AUTOR
Entre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábida é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amaram
como males lhe causaram
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidaram.
A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tão mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam,
que o dia que não se viam,
se viam na saudade
o que ambos se queriam.
Algumas horas falavam,
andando o gado pascendo,
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
pequena, tinha cuidado
de guardar melhor o gado
o que lhe Crisfal dizia;
mas, enfim, foi mal guardado.
Que, depois de assim viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem para maior dor,
enfim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem.
Mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém.
A qual, logo aquele dia
que soube de seus amores,
aos parentes de Maria
fez certos e sabedores
de tudo quanto sabia.
Crisfal não era então
dos bens do mundo abastado
tanto como do cuidado;
que, por curar da paixão,
não curava do seu gado.
E como em a baixeza
do sangue e pensamento
é certa esta certeza:
cuidar que o merecimento
está só em ter riqueza;
em querer que teria,
e do amor não curaram;
em que bem se descontaram
riquezas, se falecia,
por males que sobejaram.
Levaram-na a longes terras,
então, descontentes disto,
esconderam-na entre serras,
onde o sol não era visto,
e a Crisfal deixaram guerras.
Além da dor principal,
para maior pena lhe dar,
puseram-na em lugar
mau para dizer seu mal,
mas bom para o chorar.
Ali os dias passava
em mágoas, da alma saídas,
dizer a quem longe estava,
e chorava por perdidas
as horas que não chorava!
Em vale mui solitário e
sombrio e saudoso,
sendo o monte temeroso,
para o choro necessário,
para a vida mui danoso.
Dizer o que ele sentia,
em que queira, não me atrevo,
nem o chorar que fazia;
mas as palavras que escrevo
são as que ele dizia.
Ali sobre uma ribeira
de mui alta penedia,
donde a água d’alto corria,
dizendo desta maneira
estava a noite e o dia:
FALA CRISFAL
Os tempos mudam ventura
bem o sei, pelo passar;
mas, por minha grande tristura,
nenhuns puderam mudar
a minha desaventura.
Não mudam tempos nem anos
ao triste a tristeza;
antes tenho por certeza
que o longo uso dos danos
se converte em natureza.
Coitado de mim, cuidado,
pois meu mal não se amansa
com choro nem com cuidado;
quem diz que o chorar descansa
é de ter pouco chorado;
que, quando as lágrimas são
por igual da causa delas,
virá descanso por elas;
mas como descansaram,
pois que são mais as querelas?
Contudo, olhos de quem
não vive fazendo tal,
chorai mais que os de ninguém,
que o que é para maior mal
tenho já para maior bem.
Lágrimas, manso e manso,
prossigam em seu ofício;
que não façam benefício;
não servindo de descanso,
servirão de sacrifício.
Minhas lágrimas cansadas,
sem descanso nem folgança,
a minha triste lembrança
vos tem tão aviventadas
como morta a esperança.
Correi de toda vontade,
que esta vos não faltará.
Mas isto como será?
Pedi-la-ei à saudade,
e a saudade ma dará.
Todos os contentamentos
de minha vida passaram,
e enfim não me ficaram
senão descontentamentos
que de mim se contentaram.
Estes, pelo meu pecado,
inda que nunca pequei
a e quem amo e amarei,
nunca desacompanhado
me vejo nem me verei.
Faz-me esta desconfiança
ver meu remédio tardar,
e já agora esperar
não ousa minha esperança,
por me mais não magoar.
Se por isto desmereço,
de ser minha a culpa assim
e seja já com afim,
que há muito que me conheço
aborrecido de mim.
Meu coração, vós abristes
caminho a meus cuidados,
para virem a ser banhados
na água de meus olhos tristes,
tristes, mal galardoados.
Necessário é que vamos
algum remédio buscar
para se a vida acabar;
este é o bem que desejamos,
este é o nosso desejar.
Iremos pela estrada
por onde os tristes vão,
porque nela, por razão
deve ser de nós achada,
achada consolação.
Subir-me-ei ao pensamento,
que é alto; de ali verei,
verei eu se poderei
ver algum contentamento
de quantos perdidos hei.
Mas o que poderá ver
quem já da vista cegou?
Porque quem me a mim levou
meu alongado prazer
nenhum bem ver me deixou.
Deixou-me em escuridade,
um mal sobre outro sobejo,
pelo que triste me vejo
tão longe de liberdade
como do bem que desejo.
Verei a vida, que em vida
bem vista tanto aborrece,
aborrece a quem padece
tristeza mal merecida,
que minha fé mal merece.
Levaram-me toda a glória,
com quanto bem desejei,
desejei e alcancei;
ficou-me só a memória,
por dor, de quanto passei.
Lembrança do bem passado,
que não devera passar,
esta me há de matar;
dá-me tal dor o cuidado,
qual não se pode cuidar.
Nada, se não for a morte,
me dará contentamento:
segundo sei do que sento,
não sento prazer tão forte
que conforte meu tormento.
Não devo eu mal querer
a quem me aqui deixou;
que ouvido não possa ser,
já me algum bem ficou,
sem meu mal puder dizer.
Mas, triste, não sei que digo;
isto é falar a esmo:
que assaz me foi inimigo
quem se vingou de mim mesmo
com me só deixar comigo.
Que me queira consolar,
o meu mal não tem conforto
nem eu lho posso buscar;
para o prazer sou morto
e vivo para o pesar.
Quanto mal tão desvairado
e todos para dar fim!
Tudo me é contrário, assim:
descuido matou meu gado,
cuidado matou a mim.
Como não cansais de ser,
vida de tão longos males,
que eu canso já de viver,
e o eco destes vales
cansa de me responder?
As ribeiras, em eu vê-las,
correm mais do que é seu foro,
entrando meu chorar nelas;
e, pois ainda que choro,
quero só falar com elas:
Companheiras do meu mal,
águas que d’alto correis,
onde caís desigual,
parece que me dizeis:
— Por que não choras, Crisfal? —
Contar-vos quero, amigas,
o que esta noite sonhei,
com o qual tal dor tomei,
que minhas muitas fadigas
em mais fadigas dobrei.
Depois de ontem deixar
de vos contar os meus males,
fui-me cá baixo ajeitar
no mais baixo destes vales,
vales bem de meu penar;
onde, depois que aos ventos
descobri minhas paixões,
gastadas muitas razões,
mudei os meus pensamentos
em minhas contemplações.
Contente de descontente,
a noite sendo calada,
como é certo em quem sente,
não ficou coisa passada
que me não fosse presente.
Vindo-me à memória dar,
quando andava com o gado,
ter com Maria sonhado,
fez-me o dormir desejar,
de mim pouco desejado.
Crendo que aproveitasse
para meu contentamento
que eu com ela sonhasse,
e dê lugar a meu tormento
algum pouco repousasse.
Porém cansado estava
do que no dia passei,
a dormir pouco tardei;
e, adormecido sonhava
o que vos ora direi:
SONHO
Sonhava, em meu sonhar,
onde dormindo estava
ali velando estar,
quando da parte do mar
grande vento se levantava,
o qual com tal sobressalto
chegava onde eu jazia,
e que da terra me erguia
em tanto extremo alto
que a vista me falecia.
Vendo-me em lugar tal,
baixei os olhos a terra,
onde estava o meu mal,
e os vales e a serra
tudo julguei por igual;
mas como aborrecido
tanto da vida andasse,
que meu mal já desejasse,
temor tão pouco temido
não creio eu que se achasse.
Depois de me ser mostrado
este perigo de morte,
a terra mais abaixado,
contra a parte do norte
sonhava que era levado.
Entre Tejo e Odiana
era o meu caminhar,
donde poderei contar,
se o que notei não me engana,
coisas bem para notar.
Porque vi muitos pastores
andar guardando seus gados,
vestidos de alegres cores,
bem fora dos meus cuidados,
mas não dos de seus amores;
nem querendo mais haveres
nem querendo mais riqueza,
que amor tudo despreza;
mas todos os seus prazeres
foram para mim tristeza.
Em um vale, descontente
estar Antônio vi,
que quase não conheci,
sendo bem meu conhecente.
Aquele é o pastor
que já veio aqui buscar-me,
não mais que por consolar-me;
e veio com tanta dor,
que dor me dá ao lembrar-me.
Chorando lágrimas mil,
estava consigo só
ao modo pastoril
de dó, bem para haver dó,
tinto o hábito vil.
Em uma flauta tangendo,
ao pé de uma árvore estava;
dês que da boca a tirava,
de dentro d’alma gemendo,
em vez de cantar, chorava.
Quisera-o eu consolar,
mas em cujo poder ia
não me deu a mais lugar
que ouvir-lhe que dizia:
“Oh! Guiomar! Guiomar!
Em vós pus minha esperança,
e quanto ela encobre
agora em dor se descobre:
perigos, desconfiança
fizeram do rico pobre.”
Assim, por ele passando,
— Antônio, tenhas prazer!
lhe dixe, grande brado dando,
até o da vista perder,
os olhos nele deixando.
Deus lhe dê contentamento,
pois que nos fez a ventura
companheiros na tristura,
em que seu e meu tormento
cada vez tem menos cura.
Daqui fomos correndo
até o Tejo passar,
a água de quem eu vendo,
me foi dor sobre dor dar,
indo já dor padecendo.
Chorando a lembrança dela,
virada foi minha face
para onde o gado pasce
da grande Serra da Estrela,
da qual o Zêzare nasce.
Posto no seu alto cume,
deixaram-me ali estar.
O meu coração presume
que foi por me magoar,
como tinham por costume.
Dali os pães semeados
ver a meus olhos deixaram,
que por não grados julgaram;
mas, posto que foram grados,
eu sei que não me agradaram.
Já o sol se encobria
a este tempo, e mais
ficando a terra sombria,
e o gado aos currais
já então se recolhia;
ouvi cães longe ladrar,
e os chocalhos do gado
com um tom tão concertado,
que me fizeram lembrar
de quanto tinha passado.
Por serem as queixas vãs,
vi berrar o gado mocho,
coberto das finas lãs,
e assoviava o mocho
e o triste cantar das rãs.
Já serranas ao abrigo
se iam, os prados deixando,
as mais delas suspirando:
uma dizia: — Ai, Rodrigo!
outra dizia: — Ai, Fernando!
Uma ciúmes temia,
outra de si tem receio;
uma ouvi que dizia:
“Quão asinha a noite veio!”
Outra: — “Já tarda o dia!”
E por este experimento
foi Amor de mim julgado
por não menos ocupado
do que é o pensamento,
que nunca está descansado.
Ali triste, só, saudosa,
vi entre duas ribeiras
uma serrana queixosa
cercando umas cordeiras,
sendo cordeira formosa.
E, como ali tem por uso,
em uma roca fiando,
mas, como que ia cuidando,
caía-se-lhe o fuso
da mão de quando em quando.
Tendo parecer divino,
para que melhor lhe quadre,
cantar cantou dele digno:
Yo me iba, la mi madre,
a Santa Maria del pino.
O vestido lhe olhei
e vi que era um brial
de seda e não de saial,
a qual eu afigurei
a manga larga do bucal.
Depois de acabar seu canto,
dizia: — Ninguém me crer
por me ver alegre tanto;
visto-me à vontade alheia
e o meu cantar é pranto.
Anda a dor dissimulada,
mas ela dará seu fruto;
a minha alma traz o luto:
de pouco são esposada,
mas descontente de muito.
Troquei amor por riqueza,
porque mo trocar fizeram;
mas bem pago esta crueza,
que, em que cem contos me deram,
descontaram-se em tristeza.
A meu esposo aborreço
quando lembrança me vem
do primeiro querer bem;
ninguém venda amor por preço,
pois ele preço não tem.
Não tenho que lhe falar
se não são coisas passadas;
se lhe estas quero contar,
vão ser todas namoradas
para o pouco namorar.
Fora ele o meu amor
e vivera eu pobremente!...
Que grande engano de gente!
Que pobreza há maior
que a vida descontente?!
Quando com ele me assento,
mil vezes caio em míngua,
porque, por esquecimento,
falando, descobre a língua
o que está no pensamento.
Faz-nos isto então ficar
eu muda e ele mudado;
ama-me como é amado;
para mim disto guardar
por bom hei guardar o gado.
Maria perdi — mesquinha!
Logo em sermos apartadas,
do meu mal fui adivinha;
melhor sejam suas fadas
do que foi a fada minha.
Deus a dê ao seu Crisfal,
por ambos contentes ter,
e mais não lhe quero ver,
mas já sei, pelo meu mal,
o bem d’outrem escolher.
Quando a eu assim ouvi
doer-se de minha pena,
com novos olhos a vi,
e então que era Helena,
minha amiga, conheci.
Esta pastora e dama
certo que melhor lhe ia
quando a cantar ouvia,
dando fé — que em sua cama
o velho não dormiria.
Pena me deu de não crer
vê-la em tal tristeza posta;
quisera-lhe eu responder,
mas trespôs uma tresposta,
pelo qual não pôde ser.
Depois de ver-me sem ela,
os meus olhos me choraram:
quantas coisas lhe lembraram
que entre mim, Maria e ela
em outros tempos passaram!
Desde que isto meu cuidado,
me estive fazendo guerra,
sendo o dia já passado,
vi-me levado da terra,
contra as nuvens alçado.
Então, como que voante,
de quem me ali trouxera
sonhei que levado era
por meu caminho avante,
o sol vi que se pusera.
Indo não com menos dor,
inda que com mais sossego,
os ventos me foram pôr,
depois de passar Mondego,
andando de mal em pior.
Ali vi grandes montanhas
de alguns vales cobertas,
aos naturais estranhas,
onde vi mui descobertas
minhas mágoas ser tamanhas.
Junto de uma fonte era
o lugar onde fui posto,
onde, certo, não quisera,
sendo bem lugar de gosto
para quem gosto tivera;
mas a mim nem o passado
nem o que me era presente
nada me não fez contente,
que nisto o magoado
é como o muito doente.
LIII
Coberta era a fonte
de tão fresco arvoredo,
que não sei como o conte,
estar junto de um penedo,
por ser entre monte e monte.
A noite de ventos muda,
como saudade se colha;
e porque mais prazer tolha,
chovia água miúda
por cima da verde folha.
Depois que ali chegava,
ou depois que ali cheguei,
sonhava que acordava;
e do que atrás passei
de ser sonho me lembrava.
O que então me era mostrado
tendo só por verdadeiro,
ao pé de um castanheiro
me pus, triste, assentado,
ouvindo o tom de um ribeiro.
Meus olhos e eu passamos
ali a noite em clamores,
até que ao tempo chegamos
a que nós outros, pastores,
o dipêndio chamamos.
Naquele tempo corrompe
aquele que ama real
o silêncio de seu mal,
que é quando a alva rompe
e o dia faz sinal.
Então porque tudo o fale,
contando as mais paixões
que razão é que não cale,
ouvi gritar uns pavões
lá no mais baixo do vale.
Trás isto, pouco tardando,
um doce cantar ouvia
que na minha alma caía,
o qual eu, bem escutando,
entendi que assim dizia:
Não sei para que vos quero,
pois me d’olhos não servis,
olhos a que eu tanto quis!
Para ver me fostes dados,
vós só a chorar vos destes;
e se eu tenho cuidados,
meus olhos, vós nos fizestes:
dês que neles me pusestes,
de descanso me fugis,
olhos a quem eu tanto quis!
Meus olhos, por muitas vias
usais comigo cruezas;
tomais as minhas tristezas
para vossas alegrias.
Então noites, então dias,
olhos, nunca me dormis:
olhos a quem eu tanto quis!
Quando vós primeiro vistes,
que não me era bom sabíeis;
mas, por gozar do que víeis,
em meu dano consentistes.
O que então me encobristes,
agora mo descobris,
olhos a quem eu tanto quis!
Ando-vos a vós buscando
coisas que vos deem prazer,
e vós, quando podeis ver,
tristezas me andais tornando.
Agora vou-vos cantando,
vós a mim chorando me is,
olhos a que eu tanto quis!
Quem o que digo cantava,
dês que o cantado teve,
não sei o que o causava,
mas espaço se deteve
assim como que cuidava.
Depois de cuidado ter,
a voz de novo alçou;
este canto começou,
o qual devia de ser
aquilo em que cuidou:
Como dormirão meus olhos?
Não sei como dormirão,
pois que vela o coração.
Toda esta noite passada,
que eu passe em sentir,
nunca a pude dormir,
de ser muito acordada.
Dos meus olhos foi velada;
mas como não velarão,
pois que vela o coração?
As horas dela cuidei
dormi-las, foram veladas;
pois tão bem as empreguei,
dou-as por bem empregadas.
Todas as noites passadas
neste pensamento vão,
pois que vela o coração.
Pássaros, que namorados
pareceis no que cantais,
não ameis, que, se amais,
de vós sereis desarmados.
E em meus olhos agravados
vereis se tenho razão,
pois que vela o coração.
Como a cantiga mostrava,
fui-me eu logo julgar,
era a voz de quem cantava,
que, por mais de bem cantar,
eu ouvir me contentava;
porque de quem ser podia
então suspeita me deu,
que todo o cantar seu
era o da minha Maria
ou a do desejo meu.
Com um temeroso prazer,
que soe ter quem deseja,
esperando eu de ver
a quem eu ainda veja,
antes da vida perder.
Neste desejo, de cima
estando-a eu ouvindo,
a Deus ser ela pedindo,
vi-a vir o vale acima
em seu cantar prosseguindo.
Muito a vi eu mudada;
mas, com tudo, conheci
ser a minha desejada,
a quem , assim vendo, vi,
a vista no chão pregada,
com o seu cantar pensoso
e passadas esquecidas,
ao tom dele medidas,
vestida vir de arenoso,
as mãos nas mangas metidas.
Uma coifa não lavrada,
antes sem nenhum lavor;
e em cima, por mais dor,
uma talhinha pedrada
ou um pedrado tanor.
Quisera-a ir receber,
vendo-a ante mim presente,
mas não pude, de contente,
que, indo para me erguer,
de prazer me achei doente.
Vendo então que me forçava
o prazer fazer demora,
olhei o que mais passava
e vi-a, que àquela hora
comigo emparelhava.
Dando uns mui doces brados,
saídos do coração,
a cantiga vinha então:
em meus olhos agravados
vereis se tenho razão.
Ao que eu responder
me lembra:— São agravados?
Podem logo os meus dizer
que são bem-aventurados,
pois que vos puderam ver.
Como ela em me ouvir
grande sobressalto sentisse,
quis fugir; mas quem lhe disse
que se pusesse em fugir
lhe fez com que não fugisse.
Nas mulheres o temor
tanto o poder impede
quanto o medo maior for,
e contra donde procede
os olhos costumam pôr.
Ela fazendo-o assim,
vendo-me, ficou mudada;
depois, já em si tornada,
se chegou mais para mim,
a ser bem certificada.
Depois de me visto ter
e já que me conhecia,
lágrimas lhe vi correr
dos olhos, que não movia
de mim, sem nada dizer.
Eu lhe disse: — Meu desejo,
(vendo-a tal com assaz dor),
desejo do meu amor,
crerei eu ao que vejo
ou crerei ao meu temor.
A isto, bem sem prazer,
me tornou então assim,
com voz de pouco poder:
“Crisfal, que vês tu em mim
que não seja para crer?”
Eu lhe respondi: — Perder-vos
de vos ver, por tanto ano,
faz-me assim temer meu dano,
que vejo meus olhos ver-vos
e temo que me engano.
“Pois crê certo que esta são”,
deu a isto por resposta,
ainda que alegre não.
E quem em tal dor é posta
o que dela não crerão?
Bem é de crer o meu choro,
a que tu causa me deste;
não te espante o que fizeste,
que quem me pôs neste foro
tu és o que me puseste.
Por ti vim eu desterrada
a estas estranhas terras
de donde eu fui criada;
e por ti, entre estas serras,
em vida são sepultada,
onde a se me perderam
a frol dos anos se vão;
ora julga se é razão
das minhas lágrimas serem
menos daquelas que são.
Depois que isto falou,
como quem em si respeita,
as mãos ambas ajuntou,
e, postas na face direita,
dizer assim começou:
“Sobre o muito que perdi,
nenhuma coisa duvido
em ter o saber perdido,
pois tão mal me defendi
do que me era defendido.”
Eu lhe perguntei a hora,
mui triste de assim a ver:
— Quem teve tanto poder
que tenha poder, senhora,
de nada vos defender?
Respondeu por entre dentes,
como fala quem se peja:
— Dir-to-ei, em que erro seja:
defendem-me meus parentes
que te não fale nem veja.
E, Crisfal, é-me forçado
fazer a vontade sua,
porque lho tenha jurado
e também porque da rua
o certo me têm mostrado;
que me dão certa certeza,
porque fazem conhecer-me
(o que eu hei por grande crueza)
o amor que mostras ter-me
ser só por minha riqueza.
Ouvir-lhe eu isto me era
passar o trago mortal,
que não há coisa tão fera
como é achar-se o mal
onde o bem achar se espera.
Vendo já que estava posta
em o que eu não esperei,
com minha dor, trabalhei
por lhe dar esta reposta
que me lembra que lhe dei:
— Ó Maria, ó Maria,
brando achara meu mal,
se, para minha alegria,
vos vira a vontade tal
como me ela ser devia;
mas não é nova usança
quem grande bem esperou
não ver o que desejou.
Muito pode a mudança,
pois que vos tanto mudou!
Quem pudera suspeitar
que no amor e na fé
me havíeis de faltar!
Mas pois já isto assim é,
tudo é para cuidar;
pois, por mais mal que se guarde,
sempre será meu amor
como a sombra, enquanto eu for:
quanto vai sendo mais tarde,
tanto vai sendo maior.
Quando vos dei a vontade,
inda vós éreis menina
e eu de pouca idade;
mas caiu minha mofina
sobre a minha verdade.
Muito vos quis bem, primeiro
que de riquezas soubesse,
pois meu amor verdadeiro,
de quem só sois interesse
quem me faz interesseiro.
Sobre a terra anda o gado
e sobre ela ouro e riqueza;
mas para que é desejado,
que enfim não tira tristeza
e acrescenta cuidado?
Não sei em que se encerra
ser esquecida e estranha:
esta verdade tamanha:
cá fica o haver na terra,
o amor a alma acompanha.
Nus neste mundo nascemos
e nus sairemos dele;
neste meio que vivemos,
só o rico é aquele
que ser contente sabemos.
E que grandes bens vos dessem
aqueles que vo-los deram,
eu sei bem que nus nasceram,
e antes que os tivessem
é certo que não tiveram.
LXXXVII
Pois se isto é assim
e o eu tão bem conheço,
como se crerá de mim
que sofrer o que padeço
pode ser a este fim?
Cuidar que cuidado tinha
das vossas riquezas grossas?!...
Nas coisas passadas nossas,
vereis ser riqueza minha
vós, que não riquezas vossas!
Mas que fosse assim e mais,
que remédio vos dão
com quem conselho tomais
à grande obrigação
em que, quanto a Deus, me estais?
Que não são casos pequenos
para que se a alma não doa...
Respondeu: — Essa é boa:
dizem que isso é o menos,
que Deus que tudo perdoa.
E dizem que eu moça era
ao tempo que isso foi ser;
e como tempo de crescer
tinha, que assim justo me era
tê-lo de me arrepender.
Isto e mais se me diz
— crê que te falo verdade —
que não tinha liberdade
para fazer o que fiz,
por minha pouca idade.
Então me mandam que meça
amor com quão longe estamos,
para que mais não me empeça;
e se prazeres passamos,
os dissimule e esqueça;
e que então me buscarão
um mui grande casamento,
tão de meu contentamento
quanto meus olhos verão;
e que o mais creia que é vento.
Muitos pastores buscaram;
mas um pastor, por ser-te amigo,
e outro, por ser-te inimigo,
um e outro se escusaram;
e dão-lhe logo comigo
gado, que farão mil queijos;
mas o com que se despediram
é já mostrar que temiam
que o sabor dos teus beijos
na minha boca achariam.
E eu, de mui esquecida
vou-lhe fazer o contrário!
A ser tal culpa sabida,
sei certo que este desvairo
pagarei com minha vida.
E em isto ser assim
assaz de razão seria,
pois tão mal naquele dia
o seu mandado cumpri
como o que a mim cumpria.
Não te veja aqui ninguém,
vai-te, Crisfal, desta terra;
não quero teu querer bem,
porque me não dê mais guerra
da que já dado me tem.
Em lhe isto eu ouvindo,
fui para lhe responder;
mas, depois de o dizer,
contra donde tinha vindo
se me tornou a volver.
Dei uma voz mui dorida:
— Por que me negais conforto,
alma desagradecida?
Então caí como morto,
oxalá perdera a vida.
Não sei eu o que passou,
enquanto isto passei,
mas junto comigo achei
quem me este mal causou,
depois já que em mim tornei.
E dizendo: "Ó mesquinha,
como pude ser tão crua!”
bem abraçado me tinha,
a minha boca na sua
e a sua face na minha.
Lágrimas tinha choradas
que com a boca gostei;
mas, com quanto certo sei
que as lágrimas são salgadas,
aquelas doces achei.
Soltei as minhas então,
com muitas palavras tristes,
e tomei por conclusão:
— Alma, por que não partistes,
que bem tínheis de razão?
Então ela, assim chorosa
de tão choroso me ver,
já para me socorrer,
com uma voz piedosa
começou-me assim dizer:
— Amor de minha vontade,
ora não mais! Crisfal manso,
bem sei tua lealdade:
ai, que grande descanso
é falar com a verdade!
Eu sei bem que não me mentes,
que o mentir é diferente:
não fala d’alma quem mente.
Crisfal, não te descontentes,
se me queres ver contente.
Minha fé te é verdadeira,
no mal que te fiz o vi;
porque, enfim, à derradeira,
não quero mal contra ti
que o meu coração queira.
Por me ver livre de dor,
deixara eu de te querer,
se o pudera fazer;
mas poder e mais amor
não podem estar num poder.
Quando contigo falei
aquela última vez,
o choro que então chorei
que o teu chorar me fez,
nunca o eu esquecerei.
Foi esta a vez derradeira
mas começo de paixão,
passando-me eu então
para o casal da Figueira,
do Vale de Pantaleão.
Neste passo acordei eu,
e o meu contentamento,
que eu cuidava que era meu,
deu-me depois tal tormento
qual nunca coisa me deu.
Não sei eu que a Deus custava,
porque não me outorgara
que nesta glória ficara,
ou pois que já acordava,
que disto não me acordara.
Assim como nos lugares,
em morte e enterramento,
os sinos dobram a pares,
morreu meu contentamento,
dobraram-se meus pesares.
Por quem grande dita tivera,
se, por dar fim a tristura,
eu neste tempo morrera!
Sabe Deus que eu bem quisera,
mas não quis minha ventura.
Não vos posso mais contar,
águas minhas, minhas águas,
que me não deixa pesar.
Ora chorai minhas mágoas,
que bem são para chorar;
que, em que cem olhos tivera,
como teve Argos pastor,
da vaca Iono guardador,
mais olhos mister houvera
para chorar minha dor.
Por me isto alembrar,
não vos pareça história,
que as coisas de muita glória,
com as de grande pesar,
recebe bem a memória.
Por sonho, antes vos ponho
o que sem dormir os vi;
por meu mal foi todo afim ;
mais seja para vós sonho,
pois sonho foi para mim.
Isto que Crisfal dizia,
assim como o contava
uma ninfa o escrevia
num álamo que ali estava,
que ainda então crescia.
Dizem que foi seu intento
de escrevê-lo em tal lugar,
para por tempo se alçar
onde baixo pensamento
lhe não pudesse chegar.
Eu o treladei dali,
donde mais estava escrito
que aqui não escrevi,
porque mal tão infinito
não se lhe pode dar fim.
O que se fez de Crisfal
não sabe certo ninguém;
muitos por morto o tem,
mas quem vive em tanto mal
nunca vê tamanho bem!
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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