentil doçura
Tendo o encanto do arco e da planura.

Nas amplas praias de alvejante areia
Ele encontrara conchas encarnadas
Cheias de água, que aos raios bruxuleia
Das sorridentes, puras madrugadas,
Cada orelha gentil, sem nambibeia,
Nuas ambas, da luz do sol lavadas
Tinham a macieza dos arminhos,
O alvor do leite, e a pequenez dos ninhos.

Tudo que voa, tudo que cintila,
Que é gracioso, leve, transparente,
Condor branco por curva, que se anila,
Lírio, que bebe, e treme na corrente,
A juriti, que múrmura se exila,
Onde a mata anda em flor cheirosa e quente,
A flor vermelha, a branca flor do cacto,
A luz, que dança em cima do regato:

Nuvem, que aurora beija, e ao beijo a esgarça,
A garridice alegre da canoa,
Que, como pelo céu azul a garça,
Na água azul a ondular ligeira voa:
Marreca em rio, tendo ao lado a sarça,
Que, enquanto a brisa trépida ressoa,
Com o bico rubro o verde manto corta...
Tudo havia nos pés da virgem morta...

Mas... o que o pajé velho admirava
Sobretudo na morta formosura,
Era a penugem de ouro, que brilhava,
Como os raios de um rastro, que fulgura
Em todo o corpo: o seio se coroava
De uma mecha finíssima e tão pura,
E tão longa, que a sombra que desata
Era um beijo do sol manchando a nata.

Em torno ao umbigo, cicatriz mimosa,
Que apenas enrugava a pele, e tinha
A depressão da concha cor de rosa,
O cabelo crescia, e logo vinha
Mais largo e farto em frange cetinosa
Perder-se numa nuvem, que continha
A luz, que irradiava ali defronte,
Enquanto o sol se perde atrás de um monte.

Oh! que mulher!... Nas vastas correrias
Do sol ao norte, em todo o continente
Americano, em seus imensos dias
Vividos grande, farta, e longamente,
Não vira igual: nas tribos erradias
Pelos pampas do sul, na branca gente
Dos impérios do centro, formosura
Igual não viu: na mente em vão procura.

O coração do velho apaixonado
Pela forma acordava impetuoso:
Assim o sulco de água escorregado
Por vale escuso, em lânguido repouso,
Onde se espelha o céu iluminado,
Se a chuva cai, e o vento sopra iroso,
Levanta o dorso, brama, engrossa, ulula,
E, como o tigre golpeado, pula...

(Terminado o ato da colocação da Virgem morta no leito de folhas, o sabiá canta. — Descrição).

Nesse momento a calma era completa,
Impenetrável, dura: — parecia,
Como um rochedo, que nas mãos do atleta
Ao contínuo malhar não cederia.
Mas eis que, como sonorosa seta,
Como raio de estrela, que se enfia,
Ferindo aquela imensa calma, — raia
Um canto... Oh! canta o sabiá da praia.

Parecia voar todo em retalhos
O manto do silêncio incendiado,
Como um milhão de rútilos orvalhos,
Pingos de luz de um mundo desmanchado
Em outros mundos, soltam-se dos galhos
Do ipê gigante, ereto, dourado
Já pelo extremo adeus do sol, que dorme
Do leito em sangue sobre a pele enorme:

A natureza... a bela natureza
Americana, esplêndida, enterrada
À meia sombra, à sombra da devesa
Naquela hora, hora tétrica e magoada,
Que convida à plácida tristeza,
Nem parecia arfar de subjugada:
Meio acordada no seu grande leito,
Entre angústia e prazer, calma e respeito,

Sentia o jugo do suave canto
Premer-lhe a entranha: soluçava a espaços
Nos ombros verdes solto o negro manto,
Desafrouxados pela sombra os braços...
A floresta tremia, arfava ao encanto
Daquela voz; e os enervados, lassos
Troncos, e as fragas duras se penduram,
Para aprendê-lo, e baixo inda o murmuram.

Cortava largamente desfiando,
Como um bando de mundos luminosos,
As notas cristalinas, entornando,
Como aromas de vasos preciosos,
Como raios de olhar macio e branco,
Como soluços de paixão ruidosos,
Como gritos de paz e de alegria
O sonoro país, que o azul fendia.

Agora vai caindo lentamente,
Como um fogo, que vai morrendo aos poucos;
Levanta-se de novo um grito ingente:
Desgrenhados, vibrantes, fortes, loucos,
Ferindo, como maça em mão potente,
Sucedem-se; são ventos; mais, são roucos
Duros tufões no dorso da tormenta...
Chove, relampagueia, estronda, venta...

Caiu: é brisa: mais e mais; já chora,
É plangente harmonia: a nota abarca
O universo da dor humana: agora
Para: esta parada é doce: marca
Um estádio, um ponto, um sonho; uma hora,
Hora para sonhar, desliza: a barca
Da existência aos relâmpagos dormita.
A nota volta, límpida, infinita,

Alegre: pica o espaço de volatas:
Há rendilhado: os berços dos amantes
Balançam-se nas redes pelas matas:
Cantam, rangendo os braços odorantes
Das acácias gentis; rugem cascatas
Pequeninas, festivas, saltitantes,
Levantando os lençóis de nenúfares:
Ninhos inteiros chilram pelos ares...

Ninhos inteiros: ouvem-se os cantores
De toda selva orquestrizando: é uma
A voz; e essa contém todas as cores,
Todos os tons das outras: brinca, espuma,
Salteia, vibra, afina-se, a supores
Que toda a selva americana em suma
Meteu naquele pequeno bico
A alma do sol, que a anima, e é tão rico.

Mas a expressão do seu último grito,
A nota apaixonada, a mais vibrante,
Esse arranco, que sai de um peito aflito,
Que sabe aquele só, que tem o amante
Que ama em segredo, a quem jamais tem dito
Que ama, e não pode um dia, uma hora, um instante
Dizer-lhe, amo-te, embora aos pés lhe caia
Morto, se ao ouvi-lo a amante um riso ensaia...

Essa nota tristíssima, apurada
Foi seu último adeus. — Quem há notá-la!
Como uma estrela pelo azul vibrada,
Fremente, que parece até que fala,
Foi lágrima da luz do sol banhada,
Foi riso, que também lágrima exala,
Teve o perfume e a dor duma saudade,
Deixou a arfar, ao ouvi-lo, a imensidade...

Não noite inda, e não dia, a luz tremente
Da tarde, que fenece, uma sangueira
De luz babava os montes do ocidente:
Delgada, em curva esplêndida e ligeira,
Como um arco de branco rosto ausente
Sob um manto de névoa passageira,
Qual rede de algodão, em que flutua
O pequeno tupi, — nascia a lua.

Estátua de uma pedra luzidia,
Que o tempo com seus passos esmagasse,
E onde a vegetação cresce sombria,
Uma tristeza enorme pela face
Do velho chefe lúgubre escorria.
Se houvesse alguém na mata, que acordasse
A quem tão fundo dorme!... Arfa-lhe o peito,
Fora de um noivo o perfumado leito.

Suspira, e diz: Melhor é ser da morte!...
E olha o seu rosto ali no espelho d’água,
Que perto está... o braço, o braço é forte
Mas o rosto... e um gemido houve de mágoa,
De dor, acaso de ciúme: o porte,
Já de alquebrado pela estranha frágua,
Dobrou, como a palmeira cai partida
Pelo raio: porém chama-o à vida.

Rumor imenso: a selva retalhada
De luz, que oscila; o músico instrumento
Por centenas de mãos acompanhado,
Acorda a solidão; pensa um momento...
As tribos, — diz: um rio despenhado,
Que engrossa a chuva, e que sacode o vento,
Procuram-na: acharão. — Achar que importa!
Quem pode agora despertar a morta!

Tufão, ou raio, ou queda de corrente
Dos Andes pela encosta pedregosa,
Descalvada, a silvar, como serpente,
Que bate a cauda em chama fagulhosa,
Lúgubre, imensa, horrenda, de repente
Assoma a face túmida e chorosa
De um índio jovem, cuja alta coragem
Era lenda na América selvagem.

(Raiva do índio guerreiro ― cena da flecha, visões, terror)

Era tremendo o aspecto do guerreiro,
Fantástico, grandioso, enorme!... O abismo
E a sombra, a queda e o despenhadeiro,
O raio e o estrondo, o mar num paroxismo
De angústia e de blasfêmia, — o verdadeiro
Tom desse aspecto cheio de heroísmo
E bravura emprestavam-lhe; e os horrores
Da treva soluçando em suas dores,

Faziam dele um Ser à parte, estranho,
Vertiginoso, colossal: saltavam
Serpes dos olhos de fulgor tamanho,
Que as várias tribos pasmas enroscavam,
E as faziam tremer, como um rebanho
Imbele e vil, que as onças atacavam;
Parecia um pampeiro equilibrado,
Que iria desabar: um grande brado,

Um rugido do mar pairava em torno
De um vagalhão; a cauda da tormenta
Ele agarrava às suas mãos, e morno
E lôbrego ostentava essa opulenta
Messe de raios, que é diadema e adorno
Da procela, que ruge e não rebenta
Por cima do espinhaço da montanha:
Encarnava-se nele a horrenda sanha.

Dos Maracás das tabas do universo,
Por que não vinham elas levantadas
Contra si, por um deus ímpio e adverso
Conduzidas! — Por que desencadeadas
Montanhas, como flechas, o perverso,
O invisível Tupã, as mãos armadas,
Gotejando de estrelas, esmagá-lo
Precípite não vinha! — O céu é um valo,

Que não transpõe ninguém: mora o cobarde,
Onde não vão as asas dos condores,
Onde não chega o sol, e tíbio arde
Frouxamente seu lume; onde os rumores
Não vozeiam do oceano; e a medo, a tarde
Cuspindo o azul de vermes multicores,
Atrás de uma estacada de alabastros,
Mostra um só dedo, em que fervilham astros.

A indômita bravura espadanava,
Como um rio que encontra um monte em frente,
Recuando bramia e se alteava
Espumosa roncando, e aos brancos dentes
O ar em vão mordia e retalhava.
Tinha as roscas convulsas da serpente,
Tinha os rugidos temerosos da anta,
Quando a flecha, que a fere, a não suplanta.

O canitar de penas encarnadas
Não levava à cabeça: o enduape lindo
Não lhe cingia os rins, as emplumadas
Flechas não iam do carcás fugindo
Por cima dos seus ombros: levantadas
As duas mãos, bem como quem brandindo
Um colosso, — mostrava no semblante
A atitude esmagada de um gigante.

Perdera todas numa só batalha!...
Assim arranca o vento ao ipê as flores,
Mas ninguém vê a boca, que farfalha,
E acumula no sopro os seus horrores;
A taba rui, o incêndio ateia a palha;
Riscam o céu os pálidos fulgores
De sinistras visões; — transborda o rio...
Quem foi! E o olhar golpeava o céu — sombrio.

No chão deitou-se: e a tribo o viu pasmada!
Tirando às mãos o arco do vizinho
E a flecha fina, dura, enorme, ervada,
Como quem vai buscar no próprio ninho
Das nuvens a águia branca equilibrada,
Vibrou-a: ouviu-se um ronco, um murmurinho;
Voava a flecha: e como quem observa,
No arco os pés, na corda as mãos conserva.

Tomá-la-ia Anhangá? — Furando os ares,
Perdeu-se na amplidão profunda, imensa!...
E ele arrojando os túrbidos olhares,
Como um atleta em ato de defensa,
Buscava ver da copa dos palmares,
Ou mais além da vastidão extensa,
Mutilado de um pé, cego de um olho,
Cair Tupã do céu nalgum escolho.

E azulava-se o céu placidamente:
E os flocos rubros de algodão errantes,
Como rubras araras na corrente
Sobre a brasa das asas coruscantes,
Pareciam grasnar no sangue quente
De um deus golpeado às suas mãos possantes...
E iam passando lentas no horizonte...
E o deus ferido não mostrava a fronte!...

Mas entre as várias formas, que tomando
As nuvens vão no ocaso radiante,
Com dois olhos ardendo e flamejando
Avulta um veado branco, doidejante,
Já sobre os pés deitado, já voando;
Do pelo a alvura é fina e deslumbrante:
E como o sangue sai das veias rotas...
Dos olhos sai-lhe sangue vivo em gotas...

— Anhangá!... — Clama o índio em pé de um salto,
Deixando o arco pelo chão deitado,
Como se um monte de repente falto
Aos pés, o corpo vira arremessado
Do viso enorme, ou de lugar mais alto,
E inopinadamente despenhado,
Fosse a fronte bater nalgum penedo!...
Por vez primeira o índio enfim tem medo...

Mas Guaraci vê sombra, e não um vulto;
Não o corpo de um deus, que o fere: ah! visse,
Visse ele o deus... o deus pedira indulto
Ao seu braço; esse deus fora meiguice,
Cobardia, terror, piedade, culto
À sua força insólita: dormisse,
Como dorme o oceano, o ódio em sua alma,
E ele veria, de quem fora a palma.

A palma do triunfo no terreiro,
A palma do combate frente a frente,
Corpo a corpo: o tacape do guerreiro,
E o tacape do deus onipotente...
Havia o deus de mim recuar primeiro,
Cair vencido, em sangue, de repente.
Quem foi que ousou arrebatar-me a esposa!
Ousou Tupã! Que deus ousou! Quem ousa!

A força! a força! Que lhe presta a força
Afinal. Contra aquela cobardia!
Estar ali, como ferida corça,
Ou como palha seca e fugidia,
Que sobe e cai: por mais que ela se torça
Com vaivéns a subir, não subiria...
Ela está morta: quem ma ressuscita?
Dou-lhe a terra, que minha raça habita.

E olhava tudo em torno silencioso...
Como a pantera, que da furna espia
A caça amada, prelibando o gozo,
Que igual caça lhe deu, e esta daria;
Era terrível mesmo no repouso,
Sim! mais terrível, quando emudecia:
Era uma catadupa prisioneira,
Que irrompendo, alagava a terra inteira.

Não compreendia tanta iniquidade
Dos deuses ante tanta formosura.
Seria tudo então fatalidade!
De que servia o ânimo e a bravura!
Pois se qualquer estulta divindade,
Oculta como um verme na espessura,
Podia tudo e mais, inconsciente,
Podia tudo indiferentemente!

E andava inquieto de um para outro lado
Dando gritos de alarma e de comando,
E brandia o tacape enorme, irado,
E parava de chofre o miserando,
Como se visse um mundo subterrado
Sem mais ninguém para vencer, ficando
Só no campo deserto, triunfante
No terreiro, sem mais ninguém adiante.

Tudo acabara então! Já não havia
Amigos e inimigos sobre a terra!
Onde parar toda esta terra iria!
Não há mais tabas, e não há mais guerra!
Mesmo a atmosfera azuleja está tão fria!
Que astro sem luz por estas curvas erra!
Ou morri eu! Pra o morto é tudo extinto:
Não vejo nada mais; mais nada sinto.

Soa o boré. O músico instrumento
Que o tocou! quem viu! Naquele instante
Fora como o aflar súbito de um vento.
Ninguém soube quem foi: o eco vibrante
Estrelou como um sol no firmamento,
Deu vida a um mundo opaco e vacilante:
E o próprio chefe, como que descia
Das trevas em que andava à luz do dia,

Pensou. — A consciência combalida
Por uma aluvião de ideias, era
Agora despertada pela vida
Antiga... Nele dominara a fera,
A fera, que há nos homens escondida:
Rugiu. — Quem novo alento à alma lhe dera,
A poder resistir a esse excessivo
Mal... o maior que pode enlear um vivo...

Iludia-se o índio. A mocidade,
O ardor bélico antigo, o uso do braço,
A rigidez dos músculos, vontade,
Brio, costume de vencer o espaço,
Prazer do triunfo, enfim celeridade,
Em ir, em vir sem freias e embaraço,
O orgulho de não ser jamais vencido,
Da vida o gozo nunca interrompido

Dera-lhe à dor impulso extraordinário:
Pensava agora em libertar-se dela,
Como de um vil e estranho adversário...
Voltando os olhos, vendo-a inda tão bela,
Tão bela e morta, o índio visionário;
Fria... tão fria, a vista aflita nela
Procurava por toda a parte aonde
O deus que a fere e que o feria se esconde.

(A tribo chorando a morta).

Nenhuma melancólica linguagem
Juntara ao rouco som o som mais brando,
Como o da tribo lúgubre selvagem
Sua princesa morta ali chorando:
O gesto era expressivo, e forte a imagem
Dês que os ecos das selvas acordando
Com choro, como a chuva nos palmares,
Fazia o choro recordar dos mares.

Vento, que ulula em brenha temeroso,
O que por cima dos silvais farfalha
Ora brando e mais brando, ora em repouso,
E o vento, que entra em rígida batalha
Contra o tronco titânico e alteroso,
E os cem braços mordendo atroa, e o esgalha,
Deixando os rotos, seculares braços
Caídos para sempre dos espaços;

Não tinha o canto mais feroz e doce,
Nem mais cheio de angústia e de ternura,
Como se acaso temperado fosse
Com o mel, que a jataí tem na espessura
Ou com o ronco feroz, que o jaguar trouxe,
Quando, ao latir dos cães, que em vão procura
Salta, ardendo vulcões dos cavos olhos,
Por troncos, seixos, matagais, escolhos.

De vale em vale se despenha o grito,
Como torrente temerosa e vasta,
Que irrompendo das fauces do infinito
Agora sobe, agora cai, se arrasta
Logo na relva, logo no granito,
E tudo quanto encontra adiante afasta,
E na floresta enorme, que adormece,
Do seu curso meter o horror, parece.

Dir-se-ia em pranto andar nessas endechas
As almas todas dos heróis amantes,
Ensopando-as de lágrimas e queixas,
Desconsoladas, lôbregas, errantes.
Tufão que o ar ferindo com as madeixas
Nelas prendeu fantasmas de gigantes,
O som da maça enorme despertando
Sobre um crânio, que cai despedaçado...

E até o riso da mulher formosa
Olhando o corpo nu no espelho d’água,
E o chilrar de criança buliçosa,
E o soluço tristíssimo da mágoa,
Faz a torrente grossa e majestosa,
Que unida corre, e funde-se, e deságua
Num só grito feroz de desespero,
Que parece inundar o mundo inteiro.

O moço estava lânguido e tranquilo,
O olhar fundido no cadáver mudo;
Só ele não cantava, e via aquilo,
Como se nada visse, ou visse tudo;
Imóvel, como à praia o crocodilo
Dentro do seu enorme casco rudo,
Confiando das garras navalhadas
Horas, à doce luz do sol logradas.

Não chorava: rugia baixo e baixo,
Como o jaguar caído na forquilha,
Em cada olhar um fumarento facho,
Que entre névoas ou dorme, ou treme, ou brilha:
Ia fervendo pelo rosto abaixo
O suor copioso, que fervilha
No seu semblante esplêndido e bizarro,
Como o fogo, que luz, cozendo o barro.

Era de alta estatura: a fronte larga,
Olhos do lado externo alevantados,
A boca grande, forte, austera, amarga,
Pernas compridas, braços alongados,
Ombros afeitos à pesada carga,
Peitos aos duros golpes preparados,
E uma nobreza em toda essa figura,
Que a própria dor enchia de doçura.

As velhas, dando em torno da fogueira
Feita de secos toros de arvoredo,
Voltas e voltas, vão de maneira
Cozendo o barro, e derramando o medo
Com tão sinistra e rouca choradeira
Uma com outras, como num segredo,
Embrulhadas na luz amarelenta,
Que era como um cair de chuva lenta.

Os velhos magros, ríspidos, sisudos,
De pouca barba, e muitas cicatrizes,
Preparavam as várias tintas, mudos,
Para fazer as cores, e os matizes,
E esculturar os seus emblemas rudes,
Tirando sumo às folhas e raízes,
E deixarem no túmulo de vaso
O lema, que pedia o triste caso.

(Enquanto os velhos preparam o vaso, o que há pelo terreiro).

 Sacos de peles de animais bravios,
Cestos de vime forte entrelaçados
Com plantas, que colheram junto aos rios,
Cujos prodígios são experimentados,
Cordas de embira, e ossos luzidios
Por artífices práticos moldados,
Guardam lá dentro, e sobretudo o milho
Que tem do sol em cada grão um brilho.

Outras estão de penas carregadas,
Várias na forma, e várias na grandeza;
As do guará infante avermelhadas,
Que quando velhas mudam de beleza
Antes a bela cor das alvoradas,
Depois as negras notas da tristeza;
Antes luz, cintilar, sol, fogo, aurora,
Noite de escuridão profunda agora.

Como de tigres de malhadas cores,
Com dentes nas caveiras conservados,
Que dos ombros os índios superiores
Gostam de ter até aos pés lançados,
Como foram terríveis vencedores
Dos animais ferozes atacados
À seta, à maça, à pedra, à corda, ao laço,
E às vezes peito a peito, e braço a braço.

Redes de corda da taquara enorme,
Que enterra céus a dentro a flecha esguia,
Onde o guerreiro afadigado dorme,
Buscando o alento, que lhe pede o dia
Quando o seu braço o marcará informe,
Que nunca trai a sua valentia,
Para o brandir girar sobre si mesmo,
E o inimigo fazer cair a esmo.

(Os pássaros dançando: sobre a Morta).

Vieram logo os pássaros em festa:
Eram cinco formosos dançadores,
Que andam em grupo, e o seio da floresta
Enchem de movimento e resplendores:
Um no meio dos quatro sempre resta
Cantando, e sobe, e desce, e em seus ardores
Os outros vão em círculo passando,
Do que canta o compasso acompanhando.

Depois, o que no centro estava, veio
Mudar-se aos noutros; logo um deles deixa
O lugar que ocupava, e vai no meio
Guiar a dança; e um novo canto e queixa
Dirige: é nota nova, é novo enleio:
Nenhum, no instante próprio, ouvindo a endecha
Olvida o voo: um com outro o alterna;
E é cada vez a música mais terna.

E vão assim dançando, e vão cantando
Por cima dessa morta formosura,
Ora o voo subindo, ora baixando
Num balanço, onde geme uma amargura,
Até que reunidos todos, quando
Vão deixá-la, e partir para a espessura,
Parece que, no seu último adejo,
Pousa um a um da Morta à fronte um beijo.

(O Pajé: Epílogo)

Chama o Pajé: acode o Sacerdote,
Trazendo o maracá sustido ao braço:
Tem majestade no seguro porte;
E é tardo, e firme, e compassado o passo
Como quem pena vai dizer de morte,
Vai cabisbaixo, o olhar vicioso e lasso,
Plumas nos pés, nas mãos, e nos joelhos,
A cara negra, os sobrolhos vermelhos.

Colar curto de conchas encarnadas,
Colar mais longo de fiados dentes,
E por espáduas largas desdobradas
Pele de tigre negro, as mãos pendentes,
Mostrando ainda as unhas encurvadas,
Finas, agudas, brancas, resplendentes,
E um canitar, que lhe sombreia a cara
Rubro, bem como o sol e como a arara.

Para o Pajé: a cova incendiada
Se afunda em cada um olho do guerreiro,
E como lenha em chamas ateada
Crepita, e lança um sanguinoso cheiro,
A luz como fumo em jatos lançada,
Tem rugidos de tigre carniceiro
Vendo o Pajé ao pé, convulso brada:
Velho Pajé, não descobriste nada...

Quem sabe! Agora um desmaiado alento
Agora a doce e tímida esperança,
Sopra de ti, como um celeste vento,
Que mal move o teu dedo de criança:
Agora morre, agora lento e lento,
negra noite horrenda à mente avança,
E da descrença o formidável espectro
A alma me assalta, e me espedaça o plectro.

Adeus meus sonhos, para sempre. Agora
O sol, que iluminava a fantasia,
O rosto de ouro lânguido descora,
E trança ao colo o manto negro o dia,
O dia, que inda nos teus olhos mora
Porém que para mim já não radia:
Minha alma enchia as vagas da corrente
Bebidas no teu lábio rubro e argente.

Pobres selvagens, que eu cantava à lira
Num grande canto feito de carinho,
Ai! fugiu de mim já, já não me inspira
Essa, que me ensinou por que caminho
O gênio marcha, e firme os passos gira
Por onde águias e sóis fazem seu ninho.
Sim! para sempre, e só para meu dano
Interrompo o poema americano...

 

SIMPLES INTERROGAÇÃO

I
Viver só pelo bem, sem outra recompensa;
Dar, sem que Deus o veja:
Na grande natureza, onde ele vive, e pensa,
Ter só a sua igreja;

Das urzes más varrer o caminho em que passa;
Sofrer com paciência;
Não ver seu criador, por mais que o busque, e faça,
Senão na consciência;

Saber que um sol é como um tênue grão de areia;
Que é gota e gota o oceano;
Que amanhã cai por terra o que hoje inda se alteia;
Que dia e dia é o ano;

Que ano e ano a volver é toda eternidade;
Que tudo se renova;
E que é fluxo e refluxo a vida, e a imensidade;
Que o berço está na cova;

Que está no pólen Deus, que Deus em tudo mora,
Que em tudo há um Deus latente;
E que tudo é verdade agora mesmo, e agora
Mesmo já tudo mente;

Não saber por que vai, não saber por que veio,
Não ter quem lhe responda;
Trazer a angústia em si, como um vulcão no seio;
Onda ser após onda;

A sonhar Prometeus nos céus a luz roubando,
Caindo lacerados,
Titãs, sob a escalada aos astros, despenhados
Nos montes, ululando;

Querendo arrebentar o muro de granito,
Em que estão limitados,
Ferindo as mãos, e embalde aos sóis cuspindo o grito,
E o urrar dos condenados;

Não saber bem o que é justiça, e pena, e crime;
Ver que tudo varia;
Ver que ontem foi vergonha o que é hoje sublime;
Que é sombra da alegria

O pranto, a angústia, a dor, como a que segue um vulto
À luz do sol, que vibra;
Que só faz grande e sábio, ou faz pequeno e estulto
O tom da nossa fibra;

Que anda dentro de nós a fera na atitude
Com que dá caça à lebre;
E que todo interesse anda em toda virtude;
Que todo heroísmo é febre;

Sempre em contradição, e mal equilibrado,
Faminto e sequioso;
Querendo, sem saber bem o que quer: deitado,
Porém nunca em repouso;

Viver nesta miséria, e neste labirinto;
Ser como folha ao vento;
Sentir a insídia em tudo, assim como eu a sinto;
Ver que foge o momento;

Ver que tudo é roaz, que tudo é velho e novo;
Que um turbilhão sem ruído
Passa, lançando o ser num crisol desmedido,
Como em um ninho um ovo;

Encontrar a miséria embaixo, em cima, em tudo,
E, como áspero grito,
Que irrompesse da boca hirta e vesga de um mudo,
Dentro disso o infinito;

Ser a carne que manda e a imagem cria e o ato;
Ser a paixão que impera;
Não se poder fugir ao enorme pugilato!...
Como um astro na esfera,

Rodar no mesmo espaço, e na mesma cadeia
Andar preso e levado;
Pensar que livre sou, pensar que é minha a ideia,
E dela escravizado

Viver, como o perfume à corola da rosa,
Como a luz ao sol presa;
Ver que segue também a via dolorosa
Escrava a natureza...

Ser, e ser não poder qualquer coisa em contrário;
Sofrer a ação do meio,
Ser águia para o céu, para o areal dromedário,
Ser o que em mim odeio;

Ser o que não quisera, e ser por força, e adrede;
Ser isto o que me leva:
Esconder o que faço, e é preciso, na treva...
Ó criador, quem pede...

Quem te pediu um dia o aspérrimo destino,
Que nos alcança a todos?
Tu fizeste com isto um grande desatino,
Mais doido que os teus doidos;

Quem quer, e pode dar, dá logo e não promete;
Não é a força bruta;
Sabe o que fez, e sabe a obra em que se mete,
Não ensaia, executa...

Sou um tênue rumor num tão grande barulho,
Vivo nesta ansiedade
Nada disto entendi... Isto será orgulho?
Oh! pobre humanidade!...

II
Não bastava morrer? — Morrerei... — Por que durmo?
Ah! por que tudo dorme?
Viver, dormir, morrer neste marnel de vurmo,
Neste marnel enorme!...

Por que ser o viveiro, o vasto estercorário,
Onde o verme batalha,
Onde ele nasce, vive, ama, odeia, trabalha:
Onde tem berço e ossário?

Ser isto tudo sem saber por que sou isto!...
Há dentro em mim rolando
Um grande mundo, onde há Gólgota, e cruz, e Cristo
E Prometeus vascando?

Viver nisto envolvido, e inda assim ser um verme
A roer, noutro agarrado,
Vomitado na mó, pobre, insciente, arrastado,
Tonto, impotente, inerme!


III
Onipossibilidade é um sonho mais triste,
Que um mau sonho à alvorada;
Não se pode fazer coisa alguma do nada?
E este universo existe!!...

Aquele que o lançou, como um mar sobre a areia,
Como o rio no vale,
Tem o mistério em si, que os mundos encadeia;
Vale o que tudo vale;

Mas valha o que valer; lançou-o, como um forte
À multidão vencida,
E deu-lhe, castigando-a, uma perpétua morte
Numa perpétua vida;

Como crer não se pode o que é de si incrível,
Maneje estranho malho,
Qualquer que seja o esforço, o estímulo, o trabalho,
Nem Deus pode o impossível:

E um Deus não pode estar dentro da natureza,
Fora está do universo,
Pois dentro dele não teria com certeza
Um destino diverso;

Mas tudo é Deus, e em si traz Deus: — um Deus anima
Cada ser; dele cheio
Todo o universo está: é ele, embaixo, em cima,
Em tudo ele anda, e veio;

Deus é o próprio universo... Um Deus... um Deus é à parte,
Como a alma humana fora
Sem o corpo, incapaz de ação, sem tomar parte
Numa vida criadora;

Há um Deus fora disto? Eu sei? Mas o tremendo
Deus, que o ódio enraivece,
Talhado em molde humano e mau, não compreendo,
E a razão desconhece;

E o que diz o mais sábio? Esse é inda o mais louco!
Misérrima criatura!
Quando se fala em Deus, como se sabe pouco!...
Oh! loucura! oh! loucura!

IV
No princípio ou no fim, ó grandes sonhadores,
Quem fixou a ventura?
A vida não será sempre cheia de horrores?
Quem outro fim procura?

O homem, pois, não nasceu acabado e perfeito
Num florido recinto;
A vasa foi talvez o seu primeiro leito;
Sua razão o instinto.

Sou eu mesmo o que sou? Assim perguntaria
O ovo, o grão, a larva,
A semente, em que muge a floresta sombria,
E o chão labora e escarva;

Serei eu quem eu sou? Apenas reduzido
De duzentos mil anos,
Resíduo sou do que tem o homem vivido
Entre insídias e danos;

Mordem-no, morde: vêm, para iludi-lo, ilude:
Defende armado a gruta;
Audácia é toda vida; é toda vida luta:
A perfídia é virtude;

Só à cólera e à insídia a vida ele confia;
É fera contra fera:
Dá um passo na mata, e para, e escuta, e espia...
A emboscada ele espera;

Ser traidor e leão, mas só mostrar-se corça:
O coração ser fero,
Ser quase humilde o olhar... Faz seus heróis Homero
Só de falsia e força;

Como todos, em mim guardo o que há de concreto
No homem, e os dons supremos
Do que somos, do que no futuro seremos:
César, Ofélia, Hamleto,

Os tiranos de Roma, os mártires do Oriente,
O bom e o desvairado,
Os monstros, os revéis estão sempre em toda gente,
Estão sempre ao nosso lado;

Coalescência agora, e não à voz de um nome,
Agora agregamento,
Subiu o homem juntando o ato ao pensamento,
Indo de cume em cume;

Dentro em nós o bom fica, e o mau não tem êxodo?
Vela pela existência
Todo o corpo, — um só olho, — a investigá-la, todo
Uma só consciência;

Subir para o melhor; a cada milenário
Marcar um curto passo;
Ocupar um lugar no tempo, e ser no espaço
Seu próprio estatuário,

Tem para isso em si a força aglomerada,
Como a tem a semente:
Ou águia, ou planta, ou flor, ou árvore arrastada,
Vai na mesma corrente;

E melhorar, por quê? Vai nisto invenção séria?
Não muda o eterno plano,
E ser sol ou argueiro, e ser gota ou oceano,
É a mesma miséria;

No fim o que ficou? Disto tudo o que resta?
Menos dor? Mais conforto?
Não: a hiena da cova, em sua eterna festa,
Lambendo a carne ao morto;

Pesa, como o universo, a terrível verdade:
O sonho é que procura
Qualquer coisa de bom, um pouco de ventura
À pobre humanidade.

V
Saber, pois, isto só, que tem por si o estreito
Círculo, em que respira,
Até não bater mais o coração no peito,
E acabar a mentira...

Desesperar de ter qualquer outra esperança,
Contar com o próprio esforço,
E a vida, cujo fim o homem nem mesmo alcança,
Levar fremindo ao dorso;

Confessar-se pequeno, ínscio, vão, limitado,
Ver que vai na corrente,
Ou som, ou pó, ou folha, ou verme, ou sol, tirado
Sem poder fazer frente;

Todo esforço sem fim, todo desejo nulo,
Sem poder ter vontade,
Sendo hoje a borboleta, amanhã o casulo,
Por toda eternidade;

Não crer num Deus, que a um Deus é inda um desacato,
Num Deus, que se revela,
Que encontra na ignorância a melhor clientela,
Que é um sonho insensato!

Sem o orgulho, que esconde o burel que se humilha,
Nu, faminto, descalço:
Não ter isso que o alfaia, e o nome que o perfilha...
Não ser nem mau, nem falso...

Estes precitos são; são os desesperados,
Que o vosso Deus condena:
Ficam fora do céu ululando, atirados
À eterna Geena:

Não têm Édens, que um Deus só para vós enflora,
Só para vós, felizes!
Vivem só nesta luz, morrem só nesta aurora...
Bom, por que os maldizes?...

Tu, que tens o temor de Deus por companheiro,
Tu, que em Deus tudo esperas,
Não deixarás em paz essas terríveis feras,
Grandes, como um argueiro?

Bons, se é vosso prazer, em vosso augusto voo,
Não me deixar inerme,
Podeis lançar no lodo o humilde, o pobre verme:
Águias, eu vos perdoo...

VI
Dizem que o espaço para, e a lúcida corrente,
Que há pouco o iluminara,
Encontra uma muralha intérmina de frente...
Dizem que o espaço para!...

Que o infinito detrás desse infinito muro
O espaço em torno aperta!...
Quem és tu, pois, abismo insondável, escuro,
Ó solidão deserta?

Algum deus viu-te um dia, e guardou de memória
O teu viver estranho?
Há, pois, quem te conheça, há quem te saiba a história,
E meça o teu tamanho?!...

VII
Este círculo negro, em seu ferrenho braço,
Tudo o que vive, cerra;
O universo, que brilha, e enche de sóis o espaço,
E entre os sóis mete a terra...

Medonha solidão, limite ilimitado,
Do que se vê e sonha,
Que tens tu de eviterno e augusto do outro lado,
Ó solidão medonha?

Mas que limitas tu do lado oposto? O nada?!
E eu nesse nada cismo!!...
Por que nos pões de um medo estranho a alma aterrada
Abismo... abismo... abismo?!!...

VIII
Mas seja como for, o homem não desespera!...
Para chegar, labora;
Lá vai ele. Onde vai? Em pé sobre a Galera,
Leva-a por aí fora;

Tem diante de si a estrela da esperança:
Sucede um vivo a um morto;
Ininterrupta a fila, eis vai, e não descansa
Vai em busca de um porto;

A liberdade é a ideia, o polo, a agulha, o rumo...
Será ele um fantasma?
A própria natureza, ante esse tênue fumo,
Maravilhada pasma;

Ser maior que a fortuna, e buscar superá-la,
Fixos num ponto os olhos:
Ir após a quimera eterna, que não fala,
Resvalando os escolhos;

Ouvir deles um grito, assim como um gemido
Do mar, como um marulho
De vagalhão sinistro a lhe cuspir no ouvido:
— Leva-te um vão orgulho... —

É a esfinge plantada em frente ao caminheiro,
Ao estender-se o deserto,
Sem oásis, ou água, ou palma, ou longe, ou perto...
E o arneiro só... o arneiro!

Há por fim um país — talvez! — mais novo e rico,
Onde a semente boa
Caiu da asa do vento, ou foi solta do bico
Do pássaro, que voa...

O desejo de ser quase um deus o atormenta:
Não poder coisa alguma?
Quer resolver o x e quer tirar da espuma...
O quê?... um mundo? Inventa...

A alma em trabalho está. Quem pode interrompê-la?
Há tanta coisa estranha!
Já se vê caminhar por si uma montanha:
Não se irá a uma estrela?

Nada pois o acobarda? Um mar em trevas fura:
Não dar nada por findo...
Vai: a inação é pior que toda essa aventura:
Quer ir... ir indo... ir indo...

***

Uma interrogação no fim de tudo resta:
Mas a quem se interroga?
Enquanto há luz, e há sol sobre o horizonte, há festa...
Voga, meu barco, voga...

Voga! já que anda tudo em perene conflito...
E há num e noutro hemisfério
No impassível espaço, intérmino, infinito,
O impassível mistério!...

 

O CORRUPIÃO

To and for ever
Oh como grato ocorre
............
Il remembrar delle passate cose,
Ancor che triste, e che l'affano duri!

Giacomo Leopardi — Canti. Alla Luna.

I
How only love is earth's enduring pleasure.

Thomas Buchanan Read — Lines to a Bird

Pois era o corrupião um grande amigo,
Há bem tempo de casa;
Parecia uma brasa
Pousado, em frente, no loureiro antigo.

Não sabia pisar pelo soalho,
Nas asas, se adivinha
Que ia suspenso, e vinha
Livre, como um sultão por seu serralho.

Amarelo por baixo, em cima escuro;
A cor, que dominava,
Quando o voo tentava,
Era a preta no céu azul mais puro.

Se ia além, se teimava em ir fugindo,
Já ninguém mais o via;
Era parte do dia,
Era o céu mesmo, o céu sem mancha, e lindo.

Depois vinha, e pousava em susto, e alerta,
Como um pássaro pousa,
Num galho, em qualquer coisa,
Próximo sempre de uma porta aberta.

No fim de tudo o nosso corrupião
Era feio em verdade:
Tinha uma qualidade,
— Talvez um vício— amava com paixão.

II
Esa es tu dicha, tu placer, tu vida,
Vivir amando, y para ti no hay más.

D. José Zorrila — A la Niña C. D. E.

Mas era sempre mais belo,
Quando, nas asas suspenso,
O corrupião amarelo,
Defronte do céu imenso,
As abria, as espalmava
Ao sol, que de ouro as banhava:
Descia à flor sobre flor,
Que dos vergeis são estrelas,
E parecia escolhê-las
Pelo aroma e pela cor.

Salta na pedra que beira
A pequenina lagoa;
Mira-se na água, e revoa,
Sobe a um cedro, as asas cheira,
Limpa-as com a ponta do bico;
E inveja o sol, que é tão rico
Dessa luz, que ele não tem:
Luz, sol, carícias da aragem,
Todo um vergel na plumagem
Anda a colher — para alguém!

Guardando em si os perfumes,
Que andou roubando ao jardim,
Do sol aquecido aos lumes,
O corrupião desce enfim.
Levanta, estira o pescoço...
Está servido à mesa o almoço,
E ele é dono do salão:
Chega a senhora, asas solta;
Volta, volta, volta, volta...
Está doido o corrupião!...

III
The love which maketh all things fond and fair...

Byron —The Island

Ficava doido... doido de alegria!
Quantos anos lá vão!
Quando a sua senhora à mesa via,
No meio do salão.

O amor dourava aquela fantasia;
O salão era mudo:
Dessa loucura enfim ninguém se ria:
O amor sublima tudo.

Mesmo um gato maltês, um grande gato
De pelo fino e liso,
Como quem tem carradas de juízo,
Deixava esse insensato.

Quisera um dia às garras surpreendê-lo;
Mas veio um fasta-fasta,
E um muro de aço de gentil vergasta
Ergueu-se entre o seu zelo.

E então, ele chegou a ter-lhe tédio;
E o olhar voluptuoso e morno,
Dando-lhe a cauda, aveludado e nédio,
Lançava à mesa, em torno.

Um dia o corrupião subiu-lhe ao dorso,
O gato o ergueu, bufando,
Jogou-o longe, e em concentrado esforço,
De longe o estava olhando.

Calmo... Andava o bichano com certeza,
Num grande fartalejo;
Para engolir a insignificante presa
Não encontrava ensejo.

E além disto a vergasta inda chiava,
E a carne lhe doía:
E perto por ali a dona andava,
De pé falava e ria.

Alguma vez, (o acaso ajuda tanto!)
Por um qualquer capricho,
Zás! ele estaria em qualquer canto...
Busquem agora o bicho...

IV
Au bourdonnement lourd de l'heure...

J. Aicard — Bruits du Soír

Um dia o corrupião (a vez primeira
Que dormiu ao relento)
Ficou num galho verde da mangueira:
Porém qual seu tormento!

Quis ver o céu, o céu que nunca vira,
Cheio à noite de estrelas:
Por isso à copa da árvore subira;
Subiu só para vê-las.

Uma quimera!... um sonho!... uma viagem
Feita por longos mares,
Buscando um polo... Mas é ter coragem
Deixar assim seus lares!...

E que perigo não correu!... As aves
Noturnas num lampejo
De olhos grandes, redondos, muito graves,
Num barulho de adejo

Feroz, sinistro, à cata dos pequenos,
Que devoram num trago...
E ele tinha a sua mão, e os seus acenos,
Carícia, amor, afago!

Ali poeira excessiva de sonidos,
Um zum-zum, um zim-zim...
E tudo aquilo enchendo-lhe os ouvidos!
— Que fiz eu? Por que vim? —

O corrupião, que tudo agora assusta,
Jogara uma partida:
E encolhia-se bem na árvore augusta,
Pelo instinto de vida.

Misturava-se às folhas, em defesa
Fechava os olhos, certo
Que a luz dos olhos mostraria a presa
Ao carniceiro perto.

Foi um desejo aquilo: a felicidade
Também cega e inebria;
Quis ver a essa hora toda a imensidade,
E o que nessa hora havia.

As estrelas ao longe riam baixo,
Riam, sem ele ouvi-las:
E ele dizia: — Em que perigo me acho!
E elas lá tão tranquilas!

Se eu ainda viver, ó doce amiga,
Se eu não for devorado,
Não quero que ninguém ou saiba, ou diga,
Que eu saí do teu lado.

Crime foi... foi o crime da inocência...
À luz primeira ensaio,
Avanço, voo... é a última experiência;
Chego, e nunca mais saio. —

E esperou. Noite longa aquela! O medo
A fazia infinita:
Não virá a manhã assim tão cedo?...
E um pesadelo o agita.

E um ar mais frio: a brisa amotinada
Acorda o que inda dorme:
O galo canta: a estrela da alvorada
Fulge com brilho enorme.

Raras as outras são, e desmaiadas;
O céu pelo horizonte
Tem franjas de ouro e púrpura mescladas;
Arde o viso do monte.

Trinam aves: do cão se ouve o latido...
O corrupião a furto
A hora aproveita, e em meio a festa e o ruído,
Solta o voo num surto;

V
...notre temps se passe à convoiter?

Alfred de Musset — Lettre a Lamartine

Por um fisga sorrateiramente
O corrupião entrava:
Tudo dormia ainda, e tão somente
O maltês espirrava.

Uma golfada súbita de vento
Matinal, excitante,
Por fissuras das portas, de momento
O esfriara bastante.

Tinha estado enrolado a noite inteira
Num canto reservado,
Sobre umas mantas, e uma boa esteira,
Que estendera o criado.

Espirrou?... Logo vem o sol, que o esperta
O que era necessário
Fê-lo o corrupião: subiu alerta
Ao alto dum armário.

É dia. Cada porta sobre o quício
Rolava, ressoando:
E a gente vinha vindo em turma, em bando
Ao usual exercício.

A mãe rija, o cabelo já grisalho,
Metia em reboliço
Aquele povo todo do serviço
Num múltiplo trabalho.

Fumegava o café, de um grato aroma
A casa toda enchendo,
E cada moça, que já vem descendo,
Cheirosa taça toma.

Salta do armário o corrupião mansinho
— Olhem, não fugiu, não —
Bradam todos: — Está aí o pobrezinho:
Está aí o corrupião!! —

Deram por falta dele à noite: ansiados
Buscam-no em toda parte;
Foram inúteis todos os cuidados:
Escondeu-se! Foi arte!

Uma alegria olímpica atravessa
Todo o salão desperto;
O corrupião feliz fizera a pega;
E não foi descoberto!...

Se o fosse, era um fujão, era um ingrato;
Ora! sempre era um bicho:
Ele mesmo, que iria achar no mato?
Que insensato capricho!

Talvez não... Sempre existe uma lembrança,
Vaga, indecisa, escura
Desse lugar em que se foi criança,
Que sempre se procura.

Éden deixado, esplêndida quimera,
Que inda na melhor vida
Coisa melhor se pensa ter, e espera,
E foi de vez perdida.

Enfim o corrupião triunfa de contente;
A todos enganara:
Mas viu como o estimava a sua gente
Nas festas que encontrara.

Bebeu café em taça azul da China,
A taça azul da dona:
E ao colo dela o colo enruga, e inclina.
E ao sono se abandona...

O gato olhava o pássaro, o invejando,
Atônito e sadio;
Já lhe tinha passado o mal do frio...
Mas era um miserando!...

Quando ensaiava um curto salto à toalha,
Era uma vozeria!...
Aquilo sempre!... uma tenaz batalha
Contra si, dia e dia!...

Não tendo que fazer mais outra coisa,
Rosna a um canto sozinho,
Passando a pata à mosca, que lhe pousa
Em cima do focinho....

VI
Perdí mi libertad, y hallé razones
De perder los deseos de buscalla.

D. F. de Quevedo — Canciones

Logo depois, (foi nos primeiros anos)
Disse o corrupião:
— Nada de azuis; deixemo-nos de enganos;
Basta-me a sua mão.

É curva, como o céu; tem a quentura
Das luzes matinais:
Tem a sombra da mata; a doce alvura
Dos lírios virginais.

Posso dormir nas dobras do seu seio:
Que cheiroso calor!
Seu corpo é um ninho; e a vida é um gorjeio,
Quando a alvoroça o amor.

Não hei de nunca mais sair de casa...
Todos... todos dirão:
Coitado! o corrupião perdeu a asa!!...
Melhor para o corrupião... —

Mudam-se os tempos, mudam-se os prazeres;
O corrupião agora
Limitava à gaiola os seus lazeres:
Não saía mais fora.

O seu trabalho apenas consistia
Em amar... amar somente:
Quando a dona gentil ele não via,
Achavam-no doente.

E o maltês engordou: ficou tão gordo,
Que já não se mexia:
— Cão de gato maltês, se eu não te mordo,
O corrupião dizia,

É que eu não quero em ti sujar meu bico:
Hum! que te tenho um nojo!
Mói, rebenta pra aí, maltês, meu rico,
Enche mais esse bojo...

E ele bem sabe a hora (o lambareiro)
De andar pela cozinha,
E num rom-rom humilde ao cozinheiro
Ter o que lhe convinha.

Palangana de peixe saboroso,
E um resto suculento,
Que o lagalhé, em êxtases de gozo,
Rói e rói, lento e lento....

Do grande cão, que ladra lá na porta,
E vive acorrentado,
Todo o mundo os latidos seus suporta;
E é um cão asseado.

Não lhe passa a senhora a mão por cima,
Como em minha plumagem:
É um cão lá de fora, um cão de estima,
Mas só da criadagem...

VII
...and her sighs came deep and long

Thomas Buchanan Read — Chrestine

Morre a vida mais cheia, e bela, e rica!
Chega a última vez;
O gato acaba, e o corrupião não fica:
E ódio e amor mais não vês!

Tudo está calmo sob a cova fria,
Sem vão barulho... inerme;
E em cima deles trabalhando o verme...
Bruto e sem cortesia...

E a inquietação, em que se vive: a inveja,
Egoísmo, ódio, interesse,
O ciúme, alma da intriga e da peleja,
Tudo em suma fenece.

E o corrupião morreu!! — A dona um dia
Encontrou-o no chão:
Pálida e bela, trêmula e sombria
Levou-o ao coração.

Não lhe saiu dos lábios um lamento,
Um sussurro, um gemido;
Fê-la estátua de mármore o momento.
Que tinha acontecido?

O animalzinho estava imóvel sobre
A terra... e sem calor.
— Estará doente, coitadinho?!... O pobre...
Como lhe tinha amor!

Rolaram duas lágrimas brilhantes,
Depois assim falou:
— Ele inda há de viver, ser como dantes:
Ao pé dele aqui estou. —

Oh! como ela o amava!! À arrepiada
Pena lhe corre a mão;
Beija-o, aquece-o ao quente seio: nada!...
Morreu o corrupião!...

Tinha um talento, que ela idolatrava
No mísero, que jaz:
Sabia amar, amava, amava, amava...
E não sabia mais.

VIII
Heureux ceux qui aiment, quant ils sont aimés en retour.

Idylles de Bion — Tradução de Leconte de Lisle

Ela mandou-o embalsamar, e armá-lo,
Como se fora vivo;
Queria algumas vezes contemplá-lo:
Sempre era um lenitivo.

Não o pôs, não, sobre fictício galho,
Dentro de uma redoma:
Qui-lo em sua gaveta de carvalho,
Cheia do seu aroma.

Esta débil mulher, formosa e doce,
É uma maravilha;
Exala eflúvios, como se ela fosse
O fruto da baunilha.

Amam-na os corrupiões, e as criancinhas,
Louras da cor da aurora:
Virão do céu rodeá-la as andorinhas...
Saibam onde ela mora.

É da alvura do linho preparado;
Cheira a manhãs no mato;
Há no seu corpo o brilho desmaiado
Do luar no regato.

E pela grande sombra de tristeza,
Que em mim projeta, ao vê-la,
Não há estrela de maior grandeza...
É uma imensa estrela.

Tinha o corrupião outra ventura,
A luz só recebia:
E enquanto eu me afogava em noite escura,
Ele nadava em dia.

IX
...luxu, otio
Nutritur inter laeta Fortunae bona.

Sêneca — Octavia

Possuía história o pobre animalzinho.
Vou contá-la. — Compraram-no ao mercado.
Um caçador furtara-o, há pouco, ao ninho.
Estava ainda apenas emplumado.

Era da irmã. — Um príncipe. — Bebia
Água num vaso de cristal luzente;
E o palácio de arame em que vivia
Era de prata, à moda do Oriente.

Tinha contas de aljôfares, e rara
Lhama de pedras várias coruscantes:
Parecia que a alâmpada esfregara
Aladim com seus dedos vacilantes.

Laços de fitas; guizos a milhares
Beijando as curvas dos seus pés com hinos;
Um pavilhão chinês enchendo os ares
Com o som que os ventos colhem de seus sinos.

Abriam-lhe — ao chegar à mesa — a porta:
A senhora apanhava-o à mão a custo;
Pão em pedaços, para dar-lhe, corta;
Mas não o come, e ao pé lhe arfa de susto.

Depois vinha a tristeza de quem ama....
Fechava os olhos, pendurava o bico...
Quando voltava ao seu palácio rico,
De novo aos olhos lhe voltava a chama.

De lá pulava em torno da gaiola;
De pulo em pulo, cheio de esperteza,
Saía, e vinha pendurar-se à gola
Da irmã, que estava mais no fim da mesa.

A irmã mais velha punha-o na toalha;
Dava-lhe arroz e pão, pedaços de ovo:
Parecia viver então de novo;
Corre, salta, abre as asas, e as farfalha.

Vibra-as, levanta o colo ondeante, e o encurta...
Mostra-se alegre, vívido, ebriado;
E além do que lhe dá, de um salto furta
Do que ela leva ao lábio nacarado.

E assim os dois amaram-se; e num dia
Que a dona viu que o tinha e que o não tinha,
Disse com a amargura da ironia:
— Olhe, que o corrupião é seu, maninha.

X
Hymne impregné de pleurs qu'on nomme Souvenir!

Arsene Houssaye — Le Cantique des Cantiques

Dez anos, sol a sol, desenfiados,
Como contas de lúcido rosário!...
Tornou-se o corrupião um legendário,
Dos que vivem à sombra dos telhados;

Dos heróis, cuja vida a sem rumores,
Nem se embriagam dos clarões da glória,
E passam sem turbar o mundo e a história,
E sem dar lucro ou perda aos editores.

Têm seus ulemas limitado brilho;
É o seu universo o interior da casa;
Como uma obra de bronze, que se vasa
Para o avô dar ao neto, e o neto ao filho.

Têm o alarido calmo e negligente
Do hino sem asas, que revoa brando
Nos lábios da mulher à noite, quando,
Indo dormir, ninguém na alcova sente.

Dez anos como cintilantes fitas
De relâmpagos de ouro e luz — fugazes,
Sonho de amor sob o luar no oásis
Cravado nas areias infinitas.

Dez anos, sem uma hora de amargura,
Sem a dor de um momento de abandono,
Até que foi em sua mão tão pura
Acalentado em seu último sono!

Jaz sua cova na gaveta dela,
Sobre os seus lenços de alvejante linho;
Dorme empalhado no seu casto ninho,
Cheirando a sonhos brancos de donzela.

Cai-lhe às vezes a lágrima tremente
Sobre as penas, que vão perdendo as cores,
Do pobre amigo que ela chora, — e sente
Que assim lhe fogem todos seus amores...

É um sepulcro em torno dos seus passos.
O chão que pisa está calçado de ossos;
Debaixo de seus pés só vê destroços;
Só vê — Saudade — acima dos seus braços.

XI
Alas! the dreamer first must sleep...

Byron — The Giaour

Pelos seus mortos, eu, que nada valho,
Nem mesmo o seu corrupião querido,
Das cores e das graças decaído,
Como flor que não abre a mais orvalho:

Eu, se pudera, abrira a larga vala,
E fazendo sair os seus amados,
Pusera lá meus membros descansados,
Eu, que padeço a dor sem fim de amá-la.

Saíra tudo o que ela amou, e amara;
Dera-lhe ao rosto seu a cor da rosa,
E teria no sono a deliciosa
Paz, que embalde aos seus seios procurara...

A dor... a grande dor sem fim de amá-la...
A dor de não saber como, nem quando
Pudera tê-la, ao entrar o miserando...
Ao entrar... descera tudo à mesma vala.

O amigo corrupião voltara aos dias
De festa ebriosa, de uma vida louca,
Quando a comida lhe furtava à boca,
Deixando em troca um bando de alegrias.

Tudo iria embalado em tal ventura,
Que ela um dia com suas mãos mimosas,
Sem reparar sequer, colhera as rosas
Rubras de riso em minha sepultura...

Velha ironia esgrouviada, basta.
Fala-me o seu olhar amargamente;
Que viva, e ame, e a sirva, e me contente,
Está-me dizendo a sua imagem casta.

Porque sei que, morrendo, ela diria
Três palavras, talvez, a meu respeito;
E tendo muitas lágrimas no peito,
Como o seu corrupião, quando morria.

Na sua mão, que é feita de carícia,
Eu teria também os seus reparos;
E sentiria a esplêndida delícia
De andar na nuvem dos seus mortos caros.

XII
A shade immense!

Tomson — The Seasons

Sperar, temere, rimembrar, dolersi.

Alfieri — Sonetti

Ela não mostra o lindo cemitério,
Aonde tem os seus amigos juntos:
Rodeia de respeito e de mistério
O lugar onde dormem seus defuntos;

Mas, porque lhe pedisse acaso um dia
Para somente ver a sepultura
Onde o seu pobre amigo então dormia,
Não quis negar-me cheia de brandura.

E uma noite na alcova, a cama ao lado
Toda esplendente de lenços de neve,
Solta a roupa, o cabelo desmanchado,
—Vai ver,— Falou-me com um murmúrio leve. —

Baixou-se um pouco, e abriu uma gaveta
Do esbelto toucador, com seu ar grave,
Saiu de dentro um cheiro de violeta,
De uns linhos cheios de luar suave.

Depois mostrou-me na planície vasta
De uma pequena caixa perfumada,
Sobre brancuras de algodão em pasta,
De cada morto a campa alevantada.

Dentre os mortos gentis (e eram já tantos!)
Levantava-se o esplêndido jazigo,
E à sombra doce de objetos santos,
Dormia ali o nosso pobre amigo.

Eram seis colibris os companheiros
Mortos, como seis astros pequeninos,
Onde da luz os gélidos chuveiros
Tinham a arte dos bronzes florentinos.

Quis beijá-lo... Mas teve-me o respeito
Por esse morto que ela amava tanto:
Com mão tremente o pus de novo ao leito,
E disse adeus àquele campo santo.

Saí cheio de assombro e de alvoroto,
Como quem sobre-humanas coisas visa,
Como, se fosse o cemitério em Pisa,
Ante as grandes figuras de Giotto.

Quando, pouco depois, voltou-me a calma,
Sobre aquelas pequenas sepulturas
Pude ver o irradiamento de brancuras,
Que dentro em si contém uma só alma.

Eu só conheço em toda a natureza
Esta mulher, — estranha maravilha, —
Que é tão grande na sua singeleza,
Que mais se eleva quanto mais se humilha.

Enquanto cismo, enquanto gravemente
Mortos e cemitério ela guardava,
Uma risada límpida e estridente
Jorra de uma criança que ali estava...

Porta que se abre, luz que entra de chofre
Nuvem que o vento para longe atira,
E mostra o largo fundo de safira
Do céu aberto como enorme cofre...

Ergo o rosto: da porta em um ponto aberto
Era de vê-lo além coalhado de ouro:
Um oásis no meio do deserto,
— Nós na sombra da alcova, e o infante louro...

Velho conviva da existência entrando,
(Que ao prazer e às tristezas nunca falta)
Nisto o relógio em sua voz mais alta,
Regouga as doze, trêmulo e rosnando.

Foi a última página voltada
De um livro, que entreaberto inda se deixa.
Chorou a porta, quando foi cerrada:
Saí: vinha comigo estranha queixa...

 

TRANSFIGURAÇÃO

I
Cabeça de Sant'Ana, e escultural figura
De uma bela madona:
Quase aos seus pés um cão, na lânguida postura
Em que dorme e ressona.

A tua velha mãe conversava: ao seu lado
Estavas tu sentada,
Tu, a estrela do lar, o gênio abençoado,
A generosa fada.

Era vasto o salão: as trêmulas cortinas
Das portas entreabertas,
Ao rápido tremer das brisas vespertinas,
Agitavam-se incertas.

Batia a chuva sobre as vidraças das portas:
A noite penetrava
Com sombras, e a fugaz mudez das coisas mortas,
Que em torno derramava.

Os quadros do salão, nessa vaga incerteza
Das coisas duvidosas,
Pareciam soltar um e um, em surpresa,
Sutil, silenciosa,

A legião de heróis, que o seu pincel pintara,
E dera luz e vida,
Com que sempre de ver a austera mãe gostara
A sala guarnecida:

Porque a filha gentil, que é uma Fornarina
Na plástica beleza,
Tem, como Rafael, a palheta divina,
E o amor da natureza.

A vasta sala toda, em branda luz banhada,
Nas sombras se perdia:
Obra de Miguel Ângelo em mármore lavrada,
O grupo refletia.

II
E a sombra entrava entretanto,
Tomando cada recanto
Do vastíssimo salão:
E aquele grupo sentado
De mãe e filha, e ao seu lado
Em quatro patas o cão:
Naquele recinto morno
As sombras dançando em torno,
As vesgas sombras estão.

São as sombras das figuras
Daquelas belas pinturas
Pintadas por teu pincel,
Que nestas vastas paredes
Em quadros dourados vedes,
Entre painel e painel.
Ou são elas por acaso
Do ciúme, em que me abraso,
Formas de sombra e de fel?...

São essas vãs criaturas
Delirantes conjecturas
De minha louca paixão?
A minha raiva impotente,
Que ulula, que freme e sente
As angústias de um vulcão,
Que um fogo interno lacera,
E lança, pela cratera,
Cinzas, metais em fusão?

E entre a fumaça, que ondeia,
De que sua alma está cheia...
Será que dela através,
Só pude ver o que passa?
Sentir a minha desgraça,
Como um abismo a meus pés,
Dizer-me: — Por quem te enlevas?
Gritar-me uma voz das trevas:
— Maldito... maldito és!? —

Cada gota, que se ouvia,
Chover lá fora, batia
Dentro do meu coração,
Como ferro derretido
Por sua mão espremido,
Lançado por sua mão!
Ai! tu se não tens piedade,
Anjo, que anjo ser há de
O de minha salvação?

Se tu não queres, não podes...
Se as sombras negras sacodes
Do teu desamor fatal;
Se me deixas no caminho
Sem um afago, um carinho,
Que tem um pobre animal;
Que há de ser do meu destino,
Sem o teu sol, sol divino,
Sem tuas chamas, Vestal?...

Diana, deusa, rainha,
Eram as sombras, que eu tinha
Dentro de mim, as que vi
Encher o salão em torno,
Cada olhar pálido e morno,
Cada boca que não ri,
Cada cabeça oscilante,
Como a de um ébrio gigante
Dançando em roda de ti.

Ó Julieta, ó meu nome,
Era o meu negro ciúme,
Era só o meu amor,
Minha paixão, meu martírio,
Meu coração em delírio,
Minha cabeça em furor,
Era enfim minha agonia,
Que o vasto salão enchia
De sombras, susto e palor.

E a tua bela cabeça,
Onde talvez amanheça
Um raio de compaixão
Pelo pobre desgraçado,
Inclinava-se de lado
A afagar aquele cão:
E em atitude singela,
Da mãe veneranda e bela
Tu apertavas a mão.

Era um grupo primoroso!
A mãe e a filha em repouso,
Como um grupo de metal
De uma só peça fundido,
Do mesmo molde saído,
Grande, nobre, original:
A cabeça de Sant'Anna
Junto à fronte de Diana,
Fazia um grupo genial...

III
De repente aos seus pés levantado,
Entre as sombras do vasto salão,
Aparece num homem mudado
A sinistra figura de um cão.

E a cabeça do gênio da casa,
E as estrelas do rosto gentil,
Que as brancuras das faces abrasa,
E a sua voz, e o seu gesto infantil...

E a atitude pendida, e a mãozinha,
Branca pomba ondulando no ar,
Com seus modos de grave rainha...
Tudo nela ali estava a falar.

Ele a ouvia, e sentia decerto
Todo o céu, todo o aroma da voz,
E roçavam-lhe as roupas de perto,
E um e outro diziam-se nós.

Ele a fome saciava de bruto,
Na inocência alva e bela da flor,
Toda agora coberta de luto,
Orvalhada dos prantos da dor.

Oh! delírio! oh! martírio! oh! desgraça!
Vê-lo ali o perfume a beber,
Todo o aroma, que vinha da taça,
Quanto aroma há de a taça conter...

De súbito aos seus pés, num grande espanto em tudo,
Que em torno estava grave e mudo,
Para alguma transmutação,
Numa tela desenrolada,
Adrede à sombra ali pregada
Em homem surge aquele cão...
Há pouco esse animal, agora essa visão
Sentada, respirando a custo em meio à sala,
Onde tudo se escuta, inda o que se não fala!...

E ele a ouvia, e sentia, estando ali tão perto,
Íncubo humilde e esperto,
Todo o estrelado céu, todo o aroma da voz;
E parecendo estar como escorralho inerte,
Alegre, alvar, solerte,
Roçava-lhe o joelho, e acariciando-a após,
Como que lhe dizia, a responder-lhe: — Nós...

E a cabeça do gênio da casa,
E as estrelas do rosto gentil,
Em que a neve das faces se abrasa,
E a sua voz, e o seu gesto infantil;

E a atitude pendida, e a mãozinha,
Branca tomba esvoaçando no ar,
Com seus modos de deusa ou rainha,
Era a voz, com que estava a falar.

Quase muda ao pé deles parava
Numa mole atitude ideal,
A cabeça da mãe que buscava
Talvez Deus, num anelo mental...

Ela falava e casta, e cínica, e indiferente,
Como se fala a um rei, ou como a um deus se fala,
Sem ter preocupações, sendo boa, e inocente,
Assim a flor ignora o perfume que exala.
Falava como o sol à terra toda, e como
Ao pássaro, que voa, o tronco, a folha, o pomo:
Falava como a águia o céu invade e à estrela
Dirige o longo olhar, mesmo sem conhecê-la:
E como fala a estrela à nuvem, quando passa,
Guardando um pouco o brilho, e suspendendo a graça.
Até que a deixa em paz a nuvem passageira,
E ela a falar e a rir está da mesma maneira.
Na expressão da candura há a expressão da vida.
Falava por ter voz e para ser ouvida:
Falava, porque a voz gorjeia pelos ninhos,
O rio pelo vale, a flor pelos caminhos;
Falava porque a voz é sempre a canção doce,
E vai com o vento, quando o mesmo vento a trouxe:
Porque, como no bosque há a voz de uma acre essência,
Há na voz da mulher a canção da existência;
É bom ter esse encanto, é sempre bom ouvi-la,
Como na água que corre a irradiação tranquila...

Ele, o bruto, também matava a voraz fome,
Fome, que para ouvi-la, o mesmo céu consome,
Mas... ele, essa visão, mas... ele, o infando bruto,
Da impoluta inocência alva e bela da flor,
Parecia moer não sei que estranho fruto,
Causando estranho horror!...

Delírio!... Martírio meu!
Oh! meu martírio! Oh! desgraça!
Ver bem o que ele bebeu
Por essa divina taça,
Por que suspirava eu!
Oh! meu martírio! Oh! desgraça!
Tanto aroma ela continha,
Que esse aroma até mim, quase cantando vinha,
Desse aroma que a rosa aos seios da alva exala,
Quando o sol se avizinha,
E vai de áureo estrelário encher-lhe em breve a sala.
E ele hauria sequioso, inquieto, e quase aflito,
Gota a gota a fluir toda aquela ambrosia.
Que na cratera de ouro aos deuses só daria,
Em salões de diamante, em festins de alegria,
Jove, o deus do universo, a glória do infinito!...

Deus vermicula a noite, e esmalta a escuridão
Com estrelas aos milhares.
Dá as pérolas aos mares,
Ao oásis água e palmares,
Correntes à solidão,
Aos troncos dá os cantares,
Põe liras em cada galho;
Faz chover o branco orvalho,
Onde flores abrirão,
Ou onde abertas estão;
Enche o bosque de cantigas
Seculares e modernas,
Das coisas novas e antigas
Faz nossas festas amigas,
Faz suas obras eternas,
Deus dá tudo o que é bom em triclínios de Creso,
Por que pôs ao findar do drama este intermezzo,
Onde há uma visão fantástica, que assusta,
Festim régio, em que brilha um prato de Locusta?...

Deus, que pendura o sol como um relógio eterno,
Deus, tantas vezes bom, Deus tantas vezes terno,
Por que intoxicou minha ventura? Agora,
Que se mesclava o azul aos diamantes da aurora,
Que a flor do sol no céu, como um botão, abria,
Que a clâmide de luz tudo em ouro envolvia,
Que tudo era alegria... alegria... alegria?!...

Tripudia, visão, braveja, espuma, és rio,
Precipita-te, ulula,
De pedra em pedra pula,
Como animal bravio;
O teu percurso marco:
Rio, serei teu arco:
Torrente, rugirás aos meus pés, ao passares,
Irás precipitar-te assim rugindo aos mares
Aonde não serás nem torrente, nem gota,
Tua bravura nula, e tua vida rota:
O abismo engole o abismo, a fera enleia a fera:
Enquanto eu ficarei aqui nestes lugares,
Rodeando a deusa de sonorosos altares,
Cheios de quanta flor colher à primavera...

Ele hauria, bebia, esgotava
A ambrosia, que o Olimpo só tem,
Esse néctar, que aos deuses se dava,
Que os heróis beber podem também...

Foi a mão genial de Cellini,
Foi o céu... ele foi quem gravou
Nesse ambiente a ventura: e imagine
Minha dor, quem o inferno tragou!

Quase muda ao pé deles parava,
Numa mole atitude ideal,
A cabeça da mãe, que buscava
Deus — talvez — num anelo mental...

IV
Tu, que sabes amar, sofrer, pensar... pois pensa
No meu fatal amor,
No meu sofrer atroz, na minha angústia imensa,
Na minha imensa dor.

Tu, que sabes amar, sofrer, pensar, — pondera
Um momento sequer:
Das glórias do teu céu, anjo, brada-me: — Espera...
Ou mata-me, mulher.

E eu passei, como passa um relâmpago verde
Rapidissimamente,
Que no espaço exsurgiu, que no espaço se perde,
Passei por tua frente...

E me viste passar, estrela matutina,
Tu me viste passar
E ir deixaste-me triste e só: pensa, imagina,
Se podes, meu pesar...

Pensa, que eu tenho em ti o arcanjo, que consola,
A luz, que me sorri,
O sol, a que me aqueço; o céu, em que ele rola,
Que eu tudo tinha em ti..

V
Tu me viste passar: deixaste-me sozinho
Na saleta fronteira:
Foi-me Gólgota e cruz, foi fel em vez de vinho
Ai! aquela cadeira!

Embalde em torno a mim rumorejando estavam
As tuas irmãzinhas:
Aves do céu, embalde aquele céu volteavam:
Embalde! — Tu não vinhas.

Devia ser azul, devia ser brilhante,
Devia ser festivo
O céu, que aquele par dourava nesse instante
Mas... era para um vivo.

Cotovias gentis anunciando auroras
Alegres e serenas,
Sóis a nascer, do bosque as músicas sonoras...
Eu era um morto apenas.

Ó sol do meu amor, sim! tu enfim virias
Com um raio de conforto:
Cairia esse raio em lágrimas já frias,
Nas pálpebras de um morto.

E tu vieste enfim, trazendo sobre os dentes
A vida num sorriso:
Rolou no mesmo instante a porta a dois batentes:
Abriu-se o paraíso...

VI
E minha alma trabalha, a ver se pode
Jungir dois alvos lírios perfumosos,
Que possam ir aos astros luminosos
Levar-te, num rumor silente de ode.

Tu não irás na concha alabastrina,
Como Vênus chegou a jônia praia:
É sobre lírios que minha alma ensaia,
Ver-te no azul do céu, na luz divina.

Tenho visto em Leonardo, em Sânzio, em Rubens
Uma figura de mulher formosa,
Que o soberano privilégio goza
De andar por cima de anjos e de nuvens...

Nos seus braços angélicos descansa
Uma criança plácida e ridente,
No olhar de mãe, que é quase descontente,
Todo um sol de clarões de amor lhe lança...

Oh! se eu pudesse!... Foras tu aquela
Mulher a mais sublime, e a mais perfeita,
Se eu tivesse o universo na palheta,
E dera a vida, ao que emprestara a tela.

Dois lírios brancos, nítidos abrindo
As pétalas gentis em forma de asas,
Na ode, em que o ouro das estrofes vazas
Irão talvez os séculos subindo...

Irão talvez, ó musa, que confias
Na eternidade, porque quero vê-la
No céu da glória, em seu lugar de estrela,
Taça de luz, em que hoje te inebrias.

Ai! meu amor, já foram-se os ciúmes:
Minha alma, como uma harpa eólia acorda,
Só em ver-te um momento e fica à borda
De um abismo de luzes e perfumes.

Sinto as estrofes nos umbrais da aurora,
Tirando a ode, em que te leva a esfera:
Oh! nenhuma melhor subiu: — Espera:
Toma um beijo primeiro, e vai-te embora.

Ai! não és tu: é do teu nome a fama!...
Eu pude pois, como à Beatriz o Dante,
Dar-te um nome imortal, ó minha amante?
Vejo que pode muito então quem ama.

Mas... quem és tu, que eu amo, e adoro tanto,
Anjo, huri, bela estrela peregrina?
Tu só te chamas a mulher divina:
É preciso calar teu nome santo.

Que nome tem aquele diamante
Colhido ao fundo coração do rio?
Como se chama o astro luzidio,
Desses, que não têm nome, e está distante?

Chama-se o diamante, a estrela: quem procura
Da pedra o nome, que encadeia a chama?
Basta que saiba o nome teu, quem ama,
Astro de amor, de luz tão doce e pura.

VII
Em que deu o meu ciúme,
Flor!
Minha vida aos pés de um nume
Pôr.

Vi surgir teu rosto lindo
Só:
Fez, do meu furor caindo,

Ai! em mim tu podes tudo!
Ai!
Vens, meu zelo esvai-se e mudo
Cai.

Tudo em ti se coaduna:
Tens
Em ti sol, Deus, céu, fortuna,
Bens.

Em ti só minha ventura
Pus,
Astro, em que só vejo pura
Luz.

Eu não tenho um pensamento
Vil:
De mil, que carrega o vento,
Mil,

São poemas, são gorjeios,
Que
Deus, da minha alma nos seios,
Vê.

Amor, não cores, não temas,
Não:
Só para ti meus poemas
São.

Alma, coração ardente,
Para ti, ó flor, somente
É

Estejas bem longe ou perto
Vais,
Ninguém te amará decerto
Mais.

Podes buscar um formoso
Rei:
Digna és de ter esse gozo,
Sei;

De levantar a tua vista
Bem,
Para o que dessa conquista
Vem.

Povos, vassalos, realeza...
Cru
Destino tinhas, princesa,
Tu.

Vento, que em fúria rebenta
Mau,
E que ao mar leva a opulenta
Nau,

Rainha, a vida te fora,
Tal: —
Reina em minh’alma: uma aurora,
Val,

Que o que tem de bom pra dar-te
Deu:
Querer-te, amar-te, adorar-te,
Eu.

No palácio ou na mansarda,
Oh!
Tu és meu anjo da guarda
Só.

És o sol, que ao cego o dia
Traz:
Vida, riqueza, alegria,
Paz.

VIII
Oh! como te amo! E falas, andorinha,
Em buscar outros céus, outros países,
Ir a taça de dias mais felizes
Encher, longe da terra tua e minha.

Sobre o meu dorso musculoso e forte,
Eu te levara além de praia em praia,
Entre o Sol que se eleva e o que desmaia,
Desde este a oeste, desde o sul ao norte.

Verias tudo. — A colossal grandeza,
Que na água azul do Sena luz e ondeia,
Tames grandioso, e a quérula sereia,
Das águas do Adriático a princesa.

Vais ao Tejo beber-lhe as águas de ouro,
Vais ao Lima, e depois ao Manzanares:
Podias ver países aos milhares,
Se eu fosse um deus num fabuloso touro.

Lá nas montanhas de alecrim fagueiro,
Onde os melros, em maio, andam em bando;
Onde, ao luar, escuta-se cantando
O rouxinol em cima do loureiro:

Onde nos bosques canta a cotovia
Sobre rosais, no resplendor da aurora,
E onde antigamente, como agora,
Faz lembrar aos Romeus que aí vem o dia.

Eu caminhara a dentro pela terra,
Até onde faustosamente assoma,
A rainha do mundo, a eterna Roma,
Que tudo que há de grande e belo encerra.

Pátria das artes, viu dentro em seus muros,
Quanto o gênio criador eleva, inventa;
Taça de ouro, riquíssima e opulenta,
Que oferece à sede de arte os sóis mais puros.

A ti que sabes, como um livro imenso,
Que és também uma artista deslumbrante,
Que nome hei de lembrar-te neste instante,
Que já não pensas, como eu nele penso?!

Oh! chegaras à Grécia apaixonada,
Onde o mármore antigo inda palpita;
Onde tudo o que em torno a ti se agita
É Odisseia e Ilíada gravada,

Sem te lembrar talvez um só momento
Da pobre e miserável criatura,
Que guarda na alma a tua imagem pura,
Como um Deus guarda um sol no pensamento.

À Grécia, à Grécia, a mãe do amor onímodo,
Onde Afrodite nasce, e Pã, e Homero,
Lá também deves ir, eu lá te quero
Deusa, com que não pôde ombrear Hesíodo.

Inda se eleva, sobre o mar de Ulisses,
No seu manto de mármores, Atenas?
Entre a mudez das multidões serenas,
Talvez no Fórum Péricles ouvisses?

Vês tu Aspásia? A grega mocidade
Leva consigo a túnica arrastada;
Sócrates ergue a taça envenenada,
Bebe a cicuta, e explica a eternidade.

Terra de Safo apaixonada, eu trouxe
Outra Safo a pisar-te o chão em flores:
Dos cimos do Hélicon corram licores,
Que dão para cantá-lo a voz mais doce.

Píndaro altivo surge, e acorda o plectro,
Rapsódias imortais renova Homero;
Venham todos... Orfeu, Teseu austero,
Grécia pagã, teu luminoso espectro.

Sopre a brisa do mar o olente bafo;
Trance a montanha a túnica azulada,
Acoroe o sol, pois chega a minha amada,
Melhor que Vênus, e melhor que Safo.

Pois que ela tem o misterioso encanto
Do pudor a velar-lhe a forma humana,
Que nos altares seus fora Diana,
Se fosse o velho Olimpo um céu mais santo.

Sobre alguns dos rochedos inclinados,
Nesse mar calmo e azul e transparente,
Há pedaços de mármore que sente
Ainda os pés dos deuses exilados.

Há capitel, em que se enrola o acanto,
Na coluna de rosa ali partida,
Que vendo vir a deusa foragida,
Se ergueria do chão, banhado em pranto:

E um capitel fazendo a outro acenos,
Uma coluna a outra dando exemplo,
Ergueriam, de chofre, o antigo templo,
E o altar sagrado então à casta Vênus.

Tu te acharias na ara radiosa,
Coroar-te-iam de lírios e verbena,
Beijaria-te os pés a vaga helena,
Rira-te o sol de um céu azul e rosa.

À noite, por cumprir o antigo rito,
Deuses verias vir de toda a parte,
E levantar-se, para festejar-te,
O clamor das estrelas no infinito.

IX
Mas de mim, ai! nem sombras de memória,
No meio dessas prófugas ruínas,
Agora só a bela fronte inclinas
Nuns tropos vãos de moribunda história.

Ó minha Leda, na lagoa doce,
Em que banhas teu corpo alabastrino,
Nunca serei o cisne alvo e divino,
O deus, que em teus encantos abrigou-se.

Ai! de mim! Ai! de mim! — Em chuva de ouro,
Danae, não posso te alagar a espádua:
Ó Ísis minha, sobre a espuma da água,
Não te posso levar, mudado em touro.

Como a estrela na curva azul dos ares,
Passa alagando em luz o seu caminho,
Tu, ave errante do paterno ninho,
Hás de luz só deixar onde passares.

Lá na pátria dos Sânzios, e dos Tassos,
Na pátria, onde andam deuses mil em rodo,
Há de o espírito teu perder-te todo,
Como quem se perdeu pelos espaços.

Ó mulher doce, como o mel de abelha,
Grave, como uma fortaleza armada,
Que, como de David a esposa amada,
Sozinha, um bravo exército semelha.

Ai! não partiste! ainda o só receio
De ver-te ausente, o coração me esmaga:
Que plaga estranha vale a imensa plaga,
Que inda hoje nos embala ao quente seio?!

Aqui a concha nítida marinha
Abriu de um lado e de outro, e a branca alvura,
Como Sânzio num quadro seu figura,
Levantou-se da casta Vênus minha.

Aqui quero morrer, o olhar fixado
Na sua imagem, como quem procura
Levar a Deus, num quadro, a formosura
Para pô-lo no céu a um sol pregado.

X
Um dia eu mergulhei pelo infinito,
E vi Deus na incomensurável obra:
— Que fazes tu do tempo que te sobra,
Pergunto: e calmo respondeu: — Medito.

E então lhe disse: — e meditaste tudo?
O que faz o infeliz na terra ingrata,
Entre o desejo, que o crucia e mata,
E o Deus, que o ouve gritar, e fica mudo?

Que o não consola da amargura imensa
Desse amor sem remédio, que o flagela?
Ou dá que eu possa ser escravo dela,
Ou mata-me, Senhor: É pouco: — Pensa.

Deste-lhe uma alma grande, e nobre, e rara:
Ela ama e pensa, como eu amo e penso:
E entre nós arrojaste um mar imenso,
Que cresce mais e mais, e nos separa.

Ó Deus, nos teus palácios superiores;
Meditas tu talvez nos mundos novos;
Reis, instrumentos, que flagelem povos;
Povos, que aos reis excedam nos horrores.

Inventa nova forma aos ninhos antes:
O céu de novos pássaros povoa;
Muda em pombas os filhos da leoa,
E une num só dois corações amantes:

Eu estava mergulhado no infinito,
Na asa leve da esplêndida quimera,
E entre os últimos sóis da extrema esfera,
Placidamente respondeu: — Medito!...

XI
Ó meu amor, ó pálida açucena,
Mulher, que eu amo, como a luz do dia,
Vaso de luz repleto de ambrosia,
Taça virgem de amor, redonda e plena...

Em que meditas tu, e em que eu medito?
Oh! eu queria o teu amor, embora
Deus me furtasse o sol, a estrela, a aurora,
E o universo gritasse-me: — maldito...

Quando, em rumor, os astros cintilantes
Me cuspissem do céu iradas vezes,
Fulminado de Deus às mãos atrozes,
Tendo a queda horrorosa dos gigantes:

Vendo a terra, a tremer, rasgar a boca,
E bradar-me: — traidor! Ouvindo os ventos,
No horror convulso e odioso dos lamentos,
Judas! gritar com sua voz mais rouca...

Ouvindo os mares, num rugido branco,
Mandar-me a vaga aos pés dizer: — malvado!
E vê-lo nos meus ombros despenhado
Com horror sobre horror, de arranco em arranco...

Das virtudes, em grita, ouvir: — perverso!
Nos véus cobrindo os rostos de assustadas:
Vendo as águas do oceano alevantadas,
Como se o pranto fossem do universo...

Como se numa poeira intensa os rios
Juntando em si, quanto há, quanto houve em choro,
Num desgrenhado e lamentoso coro,
Corressem todos, lôbregos, sombrios...

Para... Não façais, deuses, vã ameaça...
Soltai em grandes iras o infinito
Sobre mim; ruja o grito sobre o grito,
De quem cai, de quem rola, e se espedaça.

Sim! maldições, eu vos provoco e chamo:
Deuses, mandai-as, raio sobre raio:
Fora ainda feliz, se num desmaio,
Eu ouvisse-lhe a voz dizer-me: — eu te amo!...

Mas... quando penso ver um só cabelo
Cair de sua fronte pura e casta;
Eu me levanto, e digo aos deuses: — basta!...
Inda agarrado ao enorme pesadelo!!...

 

SÍSIFO
... ruit alto a culmine...

Virgílio — Eneida

És tu essa montanha; — é meu esse meu sonho!
Quero que sejas minha: estás bem longe? embora:
Pesa, como um penhasco: o carreiro é medonho:
Mas o ideal, que me eleva, os pulsos me avigora.

Irei buscar-te. — Bem: cavarei um caminho
A golpes de machado em selvas seculares:
Golpearei o rochedo; afastarei o espinho,
Subirei os degraus que dão pra os teus altares.

Foste assentar a tenda, estrela luminosa,
Em cima da montanha, à coroa da floresta:
Sei que estás longe: a estrada é hirta e perigosa:
Ou antes nem estrada alguma aos meus pés resta.

Nada. — Tudo é bravio: há um luxo, uma abundância
De verdura a florir, de arroios murmurantes;
De intrincado arvoredo escuro, a fazer ânsia,
A dar terror e inércia a braços de gigantes.

Que batalha a vencer! Que indomável coragem
Ante as feras legiões de bosques encostados
Em longos troncos nus, coroados de ramagem,
De galhos mortos, para arremessar, armados.

Têm os seus generais indômitos vestidos
De malha transparente, e lúcida couraça,
No dorso dos leões dos ventos conduzidos,
Que movem de um só brado a enorme populaça.

Ruem... dobram-se: e então rojando os velhos galhos,
Como muletas de titãs anquilosados,
Ficam de pé rosnando, assim como espantalhos,
De espaço a espaço, em terra adrede alevantados.

Mãos à obra. — Por terra, estultos veteranos:
Morde, machado, nos agigantados vultos
De dorso arcado às mãos titânicas dos anos:
Velhos heróis, o que fazeis na selva ocultos?

Ide para a planície; ide para o oceano:
Ide ao campo, ide ao vale, ide à aldeia, à cidade:
Tronco, muda de rumo: ó bosque, faz-te humano:
Deixa-me a selva chã e livre por piedade...

Preciso de rolar ao cimo da montanha
O meu rochedo enorme, o meu pesado sonho:
E a selva secular, que em troncos se emaranha,
É uma sentinela atroz, de olhar medonho...

Oh! prejuízo vão!! Oh! leis!! Oh! vãs quimeras,
Vós sois o florestal bravio, imenso, horrendo,
Que não deixais abrir a flor das primaveras,
E impedis de subir aos cimos, que estou vendo.

Mas não importa: o alvo está lá: — caminhemos:
Sobe, meu sonho, sobe: eu bebo um novo alento,
Cada vez que te agarro, e digo: chegaremos,
Feliz, alegre, em que cansado e suarento;

Galgo outeiros e absorvo os rudes precipícios;
Salto valos e, calmo, os barrocais transponho:
Longas distâncias venço; e já sinto os indícios
De chegar muito em breve aos cimos com meu sonho.

Ei-lo, o viso no alto! — Ei-la, a bela planura,
Onde estendeu a tenda a estrela radiante:
Posso levar ao lábio a taça da ventura:
Bate as asas, minha alma: o céu não está distante.

Cheguei! — Mas através de que espinhal bravio!
Cheguei! — Mas por que bosque horroroso e medonho!
Agora posso rir... agora enfim já rio!...
Vou depor aos teus pés, mulher, meu belo sonho!...

E aos pés vou pôr-lhe o sonho; e em vão beijá-los tento;
— Impossível — diz ela: e o sonho cai e eu grito:
Vendo-o ir monte abaixo, e num rolar violento!...
Ó Sísifo, ó Sísifo, és meu irmão, maldito...

Rolas a rocha tu, Sísifo miserando,
Por séculos sem fim, por toda a eternidade:
E eu rolo o sonho meu... rolo... rolo... e até quando?
Quem me há de alevantar a maldição? Quem há de?

Como estás longe e bela, estrela radiante,
Mulher gentil que aos sóis e aos anjos sobreponho:
Caio: mas torno a ver-te, e sinto-me um gigante!
Meu eterno trabalho é carregar meu sonho...

 

PROMETEU

Tu és a pedra branca, a estátua cinzelada:
Teu criador sou eu:
Os deuses te amarão, tu podes ser amada:
Formou-te um Prometeu.

Procurei pôr-te à fronte, aberta largamente
A golpes de buril,
Quanto o céu guarda em si de mais puro e esplendente,
E a flor de mais gentil.

Tu tens, ó casta deusa, as nuvens cor de rosa,
De que te rodeei:
E as alvas do meu canto, auréola gloriosa,
Que não te dera um rei.

Tens o prestígio, o encanto, e a eterna melodia
De que te revesti:
Tens meu amor: e eu, ó sol do meio dia.
Eu... que tenho de ti?...

Toda a noite que está nos olhos teus, rolaste
De chofre sobre mim:
Meu pobre coração, em que sombras te achaste,
Em que noite sem fim...

Noite, que vem de ti, em vez da luz que ardia
Dentro do teu olhar,
Noite longa, profunda, imensamente fria,
Sem astros, sem luar.

Tu és o meu trabalho: o meu cinzel de artista
Levantou-te imortal:
És a minha escalada, és a minha conquista
Ao fogo sideral.

Procurei pôr-te à fronte, aberta largamente
A golpes de buril,
Quanto o céu tem em si de mais puro e esplendente,
E a flor de mais gentil.

Tu és minha obra de arte: eu afrontei o espaço,
O touro, a hidra, o leão:
Na goela de ouro dos monstros meti o braço,
E lacerei a mão

Trouxe grenhas de sóis entre os dedos sangrando
Fogo em teu sangue pus,
Auroras no cabelo, e no olhar céus iriando,
Pedra, fiz-te de luz.

Alabastro, animei-te, e tudo em torno olhou-te,
Quando te pus a andar:
Parecia que nunca haveria mais noite
À luz do teu olhar.

Conhecia-te alguém antes de eu dar-te vida?
E o mundo hoje te quer:
Homens e deuses, todo universo, querida
Ó querida mulher.

Fixei-te para sempre: amarrei o infinito
Aos teus dois pés gentis:
Ergui o teu altar, e formulei teu rito:
És aquilo que eu quis.

És minha para sempre, és minha como a ideia
A que dei gesto e ação,
Como Atena é de Fídias, como Galateia
É de Pigmalião.

Tirei-te toda enfim dos fundos do meu sonho,
Onde não vai ninguém,
Onde tudo é mistério, onde só eu lá ponho
As estrelas que tem.

Fiz-te e amei-te, sim: mas eu fui fulminado
E tenho a eterna dor.
Sentindo o coração do abutre devorado,
Sentindo o eterno amor.

O amor é o grande cimo, a que me encadearam,
E eu não soltei um ai:
Num pedaço do céu com astros me enrolaram
E me disseram: cai.

Riram-se: e aí fiquei atônito, agarrado
Aos monstros colossais:
Requeimado da luz, por vós caluniado,
Ó deuses imortais.

Os senhores do céu, os deuses permitiram
No meu caminho a pôr:
Puseram-na: de amor por ela me feriram,
Sem dar-me o seu amor.

Os deuses, os que tudo inventam, sabem, podem,
Que fizeram o mar,
Que fizeram o céu, e nele nos sacodem,
E deixam-nos rolar:

Que alinharam o jaspe, o mármore, o granito
Adiante de nós,
E deram-nos na taça ampla de ânsia o infinito
De uma moléstia atroz;

E deitaram adrede à mão pelo caminho
Tudo que se requer
Para ter o arvoredo, e pendurar o ninho,
E encontrar a mulher.

Quem arranca do nada um sol de tal grandeza,
Quem lhe creia o esplendor,
Quem amolece a pedra, e quem ergue a beleza,
É só o nosso amor.

Agora anda por sobre a minha fronte o abutre
A grasnar, a roer;
E estou vendo o animal da entranha em que se nutre
A alentar-se e a crescer.

Hoje, além do feroz bico, que me espedaça,
Sinto o peso ao grilhão,
Sinto o peso do sol agarrado, oh! desgraça,
Aqui no coração.

Abutre és tu, amor: sol és tu, que carrega
Meu fado; e o Prometeu
Que não maldiz o abutre, e ao sol voraz se entrega,
Sou eu, mulher, sou eu

Dei-te tudo que é bom, ó mármore cortado
Num belo corpo nu;
E foi dele a rijes, sem coração ao lado,
O que me deste tu!

 

A CIDADE DA LUZ
(Ao Liceu)

Queste parole...
Vid'io scritte al somno d'una porta.

Dante — Inferno

Vós que buscais a senda da esperança,
Entrai: aqui há mundos luminosos
Num céu, que a mão, por mais pequena, alcança!

A alma aqui se refaz de etéreos gozos;
Vindes para o país da primavera,
Vós que deixais os mundos tenebrosos

Tanta luz aqui dentro vos espera
Que saireis estrelas redivivas,
Como as que brilham na azulada esfera.

Almas, das trevas lúgubres cativas,
Abri as vossas asas rutilantes;
Entrai, bando de pombas fugitivas.

Nas curvas destes pórticos gigantes
Haveis de ler uma inscrição, que alente
Os vossos voos inda vacilantes.

É aqui o país do amor ardente;
Quem entra leva um peso aos pés atado,
Como o mergulhador do mar do Oriente,

Que sobe à tona leve e festejado,
E vem de tantas pérolas coberto,
Que nem se lembra do labor passado.

Para encravar um éden no deserto,
Fazer um sol de um monte de granito,
E para ver melhor o céu de perto,

Encostar uma escada no infinito,
Entrar pela estelífera voragem,
Ser razão o fanal, verdade o mito,

E armado de tenaz, feroz coragem,
Arrasando os enigmas da vida,
Cavar nas trevas lúcida passagem...

A isto esta cidade vos convida.
Entrai: por mais que a noite em vós se note,
Tereis um astro à fronte na saída.

Da cidade moderna é luz o mote,
Que na porta da entrada arde e flameja:
Entrai! a escola é catedral, igreja,
Hóstia, — a ciência, o mestre, — o sacerdote. —

 

TÂNTALO

Tenho a sede do monstro. — A entranha me devora
A ânsia de saciar a sede, que me mata:
Quero beber-te o ouro, esplendorosa aurora,
Beber-te o rubro sangue em ânforas de prata.

Tântalo!... Ouves a voz que te chama? Não mente,
Tântalo, a maldição que há dentro desse grito?!...
Tens sede? muita sede? Aí tens a água corrente...
É a mulher, religião, ideal, fé, culto, mito,

Esperança, consolo, enlevo, angústia, sonho!...
Abraça-a sempre, e muito, ao peito teu a aperta:
Jamais acharás termo ao teu sofrer medonho:
Tens, Tântalo maldito, a tua sede certa.

Tântalo!... um monstro! um fero, um gigantesco assombro,
Capaz de dar assalto à muralha celeste,
Capaz de ter o céu em cima de um só ombro!
Mas... que sede a queimar-lhe a entranha, amor, lhe deste!

A fonte pura salta, e fios de água jorra,
Que lhe procuram dar calma, alívio, frescura:
Porém a sede, a sede imensa o torra,
E assenta-lhe na fronte o espasmo da loucura.

Rubra a língua lhe sai da boca e alonga tesa,
Como a cauda de algum cometa inopinado:
A fauce escancarada é como forja acesa;
Parece ter lá dentro o inferno encarcerado.

Os olhos, como dois vulcões do abismo soltos,
Das órbitas estão sinistros irrompendo;
E os cabelos ao ar, em nuvens, e revoltos
Tornam Tântalo um monstro enorme, feio, horrendo.

Leva a mão a um penhasco, e o penhasco vacila,
Rola, cai, faz-se em ouro; a relva de esmeralda
Ardendo vai tocá-la a sua mão que escalda:
— E a relva, que verdeja, é ouro, que cintila,

É ouro, que lhe ri em áscuas iriantes,
É ouro, que lhe sopra à cara gargalhadas:
É ouro que se enrola por sombras gigantes,
E lhe enche as duas mãos, de tê-lo fatigadas.

Que sede intensa! À boca a água chega mudada
Em ouro derretido, em ouro, que o sufoca
Nem já para gemer a voz lhe foi deixada:
É ouro, é ouro, é ouro, é ouro quanto toca.

Eu sou, mulher formosa, o Tântalo horroroso,
Que tem sede e que quer, ó fonte de água pura,
Beber em ti somente os ressabios de um gozo,
Beber em ti somente uns restos de ventura.

Toco... e sinto-te bela, e dura, e luminosa
A cintilar, como um pedaço de ouro ardente,
E fica a sede imensa, a sede angustiosa,
Sede, que me devora, e queima eternamente.

É ouro quanto toco, é ouro quanto afasto...
Muda Tântalo em ouro a lágrima que chora:
Condenado por ti, este martírio arrasto,
Sob o fogo, que queima, e sai de ti, aurora.

Eu sou o agrilhoado à esplêndida montanha:
Eu sou o sequioso a ver a água, que corre;
E nesta sede intensa, e nesta dor tamanha,
Ai! Tântalo inda vive!... Ai! Tântalo não morre!...

 

INANIA VERBA OU A ERVA PRODIGIOSA

UMA PALAVRA ANTES

Este trabalho nada vale pela concepção geral, que é de todos, desde que o homem pensa e observa, e foi aproveitada por Arsène Houssaye em dez primorosos versos, inclusos os três, que servem de epígrafe e imprimem o tom a todo o pequeno poema; pode valer, entretanto, alguma coisa por seu desenvolvimento e pelos detalhes. Aos entendedores da palavra cinzelada, aos que se extasiam ante o ritmo do período, a música das sílabas, a sonoridade metálica da rima entrego a insignificante obra conscienciosa de artista, certo de que o esforço é sempre motivo de aplauso para o que também trabalha e compreende. — Como o centauro, aonde o homem está ligado intimamente à fera, penso ter também fundido a ideia e a forma no processo da composição. Os críticos sem boa fé e sem consciência hão de compreender que o público sensato os julga e condena, como deve. Quanto ao crítico de boa fé, se um e outro nos enganamos, que importa rirmo-nos um pouco mutuamente? Disse o poeta que as críticas sem fel sempre prestam e são boas, e eu digo que muitas vezes aproveitam: e há tal crítica que, pela assinatura do autor, autor e obra já estão por demais relembrados, e assinalados ao público.

E boa noite. Suba o pano. Obra literária existe de tal magnitude, que não tem longo prólogo, nem tem nenhum. A justiça é justiça. "Plaudite." Mas sempre ouvi que as obras triunfais não precisam de escusas. Um prefácio é uma curvatura. É raro quando se encontram duas majestades: a do artista, quando o é, e a do povo, que o é sempre: quando se encontram um em frente do outro, curvam-se ao mesmo tempo. Eu não me curvo, eu aprumo-me neste momento por duas razões: a primeira é porque não tenho a vaidade de ser artista, e a outra, a segunda, é porque o povo... o idôneo povo para o aplauso e a aclamação não se há de desarranjar para isso. — PLAUDITE...

Quindi parliamo e quindi ridiamo noi,
Quindi facciam le lagrime e i sospiri
Che per lo monte aver sentiti puoi.

Dante — Purgatório

Je l'ai cherchée en vain sur le rivage,
Dans le sentier, sous la roche sauvage...
L´herbe qui guérit tout fleurit sur les tombeaux.

Arsene Houssaye ― Les Sentiers Perdus


(Prefacio)

Para bem da humanidade,
Quis fazer uma mistura,
Que fosse a especialidade
Que todos seus males cura:

E resolvido o problema¬,
Que de riqueza, e de glória!
Neste pequeno poema
Resumo a comprida história.

(Primeira Parte)

I
Andei de planta à procura,
Que cure todos os males:
Subi à maior altura,
Desci ao fundo dos vales;

Nas vagas de cada rio,
Entre os seixos da corrente:
Entranhei-me em clima frio;
Entranhei-me em clima quente;

Vi entre os cipós da argila,
Vi entre as ervas da areia,
Na vasa da água tranquila,
No fio da tênue veia...

Ninguém... ninguém imagina!...
Pois era um trabalho insano!...
Em cada muro em ruína,
Em cada dia do ano;

Fui ao zimbório de igreja,
Às palhas de uma choupana...
Talvez numa cava esteja
Oculta à pesquisa humana;

Fui à cava, e achei a aranha,
O seu aranhol tecia:
Busquei-a (lembrança estranha!)
Entre os cabelos do dia;

Sim! talvez que ela se acoite
Nos gelos, quando o céu neva,
Entre as perfídias da noite,
Entre os fantasmas da treva,

Ou num polo, ou noutro polo...
Nada: o sítio, o ponto exato,
Em que país, em que solo,
Em que sertão, em que mato,

Em que argueiro, em que astro,
Dentro em que vivo, em que morto,
De pé, erguido, de rastro,
Na luz, ou na sombra absorto,

Onde encontrarei a planta,
Que todos os males cura?
Por tê-la, nada me espanta,
Há de sofrer quem procura...

II
Desci ao fundo dos mares,
Aos seus grotais, e montanhas,
Onde há plantas singulares,
E vegetações estranhas,

E jazidas de esqueletos
De colossais bosques mortos,
Guardando os troncos direitos,
No meio de galhos tortos.

Li as folhas de granito
De um velho mundo em pedaços,
Onde as garras do infinito
Deixaram soberbos traços.

A uma pedra anosa... anosa,
Cheia de musgo e caretas,
De pólipos cor de rosa,
De raras pérolas pretas,

Onde a vaga chora e canta,
Velha e pérfida Megera,
Eu perguntei pela planta:
Respondeu-me ela: — O que era?!...

III
Com som de voz o mais brando,
Com minha voz irritada,
Procurei tudo, indagando:
Interroguei: — porém nada.

Ao murmúrio, aos arrulos,
Aos hinos dos travesseiros,
As andorinhas aos pulos,
Ao torvelim dos argueiros,

Aos temporais, aos estrondos,
Ao que ralha, ao que consola,
Aos horizontes redondos,
Abertos, como uma argola;

Ao tíbio rumor dos ninhos,
Ao mistério das alcovas...
Abismo dos brancos linhos,
Que à minha voz te não movas?!...

Às invisíveis espadas,
Que lançam torados goivos
Entre as bocas encarnadas,
Entre um beijo, entre dois noivos;

Ao alarido das camas,
Ao surdo grito dos leitos,
Onde há pequeninos dramas,
Terrivelmente perfeitos;

Onde há comédia em três atos,
Passada em bocas vermelhas,
E os artistas caricatos
São do tamanho de abelhas:

E desenvolvem as cenas
Um riso, um beijo, um muchocho,
Como nas farsas da Atenas
Vênus, e Marte e o deus coxo.

IV
Não perdi toda a esperança:
Ela na luta é quem medra:
Ao céu o mosteiro lança
Finas agulhas de pedra;

Na base, em que ele se expande,
Vi-o: — era um ermo, era um fosso:
Ria-se dele o Deus grande,
Com o ingênuo olhar do colosso:

Nas fendas da cantaria,
Nas colunatas defuntas,
Havia a santa alegria,
E o cio das flores juntas;

E a um arco mal conservado,
Cela de algum reverendo,
Estava um lírio assustado,
Ao pé de um lírio tremendo;

Um belo cravo escarlate,
Como cardeal vermelho,
Parece ouvir um debate,
E ruminar um conselho;

Um sabiá, que se perde
Pela alfombra de verdura,
Como Meyrbeer, ou Verdi,
Compõe uma partitura,

Cantarolando sonoros
Trechos de ópera acabada,
Adágios, scherzos e coros:
Instrumentação variada.

V
O cenógrafo pintara
O seu deslumbrante Scala,
E o sol é o aranhol, que aclara
O vasto cenário, e a sala.

E tripudiando, e ululando,
No meio de grandes roncos,
Dão bravo os ventos gritando,
Dão bravo gritando os troncos.

Uma cotinga de um brilho,
Que pode à luz dar esmola,
Anda no jogo do pilho,
Faz aos jasmins corriola.

O ostro, que à rosa ali veste,
Como ficou todo sujo!
Olha o galfarro! Olha a peste!
Deu-lhe um beijo um caramujo.

E outras rosas mais acesas
Junto à sebe de espinheiros,
Cantam-na cor — marselhesas,
Dançam-no aroma — saleros.

Beijá-las eu preferira,
(Que excomunhão isto rapa)
Beijá-las... à idolatria
De beijar os pés do Papa.

Que de orgulho, o que imagina,
Que mede, e que não se engana,
A consciência divina
Pela consciência humana;

Não seria mais seguro
Crer que a matéria apurada,
Não sei mesmo em que futuro,
Possa a Deus ser misturada?

Ter num Deus só tudo... tudo?
Obra não fora mais séria,
Do que fazer Deus a miúdo
Descer a tanta miséria?

Não há ninguém que não urda
Uma hipótese insensata,
Como qualquer outra, absurda,
Que não ata, nem desata?

Este tremendo segredo,
Que é nossa eterna loucura,
Que Prometeu ao penedo,
E Cristo na cruz pendura;

Que é nossa ambição eterna,
E nossa queda constante,
Que da alma faz a caverna,
Em que urra um preso gigante:

Que desse abismo profundo
Brada ao Titã, que o encadeia;
E é como um verme num mundo...
No mundo de um grão de areia...

Tem a esperança cativa
Batendo em muro sem porta:
Junto dela esfinge viva,
Com arco de esfinge morta.

VI
Mas a verdade aparece
Pelas montanhas e vales,
Brilhando em cima da prece,
Como a hóstia sobre o cálix:

Como o sol sobre o horizonte,
Como a mão sobre a patena,
Como a ruga sobre a fronte,
A que a dor a condena.

Levar uma vida inteira
Nesse incessante trabalho,
Noite e dia esta canseira,
Erguer e abaixar o malho:

Voltar de novo à batalha:
Cai; vence; cai: — mas não deixa
De ir derrocando a muralha,
Que ao homem o universo fecha:

Pois quem a verdade busca,
Pode ao erro dar guarida.
Quando a verdade, que ofusca.
É-lhe cansaço, amor, vida...

Perene, eterno tormento,
Bem como o abutre agarrado
A Prometeu, sem momento
Deixar de arrancar-lhe um brado.

Lavar de um erro a doutrina.
Quem uma verdade ganha.
Põe já o pé na colina,
Que é o degrau da montanha...

VII
Por que transporta da Helena
As bucólicas a Musa?
É um capricho da avena
Nas mãos de quem a não usa.

São recordações antigas
Do bom tempo do colégio,
Onde ouvia essas cantigas,
Fronte elevada, olhar régio.

Agora aqui pelo mato
Parece-me estar a ouvi-las,
Como vou só e pacato
Nestas paragens tranquilas.

Cantam abelhas serranas,
Abelhas rubras e nédias,
Ou églogas virgilianas,
Ou de Terêncio as comédias.

Não saber nada eu deploro
O grego destas abelhas,
Recitando Apólodoro
Nas suas cenas vermelhas,

Naquelas que Plauto atira
Na arena à turba romana,
Com as quais espouca e delira
Até à risada insana.

VIII
Toda vida, que circula,
Por dentro destas florestas,
Não vês, que grita, e que pula
Nestas canções e por estas

O aroma, que lhe mistura
A minha musa campestre,
Em cada leve pintura
Mostra também que sou mestre,

E outras vezes acontece
Vir outras muitas, e deixo
O verso, que resplandece,
Como uma estrela em seu eixo.

Vem de todos os lugares
Gente, para ouvir meu canto,
Com as pérolas dos mares
Com que ele assim brilha tanto.

E ando a buscar a mina,
Onde haja ouro e diamantes,
Para a ode, que imagina
Minha musa a alguns instantes.

E enquanto a mina não acho,
(É procurar o meu vezo)
Vou ver o sol como um facho,
De cima daquele teso.

Penso que vai tomar banho,
Lavar a juba, e lavado,
Voltar do mesmo tamanho
Bonito, em flor, do outro lado:

Do outro lado da serra,
Do outro lado dos mares:
Ele anda por toda terra,
Anda em todos os lugares.

IX
Tudo o que lês, tudo isto
Somente um capricho acusa;
É um capricho, está visto,
Da minha severa musa.

Mas não é fácil, precisa
De estudo, saber e graça
A cantiga que desliza
Como uma brisa, que passa.

Venha cantar, como eu canto
Em minha pobre bandurra,
Como um cego em qualquer canto,
Enquanto o vento sussurra.

E que venha esse talento
Equilibrar um rochedo,
Que caia a cada momento,
E que não caia tão cedo,

Venha, se tem força e jeito,
Venha fabricar um ninho...
Não sabe nada a respeito?...
E o faz qualquer passarinho.

Quer fazer tudo, e se embrulha,
Não faz o que ele crítica...
E a minha musa se orgulha
Com tudo isso que aí fica...

Pois faz a canção grotesca,
Como a estátua a machadadas,
Por uma manhã bem fresca,
Cheia de luz e orvalhadas.

X
Às vezes ouço Silenos
Fazendo algum homicídio,
Cantando em surdina os trenos
Ou de Tibulo, ou de Ovídio:

Porém da morte desperta
Ninfa ainda um pouco aflita,
Nesta floresta deserta
Flor que morre, ressuscita:

Tem convulsões, tem gemidos,
Tem ais, sucumbir parece,
E cai no chão sem sentidos:
Depois mais bela aparece...

Sileno corre os desvios,
Como uma cabra lanuda,
E vai soltando assobios...
De moita e velhaco muda.

Ouço agora nas folhagens
Gritos agudos dos grilos,
Pondo quérulas imagens
Por estes sítios tranquilos,

Dando a sombra, que é precisa
Ao quadro belo e radiante:
E o pincel assim desliza
Por aí a fora, distante,

De modo que sucedendo
Umas às outras as telas,
São as cenas, que estou vendo,
Sempre novas, sempre belas.

XI
Mas este imbróglio me agrada,
E em cada cena descubro
A arte de não dizer nada
Ao clarão de um verso rubro.

Ando escrevendo na areia,
Onde o mar sacode a vaga,
Onde uma maré bem cheia
Lava a praia, e o verso apaga.

De vez em guando lá deixa
Uma pérola do seio:
Não há razão para queixa:
Na vaga a riqueza veio.

E então mostro a toda gente,
Dentro de esplêndida estrofe,
Essa pérola luzente
Guardada, como num cofre.

E com a tinta grosseira,
Só a única que tenho,
A floresta brasileira
Como num borrão desenho.

Qual é o mestre sublime
Que não recebe uma vaia?
Ser vaiado não é crime...
Esta pintura, que saia...

E vai... e sai com certeza,
Esta pintura a má tinta:
Sempre é bela a natureza,
Mesmo a quem bem a não pinta.

E eu ante borrão tamanho,
Que se desenrola à vista,
Digo a mim mesmo: — o que ganho,
Em ser um tão grande artista!...

É como estátua grotesca,
Feita a quatro machadadas,
Por uma alvorada fresca,
Entre algumas gargalhadas.

Bendito, sol benfazejo,
Que alenta, que tudo anima:
És o perfume do beijo,
És todo o esplendor da rima.

E o coração não palpita,
Como corça fugidia,
Sem a tua luz bendita,
Que um rubro sangue em nós cria...

XII
Como do sol uma réstia
Basta a mostrar-nos o dia,
Eu bem sei o que é modéstia,
O que é pudor já sabia:

Mas cá dentro estou seguro,
Que não faz mal a vaidade,
E a gente crer no futuro,
E crer na imortalidade.

Se houver um Quintiliano,
Que me dê celebridade,
Passo a dormir todo um ano,
Durmo mesmo a eternidade.

Não há lógica cerrada
Nas minhas frases seletas:
Isto não quer dizer nada
Entre nós os grandes poetas!

XIII
Oh! fragilidade humana,
É disso que vive a igreja:
Se disso o dogma dimana,
Nisso a quimera viceja.

E há uns reles vendedores
Dessas eternas orgias,
Aonde cantam louvores
Os anjos todos os dias.

Vão retalhando pedaços
Do céu, que vendem aos poucos,
E há no fundo dos espaços
Para os humildes e os loucos.

Aqui a Deus não procuro,
E Deus em tudo respiro
Neste ar vivíssimo e puro,
Nas selvas deste retiro:

Eu não quero outra rotunda,
Eu não quero outra abadia,
Basta a floresta profunda
Com tudo que ela procria.

Basta o nativo perfume,
Que de si toda ela exala,
Como se fosse ela o nome,
Que neste aroma me fala.

Ateu não sou, antes creio
Em alguma coisa ignorada:
O que vive neste meio
Que sabe? Não sabe nada.

— Mas quem criou a floresta?
Quem criou Deus?—então grito.
E o eterno problema resta
Bem como a Esfinge do Egito.

Oh! que formidável luta
Contra os extremos furores...
Pois da verdade absoluta
Alguns se dizem senhores.

Há de contudo a Verdade
Vencer: mas deve ser lento,
E em remotíssima idade,
O triunfo do pensamento.

Quem sabe o que Deus destina
No fim? quando não se espera
Lá rebentou uma mina,
Que a face da terra altera.

XIV
Para torná-lo clemente,
Deus que de nós não se afasta,
Uma lágrima somente,
Uma só lágrima basta.

Não há em mim Deus? Parcela
Do seu espírito imenso
E minha alma se revela:
Eu existo, eu vivo, eu penso.

Que vive em mim, estou seguro,
Com ele todo o universo;
Que o passado, que o futuro,
Que tudo, em que estou imerso

Minha alma arrebata, enleia,
E no seu giro me leva:
Há quem nisto tudo creia?
Há luz, mas inda há mais treva.

Há muito orgulho em pensá-lo:
Há maior orgulho em crê-lo:
De Deus a nós, que intervalo!
Oh! que enorme pesadelo.

Não se resolve o problema!
Oh! que indecisão funesta!
Morrer! verdade suprema!
És a verdade que resta?

Mas nisto tudo mistério!
Questão jamais resolvida
E eis o problema mais sério,
Que temos em toda vida!

Homem, teu Éden procura:
Põe a dor a teu serviço:
Domesticá-la, criatura...
Teu fito deve ser isso.

Conquista sobre conquista:
Batalha sobre batalha:
Ter na terra o céu à vista,
É teu destino: trabalha.

XV
Um sabiá preto canta:
Temos aqui padre cura,
Temos aqui Bíblia santa,
Temos a santa escritura...

Aqui em cada cantinho,
Há uma família amante:
Pia em cada galho um ninho;
Canta um beijo ali adiante...

Se acaso olho para baixo,
Range uma cama de palha...
Num beijo dois biltres acho:
Não se envergonha a canalha.

Dardanário de doutrinas
Defuntas, amortalhadas,
Que nos teus livros ensinas,
Que estão cheirando alvoradas...

Dizes: — Por que derruí-las:
Fazem bem à humanidade?!
E, nas tuas apostilas,
Sacrificas a verdade...

XVI
Mas foi tristíssima ideia,
(Vis interesses têm disto)
Fazerem Deus, em Niceia,
Do pobre do Jesus Cristo.

O que lucrou a doutrina
Do pregador nazareno?
Sua figura divina,
Seu belo rosto moreno,

Seu calmo olhar, que continha
Promessas de um mundo em festa,
Perdeu na fraude mesquinha!...
E acima disto, o que resta?

Um homem crucificado
Pela ideia, por que luta:
Não foi Sócrates levado
Também a beber cicuta?

E esse homem teve a estatura
De um desses seres, que a história
Dá como exemplo à criatura,
Dá como padrão à glória

E quando um dia apareça
Em seu esplendor primeiro,
É de crer que cresça... cresça...
Até levar o madeiro

Ao céu azul e pregado
Ao menos com quatro estrelas,
Possa ser da terra olhado,
Possam todos vê-lo e vê-las.

Sim! que todo o mundo veja
Brilhando o vil instrumento
Na abóbada dessa igreja,
Que teve no pensamento,

Que pregou a céu aberto,
Que a céu aberto ensinara,
Na cidade, no deserto,
Por toda parte, onde andara:

E condene a Constantino,
E a grande voz de Niceia,
Que por fazê-lo divino,
Defraudou-lhe a vasta ideia...

XVII
E ele há de surgir de novo
Dessa velha sepultura,
Na destra mostrando ao povo
O sol da verdade pura,

No limitado horizonte
Do quanto a razão alcança,
Um pé em cima de um monte,
Outro em cima da esperança...

E daí a imaculada
Hóstia aos céus alevantando...
Hóstia, a esperança, alma alada,
A alma de tudo voando...

Perguntará em que hora
Poderá a humanidade
Perder-se na eterna aurora,
Fundir-se à eterna verdade?...

E esperaremos contritos
Jesus, os homens, os mundos,
Que desça dos infinitos,
Dos vastos azuis profundos

Uma palavra — a primeira —
De amor, e misericórdia,
Dando a humanidade inteira
Fim à sua triste história.

Mas por que Deus inda espera?
Faça qualquer coisa ao menos;
Arranque a dor, que lacera
A entranha da eterna Vênus.

Não terá ele em seus vales
Uma flor entre outras flores,
Que cure todos os males,
Que acabe todas as dores?

Continuarei a obra santa,
Buscando a planta que cura:
E onde hei de encontrar a planta?
Acha às vezes quem procura.

(Segunda Parte)

I
Mas procuremos a planta,
Que cura todos os males:
Andemos nesta obra santa
Pelas montanhas e vales.

Andemos por toda a terra:
Inda no fundo dos mares;
Em tudo que a dor encerra,
Por toda a parte há pesares.

E parece que o remédio
Mesmo ao pé dos males cresce:
E a quem o busca sem tédio,
De repente ele aparece.

Nada sabe o padre cura
Em seu púlpito gritando,
Tudo está na sepultura
Onde um rei, verme execrando,

Os nossos corpos devora...
Mas, oh! clemência divina!
Dessa treva nasce a aurora
Que aos seus crentes Deus destina.

E o sol (enquanto ele borda
A sentença em língua morta)
Esfrega os olhos, acorda,
Põe-me lanternas à porta.

E para entreter-me a inércia,
E o bom humor, quando saio,
Acho tapete da Pérsia
Estendido em cada raio,

E para maior derriço,
E produzir mais efeito,
Em quadro de ouro maciço
As telas de Tintoreto

Sânzio, Holbein, e Buonarroti,
Ele aos meus olhos pendura:
E às cróceas mãos um archote,
Ri-se a mostrar-me a pintura...

E tanto, tanto ouro brilha,
Que não há mais coisa pobre;
E o trapo de um farroupilha,
Como uma púrpura, o cobre.

É a mesma água turva e cheia
De febre intensa, que escalda,
Pela sarjeta serpeia,
Como um colar de esmeralda.

II
Lá na barranca, a um retiro,
O ranúnculo flameja:
Tem a púrpura de Tiro,
O sangue de uma peleja.

E o escaravelho, que voga
No ar, e vem de emboscadas,
Lacera-lhe a rubra toga
Às rudes chancas ferradas.

Voam dois ou três canários
Vestidos de ouro (os janotas!)
A desfiar os rosários
Das mais cristalinas notas.

Os chafalhões!... Imagine
A cantar neste auditório!
Fazer música à Bellini,
Sem ir ao conservatório!...

E andar de idílio em idílio,
A cantar de pulo em pulo,
As pastorais de Virgílio,
E as estâncias de Tibulo!

Há nos tufões algazarras,
Dá palmas toda a floresta:
E assobiando as cigarras,
Dizem: — Aquilo não presta. —

E tocam tudo ao realejo,
Jalofos, pobres fadistas,
Banham-se à luz, num adejo
Os invencíveis artistas.

Enquanto encostado a um cedro
Um velho boi misantropo
Rumina o latim de Fedro,
Fabula à moda de Esopo.

E com toda a gravidade
 pobre bruto imagina
Enforcar a imensidade,
Pôr a luz na guilhotina.

E o sol, essa flor imensa,
Abre a corola de chama,
Sobre o que pensa e não pensa,
Sobre o que ama e não ama.

III
Belos arbustos de meses,
Em suas grandes raízes,
Parecem uns bons burgueses
Nédios, ridentes, felizes.

E a linda flor que lhes fica
Ali a pender dos galhos,
É uma comenda rica
Abrilhantada de orvalhos...

São tantas! Troncos ufanos,
Que belos penduricalhos
Tendes, sem ser veteranos,
Cheios de guerra e trabalhos.

Vossa cabeleira vasta,
Verde, como as das Nereidas,
Quanta luz ao sol não gasta,
E ao céu azul quantas sedas!

Passam insetos brilhantes,
Como príncipes de raça!
Que de rubis e diamantes!
Mas nada... nada de graça...

Quando a gente não espera,
Quando com um deles se esbarra,
Vê que há lá dentro uma fera,
Vê-lhe a pequenina garra.

Num longo zumbido terno,
Passa negro maribondo,
Como um visconde moderno
Sob o seu chapéu redondo.

Andam duas borboletas
Tão agarradas, tão juntas,
Que a gente sente venetas
De entrar em certas perguntas.

E tremem nuns calafrios
Sem que uma da outra saia!
Juntam-se os melros vadios,
Fazem-lhes troça, e dão vaia...

IV
Via-se em rota voluta,
Ao pé de janela extinta,
— O tempo e o mármore em luta —
Um desenho a meia tinta.

Mas sobre aqueles desmaios
Entravam, como lavores,
Uma música de raios,
Uma cantata de flores.

Pela cornija subia,
E, mais acima, à cimalha,
Uma risada do dia
Em trepadeira canalha.

De uma luxúria maninha...
Folhas, mais folhas, e espinhos...
E entre as flores, que ela tinha,
Pois não tinha também ninhos?

Sempre olha a desenvoltura!
E toda... toda essa cria
Sem batizado, sem cura,
Sem água benta, sem pia.

Qual! Em vão!... Jamais regula
A natureza em seu curso,
O Papa com sua bula,
O Bispo com seu discurso...

V
Nem do bom Santo Agostinho
As lições de teodiceia,
Onde arde um fogo daninho
Na frase de cada ideia:

Embora Tertuliano
A pôr água na fervura,
Seja um doutor mais humano,
Tenha mais dó da criatura.

Esta canalha, que viça
Com sol e o húmus da terra,
Não sabe ouvir uma missa,
E aos santos padres faz guerra.

Ouvem o grito profundo,
Que dentro em si Deus lhes grita,
E babam germes no mundo:
Ajuda-os a luz bendita.

E quando Deus se revela,
Anda com eles brincando,
E nasce cada flor bela!
Voam colibris em bando...

E os sabiás vêm alados,
Cantando em canções brejeiras:
— Rosas, de nossos pecados,
Por que floris nas roseiras?

Toda essa farandolagem
De ervas fazia operetas,
E havia um hino selvagem
De santos anacoretas,

Num surdo rumor de rimas,
Numa cadência de falas...
Darei ao mundo obras primas
Se conseguir decifrá-las.

Já minha mente imagina,
Que talvez fazendo esteja
Algum velho Palestrina
Composição para igreja,

De todas aquelas notas
De toda aquela harmonia,
Que sai das coisas ignotas,
Que a relva dentro em si cria...

VI
E ouço vibrar a canora
Fanfarronada do vento,
Que aí pelo mato em fora
Montar parece um jumento.

Olha o farsante, o gaiato!
Que flauta doce assobia!
Que vai fazer ele ao mato
A esta hora do dia?

E na carreira estouvada
Não lhe resiste fedelho:
E a selva acorda espantada,
E dobra, a rir-lhe, o joelho.

E os diamantes do Mesquita,
Do Rothschild o ouro todo,
Não chega para a esquisita
Coroa, que o sol põe no lodo.

Como um deus entre esplendores,
Aí anda o Vítor Meirelles
Fazendo ceifa de cores,
Tirando o grande do reles.

E toma lição absorto,
Este discípulo augusto,
Daquele rochedo torto,
Daquele aleijado arbusto.

Que pateada! Que estrondo!
Que vaias da passarada,
Que em torno ao chapéu redondo
O apupa, e voa espantada!

E ele espia a traquinagem
O abrir das asas, a pluma,
E as sombras, que na passagem
Caem no chão uma a uma...

E faz disso tudo assombros
Em cima de um trapo escuro...
E dizem que traz aos ombros
Glória, lauréis, e futuro...

E que já pensa que é Rubens,
Sânzio, Holbein, Ticiano,
Por andar metendo nuvens,
Sóis, reis, colossos num pano.

Tudo tira da palheta,
Tudo entesoira o maldito:
E anda-lhe cheia a gaveta
De auroras, e de infinito.

Este enorme milionário,
Que tem os impérios da arte,
Quer ter mais inda (usurário!)
Não acha nada que o farte.

E observa a nudez primeiro,
Veste-a depois ebriado,
Que é o belo o verdadeiro
Qualquer coisa idealizado.

Aos átrios largos da glória,
Sem terror, sem calafrios,
Pensa que há de ir? Ora, história!
Suba... mas entre assobios...

Que o gênio não dá um passo,
Sem que lhe arranquem, na estrada,
Algum brilhante pedaço
De sua toga estrelada.

Ante o condor me extasio,
Que bebe azuis, sobe aos astros,
Anda-me na alma o arrepio
De ver um verme de rastros.

Se o verme pra os céus serenos
Tivesse sido criado,
Punham-lhe aos ombros ao menos
Uma asa de cada lado.

VII
O Pedro Américo ainda
Anda a escolher no silvedo
Cores da aurora, que finda
Na bacanal de um folguedo.

Nos cabelos se enrodilha
Do sol, que do mar assoma,
E à coma dele, que brilha,
Mistura flamante coma.

O Vítor todo embebido
Num sonho de azul celeste,
Certo Luar prometido
De roupas pálidas veste.

Guardo a promessa na mente;
E certa parede nua
De ambos espera o presente,
Daquele o Sol, deste a Lua.

São meus os mestres primeiros,
Tenho os Sânzios, tenho os Goyas,
Tenho, sim, os dois joalheiros,
Só deles não tenho as joias!

Um gaturamo, que passa,
Vê-me a dançar nesta corda,
E atira-me uma chalaça...
Um sonho dorme; outro acorda.

Um tufão tocando o bombo
Ruge, a gritar-me aos ouvidos:
— Levaste um profundo rombo
Nos teus desejos queridos... —

VIII
O bambual dança a valsa
Num ritmo cansado e mole;
A brisa dentro da balsa
Toca uma gaita de fole.

Tangem fanfarras vermelhas
Os insetos multicores:
Abre-lhes verdes orelhas
O vale, embaixo, entre flores.

Enquanto roda a comédia,
E o idílio salta em galhofa:
Das pedras da idade média
Enquanto o epigrama mofa,

O epigrama rutilante,
O idílio branco de neve,
Que o tempo, imóvel Atlante,
Com muitas rosas escreve:

E cobre os impérios idos
Com vasto lençol de grama,
E nos seus fustes caídos
As gargalhadas derrama...

Das heras, musgos, e clícias,
E trepas, e parasitas,
E os enche enfim das delícias
Destas cousinhas bonitas:

Entre as flores não acharas,
Não viras nestes taludes
A tirania das caras,
A farsa das atitudes.

De Falstaff ébrio, e falsário,
Do espertalhão Sancho Pança,
Neste santo medalhário
O tempo perfis não lança:

Nem teu perfil, sábio estulto,
Belo, arrogante, pançudo,
Que pensas encher teu vulto
Todo o horizonte, e o mais tudo.

Pã, velho astuto e finório
Põe ante si (que canalha!)
Este escarificatório
À vil humana escorralha!

Haja lustrais na floresta:
As selvas cantem-te as loas:
Já tenho um cão para a festa,
E duas cabras bem boas.

A primavera faz odes,
Faz canções aos seus amores:
E as catedrais, e os pagodes
São selvas cheias de flores.

Aprendem noutra cartilha
A poder fazer esmolas,
Vestindo bem a mantilha,
Tocando bem castanholas.

Não faz grandes abadias,
Não faz com prazer cadeias,
Quer estas coisas vazias,
E quer as escolas cheias.

Quer o tam-tam, o folguedo;
Em doidos hinos se expande;
Do grande Deus não tem medo;
É muito bom, quem é grande.

IX
Há sombra neste pedaço
De terra; uma árvore a cobre:
Eis uma curva de braço!
Eis uma cabeça nobre!...

Esta é de Apolo. — Este lindo
Braço arredondado é de uma
Vênus, da concha saindo
Em alva nuvem de espuma.

Estes mármores deitados,
Quebrados uns, quase inteiros
Outros, são deuses deixados
Por vales e por outeiros,

Fazem que a gente imagine
Uma página marmórea
Por Antônio Vivarini,
Ou por Vicente Vitória.

Sobre um tronco cogulado
No cimo artisticamente,
Há um pássaro pousado,
Que a obra acaba insciente.

E à sombra dele num gesto,
De quem as ninfas espera,
Um Pã que parece honesto,
Todo embrulhado na hera.

Abre num longo arrepio
Sátiro a boca sedenta,
Como sai da rocha um rio,
Dela a chalaça rebenta.

Era o jardim de um abade:
Era um vergel de repouso,
Onde sua caridade
Ria, a beber ar cheiroso:

E assim ouvia de longe,
Ao azul de um céu puro e belo,
Tremendo a voz de algum monge
Um sol de Paisiello.

Eis aqui um monólito,
Restos de uma estátua rara:
E cipolino do Egito,
E alvo bloco de Carrara:

E o pentélico mimoso,
Como o cristal transparente;
E o negro com o tortuoso
Veio de ouro reluzente:

Verde de Suza, amarelo,
Vermelho, sanguinolento,
Que um dia ergueu o martelo,
Que um dia abateu o vento,

Em obra de arte esquisita,
Em faunos, ninfas, bacias,
Onde a água caindo agita
Curvas flechas luzidias:

O verde, o turquês luzente
Ao azul mesclado e tecido,
Formou o chão sabiamente,
Como um florão embutido...

Podia sua excelência
Vir ao jardim, ver o mato,
E até por inadvertência
Meter na lama o sapato.

Eis onde o senhor abade
Lia Cícero e Virgílio...
E para a eventualidade
Se preparava a um concílio...

Um cemitério de pedra
ossos de mármore, aonde
A erva insolente medra,
E o tempo estragos esconde.

Que vale mais no mistério,
Que este universo rodeia:
Um verme, ou um megatério?
O sol, ou um grão de areia?

X
Oh! que invisíveis ciclopes,
Oh! que titãs prisioneiros
Não vão rolando aos galopes
Por cima de dois argueiros...

Enquanto tragédias mudas,
Das quais não se ouve um só grito,
Anda Jesus, anda um Judas,
Um Sócrates e um Anito.

E em réstia de sol, que fira
Alguma fisga de gruta,
O Cristo na cruz expira,
Bebe o herói grego a cicuta.

E à sombra de um cogumelo,
Guarda-sol, que os furta à chama,
Mata a Desdêmona Otelo,
Em alarido de drama,

Nuns aparatos de cenas,
Em que entra o alfanje, o veneno
Que a abala o interior apenas
De uma gota de sereno.

E a população fradesca,
De pedra em moitas metida,
Cascalha a risada fresca
Das coisas cheias de vida.

XI
O tufão, que as folhas leva,
É como o órgão, que as naves
Da catedral medieva
Povoa de notas graves;

Um corvo após ele voa,
Vai pela luz dentro e a pinta,
E o céu de jalde nodoa
Com sua mancha de tinta.

Ouço uns túmidos arpejos!
Ali, na sombra bolindo,
Há o delito dos beijos,
O crime das bocas rindo.

O hino das epidermes
Em todo o bosque murmura:
Uma hora existe em que os vermes
Cantam também na espessura.

Vênus com Marte se pilha
Em cada canto do solo:
E é cada grão a camilha,
Onde arde um beijo num colo.

E no cói de algum argueiro,
Pigmalião, Galateia
Fazem idílio brejeiro,
Tecem alguma Odisseia.

E há tanto sol que inda cuido,
Que o velho Olimpo ouro chove;
E em meio desse ouro fluido
Há brincadeiras de Jove.

E enquanto Leda se banha,
Passa entre as pernas de leve,
E uma das cochas lhe arranha
Um cisne da cor de neve.

Um grito de dor apenas
Solta Leda, e já sem susto
Nas mãos afaga-lhe as penas,
Toma-lhe o bico robusto.

Uma mulher desgrenhada,
Movendo a rubra guedelha,
Na água, em que o cisne alvo nada,
O rosto de deusa espelha.

Mas esta tem a tormenta,
E a fronte de nuvens cheia,
Que em tempestades rebenta,
Que o raio desencadeia.

Leda assim tímida ao vê-la,
Embrulha a espádua na trança:
Fica por cima da estrela
A nuvem, que o vento lança...

XI
Quem tange aquela rabeca?
Quem bate aquele timbale?
Há uma velha careca
Grunhindo ao fundo do vale.

Ela vai por água abaixo,
O vestido arregaçado,
Tamborilando num tacho,
Já sem chantel, já furado.

A pedra, donde a água desce
Em desgrenhada corrente,
É lisa, branca, e parece
Cabeça nua de gente.

Fedro ao ouvi-la estoura em risos:
O torto Esopo fábula:
Arlequim, mexendo os guizos,
Chasqueia, empina-se, pula.

Uma magnólia, que ouvia
O xexé bobo, a chalaça,
Num chilique de histeria
Finge tremer... mas com graça.

Filosofava um Erasmo,
Como Demócrito ria,
O verme, — aquele sarcasmo, —
A larva, — aquela ironia. —

Dante cismava, sentado
À sombra dum arvoredo,
Num pontífice queimado
Em fogo de fazer medo...

E enchia o Inferno de cenas,
Que o outro Inferno não tinha,
E ouvia os gritos das penas,
Que dar aos maus lhe convinha.

E uma cólera sombria,
Como uma nuvem, que cobre
Lentamente o sol, — tingia
Seu rosto severo e nobre.

XIII
Voa o colibri que apenas
Tem quatro trilos, tão rico
É de tantos sóis nas penas
Que lhe faltam sóis no bico.

Como canta o gaturamo!
Não tem canto próprio; — imita;
E salta de ramo em ramo,
E toda a selva palpita

Ao ouvi-lo cantar: e é belo
Ouvir num biquinho curto
Voar o céu num ritornello,
Rir todo o azul nesse furto.

E ele imita (o salafrário!)
Vossas canções, como idílio,
Ó sabiá, ó canário,
Ó grande Homero, ó Virgílio!

E aquelas sonoras notas
Com que ensurdece as balseiras,
Acham ouvidos nas grotas,
Um gesto bom nas roseiras.

E são bisalho e vidrilho,
Que o sol espeta de pino:
Guardam da pérola o brilho;
Um é idílio, outro hino.

De perto é o pó que revoa
Da mica, que tem a areia,
Que é nimbo ao longe, que é coroa,
Que doira, esplende, encadeia.

Mas a tormenta divina
De sons fura o azul, cintila,
E a ave, que o canto ensina
Ouve-a, passando, tranquila.

Uma gravura tirada
De um quadro de um grande artista
É tudo, e enfim não é nada
Da obra do colorista.

Como a túnica do Mestre
As vossas, ó mestres da arte,
Vem a zambra turba alpestre
Rompe, espedaça, reparte.

XIV
Enquanto, como um besouro,
Zurve assim meu pensamento,
O sol com a cauda de ouro
Mexe em torno o firmamento.

A luz graniza em agulhas,
Se desmoeda em cêntimos,
Ouve a rir todas as bulhas,
Enche as gargantas, e os cimos...

De nuvens rutila a fronte,
Em largo voo a soslaio,
Pintam anjos no horizonte
Botticelli e Ghirlandaio:

Mas Gavarni muito sério,
Desenha ali de carreira,
À margem de quadro aéreo
Enorme velha gaiteira.

Canova a arfar, (que trabalho!)
Rola um bloco branco, enorme,
E a hirtos golpes de malho
Acorda um Teseu, que dorme.

E um minotauro indomado
Dentro do mármore corre,
Enquanto ao escopro arrojado
Do mestre não cai, não morre.

Mas fantásticas bacantes,
Em largos vestidos brancos,
Buscam-lhe as barbas distantes,
Metem-lhe os tirsos nos flancos.

Enquanto velha de touca,
Fiando em cima do monte,
Enche de baba da boca
O anel do vasto horizonte...

E a cavalo pela frente,
Deuses, num galope rude,
Vão passando de repente
Por cima daquilo tudo.

XV
À harmonia das esferas
Mistura-se a das florestas:
E são as canções austeras,
E são as canções de festas;

E são as grandes orgias
Das orquestras primitivas,
Que nos dão as harmonias,
De que vós andais cativas.

Alma dos mestres divinos,
Alma das músicas todas,
Alma de todos os hinos
Alma das canções das bodas;

E destas loas sagradas,
Feitas só para os altares,
De noite e dia cantadas,
Enchendo em triunfo os ares...

Troncos, galhos, folhas, penhas
São as cordas vigorosas,
Por onde, ó selva, despenhas
Tuas rimas sonorosas;

Foram por nós escutados
Os teus hinos aos milheiros
Por cima dos teus silvados,
Por dentro dos teus ribeiros...

XVI
Ouço uma avena no vale,
Bion églogas ensaia,
Ouço as risadas de Onfale,
Com Hércules preso à saia.

Passa Teócrito a limpo
Os diálogos de um drama,
Onde entra o céu, entra o Olimpo,
E o jônio mar todo em chama.

Cantam no ar ditirambos,
Na trama de ouro da esfera,
Cruzam dois beijos: para ambos
Há uma boca, que espera.

Os verdes Tritões fugindo
Aos seus palácios marinhos,
Deixam Netuno dormindo,
E vem, cobertos de ostrinhos:

Soprando aos búzios torcidos
Uns vilancetes de troça,
Roubar ninfas aos maridos,
Fazer traquinada grossa.

Enquanto lá pelas grutas,
Entre as Nereidas traídas,
Há cochichar, há disputas,
Há beijos às escondidas,

Que amor sem ler alfarrábios,
Nem ter ido a Salamanca,
É um doutor dos mais sábios;
Em toda parte põe banca.

XVII
Do sol em honra, e das Horas
Há targélias nas campinas,
Fazem corras auroras,
As ninfas tocam buzinas.

Neste natio selvagem,
Onde a vida livre assoma,
O perfume da folhagem
Tem mais esquisito aroma.

Não é o risco gigante
Deste monumento informe
De Peruzzi e de Bramante,
Miguel Ângelo e Delorme.

Estes zimbórios trepando
Ao céu, pela Luz acima,
Que renascem, mesmo quando
A mão do homem os dizima,

Estas colunas sem arte
De catedrais rendilhadas,
Que é como um bando que parte
De asas brancas desdobradas,

Que irrompem das verdes matas,
E se internam pelos ares,
Fustes, cintas, colunatas
De gigantescos palmares,

De que mãos vêm? De arquiteto
De força grande, e mais brilho,
De quem Mansard é já neto,
De quem Vitrúvio inda é filho.

Quem traça na terra o gito
Por onde o metal fervente
Do germinal do infinito
Desce em perene corrente?

E desta auxese das coisas,
Desta avalanche de cores,
Busca, alma humana, se ousas,
Busca os parrudos autores.

Esmaga-nos noite e dia,
Com todo horror, todo peso,
Uma insolente ironia,
Um triunfante desprezo.

Traz o universo suspenso
Pela estrelada melena
Deus, — esse triunfo imenso,
Deus, — essa traição serena.

Como pavão arrojado
Dentro de enorme caverna,
Abismo de cada lado,
À porta: — Dúvida eterna —

A áurea cauda pavoneia,
Estreladas asas sacode;
Mas leva aos pés a cadeia,
Da qual fugir mais não pode.

Círculo eterno no espaço!...
Sobe, desce, redemoinha:
Não há no abismo outro traço,
Não há no abismo outra linha.

Em frente da imensidade,
Donde, ó Deus grande, te isolas,
Torna-se um clown um abade
Com suas caraminholas.

Como és monstrengo, grosseiro,
Deus, obra fútil do susto,
Tu que és o universo inteiro
Sobre um leito de Procusto.

Metes rugidos no raio;
E eu raios meto e barulho
Dentro dos cantos, que ensaio,
Sentindo o teu mesmo orgulho.

Rasga no azul uma porta,
Põe a cabeça de fora:
Se eu sou a gota, que importa
A gota, que o mar devora?

Deus grande, Deus calmo e fero,
Deus poderoso, Deus alto,
Eu sou o titã, que espero
Dar aos teus céus um assalto.

E deste pequeno globo,
Onde amarrado me sinto,
Busco o espaço num arroubo,
Olho as estrelas faminto.

És tu, ó Deus, que sustentas
Esta alcateia de feras,
Que andam em mim famulentas
Das tuas áureas esferas.

Em mim o fogo flameja,
Batem ciclopes um malho,
E as armas para a peleja
É seu eterno trabalho.

É fundir Pelion no Ossa,
Montanha sobre montanha:
Na obra sólida e grossa
Pôr rebeliões na entranha...

Com teus mistérios me assombras:
É teu silêncio tremendo:
Como uma águia em céu de sombras,
Pra ti as asas estendo.

Não dobro a fronte contrito,
Vencido, preso, esmagado:
Tu andas pelo infinito;
E eu quero andar ao teu lado.

Em que aos raios explodidos
De tuas mãos caia imbele,
Como um dos titãs caídos
Dos titãs de Romanelli.

Se os Encélados não soltas,
Será, ó Deus, que inda os temas?
Eu sinto as grandes revoltas
Dos Prometeus nas algemas.

Sinto-me ser dessa raça,
Que há de ter numa hora dada,
Em cada estrela, que passa,
Uma águia domesticada.

Sinto que entre os nossos dedos
Teremos a natureza,
Bela, nua, sem segredos,
Vencida, esmagada, presa.

Se estiver Deus dentro dela,
Se além não há mais guarida,
Que pérola azul e bela,
Na mesma rede colhida.

Treva e mais treva: amontoa
Noite profunda em nossa alma,
Ou a fome desta leoa
Por tuas mãos, Deus, acalma,

Ou tens um terrível plano,
Ou não existes; — e nota,
Que para Deus, és tirano,
Para tirano, — idiota.

Calo-me agora, estou mudo:
Cruzo os meus braços: espero:
Ai! o céu, no fim de tudo,
E um grandíssimo zero.

Trauteia, dança, anda, em roda,
Pã: — o Sileno, fanfarra,
Quem sobe aos céus, quem os sonda,
Somente estrelas agarra.

XVIII
Chovem saíras em bando,
Tomba cascata de insetos,
Que andam no azul conjugando
Amar, em vários dialetos.

De escura cariátide,
Que encima a erma pilastra,
Cobre-lhe os seios a vide,
Que nela os braços alastra!

E em restos, que mal se via,
Duns capitéis derruídos,
Na altiva melancolia
Dos orgulhosos vencidos,

É um frade de granito
Confessando uma andaluza,
Fazendo um gesto esquisito,
A cada falta, que acusa

A bela, — um rochedo calvo
Pançudo, bom, religioso,
Que tem junto o seio alvo
De um cacto grande e cheiroso:

E dentro do cacto aberto,
Como a concha de uma orelha,
Se arranjam cenas decerto
Entre uma gota e uma abelha.

Qual abelha!... É o sol! Canalha!
Pois nessa água pequenina,
Que é maior, sem que mais valha,
Quarto de libra esterlina;

Que a noite deixou apenas
Pingar dos túmidos seios:
O sol beijando açucenas!
Que harém! que farsa! Pilhei-os!...

Olhem ali para dentro...
Uma só gota... E entretanto
O sol dança, e elas no centro,
Ao som de invisível canto.

E o céu se ri todo e azula
Em fundo de ouro e de prata:
E uma Hamadríade pula
Em cada tronco da mata.

O fauno escondido espia,
A ver se vai uma — incauta —
E à luz mistura a alegria
De sua divina flauta...

Enquanto pelas descidas
O canavial num sussurro,
Longe repete: — O rei Midas...
Xó... tem orelhas de burro...

Ai! que estalidos de bocas!
Ai! que atritos na floresta!...
São dessas cabeças loucas
De deuses, que andam em festa...

Há pelo bosque soluços,
E estranhos sátiros rindo;
E sobre as coisas de bruços,
A luz de um sol muito lindo.

Deusa coroada de cachos,
Pejada de augustas faltas,
E que dos leitos mais baixos
Aos áureos triclínios saltas;

Tu jogas a cabriola,
Desde os tálamos da aurora,
Tocas pandeiro e viola,
Com as mãos e pernas de fora:

E os dois grandes seios brancos,
Como tulhas de um celeiro
Acusam teus cheios flancos
De beijos com o mundo inteiro.

Devassa, pelos espaços
Com os sóis te deitas, e dormes,
E acordas mais bela aos braços
De estranhos deuses enormes.

Coroam-te a fronte loureiros,
Das mãos rebentam-te flores,
Tens na boca hinos guerreiros,
Após as canções de amores.

Quando aos céus olhos levantas
Deus fica estático, imbele,
Tremem-te estrelas nas plantas,
Cantam-te ninhos na pele.

Quando às mãos Fídias osculas,
Sai-lhe das mãos logo Apólo;
Quando no solo tu pulas,
Rebentas rosais no solo.

E Praxiteles há tido
De beijos, que teve outrora,
Agora a Vênus de Cnido,
A Vênus de Cos agora.

Saem-te da rubra bacia
Produtos de toda raça:
Tu és a mãe da alegria,
Ó Primavera devassa.

Saem às vezes maravilhas,
Saem tantas coisas augustas,
Que parecem elas filhas
De um deus de coxas robustas...

Nessa alegre dança eterna,
Em que tens as carnes nuas,
Mete o sol nela uma perna,
E Deus talvez mete as duas.

Lanças dos dedos brunidos,
Na terra em homens derramas,
Esse tufão de ruídos,
Que sai à noite das camas.

E esses diademas variados,
Que cingem as selvas todas,
São presentes de noivados
Das tuas lascivas bodas.

E onde sempre mais se expande
Tua cínica alegria
É na basílica grande
De uma floresta sombria.

XX
E eu estava ébrio, interdito,
Ante aquele bacamarte:
Poeta, que isto hás escrito,
Tinhas gênio e tinhas arte.

Umas estrofes compridas
De arrepiar os cabelos,
Feitas por velhas medidas,
E alguns antigos modelos.

Muita palavra sonora,
Beleza, força, harmonia,
Quadros tamanhos da aurora,
Cenas tamanhas do dia.

E o labaréu, e o ruído
Dos mundos, que o abismo encerra,
Num grão de areia escondido
Ou rindo entre o céu e a terra.

E para dar à pintura
Todas as tintas e cores,
Pus-lhe dentro a noite escura...
A noite com seus horrores.

E dará isto a Odisseia,
Que eu tinha ali, sã, robusta:
Muita rima, muita ideia...
E a forma!... Que forma augusta!...

E meterão tudo aquilo
Numa música festiva:
Cante embaixo o pobre grilo:
Cante em cima a estrela altiva.

Quando Hugo faz o libreto,
Richard Wagner o spartito,
O caminho ficou feito,
É partir para o infinito...

XXI
E olhava já distraído
Um pano do muro roto,
Coçado, negro, poído,
Como os trapos de um garoto.

Distraído inda a mão fecho
Na mosca, que passa, e agarro,
E ouvia em torno ao seu eixo
A gritaria de um carro,

Um fio de água piegas,
Que inda babuja uma grota,
Serviu às antigas regas,
Feitas por leigo idiota.

A capilária, a cicuta,
A jarrinha, a canabrava,
Grenha da orelha da gruta,
Um monstro horrendo tapava.

Não morcego, não coruja,
Que brilham, como uma joia:
Qualquer verme sobrepuja
Pintado por mão de Goya.

Um monstro!... Um fauno brejeiro
De algum marmóreo repuxo,
Quando havia no mosteiro
Seu grande jardim de luxo...

Como tinha em cada furo
Dos olhos cavos um sapo,
Bulindo dentro no escuro,
Abrindo e fechando o papo,

No meio daquelas heras
O velhaco de granito
Parecia olhar deveras
Um verde olhar esquisito.

E desse olhar lhe saía
Uma melopeia rouca:
E todo o corpo lhe ria
Do mesmo riso da boca.

Vivia o mármore bronco!
Na mão, que punha de fora,
Sobre o largo e forte tronco
Sustinha a flauta sonora.

Na lã das coxas hirsutas,
Nos cápreos pés, finos, altos,
Vê-se que sabe ir às grutas,
Que aos montes vai em dois saltos.

É que esse monstro escarninho
Conhece bem sítio e hora,
Em que há de pôr-se a caminho,
E cada ninfa onde mora.

E nessa cara esquisita,
Nesse homem, que acaba em bode,
O deus da luxúria habita,
Um deus que quer, e que pode...

E em cada banquete fero,
Que uma ninfa às selvas custa,
Não pede maldade a Nero,
Nem o veneno a Locusta.

Tem nos excessos da orgia,
Tem no seu amplexo forte,
Essa irritante ambrosia,
Que alegra, e faz rir a morte.

E é desses tórax duros,
Que devem sair um dia
Esses gigantes futuros,
Que Miguel Ângelo cria...

E eu cheguei-me ao velho horrendo:
Perto o fauno era um gaiato
Lúbrico, rindo, fazendo
Rir em torno o próprio mato;

Perguntei-lhe pela planta,
E à enorme boca rasgada
Vi-lhe sair da garganta
Uma estrondosa risada.

E enquanto nesta obra santa,
Por esses montes e vales
Pergunto aonde existe a planta,
Que cura todos os males...

Aonde a planta vingava?
Ai! ninguém me respondia...
Todo o universo cantava:
A mesma sombra sorria!...


(Terceira Parte)

I
Depois de andar nesses campos,
Depois de olhar essas veigas,
Vendo à noite pirilampos,
De dia as flores tão meigas,

Fui de lá à cordilheira,
Que o raio e o condor habita,
De alto a baixo, toda inteira,
Nada da erva bendita!

Mas vamos ainda, vamos
Correr montes, correr vales,
Ver a planta que buscamos
A planta que cura males.

Nesta nova romaria
Haverá quem abiscoite
Todas as cores do dia,
Todas as cores da noite.

Os poetas coloristas
Neste poema confuso,
Tirem cores nunca vistas
Para as pincéis do seu uso...

É só escolher as tintas,
Misturando-as, variá-las:
Eis os pincéis com que pintas,
Eis as cores com que falas.

E para dar à pintura
Todas as tintas e cores,
Pus-lhe dentro a noite escura,
A noite com seus horrores.

Voltei-me: e enterrei a vista
No céu, feroz sumidouro:
O sol sacudiu-me a crista,
Ferrou-me os tentáculos de ouro.

E à noite as estrelas todas
Com venábulos de prata,
Cascalhavam, rindo (as doidas!)
À minha busca insensata.

E os cometas vagabundos,
Dragões alados do espaço,
Revolvendo os glaucos fundos
Nas suas tenazes de aço...

Rugindo clarões ferozes
Dos seus grotões estrelados,
Voltaram-me, ouvindo as vozes,
Os hirtos flancos dourados.

Pedi aos largos oceanos,
A tudo que é grande e forte,
Aos condores soberanos,
Aos albatrozes do norte....

Ao universo esplendente,
Ao outro sem luz, nem facho,
Ao grande infinitamente,
Ao infinitamente baixo,

Como em meio de uma estrada,
Enchendo-a insondável grito,
E horrendamente plantada
Calma esfinge de granito...

Ninguém... ninguém me responde:
E tudo ao ouvir-me se espanta!
E eu em vão pergunto aonde
Existe a bendita planta!?...

II
Vamos por estas florestas,
Vamos de noite e de dia,
De noite também há festas:
Canta de noite a Hamadria.

E enquanto tudo se observa,
Mesmo a selva estando à escura,
Quem sabe se irrompe a erva
Aos pés de quem a procura?...

Vê. Teócrito e Virgílio
Tocando a flauta campestre,
Cada um compondo um idílio,
Um mestre, o outro mais mestre.

Vaiam os pássaros todos:
E eu, isto vendo, me rio:
Olha essa súcia de doidos,
A cantar ao desafio.

Mas nas matas variadas,
Nos scherzos nos ritornellos,
Continuando as risadas,
Seus cantos não são mais belos...

Eles sopram, como vento;
A alma não tem o seu grito:
As notas do pensamento
São as notas do infinito.

É cada palavra escrita
Um sonoroso poema:
Escreve o homem, Deus dita
Lá duma região suprema.

O mesmo ponto de vista
Do mesmo modo se exprime:
Repetir qualquer artista,
Muitas vezes não é crime.

Cada qual a história narra;
Repete o que fora dito;
Mas metendo a sua garra,
O seu processo esquisito;

Lançando tons, novo estilo
Na inspiração do momento,
Que põe sua alma naquilo,
E faz novo o pensamento;

É pois na sua obra inteira,
Que deves julgar o artista:
Para a saber verdadeira,
Não é à primeira vista.

Duas rosas esplendentes
São duas rosas primeiro:
Depois são rosas diferentes
Pela forma e pelo cheiro.

III
Tudo quanto é duradouro,
É força ser verdadeiro,
E deve ser como o ouro,
Que vai ao crisol primeiro.

Não se enfeita a natureza,
Basta-lhe o manto, que a cobre:
Tem assim maior beleza;
Assim... é mais forte e nobre.

Um certo gosto nos basta,
Para o que é bom tirar dela:
A natureza é tão vasta:
Tem tanta coisa tão bela!

Ouço Propércio e Tibulo
Cantando por aí fora:
Em cada galho que bulo
Um ninho pipita e chora...

Ó primavera danada,
Primavera sem vergonha,
Encontrar sempre ninhada,
Logo que em ramo a mão ponha!...

Desta epopeia da selva
Este episódio burlesco,
Que canto, sentado à relva,
Tomando, em céu puro, o fresco,

Eu faço jus a uma história
De que já estou bem seguro,
Todo banhado de glória,
Relido pelo futuro...

Lançarei no desespero
Os vates de minha terra,
E ainda que seja Brejeiro
O que me faz maior guerra.

Mas afianço aos vindouros
Que sua mão de gigante
Não há de apanhar meus louros,
Lá tão longe e tão distante.

Ele que esteja bem quieto,
Com sua lira modesta,
Até que o porvir repleto
Diga: — o Brejeiro não presta.

Brejeiro pois não prossiga;
De glória não frui um naco:
No papo ponha a cantiga,
Meta a viola no saco.

Mas é muita ingenuidade
Pensar que um livro mesquinho
Faz qualquer celebridade,
Sendo o porvir seu padrinho!

Estava o velhusco no vezo
De dar rijo e de dar forte,
Pois tome agora alto e teso,
Tome pois da mesma sorte.

Olhem que não é pilhéria,
Jamais eu faço pirraça:
De mim, em coisa tão séria,
Juízo mau ninguém faça.

Mas não se aflija o poeta,
Nenhum de nós será lido,
Inda que uma obra completa
Tenha afinal conseguido.

Ninguém!... Será tudo novo
Num porvir longínquo e a esmo:
Língua, atitude, alma, povo,
Terra, mar, céu, sol, Deus mesmo...

IV
Olá, olé, nesse galho,
Pica-pau, não batas tanto,
Tu podes quebrar o malho,
Mas eu não quebro o meu canto...

Circula azul borboleta
Em grandes voltas brilhantes,
Cantam duo de opereta
Dois sabiás mais distantes.

No bosque estamos agora,
Bem no meio de floresta:
 sol vai tocando a hora
Em que mete o mato em festa.

Vou-me encostar, mas sem bulha
Nesta pedra, e ouvir-lhe a mágoa:
Tem um olho, que marulha...
Um olho tem cheio de água.

Mas, pedra, choras tão alto
Essas lágrimas benditas,
Que elas vão, de salto em salto,
Dizendo o lugar que habitas.

Há de vir um peregrino
Ver-te chorar de tão perto,
Que vou seguir meu destino
Por um lugar mais deserto.

Foi a planta procurando,
Que cura todos os males,
Que trabalhando e cantando
Ando por montes e vales...

V
E enquanto subo os outeiros,
Meditabundo, pensando
Vou nos vates brasileiros,
Esse esplendoroso bando:

Valentim, Murat, Raimundo,
Arthur, Teixeira de Mello,
Lúcio, jurista profundo,
E o Alberto, o artista do belo:

Machado de Assis, Fontoura,
João Silveira de Souza,
Que nas canções entesoura
Voos de águia e mariposa:

O Olavo, o preclaro, o grande
Cinzelador da palavra,
Em cuja alma, que se expande,
Um fogo sagrado lavra:

E outros poetas excelsos,
De nosso preito credores,
Como os Correias, e os Celsos,
Como mais outros cantores:

E outros poetas, um bando,
Primeiros entre os primeiros,
Que creio ouvir star cantando
À sombra destes loureiros.

E todos pescam estrelas,
Pescam pérolas nos mares,
Somente para fazê-las
Resplender nos seus cantares.

São glórias da pátria, acumes
Do pensamento sem jaça:
São eles os grandes nomes
De uma geração que passa.

Esse grupo soberano
Representa na existência
A alma do gênero humano
Na sua melhor essência:

E deixa para o futuro
Iluminações em arco,
Como a estrela ao palinuro,
Servindo aos homens de marco.

VI

Ó velhas credulidades,
Musgo das almas dos povos,
Tendes em todas idades
Sobre esse musgo outros novos.

Ante a dor, que nos malsina,
Não é a razão que fala:
O instinto tudo domina,
A razão calma se cala.

Os Prometeus amarrados
Estarão sempre em cadeias,
Nas mãos e nos pés atados,
Túmidas, no colo, as veias.

Olhos perdidos nos ares,
As oceânides gemendo,
Vindo nas ondas dos mares:
O cão alado os mordendo,

Porque dizem a verdade
Sobre Jove sobre os nomes,
E querem na escuridade
Todos os velhos costumes.

Não conheceis Deus, nem nada:
Podeis saber se ele existe?
Onde tem ele a morada?
Nada sabeis: é bem triste.

Quereis vergéis encantados,
Além do túmulo embora:
E uma aurora sem cuidados
No meio da eterna aurora.

Mas onde existe isto tudo?
Quem do céu o fundo alcança?
Sempre o túmulo foi mudo
Só esperais na esperança!

Deste universo a verdade
Quem a ouviu? Quem vos tem dito?
Conheceis a eternidade?
Sabeis o que é o infinito?

Alma, Deus, eternidade,
Religião, transcendência
Hão de encher em toda idade
A nossa pobre existência.

Por que a gente se prosterna
A um Deus que de nós se esconde?
A sua morada eterna
Ele terá... mas aonde?

Eu sou de cabeça baixa
Crendo também na esperança:
Quem desespera não acha:
Quem espera sempre alcança.

E alcança no fim da vida
Bem consoladora prova:
Sempre a terra remexida:
Sempre a cova!... sempre a cova!..

Tendo lá dentro enterrado,
Fé, ilusões, esperança:
Por alguns olhos chorado...
E eis tudo quanto se alcança!!...

VII
E o céu pra nossas virtudes...
Quais são as virtudes nossas?
Da alma as várias atitudes
Creio que saber não possas.

Mas do bom, do belo e justo,
É sacrifício a partilha?
Do nosso egoísmo augusto
É toda a virtude filha...

Por que a gente então se ilude?
Que quer de nós uma igreja?
Há pois alguma virtude
Que um interesse não seja?

Questiono apenas: discuto:
Por minha razão eu velo:
Contra os mistérios não luto:
É meu Deus — O grande, e o Belo.

Há Deus, e bom: — há quem diga —
Creio nessa essência boa:
Se há Deus, ele não castiga;
Deus pra ser Deus, só perdoa.

É isso, se não me engano,
A alma de todo o progresso:
O homem bom, Deus humano:
Este é o meu Deus, — confesso.

É este o Deus, não me iludo,
Que trago dentro em meu seio:
Saber tudo, poder tudo,
E não ser bom, — eu não creio.

E ando por montes e vales
Metido em filosofias:
A planta, que cura os males,
Buscar é que tu devias!...

E ando a buscá-la, é verdade:
E enquanto a busco, quem canta
Não perde o seu tempo; e há de
Não achar por isso a planta?!...

VIII
Pergunto a todos: — e nada:
Ninguém conhece o portento,
Nem folha ao tronco arrancada,
Nem inda o sopro do vento.

Nem inda um velho ervanário
Que conhecia a floresta:
Disse-me este: — Solitário,
Não sei a planta, que presta...

Essa planta é coisa nova:
Por estes montes e vales
Só há um remédio, — a cova,
Que cura todos os males.

E o velho foi seu caminho,
Devagar, grave, inclinado:
E eu fiquei ali sozinho...
Sozinho... e no mesmo estado.

Dizendo, (a alma transida
De tristeza, e de amargura )
A cova renova a vida,
A cova os males não cura.

E o velho na cova espera
Que não sofrera mais dores,
Fique embora a primavera
Inda cá fora, a dar flores...

IX
Será que em ouvir se perde
Todo o tempo, que se empregue
Num belo solo de Verdi,
Num grande canto de Allegri?

Nestas brenhas há Scalas,
Há catedrais tão sonoras
Que se pompeiam de galas,
E enchem bem todas as horas...

Em ouvir as ramarias
E dos pássaros o bando,
Metendo em tudo harmonias,
Tudo voando e cantando:

E ouvindo música tanta,
De pontos do céu diferentes,
Viriam mostrar a planta
Outros pássaros e gentes.

E sábios de pós cobertos,
Sábios de muitos conventos,
Que andam de livros abertos,
Lendo a todos os momentos,

Beneditinos espertos,
Dobrados aos calhamaços,
Transpondo da Ásia os desertos,
Depois de empolgar espaços;

Virão dizer que ela existe,
Sabem da planta a estrutura:
Mas em achá-la consiste
A glória do que a procura.

Em vinte tomos... espanta?
Pois era para quarenta!
Para tratar bem da planta,
Deve ser obra opulenta...

Resumo... apenas resumo!
E um deles em voz mais baixa:
— Responsabilidade assumo:
A planta existe e não se acha.

Espécimen dela se guarda
Lá no herbário da abadia...
Mas... está bem velho! não tarda
A acabar, dia mais dia.

Não seria igual a planta;
Mas era a que se supunha:
Pois Deus em toda fé santa
A sua virtude punha.

Nesses tempos singulares
Faltavam fotografias,
E as tintas rudimentares
Custavam grossas quantias.

Com Deus em vão tu te zangas:
Pede: servir-te ele há de:
Deus tem pano para mangas,
Como diz o nosso abade. —

X
Outro abade, inda bem moço,
Com rara facilidade,
(Como falar inda o ouço...)
Falou depois deste abade.

— Papiro bem conservado,
Nas escavações de Atenas
Ultimamente encontrado,
Trata desta planta apenas.

Diz o autor que a flor é bela:
Já a estudei e inda a estudo:
Mas falta o desenho dela:
Quero dizer: — faltou tudo. —

—Basta, padre mestre, basta:
Falar seis horas podia:
Com erudição tão vasta,
Vá pregar noutra abadia. —

Disse-lhe então: riu-se o frade,
Fazendo grande mesura,
Mostrando (e foi por vaidade!)
A branca e grande tonsura.

Oh! que ciência estupenda!
Que capacidade em suma!
Falar, que ninguém entenda;
Sem concluir coisa alguma!...

Outro frade bem velhinho,
(Pois a que tempo era frade!)
Falou-me, mas tão baixinho,
Que antes foi à puridade.

— Quem com Deus se deita, e sente
Que é com Deus que se levanta,
Sob os seus pés de repente
Quaisquer planta é a tal planta.—

Era o seu gesto esquisito,
Cheio o olhar de um lume infindo,
Que eu, rindo, disse: — acredito —
E ele ouviu-me também rindo...

XI
As religiões triunfantes
São terrivelmente duras:
Cruéis se impõem: delirantes
Falam das coisas futuras.

Falam como quem ignora,
Ou como se Deus falasse;
Deles na boca a voz chora,
Têm gravidade na face.

Falam, gritam sem rodeios,
Como um trovão, que rebenta,
Cheios de orgulho; mais cheios
De presunção, e água benta.

E um sabiá preto canta
Vestido de padre cura:
— Temos uma Bíblia santa,
Temos a Santa Escritura

Nestas florestas escrita,
Como se Deus mesmo fosse,
Quem ora escreve, ora dita
Coisa tão boa, e tão doce!

Prefiro nestas alturas
O sabiá que gorgita
A todas as florituras
Do Padre Santo, que grita...

Esta conversa é bem boa:
Mas o que dela trescala?
Arde, espouca, salta, voa,
Como um fogo de Bengala.

Bem boa, sim! eu a louvo:
Mas gosto mais, asseguro,
De um céu lavrado de novo,
De um céu torculado e puro...

Em que cafua se mete
Este filão, este veio,
Que tanto... tanto promete?
De achá-lo pois não há meio?

Eia, à romaria santa
Por estes montes e vales;
Eu quero encontrar a planta,
Que cura todos os males...

XII
Percorri o ciclo todo
Sem cansaço, sem desmaio,
Do verme, que morde o lodo,
Ao condor, que morde o raio.

O raio, que escapa aos guantes
Dos deuses, que a gente ignora,
Grandes bandidos errantes
De sol, de aurora em aurora....

Depois de ter visto tudo,
Flora antiga, e flora nova,
Parei distraído, mudo,
Sobre o ervaçal de uma cova.

Há rosas: rugem as cores:
E rosas, jasmins, bromélias
Dão bem: engordam as flores
Nas podridões das Ofélias...

Em cada flor, que pompeia,
Disse eu então de repente,
Há uma barriga cheia,
Há uma vida contente!

Vi que todas essas plantas
Tinham nos seus gentis quartos
As atitudes das santas,
A calma dos deuses fartos.

Mas pesar de um ventre obeso,
De um ar engraçada e chulo,
De terem festas a Creso,
Bambochatas a Luculo;

Ai! naquelas faces lindas,
Quando as sondei mais de perto,
Vi as tristezas infindas
De um mal que lavra encoberto.

É que de cima da cova
A vida, na garra adunca,
Muda-as de forma, as renova...
Mas a dor não muda nunca...

XIII
Ante a alegria idiota
Da natureza fecunda,
Que à face do céu se nota,
Que a face da terra inunda:

E espelha a serenidade
De um Deus, que guarda o segredo
Por que faz da humanidade
Prometeu preso ao penedo...

Numa galhofa estouvada
De criminoso, ou de doido:
Ai! que enorme gargalhada
Vem do fundo do céu todo.

Acaba a feliz ideia,
Pondo-lhe, em meio de assombros,
Nos pés enorme cadeia,
Enormes asas nos ombros.

E quando quer estendê-las
Urra agarrado, hirto, insano:
Choram por ele as estrelas
Esta água toda do oceano.

Choram nas noites serenas
Essas lágrimas caídas
Os olhos das Madalenas...
Olhos das almas perdidas...

De órbitas fundas, cavadas,
Chovem lágrimas fugidas
Das vastidões ignoradas,
De existências não sabidas.

Chora tudo quanto existe,
Desde o sol até o argueiro:
Mesmo o universo é tão triste...
Chora como um prisioneiro!...

Que nada que vemos preste!
Que qualquer asa ande presa!
Dize: que crime fizeste,
Desgraçada natureza?!

Baldei em minha obra santa!
Corri por montes e vales;
Sem jamais achar a planta,
Que cura todos os males!...



---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.


 

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