PRIMEIRA PÁGINA
Louras abelhas, leves borboletas,
Volúveis beija-flores,
Rápidos gênios, hóspedes dos ares,
Solitários cantores,
Amantes uns das pombas das cidades,
Das galas e das festas,
Outros amigos das planícies vastas
E das amplas florestas;
Alado mundo, turbilhão volante,
Bando de sonhos vagos,
Ora adejando em caprichosos giros,
Ora em doces afagos
Pousando sobre as frontes cismadoras;
Vede, desponta o dia,
Sacudi vossas asas vaporosas,
Exultai de alegria!
Ide sem medo, lúcidas quimeras,
São horas de partir!...
Ide, correi, voai, que vos desejo
O mais almo porvir!
VIÚVA E MOÇA
Cristo, onde estão as doutrinas,
Onde as máximas divinas
De caridade e de fé?
Caíram como as sementes
Sobre os rochedos ardentes
De que falavas às gentes,
Sonhador de Nazaré!
Desde o romper d'alvorada
Ao lar deserto sentada,
Cristo, Cristo, choro em vão
Tenho exausta a paciência,
Mas a santa providência
É surda à minha indigência,
Me deixa sem luz, sem pão!
Debalde invoco teu nome!
O negro abutre da fome
Rói-me as entranhas, Senhor!
Estão áridos meus peitos!
Sobre seus úmidos leitos
Meus filhos, tristes, defeitos,
Vertem lágrimas de dor!
A multidão ruge e passa,
Ninguém pensa na desgraça
Desta pobre habitação!
As privações se acumulam
E os instintos estimulam
Selvagens corcéis que pulam
Quebrando o freio à razão!
Que fazer? De abismo escuro
Levanta-se um vulto impuro
Sinistra imagem do mal,
Tem a abundância de um lado.
Nas mãos um cofre dourado,
Canta um canto condenado,
Um canto de bacanal!
E mostra-me seu tesouro
Repleto de pilhas de ouro,
De ouro de funesta luz!
Depois com astutas falas
Me aponta brilhantes salas,
Cheias de pompas e galas,
Cheias de flores e luz!
E vejo pálidas sombras
Que dançam sobre as alfombras,
Frio o riso, o olhar febril!
Tristes belezas manchadas!
Tristes múmias coroadas
De grinaldas profanadas
Em noites de orgias mil!
Confusas vozes me chamam!
Os demônios me reclamam,
Que a miséria me vendeu!
Cerro tremendo os ouvidos,
Mas inda escuto os gemidos
De meus filhos repelidos
Pela terra e pelo céu!
Senhor! Senhor! este mundo
Ávido, sórdido, imundo,
Faz-me descrer até de ti!
Minh’alma está branca e pura,
Mas cega-me a desventura,
E entre, o crime, entre a loucura
Vacilo!... — Porque nasci!
Entregue aos vaivens da sorte,
Fraca, sozinha, sem norte,
Como poderei lutar?
Se às vezes entre a caligem,
Meus passos anjos dirigem,
Bem cedo o véu da vertigem
Me impede de caminhar!
A lei do dever é santa;
Mas a desdita a quebranta,
O mundo tem mais poder!
O espírito arqueja e cansa,
O mundo a vitória alcança,
Dos homens sobre a balança
Mais peso sempre há de ter!
Bati por todas as portas,
As virtudes estão mortas,
As crenças sem mais valor;
Ai! perdi toda a energia,
Minha mente desvaria,
Não tenho rumo nem guia,
Deverei morrer, Senhor?
Eu creio em ti, eu te adoro,
Mas as lágrimas que choro
Tu não vês das vastidões!
Deixas que eu sofra e padeça
Que a virtude depereça,
Mas que altivo se engrandeça
O vício com seus brasões!
Cristo, em vão te cruciaste!
Em vão aos homens deixaste
Preceitos de amor e fé!
Caíram como as sementes
Sobreis rochedos ardentes
De que falavas às gentes,
Sonhador de Nazaré!
EU AMO A NOITE
Eu amo a noite quando deixa os montes,
Bela, mas bela de um horror sublime,
E sobre a face dos desertos quedos
Seu régio selo de mistério imprime.
Amo o sinistro ramalhar dos cedros
Ao rijo sopro da tormenta infrene,
Quando antevendo a inevitável queda
Mandam aos ermos um adeus solene.
Amo os penedos escarpados onde
Desprende o abutre o prolongado pio,
E a voz medonha do caimã disforme
Por entre os juncos de lodoso rio.
Amo os lampejos verde-azuis, funéreos,
Que às horas mortas erguem-se da terra
E enchem de susto o viajante incauto
No cemitério de sombria serra.
Amo o silêncio, os areais extensos,
Os vastos brejos e os sertões sem dia,
Porque meu seio como a sombra é triste,
Porque minh'alma é de ilusões vazia.
Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas densas sacudindo o estrago,
Silvos de balas, turbilhões de fumo,
Tribos de corvos em sangrento lago.
Amo as torrentes que da chuva túmidas
Lançam aos ares um rumor profundo,
Depois raivosas, carcomendo as margens,
Vão dos abismos pernoitar no fundo.
Amo o pavor das soledades, quando
Rolam as rochas da montanha erguida,
E o fulvo raio que flameja e tomba
Lascando a cruz da solitária ermida.
Amo as perpétuas que os sepulcros ornam,
As rosas brancas desbrochando à lua,
Porque na vida não terei mais sonhos,
Porque minh'alma é de esperanças nua.
Tenho um desejo de descanso, infindo,
Negam-me os homens; onde irei achá-lo?
A única fibra que ao prazer ligava-me
Senti partir-se ao derradeiro abalo!...
Como a criança, do viver nas veigas,
Gastei meus dias namorando as flores,
Finos espinhos os meus pés rasgaram,
Pisei-os ébrio de ilusões e amores.
Cendal espesso me vendava os olhos,
Doce veneno lhe molhava o nó...
Ai! Minha estrela de passadas eras,
Por que tão cedo me deixaste só?
Sem ti, procuro a solidão e as sombras
De um céu toldado de feral caligem,
E gasto as horas traduzindo as queixas
Que à noite partem da floresta virgem.
Amo a tristeza dos profundos mares,
As águas torvas de ignotos rios,
E as negras rochas que nos plainos zombam
Da insana fúria dos tufões bravios.
Tenho um deserto de amarguras n’alma,
Mas nunca a fronte curvarei por terra!...
Ah! Tremo às vezes ao tocar nas chagas,
Nas vivas chagas que meu peito encerra!
A VOLTA
A casa era pequenina...
Não era? Mas tão bonita
Que teu seio inda palpita
Lembrando dela, não é?
Queres voltar? Eu te sigo;
Eu amo o ermo profundo...
A paz que foge do mundo
Preza os tetos de sapê.
Bem vejo que tens saudades...
Não tens? Pobre passarinho!
De teu venturoso ninho
Passaste à dura prisão!
Vamos, as matas e os campos
Estão cobertos de flores,
Tecem mimosos cantores
Hinos à bela estação.
E tu mais bela que as flores...
Não cores... Aos almos cantos
Ajuntarás os encantos
De teu gorjeio infantil.
Escuta, filha, a estas horas,
Que a sombra deixa as alturas,
Lá cantam as saracuras
Junto aos lagos cor de anil...
Os vaga-lumes em bando
Correm sobre a relva fria,
Enquanto o vento cicia
Na sombra dos taquarais...
E os gênios que ali vagueiam,
Mirando a casa deserta,
Repetem de boca aberta:
Acaso não virão mais?
Mas, nós iremos, tu queres,
Não é assim? Nós iremos;
Mais belos reviveremos
Os belos sonhos de então.
E, à noite, fechada a porta,
Tecendo planos de glórias,
Contaremos mil histórias,
Sentados junto ao fogão.
A DESPEDIDA
I
Filha dos cerros onde o sol se esconde,
Onde brame o jaguar e a pomba chora,
São horas de partir, desponta a aurora,
Deixa-me que te abrace e que te beije.
Deixa-me que te abrace e que te beije,
Que sobre o teu meu coração palpite,
E dentro d’alma sinta que se agite
Quanto tenho de teu impresso nela.
Quanto tenho de teu impresso nela,
Risos ingênuos, prantos de criança,
E esses tão lindos planos de esperança
Que a sós na solidão traçamos juntos.
Que a sós na solidão traçamos juntos,
Sedentos de emoções, ébrios de amores,
Idólatras da luz e dos fulgores
De nossa mãe sublime, a natureza!
De nossa mãe sublime, a natureza,
Que nossas almas numa só fundira,
E a inspiração soprara-me na lira
Muda, arruinada nos mundanos cantos.
Muda, arruinada nos mundanos cantos,
Mas hoje bela e rica de harmonias,
Banhada ao sol de teus formosos dias,
Santificada à luz de teus encantos!
II
Adeus! Adeus! A estrela matutina
Pelos clarões da aurora deslumbrada
Apaga-se no espaço,
A névoa desce sobre os campos úmidos,
Erguem-se as flores trêmulas de orvalho
Dos vales no regaço.
Adeus! Adeus! Sorvendo a aragem fresca,
Meu ginete relincha impaciente
E parece chamar-me...
Transpondo em breve o cimo deste monte,
Um gesto ainda, e tudo é findo! O mundo
Depois pode esmagar-me.
Não te queixes de mim, não me crimines,
Eu depus a teus pés meus sonhos todos,
Tudo o que era sentir!
Os algozes da crença e dos afetos
Em torno de um cadáver de ora em diante
Hão de embalde rugir.
Tu não mais ouvirás os doces versos
Que nas várzeas viçosas eu compunha,
Ou junto das torrentes;
Nem teus cabelos mais verás ornados,
Como a pagã formosa, de grinaldas
De flores rescendentes.
Verás tão cedo ainda esvaecida,
A mais linda visão de teus desejos,
Aos látegos da sorte!
Mas eu terei de tântalo o suplício!
Eu pedirei repouso de mãos postas,
E será surda a morte!
Adeus! Adeus! Não chores, que essas lágrimas
Coam-me ao coração incandescentes,
Qual fundido metal!
Duas vezes na vida não se as vertem!
Enxuga-as, pois; se a dor é necessária,
Cumpra-se a lei fatal!
O VAGALUME
Quem és tu, pobre vivente
Que passas triste sozinho,
Trazendo os raios da estrela
E as asas do passarinho?
A noite é negra, raivosos
Os ventos sopram do sul,
Não temes, doido, que apaguem
A tua lanterna azul?
Quando apareces, o lago
De estranhas luzes fulgura,
Os mochos voam medrosos
Buscando a floresta escura.
As folhas brilham, refletem,
Como espelhos de esmeralda,
Fulge o íris nas torrentes
Da serrania na fralda.
O grilo salta das sarças,
Pulam gênios nos palmares,
Começa o baile dos silfos
No seio dos nenúfares.
A tribo das borboletas,
Das borboletas azuis,
Segue teus giros no espaço,
Mimosa gota de luz.
São elas flores sem hástea,
Tu és estrela sem céu,
Procuram elas as chamas,
Tu amas da noite o véu!...
Onde vais, pobre vivente,
Onde vais, triste, mesquinho,
Levando os raios da estrela
Nas asas do passarinho?
CONFORTO
Deixo aos mais homens a tarefa ingrata
De maldizer teu nome desditoso;
Por mim nunca o farei:
Como a estrela no céu vejo tu’alma,
E como a estrela que o vulcão não tolda,
Pura sempre a encontrei.
Dos juízos mortais toda a miséria
Nos curtos passos de uma curta vida
Também, também sofri,
Mas contente no mundo de mim mesmo,
Menos grande que tu, porém mais forte,
Das calúnias me ri.
A turba vil de escândalos faminta,
Que das dores alheias se alimenta
E folga sobre o pó,
Há de soltar um grito de triunfo,
Se vir de leve te brilhar nos olhos
Uma lágrima só.
Oh! Não chores jamais! A sede imunda,
Prantos divinos, prantos de martírio,
Não devem saciar...
O orgulho é nobre quando a dor o ampara,
E se lágrima verte é funda e vasta,
Tão vasta como o mar.
É duro de sofrer, eu sei, o escárnio
Dos seres mais nojentos que se arrastam
Ganindo sobre o chão,
Mas a dor majestosa que incendeia
Dos eleitos a fronte os vis deslumbra
Com seu vivo clarão.
Curve-se o ente imbele que, despido
De crenças e firmeza, implora humilde
O arrimo de um senhor,
O espírito que há visto a claridade
Rejeita todo o auxílio, rasga as sombras,
Sublime em seu valor.
Deixa passar a doida caravana,
Fica no teu retiro, dorme sem medo,
Da consciência à luz;
Livres do mundo um dia nos veremos,
Tem confiança em mim, conheço a senda
Que ao repouso conduz.
VISÕES DA NOITE
Passai, tristes fantasmas! O que é feito
Das mulheres que amei, gentis e puras?
Umas devoram negras amarguras,
Repousam outras em marmóreo leito!
Outras no encalço de fatal proveito
Buscam à noite as saturnais escuras,
Onde, empenhando as murchas formosuras,
Ao demônio do ouro rendem preito!
Todas sem mais amor! Sem mais paixões!
Mais uma fibra trêmula e sentida!
Mais um leve calor nos corações!
Pálidas sombras de ilusão perdida,
Minh'alma está deserta de emoções,
Passai, passai, não me poupeis a vida!
O CANTO DOS SABIÁS
Serão de mortos anjinhos
O cantar de errantes almas,
Dos coqueirais florescentes
A brincar nas verdes palmas,
Estas notas maviosas
Que me fazem suspirar?
São os sabiás que cantam
Nas mangueiras do pomar.
Serão os gênios da tarde
Que passam sobre as campinas,
Cingido o colo de opalas
E a cabeça de neblinas,
E fogem, nas harpas de ouro
Mansamente a dedilhar?
São os sabiás que cantam...
Não vês o sol declinar?
Ou serão talvez as preces
De algum sonhador proscrito,
Que vagueia nos desertos,
Alma cheia do infinito,
Pedindo a deus um consolo
Que o mundo não pode dar?
São os sabiás que cantam...
Como está sereno o mar!
Ou, quem sabe? As tristes sombras
De quanto amei neste mundo,
Que se elevam lacrimosas
De seu túmulo profundo,
E vêm os salmos da morte
No meu desterro entoar?
São os sabiás que cantam...
Não gostas de os escutar?
Serás tu, minha saudade?
Tu, meu tesouro de amor?
Tu que às tormentas murchaste
Da mocidade na flor?
Serás tu? Vem, sê bem-vinda
Quero-te ainda escutar!
São os sabiás que cantam
Antes da noite baixar.
Mas ah! Delírio insensato!
Não és tu, sombra adorada!
Não são cânticos de anjinhos,
Nem de falange encantada,
Passando sobre as campinas
Nas harpas a dedilhar!
São os sabiás que cantam
Nas mangueiras do pomar!
O RESPLENDOR DO TRONO
Que vale a pompa e o resplendor do trono!
Triste vaidade! O albergue de um colono
Mais encantos encerra e mais doçuras!
De calma consciência à sombra amiga
Floresce o riso e o júbilo se abriga,
Livre de enganos e visões escuras.
Quem não aspira da grandeza aos combros
Tem segura a cabeça sobre os ombros,
E a vereda conhece onde caminha;
Dorme sem medo, acorda sem pesares,
E vê, feliz, a prole junto aos lares
Vigorosa estender-se como a vinha.
Sob os dosséis dos sólios a mentira
Boceja e o corpo sensual estira
No tapete macio dos degraus...
São sempre incertos do reinante os passos!
Ame embora a verdade, ocultos laços
Prendem o cego aos cálculos dos maus!
Oh! Ditoso mil vezes o operário!
Ama o trabalho, e o módico salário
De prantos nem de sangue está manchado!
Combates não planeja em vasta liça!
Nem das vítimas ouve da injustiça
A queixa amarga e o clamoroso brado!
Não desperta alta noite em sobressalto!
Nem dos cuidados ao cruento assalto
Sobre o ouro e o cetim geme e delira!
Qual manso arroio sobre a terra corre,
E no meio dos seus tranquilo morre
Como a nota de um canto em branda lira!
Não invejeis as pompas das alturas!
O raio deixa os vales e as planuras,
A tempestade preza as serranias!...
Quereis saber da majestade a glória?
Lede nos régios túmulos a história
Dos soberanos de passados dias!
EM VIAGEM
A vida nas cidades me enfastia,
Enoja-me o tropel das multidões,
O sopro do egoísmo e do interesse
Mata-me n’alma a flor das ilusões.
Mata-me n’alma a flor das ilusões
Tanta mentira, tão fingido rir,
E cheio e farto de tristeza e tédio
Rejeito as glórias de falaz porvir!
Rejeito as glórias de falaz porvir,
Galas e festas, o prazer talvez,
E busco altivo as solidões profundas
Que dormem quedas do senhor aos pés.
Que dormem quedas do senhor aos pés,
Ao doce brilho dos clarões astrais,
Ricas de gozos que não tem o mundo,
Pródigas sempre de beleza e paz!
SERENATA
Em teus travessos olhos,
Mais lindos que as estrelas,
Do espaço, às furtadelas,
Mirando o escuro mar,
Em teu olhar tirânico,
Cheio de vivo fogo,
Meu ser, minh’alma afogo
De amor a suspirar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
Desses mimosos lábios
Que ao beija-flor enganam,
Donde perpétuos manam
Perfumes de enlear,
Desses lascivos lábios,
Macios, purpurinos,
Ouvindo os sons divinos
Me sinto desmaiar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
Tuas madeixas virgens,
Cheirosas, flutuantes,
Teus seios palpitantes
Da sede do gozar,
Tua cintura estreita,
Teu pé sutil conciso,
Obumbram-me o juízo,
Apagam-me o pensar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
Ai! quebra-me estes ferros
Fatais que nos separam,
Os doidos que os forjaram
Não sabem, não, amar.
Dá-me teu corpo e alma,
E à luz da liberdade,
Oh! minha divindade,
Corramos a folgar.
Se teus encantos todos
Eu fosse a enumerar!...
A SOMBRA
Longe, longe das águas-marinhas,
Sobre vastas campinas pousada,
Sempre aos raios de um sol resplendente,
Se ostentava risonha morada.
Nas planícies que a vista não vence
Espalhadas pastavam cem reses,
Ora junto das fontes tranquilas,
Escondidas no mato outras vezes...
Ao portão, de manhã, reunidas,
Meio ocultas no véu da neblina,
O senhor esperar pareciam
Sempre amigo da luz matutina.
E, depois que seu vulto bondoso
Da janela sorrindo as olhava,
Se afastavam contentes, pulando
Sobre a grama que o orvalho banhava.
Quando além das montanhas o dia
Apagava seu raio final,
Acudindo do amo aos clamores
Todo o gado se achava no vale.
E em torno dele um círculo formando
Humildes e silentes,
Cada qual por sua vez se adiantando,
Vinham lamber o sal que apresentavam
As mãos benevolentes,
As mãos benevolentes que adoravam.
E o manso gado as falas lhe entendia
E os tenros bezerrinhos
Saltitavam trementes de alegria
A seus meigos carinhos...
Talvez sondasse nesses pobres brutos,
Sob esses pelos ríspidos, hirsutos,
Um oculto clarão,
Raio de encarcerada inteligência,
Que a doida, pobre e mísera ciência,
Trucidando sem pena a criação,
Procura sempre, mas procura em vão.
Passaram tempos, e o vaqueiro é morto...
Da velha habitação só muros restam,
E às já despidas, murchas laranjeiras
Espinheiros entestam.
Sobre montões de pedra as lagartixas
Leves se arrastam sobre o musgo vil.
Traidoras vespas nos esteios podres
Formaram seu covil.
O sol, que outrora derramava em torno
Raios de luz, torrentes de alegria,
Hoje atira do espaço ao lar deserto
Um riso de ironia.
Não mais perfumes pelos ares giram,
Não mais os ventos suspirando passam,
Somente impuro odor, silvo de serpes
No ambiente perpassam.
Parece que ao pairar nesses lugares
Todo o seu ódio o estrago sacudira,
E o espírito do mal no chão gretado
A saliva cuspira.
Viajor, viajor, não te aproximes
Do ermo sítio que o terror marcou,
A mão de deus talvez ardendo em iras
Pesada ali tocou.
Porém quando no ocidente
Vai baixando o orbe imortal,
As reses sempre constantes
Se ajuntam todas no vale.
E nessa mesma paragem,
Onde as chamava o senhor,
Talvez do defunto à sombra
Reúnem-se ao derredor.
E mugem, mugem debalde,
Tristonhas cavando o chão,
Fitando doridos olhos
No astro rei da amplidão.
Mas o sol não as escuta,
Mas o sol caindo vai,
Imagem de um deus cruento,
Cruenta imagem de pai.
E o caminheiro, que ao longe
Das serras descendo vem,
Não passa perto das ruínas,
Procura outra senda além.
A DIVERSÃO
Escravo enche essa taça,
Enche-a depressa, e canta!
Quero espancar a nuvem da desgraça
Que além nos ares lutulenta passa,
E meu gênio quebranta.
Tenho n'alma a tormenta,
Tormenta horrenda e fria!
Debalde a doida conjurá-la tenta,
Luta, vacila e tomba macilenta
Nas vascas da agonia!
Pois bem, seja de vinho
No delirar insano
Que afogue minhas lágrimas mesquinho!...
Então envolto em púrpura e arminho
Serei um soberano!
Cresce, transpõe as bordas
De brilhante cristal,
Torrente amada que o prazer acordas...
Toma a guitarra, escravo, afina as cordas,
E viva a saturnal!
Já corre-me nas veias
Um sangue mais veloz...
Anjos... inspirações... mundos de ideias
Sacudi-me da fronte as sombras feias
Deste cismar atroz!
Que celestes bafagens!
Que lânguidos perfumes!
Que vaporosas, lúcidas imagens
Dançam vestidas de sutis roupagens
Entre esplendidos lumes!
Tange mais brando ainda
Esse mago instrumento!...
Mais!... inda mais! Que maravilha infinda!
Que plaga imensa, luminosa e linda!
Que de vozes no vento!
São as houris divinas
Que junto a mim perpassam,
Ou de Schiraz as virgens peregrinas,
Que cingidas de rosas purpurinas
Chorão Bulbul e passam?
Oh! não, que não são elas,
Mas ai! meus sonhos são!
São do passado as vividas estrelas
Que a flux rebentam cada vez mais belas,
De mais puro clarão!
São meus prazeres idos!
Minha extinta esperança!
São... Mas que nota fere-me os ouvidos?
Escravo estulto, abafa esses gemidos!
Canta o riso e a bonança!
Canta a paz e a ventura,
O mar e o céu azul,
Quero olvidar minha comedia escura,
E a ledos sons as larvas da loucura
Bater como Saul!
Leva-me às densas matas
Onde viveu Celuta;
Faze-me um leito à margem das cascatas,
Ou nas alfombras úmidas e gratas
De recôndita gruta.
Assim... assim! Fagueiras,
Escuto já nos ares
As vozes das donzelas prazenteiras,
Que dançam rindo ao lume das fogueiras
No centro dos palmares.
Mais vinho! Oh! filtro mago!
Só tu podes no mundo
Mudar os giros do destino vago,
E fazer do martírio um doce afago,
De uma taça no fundo!
Oh! patriarca antigo!
Oh! bebedor feliz,
Do roxo sumo da parreira amigo!
Teu nome invoco, abraço-me contigo,
Vem, vem ser meu juiz!
Basta, servo, de cantos;
Quero dormir, sonhar,
Sinto do vinho os últimos encantos...
Molham-me as faces amorosos prantos,
Vou reviver e amar!
A LENDA DO AMAZONAS
Quando vestido de brilhante púrpura
Surgia o sol no céu,
Deixei a medo os majestosos píncaros
Onde habita o condor,
E guardando do frio os seios trêmulos
Nas dobras do brial,
Como errante cegonha ou pomba tímida,
Às planícies voei.
Em meus cabelos ciciavam, lânguidos,
Os sopros da manhã,
Clarões e névoas, iriantes círculos,
Giravam-me ao redor...
Mas sobre o leito de tecidos flácidos,
Inclinada a sorrir,
Deixava-me rolar aos doces cânticos
Dos gênios do arrebol.
Já perdendo de vista os andes túrbidos
Sobre rochas pousei...
Sobre rochas pousei... As virgens cândidas,
Louras filhas do ar,
Trocaram-me do corpo a etérea túnica
Por manto de cristal,
Cantaram-me ao ouvido um hino mágico
Que falava de amor,
Tão meigo e triste como a voz da américa
Em seu berço de luz.
Cingiram-me a cabeça dos mais límpidos
Diamantes e rubins;
Das borboletas leves e translúcidas
Do verde penamá
Formaram-me sutil, brilhante séquito;
Aspergiram-me os pés
Do perfume das flores mais balsâmicas
Das savanas sem fim,
E, me apontando da floresta os dédalos
Pejados de frescor
Deram-me abraços mil, ardentes ósculos,
E deixaram-me só...
E deixaram-me só; nos vastos âmbitos
Sem rumo, me perdi,
Meus olhos inundaram-se de lágrimas,
Quis aos montes voltar...
Mas o treno saudoso dos espíritos
À minh'alma falou,
E ao grato acento dessas queixas místicas
De novo me alentei.
Desci das brenhas pensativa, atônita,
Olhos fitos além,
Meu manto sobre a rocha um surdo estrépido
Desprendia ao roçar...
E meus cabelos borrifados, úmidos
De sereno estival,
Salpicavam, ao sol, de infindas pérolas
O desnudado chão.
Os velhos cedros com seus ramos ásperos,
Saudaram-me ao passar,
Os cantores das matas, em miríades,
Os coqueirais senis
Bradaram numa voz: oh! Filha esplêndida
Da eterna criação,
Corre, que ao lado do soberbo tálamo
Por ti suspira o mar!...
Ao meio-dia, extenuada, mórbida
Pelo intenso calor,
De um mundo ignoto sob a imensa cúpula
Solitária me achei.
Argênteas fontes, sonorosos zéfiros,
Rumores divinais,
Grutas de sombra e de frescura próvidas,
Multicores dosséis,
A cujo abrigo um turbilhão de pássaros
Cruzava a trinar
Um não sei quê de vago e melancólico,
De infinito talvez,
Acenderam-me ao seio a chama insólita
De estranha sensação!
Sentei-me ao lado de um rochedo côncavo
E procurei dormir...
E procurei dormir; as plagas túmidas,
O indizível amor
Que transudava dos sussurros épicos
Dos sombrios pinhais,
Em cujas grimpas ramalhavam séculos,
Dormia a tradição;
Da rola do deserto as flébeis súplicas,
A tênue, frouxa luz
Coando entre os rasgados espiráculos
Desse zimbório audaz
Por mil colunas desmarcadas, ríspidas,
Sustentado ante o céu,
Vedaram-me o repouso, e a mente estática.
Em santa reflexão
Senti volver-se as cenas de outras épocas.
Ah! Que tudo passou!
Como o sol era belo e a terra lúcida!
Como era doce a paz!
Da família indiana em noite plácida
Junto ao fogo a dançar!
Como era calmo e belo e vivo o júbilo
Das filhas de tupã
Depondo junto ao fogo os anchos cântaros
E atrás dos colibris
Correndo alegres nos relvosos páramos!
E a voz do pescador
Sobre as águas plangentes e diáfanas
De ameno ribeirão!
E o rápido silvar das setas rápidas
Os urros do jaguar,
A volta da caçada, os hinos férvidos
Nos festins anuais!
Tudo findou-se! A mão cruel, mortífera,
De uma idade feroz
Tantas glórias varreu, e nem um dístico
Deixou no chão sequer!
Apenas no deserto ermos sarcófagos
Sem mais cinzas, nem pó,
Negras imagens de figuras híbridas,
Soltas aqui e ali,
Resistem do destino ao rijo látego!...
Mas das eras de então
Nada revelam no silêncio gélido!...
Meu deus e meu senhor!
Eu que vi construir-se o imenso pórtico
Do edifício imortal,
Donde ao vivo luzir dos astros fúlgidos
Todo o ser rebentou,
Eu que pelas planícies inda cálidas
De vosso bafejar,
Vi deslizar o tigre, o Eufrates célebre,
O sagrado Jordão...
Eu sem nome, sem glórias e sem pátria,
Entre os densos cocais,
Ia, bem como as gerações sem número,
Absorta escutar
Dos santos querubins a voz melódica!...
Eu que pobre e sem guia,
Pobre e sem guia nos desertos áridos,
Teu poder, grande deus,
Pressentia no ar, no céu, nos átomos...
Vi também sob o sol
Afogarem-se os orbes no crepúsculo
De uma noite fatal,
E à lareira da vida erguer-se impávido
O nada aterrador!
Vi num combate pavoroso e tétrico,
Torva, escura epopeia,
O fantasma do estrago, a morte esquálida
Vencer a criação,
Devorar-lhe sem penas as quentes vísceras,
Dilacerar sem dó
Da madre natureza as fibras íntimas!
Vi à luz dos fuzis,
Do abutre da tormenta a insana cólera
A floresta cair;
Vi negras feras e serpentes pérfidas,
Demônios de furor,
Alastrarem a terra de cadáveres
De pobres animais;
E deste solo de imundícias lúbrico,
Também vi se elevar
A própria vida de destroços pútridos!...
Meu deus e meu senhor,
O que diz esta lei crua e fatídica?...
Sobre o vale da dor,
Sobre o vale da dor mirando as nuvens,
Cismando no porvir,
Eu também moça sinto-me decrépita!
Vê-me a aurora nascer,
Mas ouve a noite meus cantares fúnebres!
A alvorada outra vez
Das cinzas de meus restos inda tépidas
Rediviva me vê!...
Eu murmurava assim triste e perplexa
Cortando a solidão...
As estrelas surgiam belas, nítidas
No céu de puro anil,
O bando vagabundo das Lucíolas,
Rastejando os pauís
Derramavam clarões débeis e fátuos
Nas plantas ao redor,
Línguas de fogo verde-azul fosfórico
Cruzavam-se no ar...
A terra e os astros num sorrir recíproco
Pareciam se unir,
Uma para beijar o azul sidéreo,
Outros para verter
No seio que sofre um doce bálsamo.
A branca lua
Pura se erguia na celeste abóbada,
Tudo era paz e amor,
Vozes e saudações, hinos angélicos!
Um tênue, langue véu
Senti passar-me pelos olhos ávidos;
Um perfume feliz
Ungiu-me a fronte de venturas ébria,
Pensei adormecer!
Mas ah! Quando de novo abri as pálpebras,
Reclinado a meus pés,
Coroado de espumas e chamas vívidas,
Prostrado estava o mar.
Como a noite era bela e a terra lúcida!
ESTÂNCIAS
O que eu adoro em ti não são teus olhos,
Teus lindos olhos cheios de mistério,
Por cujo brilho os homens deixariam
Da terra inteira o mais soberbo império.
O que eu adoro em ti não são teus lábios,
Onde perpétua juventude mora,
E encerram mais perfumes do que os vales
Por entre as pompas festivais da aurora.
O que eu adoro em ti não é teu rosto
Perante o qual o marmor descorara,
E ao contemplar a esplêndida harmonia
Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.
O que eu adoro em ti não é teu colo,
Mais belo que o da esposa israelita,
Torre de graças, encantado asilo,
Aonde o gênio das paixões habita.
O que eu adoro em ti não são teus seios,
Alvas pombinhas que dormindo gemem,
E do indiscreto voo duma abelha
Cheias de medo em seu abrigo tremem.
O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,
Pura como o sorrir de uma criança,
Alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,
Rica de crenças, rica de esperança.
São as palavras de bondade infinda
Que sabes murmurar aos que padecem,
Os carinhos ingênuos de teus olhos
Onde celestes gozos transparecem!...
Um não sei quê de grande, imaculado,
Que faz-me estremecer quando tu falas,
E eleva-me o pensar além dos mundos
Quando, abaixando as pálpebras, te calas.
E por isso em meus sonhos sempre vi-te
Entre nuvens de incenso em aras santas,
E das turbas solícitas no meio
Também contrito hei-te beijado as plantas.
E como és linda assim! Chamas divinas
Cercam-te as faces plácidas e belas,
Um longo manto pende-te dos ombros
Salpicado de nítidas estrelas!
Na doida pira de um amor terrestre
Pensei sagrar-te o coração demente...
Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...
Tinhas nos olhos o perdão somente!
QUADRINHAS
Quando a fronte descorada
Pende o poeta a cismar
Murmura o vulgo insensato;
Ei-lo mundos a forjar.
Ei-lo errando entre as estrelas,
Roubando os raios ao sol,
Beijando as fadas que dançam
Sobre mágico arrebol.
Pobre vulgo! Que destino
Dos dois é mais belo e puro,
Sonhar à luz das esferas
Ou dormir no vício escuro?
Adorar o ser dos seres
Sobre as aras do ideal,
Ou beijar as frias plantas
De uma estátua de metal?
Dizer: — é curta esta vida,
Floco de espuma falaz,
Quero erguer minha alma aos astros,
Deixarei a terra aos mais;
Ou murmurar aterrado
Perante a suprema lei:
Por que tenho de apartar-me
Da lama que tanto amei?...
Por mim, oh! deixa me sempre
Nos meus sonhos adorados,
Mais brilhantes que o prestigio
Dos crimes condecorados.
Embora a prole de Midas
E os levitas da mentira
Desprezem-me, — vis, — que importa
Não tenho acaso uma lira?...
Errarei entre as estrelas,
Por Deus, que mais delas são
Do que os silvos da calúnia,
Do que a voz da adulação;
Do que as alcovas do vício,
Sinistro, infernal painel,
De infelizes que solução
Vertendo prantos de fel!.
Oh! selvas de minha terra!
Oh! meu céu de azul cetim!
Regatos de argênteas ondas!
Verdes campinas sem fim!
Morenas virgens dos montes,
Anjos de graças e amor,
Que rejeitais mil diamantes
Por uma cheirosa flor!
Que entre risos feiticeiros
Contemplais vossa beleza,
A sombra dos ingazeiros,
No espelho da correnteza!
Não vos tenho? que me importam
Glórias de cinza e de pó,
E entre as turbas que vozeiam
Viver desprezado e só?
Quero correr os desertos,
Devassar as cordilheiras,
Matar a sede e o cansaço
Nas águas da cachoeira.
Quero ao descer as montanhas,
À luz que o luar espalha,
Ouvir no vale a viola
Soar na choça de palha.
Ver descer os lavradores
Pelas encostas dos montes,
Enquanto lindas, faceiras,
Voltam as filhas das fontes;
E cantam trovas alegres,
E folgam pelo caminho,
No ar bebendo ofegantes
O aroma do rosmaninho.
Quero nos ranchos à noite,
À claridão das fogueiras,
Ouvir contar os tropeiros
Historias aventureiras.
Quero paz, quero harmonias,
Liberdade, inspiração,
Que a poeira das cidades
Me atrofia o coração.
E quando o gelo da morte
Sobre meus olhos baixar,
Deixem-me à sombra dum cedro
Junto às selvas repousar.
O GENERAL JUAREZ
Triste o dom da linguagem!... Que eu não possa
Fundir meu pensamento
Em duro bronze ou mármore alvejante!
Vazar uma por uma
As sensações que fervem-me no peito
Aos olhares do mundo!
Arrebatar às lúcidas esferas
A celeste harmonia!
Roubar à madrugada as áureas pompas!
Junto dos céus nas vastas assomadas
Cingidas de neblinas,
Ouvindo o eterno estrepito dos mares
Conheceste a ti mesmo.
Alto, mais alto que esses altos píncaros,
Soletraste teu fado
No pavilhão sem fim que abriga os orbes,
E na luz te sagraste!
Pediste a exígua estância da existência,
Viste que teu destino
Não era semelhante aos dos mais homens
Que nascem na mentira,
Crescem à sombra de interesses torpes,
Cevam-se de vaidades,
Furtam-se ao faro augusto do futuro,
E após ligeiro prazo
De loucas ambições, de vícios negros,
Legam à mãe comum
Um punhado de cinza e de misérias,
Inúteis até na tumba!
Ah! se entre os filhos deste ingrato tempo
Pôde algum reclamar
De herói o nome, o nome de escolhido,
Não, não será de certo
O cruento levita do extermínio
Que as planícies ensopa
No sangue negro de milhões de vítimas!
Nem o torvo embusteiro
Que sentindo a coroa mal segura
Abalar-se na fronte,
O tino perde, e corre devastando
Tudo quanto o circunda.
E nem tão pouco o estólido ocupante
De um aparente sólio,
Onde reluz a mica em vez do ouro,
E ganem os mastins
Sobre os degraus molhados de saliva.
Porém tu, Juarez,
Tu e a sublime plêiade de eleitos
Que na história dos povos
Sobre montões de algema, triunfantes,
Abrem aos seus os braços,
E em vez de diadema e fronte cingem
De ramos de oliveira.
Quão enganada marcha a tirania!
Quão cego o despotismo
Paira e volteia nestas virgens plagas!
Há no seio da América
Um mundo novo a descobrir-se ainda:
Senhores de além-mar,
Quereis saber onde esse mundo existe?
Quereis saber seu nome?
Sondai o peito à raça americana,
E nesse mar sem fundo,
Inda aquecido pelo sol primeiro,
Vereis a liberdade!
Tu a encaraste, Juarez, de perto!
No mais fundo das matas
Onde a mãe natureza te mostrava
Um código mais puro
Do que os preceitos da infernal ciência
Cujas letras malditas
Queimam do pergaminho a lisa face,
Aprendeste o segredo
Que desde a hora prima do universo
As torrentes murmuram!
E contemplando o ermo, o céu, as águas,
Choraste por ser homem!
Mas dos vulcões sorvendo o fumo espesso,
Transpondo os areais,
Buscando asilo nas florestas amplas,
Arrostando as tormentas
Entre um pugilo de guerreiros bravos,
Pejaste de legendas
Todo o deserto que teus pés tocaram!
E as solidões sorriam,
Os abutres saíam de seus antros,
As turbas dos selvagens
Vinham surpresas se postar nos montes
Para ver-te passar!
O espírito de um povo nunca morre.
Não, não foram os homens
Que sobre o globo prolongando a vista,
Regiões escolheram,
E formaram nações, usos e crenças;
Não, uma oculta lei
Disse: — ao Árabe as terras arenosas,
Aos Germanos a neve;
Aqui o fogo, a luz, ali neblinas;
Nesta calmos pastores,
Ali fortes guerreiros; sonhos, crenças;
Lhe servem de defesa.
A ideia cresce, avulta ou se concentra;
A índole se expande,
Ou no âmago d'alma ruge opressa.
Prometeu sobre o Cáucaso
Tem por medida de seu nobre orgulho
O fígado sangrento
Que o pássaro roaz lacera embalde.
Encelado dormita,
Mas ao mover-se no abrasado leito
Derrama sobre a terra
Uma golfada de betume escuro
E chamas devorantes.
De teu povo Adorado a oculta chaga
Tu a tocaste herói!
Quando ao ninho do pássaro soberbo
Que as alturas devassa
Baixa e repousa o corvo deslavado,
E os condores implumes
Pião de medo à sombra do inimigo,
Também no azul dos céus
Solta um grito de raiva, as asas bate
E veloz como o raio
Hirto se arroja o príncipe das aves
Ao abrigo invadido...
Como imperfeito esboço em tela imprópria,
Como pálida rima
Sobre confuso, insípido poema,
A glória de uma raça
Ninguém pôde apagar no vasto livro
Que, pertence ao porvir.
Embora a escravidão, guerras, flagícios
O brilho lhe escureçam,
Não morre uma nação, nem se aliena!
Antes no espaço
Mais facilmente um mundo se dissolve,
E torna-se em poeira!
Sombras ilustres dos guerreiros mortos
Na quadra lutulenta
Em que a pátria limava os duros ferros
Das hispanas cadeias,
Erguei-vos nesses campos celebrados
Onde os tênues arbustos
Nas noites calmas relatar parecem
Vossos feitos sublimes;
Vinde, a pátria vos chama, a pátria chora,
A pátria vos invoca,
A pátria mira Juarez, aflita,
Soluça e pensa em vós!
Bravos da liberdade mexicana!
Invito general!
Olhai, olhai, não vedes a vitória?...
Não, ao tronco gigante,
Glória das selvas, marco das idades,
Não deixeis que se enlace
A parasita vil, e a seiva beba,
E sobre seu cadáver
Cheia de vida eleve-se nos ares!
Não deixeis que a serpente
Sobre o jaguar enrole-se esfaimada!
E espadece-lhe os ossos!
Mortal mais do que um gênio! se entre os brados
De teus fortes guerreiros,
Se entre os aplausos de teu povo grato,
Escutares de longe
Os pobres cantos dum poeta obscuro,
Ah! perdoa-lhe o arrojo!
Cegou-lhe o resplendor da liberdade,
Sonhou irmãs e unidas
Todas as raças das colúmbias terras!
Cantou, aceita o canto,
Aceita-o, no alcáçar dos potentados
A FILHA DAS MONTANHAS
(Elegia)
Esta viveu no meio das montanhas.
Foi seu passar um voo de andorinha
Ar flor de lago azul, — seus verdes anos
Contaram-se por flores.
Desconheceu as sedas e os veludos,
Finas alfaias, peregrinas joias...
Talvez pensando no clarão dos astros
Zombasse dos diamantes!...
O FILHO DE SANTO ANTÔNIO
(Canção de um devoto)
Bem sei, criança estouvada,
Que por artes do demônio,
Furtaste, à noite passada,
O filho de Santo Antônio!
E sem medo, sem piedade,
Cheia de um ímpio alvoroço,
O mimo do pobre frade
Correste a esconder no poço!
O coração polui-se nas cidades:
Podem ser bons os homens isolados,
Mas se o nó social num corpo os liga,
Meu Deus! tornam-se atrozes!
Dobrão à lei o colo, e astutos traçam,
Mesmo aos olhos da lei, planos do inferno;
Peste moral de rápido contágio
Devora-lhes as vísceras!
Fazem da negra intriga uma ciência,
Sabem mentir à sombra da verdade;
E entre palavras de virtude incensam
O demo da calúnia!...
Feliz a virgem que repousa agora!
Feliz mil vezes, não pisou nas praças!
Mísera flor, o hálito das turbas
A teria queimado!...
Inda florescem, vede, os jasmineiros,
Inda as rosas se embalam junto à choça
Onde na sombra a triste mãe chorosa
Soluça amargamente!
As trepadeiras curvam-se à janela,
Gemem no teto os pombos amorosos,
Suspenso à porta na prisão gorjeia
O sabiá das serras.
Tudo isto ela adorava, e ela não vive!
E ela passou ligeira como a nevoa
Que o vento da manhã varre do outeiro,
E dissipa nos ares!
Tudo isto ela adorava! Ao sol poente,
Leda e risonha, coroada a fronte
De rubras maravilhas, leve, airosa,
Vinha regar as flores;
E em meio erguida a barra do vestido,
Saltava como a corça, ora amparando
A hástea pendida de viçosa dália,
Outras vezes solicita
Bravias plantas arrancando em torno
Dos pequenos craveiros, ou tranquila
Contemplando os botões que se entreabriam
À frescura da tarde.
E que sentidos cantos que cantava!
Que ingênuos versos! Que singelas rimas!
Tudo era amor, saudades, esperança.
Ventura e mocidade!
Depois a seu chamado as aves meigas
Vinham em bando lhe brincar em torno,
Ora pousando nos bem feitos ombros,
Ora nas mãos mimosas
Colhendo os alvos grãos que lhes guardava
Sua inocente amiga, ora escondendo
As cabecinhas lânguidas nas ondas
De seu basto cabelo!
Pobres filhos do ar! Ela está morta!
Ela está morta a virgem das montanhas!
Chorai, chorai, os gênios de além-mundo
Levaram-na consigo!
Olhai! Seu rosto como é belo ainda!
Que suave expressão nos lábios calmos!
Longe de amedrontar-se ao ver a morte
Parece que sorrira!
Ali junto à palmeira está seu leito,
Sem adornos, sem pompa e sem grandeza;
A virgem dormirá livre do fardo
De um mármore pesado.
A virgem dormirá sem o zumbido
De torpes vates, de oradores torpes;
Poderá descansada ouvir os cânticos
Dos anjos pelo espaço!
No silêncio da noite as nuvens brancas
Desceram sobre a leiva consagrada;
O orvalho das manhãs será tão doce
Como o pranto fraterno.
Feliz a virgem morta nas montanhas!
No ermo despertou, dorme no ermo!
hálito empestado das cidades
Não maculou-lhe a vida!
Como a límpida gota que dos ares
Cai no seio da flor e aos ares volta,
Sua alma pura em santa luz banhada
Volveu para o infinito.
Me vergava soluçando,
Prestava culto à mulher.
Tens razão, por grata estrela
Tomei teu brilho falaz,
Sinistra luz da procela,
Círio das horas fatais!
Segui-te através de enganos,
Cheio de sonhos insanos,
Cheio de amor e de afã!
Sombra de arcanjo caído!
Busto inda quente, incendido
Pelos beijos de Satã!
Na fronte cor de açucena
Tinhas brilho sedutor,
Mas eras qual essa flor,
Cujo perfume envenena!
Tinhas nos olhos brilhantes
Os reflexos cambiantes
De uma aurora de verão,
Mas como a charneca escura
Só podridão, lama impura,
Guardavas no coração!
Na negra esteira dos vícios
Que os descaídos formaram,
Teus funestos artifícios
Iludido me arrojaram!
Amei-te, amar foi perder-me!
Foi beijar da terra o verme
Crendo o Deus da vastidão...
Em vez do sol que buscava,
Louco afoguei-me na lava
De medonho, atroz vulcão!
Da vida estraguei por ti
Das quadras a mais risonha;
Mas hoje sinto a peçonha
Que nos teus lábios bebi!
Arrepende-te, Chiquinha,
Vida minha,
Minha linda tentação!
A divindade perdoa,
Terna e boa,
Os erros do coração.
Ah! que fizeste, insensata?
Demo gentil, que fizeste?
Por causa de um’alma ingrata
Tu’alma pura perdeste!
Tira depressa a criança
Do frio asilo onde está,
Tem nos santos esperança,
Que teu amor voltará.
Ainda é tempo, Chiquinha,
Rola minha,
Minha rosada ilusão!
A divindade perdoa,
Terna e boa,
Os erros do coração.
Acende uma vela benta
Junto ao santo que ofendeste,
Lançando a mão violenta
Contra o pirralho celeste.
Leva-lhe linda toalha
Cheia de finos bordados,
Talvez a oferta te valha,
O olvido de teus pecados.
Não te demores, Chiquinha,
Trigueirinha,
Que teus por cetro a paixão!
A divindade perdoa,
Terna e boa,
Os erros do coração.
E quando alcançado houveres
A remissão, minha vida,
Mais formosa entre as mulheres,
Vem mimosa arrependida,
Vem que o santo receoso
De novo furto, quiçá,
Velará por teu repouso,
Nosso amor protegerá!...
Não percas tempo, Chiquinha!
Glória minha!
Minha dourada visão!...
A divindade perdoa,
Terna e boa,
Os erros do coração.
AS LETRAS
Na tênue casca de verde arbusto
Gravei teu nome, depois parti;
Foram-se os anos, foram-se os meses,
Foram-se os dias, acho-me aqui.
Mas ai! o arbusto se fez tão alto,
Teu nome erguendo, que mais não vi!
E nessas letras que aos céus subiam
Meus belos sonhos de amor perdi.
O ARREPENDIMENTO
Tens razão: já, soberana,
Viste-me curvo a teus pés!
Alma que do mal se ufana,
Tarde conheço quem és!
Mas a imagem que eu buscava,
Por quem meu ser suspirava...
Nem pressentiste sequer,
Quando uma fada invocando
Me vergava soluçando,
Prestava culto à mulher.
Tens razão, por grata estrela
Tomei teu brilho falaz,
Sinistra luz da procela,
Círio das horas fatais!
Segui-te através de enganos,
Cheio de sonhos insanos,
Cheio de amor e de afã!
Sombra de arcanjo caído!
Busto inda quente, incendido
Pelos beijos de satã!
Na fronte cor de açucena
Tinhas brilho sedutor,
Mas eras qual essa flor,
Cujo perfume envenena!
Tinhas nos olhos brilhantes
Os reflexos cambiantes
De uma aurora de verão,
Mas como a charneca escura
Só podridão, lama impura,
Guardavas no coração!
Na negra esteira dos vícios
Que os decaídos formaram,
Teus funestos artifícios
Iludido me arrojaram!
Amei-te: amar foi perder-me!
Foi beijar da terra o verme,
Crendo-o deus da vastidão...
Em vez do sol que buscava,
Louco afoguei-me na lava
De medonho, atroz vulcão!
Da vida estraguei por ti
Das quadras a mais risonha;
Mas hoje sinto a peçonha
Que nos teus lábios bebi!
Em meio de minha idade
Tenho n’alma a soledade,
Na fronte o gelo eternal;
Sinto a morte nas artérias,
E ao medir minhas misérias
Me orgulho de ser mortal!
ACUSMATA
(Fragmento)
POETA
Como se arrasta lentamente o tempo!
Como tarda o repouso! Como pesa
Sobre a lívida fronte do poeta
Esta brônzea cadeia de agonias
Que chamamos a vida! Este motejo
Lancinante da sorte que resume,
Contraditória, atroz, inexorável,
Em dias contingentes de existência,
A eternidade de um sofrer sem nome!
Meia-noite! Hora fúnebre e tremenda!
Férreo vibrar de ríspido martelo
Que os demônios acorda, e as larvas ergue
Nos dormitórios úmidos da morte.
Lugar comum dos bardos da descrença!
Momento de terror, risos, facécias,
Remorsos e pesar! Instante, augusto
Em que Ela desce muita vez das nuvens
E vem sentar-se de meu leito à borda!
Quero chorar. Mas não, não, que meus olhos
Têm pudor, não chorão! E contudo
Sinto-os num mar de lágrimas perdidos!
Sinto que o pranto sobe-me do seio!
Sinto que o pranto desce-me do cérebro!
Sinto que o pranto escalda-me as retinas!
Sinto que fui feliz, e nessa quadra
Nem tristezas cantei, nem amarguras,
Mas Deus, a vida, a mocidade e a glória!
Detesto a escola fúnebre, e mentida,
De gordos desditosos que padecem
Os revezes da sorte em lauta mesa.
Detesto os cantos céticos, descrentes,
De rosados ateus, sábios efêmeros,
ímpios provocadores da desgraça.
Detesto-os, porque sofro, e sofro muito,
Porque suporto um peso de misérias,
Tão grande que roxeia-me as espáduas!
Da natureza às múltiplas facetas
Tenho um plano pedido, onde, traçada
Veja nova existência; ao belo, à arte,
Mesma suplica hei feito; ao movimento,
Aos labores mais duros, aos trabalhos
Mais ásperos da vida, hei mendigado
Uma nuvem de paz, um véu de olvido!
E tudo é mudo! que me resta agora?
O sossego da morte, a cinza, o nada!...
Morrer... cair... mudar... deixar o asilo
De uma prisão de carne e de misérias
Por um mundo ignoto! Aos ventos soltos
Desprender os andrajos derradeiros
De uma sórdida veste, e desnudado
Tiritar nos desertos do invisível!
Arrancar da esperança o último broto!
Deixar a própria dor que obstinada
Há temido a razão milhões de vezes!...
E no entanto eu tenho a noite n'alma!
E o descampado horrendo, estéril, vasto,
Há sucedido ao gênio que acendia
As fibras de meu crânio!... — Se contudo
Uma réstia de luz brilhasse ao menos!
Se uma voz me falasse! Se uma gota
Das lágrimas que vertes por meu fado,
Anjo de piedade e de candura,
Me tombasse no seio, então quem sabe!...
Mentira! tudo é quedo, imóvel, frio!
vento passa, os espinheiros gemem
Torcendo os galhos secos, dir-se-ia
Que ameaçam as nuvens! Bem, morramos,
Tem belezas o pó, sonhos a tumba,
E a morte que os estultos amedronta
Brota a meus olhos pensativa e meiga;
Coroada de flores mais formosas
Que as tristes rosas dos jardins dos homens!
VOZES NO ESPAÇO
Somos a ideia, o sentimento, a essência
Da criação inteira; a intima nota
De quanto brilha, corre, canta e chora;
Somos o fluido eterno, que circula,
Envolve o globo, os seres, e penetra-os
De um infinito amor; somos a cítara.
Onde o sopro de Deus roça inflamado,
E sacode no espaço a paz aos homens
Num turbilhão de notas amorosas.
POETA
Quem o sentido revelar pudera
Desse rumor confuso, imenso e vago,
Que se eleva da terra, semelhante
Ao ressonar dos gênios adormidos?
E o prazer que fala ou a tristeza?
Reflete, sente o globo, ou condenado
A cruento penar, delira e geme,
E se desfaz em pragas horrosas?
Ah! mistério tremendo! Ah! fundo arcano!
AS ÁRVORES
Por que te afliges, misero poeta?
Não nos conheces mais? — Olha, contempla
E nestes troncos ásperos, nodosos,
Verás feições amigas. Nesta queixa
Que de nossas folhagens se desprende,
Escutarás de novo o meigo timbre
De teus sócios de infância. Nesta sombra
Que alongamos do chão, verás o leito,
Onde, tantos momentos, repousaste.
Ah! eras belo nesse tempo! A aurora
Tinha-te posto toda a luz nos olhos!
Quando passavas, teu caminho ledo
De frescura e de folhas alfombrávamos!...
E tu partiste ingrato, e tu partiste!
E trocaste o sossego do deserto
Pelo fulgor das salas dos palácios!
Pelos fingidos risos da mentira!
Pela voragem negra onde soluças!...
AS FLORES
Somos dos astros amorosas noivas,
Cada noite uma estrela nos envolve
Na teia luminosa, e nos transporta
A seu fúlgido leito. À madrugada
Fugimos de seus braços, e medrosas
Caímos sobre os campos. Nossos seios
Trazem ainda o aroma dos cabelos
Dos celestes esposos; nossas faces
Estão rubras ainda de seus beijos.
Andróginas do éter, a desgraça
Nos dividiu nos primitivos tempos:
Uma parte fulgura entre as estrelas,
Outra desceu à terra, e suspirosa
Cada noite meneia a débil fronte,
Mirando o Armamento. Um doce pranto,
Um pranto repassado de saudades,
Vem nos banhar o aveludado colo.
Que divina volúpia nessas lágrimas!
Poeta, a trepadeira solitária
Que se enrosca lasciva ao duro tronco
Do cedro secular; a flor guardada,
Entre os galhos do ipê, nas grossas folhas
De alpestre parasita; a mole acácia;
O manacá cheiroso que se ostenta
À beira d’água, pensativo e triste;
Os festões do ingazeiro e as açucenas,
Todas te amavam, te adoravam todas!
Nunca fomos ciosas! Muitas vezes,
Brutal, nos trucidaste sem piedade
Para adornar as frontes suarentas
De grosseiras amantes! Muitas vezes,
Distraído vagando, nos pisaste,
Como torpe animal! Porém que importa?
Se outras vezes choravas debruçado
Beijando-nos o seio? Se outras vezes
Tinhas tanta poesia a repetir-nos?
Ai! um dia esperamos-te debalde!
Tinhas partido, ingrato! Abandonaste
Nossa beleza cândida e modesta
Por essas sombras doentias, pálidas,
Que entre os lustres do baile se evaporam!
Por essas múmias sensuais que pejam
As alcovas de sórdidas pocilgas!
Pela morte encoberta e mascarada!
Pela lepra insanável de tua alma!
Se tivesses ficado, oh! cada noite
Uma de nós se erguera embalsamada
Para as lendas contar de nosso reino!
Não o quiseste, doido, agora é tarde;
E se ainda voltasses, a amargura
Nos faria murchar, cair sem vida,
A fim que o viandante nos tomasse
Para tecer a coroa derradeira,
A coroa derradeira que te resta!
O RIO
Sobre dourada areia desenrolo,
Soberano do vai, meu régio manto;
Os passarinhos namorados cantam
Nas figueiras bravias; chora o vento
Nos densos taquarais... — Mas ah! poeta,
Não mais te vejo, nem te escuto ao menos
Da loura Grécia as náiades chamando!
Nem a meus flancos murmurando idílios!
Nem sobre as águas a guiar teu barco!
Que fizeste, infeliz! Gênio bendito,
Eu te devera encaminhar no mundo!
Quando à tépida luz de amenas tardes,
Cantavas, sobre as rochas inclinado,
Quantas promessas te não fiz! Que planos
Desvendei a teus olhos cintilantes!
Eu que te vi nascer e que te amava
Como a rola ao deserto, à flor a abelha,
E os pintassilgos aos vergéis floridos!
E desprezaste a virgem que eu fadei-te,
Pura, mais pura que as estrelas todas!
Cortaste o fio do dourado drama
Que no silêncio místico das noites,
Pensando em ti, tracei, esmando o espaço
De um brilhante porvir! Lírios e rosas,
Tudo pisaste no delírio insólito
De uma febre insensata! Desditoso!
O que te resta agora? O que te resta?
A ESTRELA VÉSPER
Tudo repousa, as folhas da centáurea
Tremem de frio à beira do caminho,
Dobram-se os juncos nas lagoas negras,
E os vagalumes do deserto pasmam
À mansa luz que entorno sobre os campos.
Por que não vens inspirações pedir-me,
Sonhador de outras eras? Por ventura
Meu suave clarão não é tão belo
Como ao começo de teus verdes anos?
NUMA CHOÇA DE PALHA
Escutai os arpejos da viola,
São mais sentidos que o soprar do vento
Beijando a medo os arrozais viçosos;
Prestai ouvido à voz do sertanejo,
Que ela falia de amor, e a patativa
Nunca nos matagais gemeu tão triste!
Filhas da serrania e das campinas,
Adornai-vos de rubras maravilhas,
Vinde, que a noite avança e o céu desmaia!
ESPÍRITOS NA ATMOSFERA
Sacudi o sudário, errantes sombras,
Róseos espectros, lêmures da infância,
Fantasmas louros de ilusões perdidas!
Dançai, cantai nos planos luminosos
Que o íris cerca de brilhantes cores l
Chamai as fadas, e as ondinas leves,
Despertai nos palácios encantados
As princesas que dormem por cem anos!
Vinde fazer a orgia da saudade!
POETA
Oh! se não fosse um sonho! Se das trevas
Do sombrio passado inda pudesse
As almas evocar de tantos seres!
Se esta prisão de argila e de misérias
Não vedasse-me o voo! Se do livro
Onde flameja a lúgubre sentença
Eu pudesse rasgar uma só folha,
Uma só, grande Deus! Talvez lograsse
Todos os males apagar que hei feito!
NO ESPAÇO
Cumpre teu fado nesse mundo ingrato.
Eu também caminhei, hoje descanso
Dos eleitos de Deus no vasto império!
Não se afastam de ti meus olhos ternos.
Manchou-me o pó da terra, a luz das luzes
Deu-me nova existência ao pé dos anjos.
Como te amei outrora, amo-te agora,
Furta ao lodo tu'alma, olha as alturas,
E do empíreo no azul verás meu rosto!
POETA
Donde parte esta voz? De que recinto
Misterioso, oculto, me dirige
Tão suaves concentos? Porventura
Além do Armamento, além dos astros
Uma plaga de paz e amor existe?
Onde está ela?... a mente se me abrasa!
Por toda a parte só matéria vejo,
Luzes, vapores, ar, globos, esferas,
Mundos e mundos, sempre cheio o espaço!
Onde repousa o sólio do invisível?
Onde se abriga o sopro imponderável
Que anima os corpos dos mortais na terra?...
Se as rédeas solto à fantasia ardente,
Ela abandona o pó, transpõe as nuvens,
Vence as estrelas, deixa o sol e o éter,
Arroja-se atrevida no infinito,
E nada encontra além do eterno abismo!
Nada! e no lodo engolfa-se de novo!
Perdão, perdão, meu Deus! Busco-te embalde
Na natureza inteira! O dia, a noite,
O tempo, as estações, mudos sucedem-se,
E se falo de ti mudos se escoam!
Mas eu sinto-te o sopro dentro d'alma!
Da consciência ao fundo eu te contemplo!
E movo-me por ti, por ti respiro,
Ouço-te a voz que o cérebro me anima,
E em ti me alegro, e choro, e canto e penso!
Na natureza inteira que aviventas
Todos os elos a teu ser se prendem,
Tudo parte de ti, e a ti se volta;
Presente em toda parte, e em parte alguma,
Íntima fibra, espírito infinito,
Move, potente, a criação inteira!
Dás a vida e a morte, o olvido e a glória.
Se não posso adorar-te face a face,
Ah! basta-me sentir-te sempre, e sempre.
Eu creio em ti, eu sofro, e o sofrimento
Como ligeira nuvem se esvaece
Quando repito teu sagrado nome!
Eu creio em ti, e vejo além dos mundos
Minha essência imortal brilhante e livre,
Longe dos erros, perto da verdade,
Branca dessa brancura imaculada
Que os gênios inspirados, nesta vida
Em vão tentaram descobrimos mármores.
A SEDE
I
Cada vez mais possante e mais robusta
Bramia audaz a insurreição nascente
No coração do México. As colinas
Tornavam-se tremendas fortalezas,
Transbordavam as selvas de guerreiros
E as grutas de armamentos... A alvorada
De dia em dia seu clarão furtava
A milhares de seres, e o silêncio
Das noites estivais não mais cobria
A face desolada dos desertos,
Onde vencido e vencedor rugiam
Ensopando de sangue o chão revolto.
As moças aldeãs tinham perdido
Seu riso jovial, e recolhidas,
Em torno ao triste lar, cheias de luto,
Deslembravam seus cantos prazenteiros
Para chorar a morte dolorosa
Dos pais ou dos irmãos. O céu brilhante,
O próprio céu da terra americana
Não mais sorria aos campos devastados.
II
Vinha descendo a noite, treda noite
De pavores e sustos. Na planície
Que entre Anelo se estende e entre Monclova
Soam confusas vozes, brilham lumes,
Cruzam-se à chama rubra das fogueiras
Vultos inquietos. O rumor aumenta-se,
Novas figuras erguem-se do solo;
Tinem espadas; ameaças troam,
E um só clamor se entende pelo espaço
Os ecos acordando: “Temos sede!
Dai-nos água por Deus!” Então da sombra
Um homem se destaca; seus olhares
São calmos e tristonhos, o sorriso
Forçado de seus lábios anuncia
Mal disfarçada mágoa, tem nos braços
Uma tenra criança. “Ouvi, meus filhos.
Disse com voz serena, aqui vos deixo
Este anjinho em penhor; se à madrugada
Não tiverdes matado a sede ardente
Fazei o que pensardes. Sobre a terra,
Único leito que ao guerreiro livre
O Senhor permitiu, sofre sem queixas
Minha esposa infeliz! E vós, guerreiros,
Vós que lutais em prol da liberdade,
Que a pátria defendeis, vergais o colo,
Servos de vergonhoso desespero!”
Assim dizendo, sobre a fria areia
A criança depôs. “Não! não! bradaram
Enternecidas vozes, o inocente
Deve ao lado dormir da mãe que o adora!
Confiamos em vós, depressa a noite
A terra deixará.” E pouco a pouco
Foi-se afastando a turba de seu chefe,
Que a passos lentos se perdeu na sombra
Agasalhando ao seio o pobre filho.
III
Junto de estéril céspede inclinada,
Sobre grosseiro manto, se desenha
Um vulto de mulher; ao lado dela
Dois guerreiros vigiam. Pensativo
Vem se sentar o chefe a poucos passos.
Após um meditar de instantes curtos,
“Valvidia, diz, encontrarás cem homens
Dedicados e fortes, que nos sigam,
Entre essa pobre gente que delira?
— Sim, responde Valdivia, o destemido,
Valente lutador, de brônzeos músculos,
Alma de herói em corpo de granito;
Sim, e o primeiro sou!” A estas palavras
outro guerreiro levantou-se rápido.
“E também eu, meu pai,” disse abraçando
resoluto chefe. “Bem, agora
Trata de os avisar, um só momento
Não devemos perder. O Rei das Sombras
Que venha ter comigo.” Os dois guerreiros,
Quais dois raios partiram. Triste o chefe
Voltou-se à triste esposa, e lhe depondo
Um frio beijo sobre a fronte fria,
Deitou-lhe ao lado o misero filhinho.
“Minha pobre Evelina, que fadário
Lutulento é o nosso!” Disse, e a sócia
De seu fundo sofrer, vendo-lhe os olhos
Num véu de acerbas lágrimas envoltos,
Lançou-lhe ao colo os braços amorosos,
Chorou com ele o pranto do infortúnio.
IV
Também no seio deste mundo virgem
Há desertos terríveis, flagelados
Por um sol implacável. Vastos mares
De areia movediça se desdobram
Até perder-se além nos horizontes.
Nem uma gota d’água nesses ermos!
A noite lhes negou seu fresco orvalho,
E as chuvas do verão fugir, parecem
A seu hórrido aspecto. Desditoso
Do viandante que o roteiro perde
Nessas paragens lúgubres malditas!
Contudo às vezes junto a ingrata moita
De ressequido cactos se levantam
De uma cisterna os lábios: são lembranças
Que deixarão, quem sabe, errantes hordas
Ou mãos piedosas de piedosos seres
Que nessas plagas muita vez sentiram
martírio de Agar nas soledades.
Mas nem restava este recurso ao menos
Ao desditoso chefe! as tropas bárbaras,
Mais bárbaras que os bárbaros d'outrora,
Tudo entulhado haviam! Dias quatro
Da liberdade os bravos combatentes
Suplicio da sede suportavam!
V
“Eis-me aqui, general!” a poucos passos
Uma voz murmurou rouquenha e surda,
E um vulto adiantou-se. “Rei das Sombras?
Sim.” Era um homem de estatura hercúlea,
A dúbia frouxa luz que das fogueiras
Mal clareava a cena, sobre o dorso
Batia-lhe fugaz, como nos músculos
De uma estátua de cobre a claridade
Das solitárias lâmpadas de Brahma.
O Rei das Sombras atrevido nome,
E contudo feliz. Da selva os filhos,
Homens de rubra tez, negros cabelos,
Ágeis no jogo da ligeira seta,
Amam da língua as pompas; o deserto
E seu vocabulário, e que belezas
Não encerra o deserto! O Rei das Sombras
Tinha nascido à sombra das folhagens
Das matas primitivas, como as aves
Livre, e como a amplidão; mais tarde o acaso
Fê-lo deixar seus paços de verdura
Para seguir o aventuroso oficio
De guiar no deserto os viajores.
Tinha talvez de idade doze lustros.
Ninguém mais destro, mais sagaz, mais fino
Em descobrir os rastos do inimigo,
Vencer perigos, prevenir os fatos,
E até, diziam, predizer aos homens
Os arcanos vendados do futuro.
VI
Ao Rei das Sombras dirigiu-se o chefe.
“Disseste que a seis horas de caminho
Uma fonte acharíamos? — Eu disse,
General, mas um bando de inimigos
Velam aí, traidores como as serpes!
Em deserta fazenda, circundada
De erguidos muros, seu quartel formaram;
A cada instante em torno as sentinelas
Gritam rondando. — Não importa, a morte
Será menos cruel aos golpes deles
Do que nas ânsias desta sede insólita
Que as entranhas nos rói! Prepara as armas,
Consulta a noite e os ventos, e conduze-nos.
Já dos cavalos as passadas ouço.”
VII
Partira o chefe e o grupo de guerreiros.
Por entre as nuvens as estrelas mórbidas
Vertiam sobre a terra sonolenta
Seus últimos clarões. Os horizontes
De uma cor violácea se tingiam,
E amplos areais, tredos, imóveis,
Esperar pareciam tristemente
O dúbio riso de uma aurora enferma.
Tudo dormia; o lume das fogueiras
Sob um sudário de ligeira cinza
Parecia também, meio abafado,
Dormir sobre os tições... Oh! Deus! que alívio
Não deste aos seres nesta irmã da morte,
Rimada noite, que se chama o sono!
Evelina acordou sobressaltada:
“Escuta, disse ao filho que ficara
Por mandado do chefe; escuta, filho,
Disse ao moço guerreiro, tive um sonho,
Cheio de horror e cheio de presságios!
Punha-se o sol, um turbilhão de fumo
Cobria o descampado, em seu cavalo
Galopava teu pai a toda brida
Em direção a nós; e no entanto,
Bem longe de alegrar-me, dentro d'alma
Uma pungente dor me lacerava!
Depois vi-me a mim mesma, em meus cabelos
Sangue gotejava, um véu de morte
Empanava-me os olhos desvairados,
E corri a encontrá-lo; quando perto
Os braços lhe estendia, agudo grito
Escapou de meu peito, e sobre a terra
Cai fria e sem forças o inditoso
Não tinha mais nos ombros a cabeça!”
O mancebo pensava; nesse quadro
Confuso, incoerente, pressentira
Sinistros laivos de uma atroz verdade.
VIII
Em breve no oriente o rei dos astros
Foi-se mostrando aos poucos. Os guerreiros
Ergueram-se bradando: “O sol desponta,
Vamos buscar o chefe; é vinda a hora
Da promessa cumprir.” Mas quando junto
Chegaram do lugar onde a família
Do chefe descansava, e em vez do chefe
Só encontraram Evelina aflita,
O moço pensativo e a criancinha
Chorando fracamente, em altas vozes:
“Traição! traição! bradaram, pague o filho
Pela infâmia do pai! Sim, disse um índio
De turvo olhar e feia catadura;
Vede, o infame traidor levou consigo
Cem traidores guerreiros; vede, amigos
Quantos de menos entre nós se contam!
— Traição! vingança!” vozeou a turba,
E como a vaga infrene que se atira
De uma ilha isolada às ermas praias
Avançou para as vítimas rugindo.
“Ninguém se chegue, escutem-me primeiro!”
Disse o moço apontando os brônzeos canos
Das armas que trazia à onda viva
Raivosa dos rebeldes. O silêncio
Estendeu-se um momento onde soara
Há pouco a tempestade. “Eu também juro
Sobre minh'alma, sobre minha vida,
Que sereis satisfeitos. Bravos, animo!
Deixai que em meio céu o sol fulgure,
Se meu pai não voltar...” Esta proposta
Não contentou a turba; no entanto
Ela calmou-se um pouco, e dispersada
Sobre a areia dos ermos esperava
Que fulgurasse o sol, o sol do meio dia.
Esse instante chegou, não veio o chefe!
IX
Mas entre nuvens de poeira ao longe
Assoma um cavaleiro; denso nimbo
Que os aquilões fustigam pelo espaço
Não corre mais ligeiro. Tem o corpo,
Do valente animal pendido às crinas,
Mas o curvado e musculoso dorso
Brilha aos raios do sol como os relevos
De um escudo de ferro. “O Rei das Sombras!”
Todos bradarão prolongando a vista.
Em breve ele alcançara o acampamento.
“Filhos da liberdade! eia marchemos!
Ofegante exclamou, que nosso chefe
Luta como um herói por vossa, causa!
Ah! de nossos irmãos apenas restam
Quarenta bravos, tudo o mais é morto
Aos golpes impiedosos dos tiranos
Que laceram a pátria. Eia guerreiros!
Sem vosso auxílio o general sucumbe!
— Vamos! vamos! em marcha! grita o moço.
— Em marcha! diz a turba.” Num momento
A multidão moveu-se como as vagas
Por alto mar nas horas de borrasca.
E as carretas pesadas se abalaram
Sobre as quentes areias, e o deserto
Viu sem saudade os hospedes partirem.
X
Tinha-se posto o sol, mas o ocidente,
Tinto de rubra cor, sobre as planícies
Derramava um clarão sinistro e feio.
As altas rochas, os grosseiros cardos,
Erguiam-se fantásticos, imóveis,
Ora como sepulcros solitários,
Monumentos estranhos de uma raça
Que nunca os homens virão; ora um grupo
De informes criaturas imitando;
Ora disperso turbilhão de espectros
No vasto chapadão cismando quedos
À luz sangrenta de um vulcão sem fundo.
Os guerreiros marchavam. Pouco a pouco
Menos estéril se mostrava o solo,
E as rochas mais escassas. Firme terra,
Em vez de areia movediça, os passos
Dos corcéis repetia; os arvoredos
Pareciam surgir como prodígios
Aos olhares da tropa sequiosa.
De repente um rumor confuso e vago
Fez-se ao longe escutar. O Rei das Sombras
Deteve-se e falou: “Estamos perto,
Esperai-me tranquilos neste sitio,
Vou ver o chefe, num relance d'olhos
De novo me acharei a vosso lado.”
Inda bem não findara estas palavras
Quando um ruído estranho, discordante,
Mistura de gemidos e blasfêmias,
Galopar de corcéis, tinir de espadas,
Soou na solidão. “Silêncio! clama
Prestando ouvido o índio valoroso;
Silêncio!” E mais veloz do que a pantera
Ao chão saltou, e as ramas afastando
Cauto se adiantou. Nesse momento
À pequena distância as folhas rangem
Sob rude tropel, retumba o solo
E um cavalo se arroja esbaforido
Junto à tropa ansiosa; sobre os lombos
Sustentava um guerreiro, e esse guerreiro
Era o mísero chefe. O desditoso
Tinha do tronco a fronte separada!
Dos cem valentes que levou consigo
Nenhum, nenhum restara! Muitos deles,
À cauda dos cavalos amarrados,
Deixavam no deserto atrás do chefe
Um rastilho de sangue sobre o solo!
XI
As tropas do inimigo estavam perto!
Estavam perto as tropas do inimigo!
Bando feroz as vítimas seguira!
E riam-se e zombavam!
Bravos da independência mexicana,
Não há palavras na mundana língua
Que pinte a raiva desses homens livres
Vendo do chefe o mutilado corpo!
As massas monstruosas que rebentam
Das cimeiras dos Andes; as torrentes
Que no seio do abismo se despenham;
O furacão que arrasa as soledades;
O raio, a tempestade, a própria morte,
Tão cruentos não são, não são tão negros,
Nem tanto estrago no deserto hão feito
Como a explosão da fúria sanguinária
Daqueles bravos ébrios de vingança!
Duzentos homens sobre o chão caíram
Sob a espada dos livres! “À fazenda!
filho do finado, o novo chefe,
Gritou enfebrecido. — Sim! bradaram,
À fazenda! à fazenda! É morto o chefe,
Conduza-nos o filho em lugar dele!”
XII
Sombrias nuvens pelo espaço rolam,
Ora vendando a face das estrelas,
Ora deixando-as cintilar mais vivas,
Mais fulgentes ainda, sobre a espessa,
Basta melena dos bulcões medonhos.
Inquieta a noite vai, raivosos ventos
Passam roubando às árvores as folhas,
E em tredos silvos vão perder-se ao longe
No imenso da soidão. De instante a instante
Um lampejo sulfúreo os ares corta
Aclarando o deserto que repousa
Da branca areia no sudário imenso.
O vulto tenebroso extenso e lúgubre
Da lúgubre fazenda se levanta,
Ostentando as muralhas gigantescas
Aos olhares dos bravos combatentes.
Bradam de instante a instante as sentinelas,
Os inimigos velam ressentidos
Da refega da tarde, talvez temem
A surpresa dos livres. Bravos somos,
Bravos, e muitos, diz o moço chefe;
Muitos e sequiosos; avancemos;
Vedes esse portão? E necessário
Em pedaços fazê-lo; vamos, vamos,
O momento é propicio... — Não, reflete,
A distância medindo, o Rei das Sombras;
Fique a metade aqui dos assaltantes,
Busque a outra escalar os altos muros;
Quando dentro estiverem da fazenda
Seja dado um sinal, então por terra
Lançai vós outros o portão maldito
Aos golpes dos machados. Bravos somos,
Há dito o chefe, bravos nos mostremos,
Libertemos a pátria! — Combatentes,
Disse uma voz enérgica, mas doce,
Acerba, mas sonora, a poucos passos
Erram vinte guerreiros, são soldados
De livre capitão, eles não tardam
Em reunir-se a nós, inda um momento
Retardemos o ataque. Era uma estranha,
Contudo bela imagem de guerreiro
Quem assim se expressava; tinha aos ombros
Uma curta espingarda, espada ao lado,
Mas de mulher as vestes lhe cobriam
O corpo airoso, e nos fogosos olhos,
Onde os prazeres habitar deveram,
A vingança brilhava: era Evelina!
XIII
“México e liberdade! dentre as sombras
Uma voz murmurou pausada e firme.
— México e liberdade! repetiram
Erguendo-se os guerreiros. —Vinde, vinde,
Disse Evelina apresentando ao filho
O novo companheiro. —Vinde, vinde,
Repete o moço chefe adiantando-se,
Há muitos dias que aqui estais? — Há quinze,
O capitão responde. — Haveis sofrido?
— Perda de bravos, privações sem nome!
— Pois bem, é hoje o dia da vingança.”
E assim dizendo o plano comunica
Do ataque da fazenda ao chefe amigo.
“Ocorre-me uma ideia, este pondera,
Tenho uma peça, munições e balas,
Mas falta-me a carreta, se possível
Fosse trazê-la a descobrir um meio
Desta falta sanar... — É grande a peça?
Uma voz perguntou. — Não muito grande,
Chefe lhe responde. — Quantos homens
São mister para erguê-la? — Cinco. — Vamos,
Prossegue a mesma voz grave e segura,
Eu farei a carreta.” Era Valdivia,
Que o morto chefe dispensado houvera
Quando havia partido; era Valdivia,
hércules da tropa, quem falava.
XIV
Pouco tempo depois estava a peça
No meio dos guerreiros. “Mãos à obra,
Disse o chefe mancebo, o Rei das Sombras
À frente de cem fortes combatentes
Busque os muros vingar e introduzir-se
No pátio da fazenda; e nós, amigos,
Nós trataremos do portão; é tempo,
A peça examinemos sem demora.”
Assim dizendo à formidável porta
Em vão tentavam do canhão mortífero
As fauces apontar; em vão, a terra
Em torno das muralhas levantada
Protegia o recinto, era forçoso
Erguer do solo o bélico instrumento,
Pô-lo do ponto desejado ao nível.
Houve um momento de silêncio. “Agora
O que havemos fazer? diz o mancebo,
Que partido tomar? — Sempre o da luta,
Responde-lhe o colosso; o Rei das Sombras
Que siga seu destino com seus bravos,
Chamai dez homens, soerguei a peça
Eu serei a carreta! — Tu, Valdivia!
— Eu sim, eu mesmo,” e sobre o chão cravando
Os joelhos e as mãos, falou de novo:
“Tragam a peça e amarrem-ma nas costas!”
Em breve dez guerreiros reforçados
Nos rijos lombos do robusto atleta
O canhão colocaram, duras cordas
Em torno da cintura lhe passaram
A fim de bem suster o enorme peso.
herói nem se moveu. “Agora, amigos,
Carregai este monstro até a boca,
Apontai ao portão, fogo!” Os guerreiros
Que deviam seguir o Rei das Sombras
Tomaram seu caminho, e o moço chefe,
Ora fazendo-se inclinar a peça
Nos ombros de Valdivia, ora elevando-a,
Fez carregá-la, examinou a mecha,
Apontou ao portão, e resoluto
Acendendo o morrão: “É tempo! disse,
Animo, bravo!” E a mecha incendiou-se,
Rugiu o bronze, vomitou seu raio,
E levantando a fronte o homem carreta
Sorriu-se e murmurou: “Mais outra bala,
Carregai-a de novo até a boca!
Ah! maldito portão! portão maldito,”
Já entre os muros do sombrio forte
Começava o rumor da soldadesca,
Sons de clarins e rufos de tambores,
Anúncios de defesa e de combate.
Segunda vez no dorso de Valdivia
O canhão trovejou e a bala rápida
Abalou o portão até seus gonzos.
O bravo levantou de novo a fronte
Suarenta, inflamada. “Um tiro ainda!
Disse com surda voz, e tudo é feito!
Carregai-a sem medo até a boca!”
O chefe obedeceu, a ígnea mecha
Mais uma vez brilhou, partiu o raio,
O trovão retumbou, a grande porta
Em pedaços caiu, e um grito agudo,
Atroz, pungente, fez-se ouvir no espaço!
O herói da noite se torcia em ânsias
Debaixo do canhão! O último abalo
Tinha-lhe a espinha vertebral partido!
Dez minutos depois era um cadáver.
XV
"México e liberdade! Eia, avancemos!”
Bradaram numa os assaltantes;
E como as vagas de caudal torrente
De erguida serra na garganta estreita
Com pavorosos urros se engolfando,
Em confuso tropel se arremessaram
À livre entrada que o canhão fizera.
Um granizo de balas sibilantes
Partiu dos sitiados, derribando
Muitos dos invasores. “Vamos! vamos!”
Bradava o chefe, e os ávidos guerreiros
Rompendo a densa nuvem de fumaça
No pátio da fazenda penetraram.
XVI
Então à dúbia luz dos astros raros,
Que entre as nuvens condensas cintilavam,
Houve uma cena horrível. Semelhantes
A dois bulcões medonhos que se enroscam,
Torcem-se unidos atroando o espaço,
Ao som de seus bramidos estrondosos,
Os guerreiros do forte e os assaltantes
Numa só massa escura se fundiram,
Caos de seres humanos consumido
Pelo fogo da raiva e da vingança!
Ondas de desespero e de loucura!
Mistura de paixões e de martírios
Patente à luz das tímidas estrelas.
Na sombria nuez de seus horrores!
XVII
Enquanto isto passava-se no pátio
Tendo os muros transposto o Rei das Sombras
Invadia o edifício onde açodado
O comandante ao lado de alguns homens,
Bravo como um leão, se defendia.
Debalde! A mão de Deus era visível,
E o anjo tutelar dos entes livres
Batia as asas longas, inflamadas,
Em torno de seus filhos prediletos.
XVIII
“México e liberdade!” os combatentes
Que lutavam no pátio repetiram
Sob a expansão de um júbilo indizível.
“México e liberdade!” das janelas
Do sombrio edifício lhes responde,
De seus bravos no meio, o Rei das Sombras.
“México e liberdade!” e à luz de um facho
Desenhou-se na porta do edifício
O vulto de Evelina. “Vencedores!
Disse atirando às pedras da calçada
Uma sangrenta e lívida cabeça,
Eis-ali meu quinhão! — O comandante!”
Atônitos bradaram contemplando
A fronte fria do inimigo chefe.
Está passada a sede da vingança,
Mas a sede do corpo nos devora,
Às cisternas, guerreiros, às cisternas!
ENOJO
Vem despontando a aurora, a noite morre,
Desperta a mata virgem seus cantores,
Medroso o vento no arraial das flores
Mil beijos furta e suspirando corre.
Estende a névoa o manto e o vale percorre,
Cruzam-se as borboletas de mil cores,
E as mansas rolas choram seus amores
Nas verdes balsas onde o orvalho escorre.
E pouco a pouco se esvaece a bruma,
Tudo se alegra à luz do céu risonho
E ao flóreo bafo que o sertão perfuma.
Porém minh'alma triste e sem um sonho
Murmura, olhando o prado, o rio, a espuma:
Como isto é pobre, insípido, enfadonho!
LIRA
Quando me volves teus formosos olhos,
Meigos, banhados de celeste encanto,
Rasgo uma folha da carteira, e a lápis
Escrevo um canto.
Quando nos lábios do rubi mais puro
Mostras-me um riso sedutor, faceto,
Encomendo minh'alma às nove musas,
Faço mm soneto.
Quando ao passeio, no mover das roupas,
Deixas de leve ver teu pé divino,
Sinto as artérias palpitarem túmidas,
Componho um hino.
Quando no marmor das espáduas belas,
As negras trancas a tremer sacodes,
Ébrio de amor, sorvendo seus perfumes,
Rimo dez odes.
Quando à noitinha me falando a medo
Elevas-me do céu à luz suprema,
Esqueço-me do mundo e de mim mesmo,
Gero um poema.
O MESMO
Desde a quadra a mais antiga
De que razão pergaminhos,
Cantam a mesma cantiga
Na floresta os passarinhos.
Tem o mesmo aroma as flores,
Mesma verdura as campinas,
A brisa os mesmos rumores,
Mesma leveza as neblinas.
Tem o sol as mesmas luzes,
Tem o mar as mesmas vagas,
O deserto as mesmas urzes,
A mesma dureza as fragas.
Os mesmos tolos o mundo,
A mulher o mesmo riso,
O sepulcro o mesmo fundo,
Os homens o mesmo siso.
E neste insípido giro,
Neste voo sempre a esmo,
Vale a pena, em seu retiro,
Cantar o poeta, mesmo?
A UM MONUMENTO
Triste, negra vassalagem
Do mais baixo servilismo,
Negreja no espaço a imagem
Consagrada ao despotismo.
E em torno dela agrupados,
Vergonha de nossa idade!
Estão os vultos sentados
Dos filhos da liberdade!
O povo curva-se e passa,
Porque não vê a ironia
Que encerra essa brônzea massa
Indigna da luz do dia.
Porque nunca leu a história
Das turvas eras passadas,
Folhas brilhantes de glória,
Mas de sangue borrifadas.
Porque não conhece o drama
Do mártir que ali morrerá,
Por zelar a sacra chama
Que a liberdade acendera.
Pobre turba! Néscia e fátua
Na sua soberania,
Beija os pés à fria estátua
Que há de esmagá-la algum dia!
A PENA
(Fragmento de um poema íntimo)
Poucos instantes de vida
Me restam, oh! bem o sei!
Fiquei vencido na lida,
Seja assim, cumpra-se a lei!
Fui forte, com firmes passos
Transpus desertos espaços,
Afrontei mil temporais,
Sorri no dorso das vagas
Da tormenta às surdas pragas,
Da morte aos brados fatais!
Bebi de todas as taças,
Provei todas as desgraças,
Todas as dores sofri;
Mortal, vergou-me o martírio,
Nem a luz tenho de um círio,
Sinto na fronte o delicio,
Não passo além, durmo aqui.
E no entanto que sonhos,
Que planos ledos, risonhos,
Minha mente não formou
A luz deste céu brilhante,
Sobre este solo gigante
Que o Senhor abençoou!
Quantas vezes reclinado,
Mansamente balouçado
Sobre o regaço materno,
Não senti por minhas faces
Roçarem gênios falaces
Que me apontavam mendazes
Um porvir de gozo eterno!
Meu Deus! Por que me lançaste,
A mim levita da dor,
Na terra onde derramaste
Tanta vida e tanto amor?
Por que à mágoa sem nome
Que minhas fibras consome,
Tanta luz antepuseste?
E quando tudo folgava,
Quando tudo se alegrava,
Por que chorar me fizeste?
Por que me deste um destino?
Por que me deixas sem tino
No meio da criação,
Imagem de um mal acerbo,
No teu poema soberbo
Sangrento escuro borram?
Quantas flores hei plantado,
Quanto arbusto hei adorado,
O tempo tem derribado,
Tem o lodo consumido!
Hoje sobre o meu calvário,
Triste, mudo, solitário,
Rasgo as dobras do sudário,
Mordo a cruz enfebrecido!
Humilhar-me ao sofrimento?
Nunca! Às rajadas do vento
O cedro jamais se dobra!
Tenho o orgulho da desgraça,
Quanto mais à dor se abraça
Mais força minh'alma cobra!
Oh! minha pena querida,
Não quero ensopar-te, não,
Na funda, negra ferida
Que tenho no coração!...
Não quero, não posso! Ainda
Eu a vejo airosa e linda
Vir se sentar junto a mim!
E não é mais que uma ideia!
Folha de rota epopeia!
Fátua luz que bruxuleia
Sobre um deserto sem fim!
E não é mais que uma nota,
Triste, lânguida, remota,
Nas solidões do passado!
Um monte de brancos ossos!
Marco atirado entre os fossos
De medonho descampado!
Oh! minha pena mimosa,
Minha pena graciosa,
Companheira carinhosa
Dos festins da mocidade!
Meu orgulho de criança!
Mais tarde loura esperança!
Maga estrela de bonança!
No meio da tempestade!
Vou deixar-te! Está quebrada
Essa trindade adorada
Que tantos sonhos gerou!
Ela partiu, nós ficamos,
Ingratos, não mais riamos,
Oh! de lágrimas enchamos
O espaço que ela ocupou!
Mas não! Se te ordena a sina,
Se o destino assim te manda.
De pé sobre a própria ruína
Canta, oh! alma miseranda!
Pede ao inferno uma lira,
Toma os guizos da loucura,
Dança, ri, folga e delira
Mesmo sobre a sepultura!
Solta rudes harmonias,
Brinda a morte e as agonias,
Canta as cóleras bravias
Dos precitos eternais;
Sobre túmulos e berços
Escreve ainda, e teus versos
Sejam banhados, imersos,
Nos prantos de Satanás!
LEVIANDADES DE CÍNTIA
PANFÍLIO,
ANFILÓFIO,
MARCULFO.
Noite. Um rio com uma ponte. Panfílio à margem esquerda.
PANFÍLIO
Círios da noite, vividas estrelas,
Apagai vossa luz! Veigas, campinas,
Onde tantos momentos palpitantes
De poesia e de amor errei tecendo
Hinos à ingrata por quem tanto sofro,
Envolvei-vos num manto tenebroso!
Furtai o turbilhão de vossas dríades
De meu trágico fim à triste cena!
E tu cruel tirana de minh'alma,
Tu que a pagaste meus rosados sonhos,
Que afogaste meus planos de esperança
No oceano sem fim de tua astúcia,
Adeus! adeus! No seio destas águas
Quero ocultar meu drama de martírios,
Minha história de lágrimas e sombras!
(Aparece Anfilófio à margem direita)
ANFILÓFIO
Eis-aqui o lugar ermo e sinistro
Onde vou terminar minha existência.
Deus me perdoe, sobre este vil planeta
Vale mais um defunto que um mendigo.
Ignoro a política, estou pobre,
Heranças não espero, acho-me velho,
É preciso morrer. Examinemos
Esta liquida cama. Quando a aurora
Estender caprichosa os seus rabiscos
Na cúpula do céu, meu fim nefasto
Correrá, bem o sei, de boca em boca
Pela cidade toda. “Era um bom homem,
Os vizinhos dirão; morou dez anos
Junto de nós e nunca nos queixamos,
Nem tínhamos de que; amava os pobres;
Nunca na vida alheia intrometeu-se,
Nem fez mal a seu próximo somente
Era amigo do vinho e das mulheres,
E voltando do jogo às vezes bêbado
Punha toda esta rua em movimento.”
Outros dirão: “Matou-se? Aos sessenta anos
Um homem de juízo não se empenha
Em conquistas venais. Teve sultana,
Boa mesa, bom vinho e maus amigos;
Comprou sedas, brilhantes, carros, moveis,
E cego por seu ídolo funesto
Fez da burra um altar para adorá-lo.
Foi melhor que morresse; Deus o tenha.”
PANFÍLIO
Negro destino! Abandonar o mundo,
A esperança, o porvir, talvez à glória,
A fortuna, o prazer, na flor dos anos,
E buscar os desertos de além-túmulo,
Cheio de desespero! No entanto
Não posso mais viver!... Pois bem, morramos
Amanhã os jornais desta cidade
Num artigo de fundo acomodado
Entre tarjas de luto, em grandes letras
Dirão: “Mais um talento há sucumbido
Ao peso das desditas! Mais um astro
Perdeu-se entre os negrumes da tormenta!
Panfílio já não vive! Já não vive
O terno sabiá que amenizava
Com seu canto sentido estas paragens!”
Talvez ao ler a lúgubre notícia
A ingrata chore, e lá na eternidade
Eu goze do prazer de ver meu nome
Impresso em grossos tipos.
ANFILÓFIO (descobrindo Panfílio)
Não me engano,
Eu vejo alguém que falia e gesticula,
Do outro lado do rio. Estou perdido!
Espreitam-me talvez! Se por ventura
A cruel que arruinou-me, e por quem morro,
Suspeitasse o projeto que acalento
Em silêncio há três dias! Oh! mulheres!
Mulheres!
PANFÍLIO (descobrindo Anfilófio)
Grande Deus! diviso um vulto
Sobre a margem direita deste rio!
Quem será? Quem será? Tremo de susto!
Parece que me estuda! É necessário
Meu medo disfarçar.
ANFILÓFIO
O tal amigo
Começa a incomodar-me! Eu sou valente,
Mas a noite, o lugar, meu triste estado...
PANFÍLIO
Ele tosse, aproxima-se da ponte,
Volta, torna a tossir. Sejamos fortes,
Falemos. — Oh! vizinho do outro lado,
O que faz o senhor aí sozinho?
Por que passeia, escarra e estende os braços
Quando eu contemplo as águas sussurrantes
Deste rio saudoso e merencório?
Diga-me sem demora!
ANFILÓFIO.
Por São Pedro!
E o senhor o que faz? Vamos, responda-me.
Por que contempla as águas sussurrantes
Deste rio saudoso e merencório
Quando eu passeio, escarro e estendo os braços?
PANFÍLIO
A resposta é difícil, entretanto
Posso lhe asseverar que neste sitio
Tenho sérios negócios.
ANFILÓFIO
A estas horas?
Neste lugar deserto? Não há duvida
O homem tem os sapos por clientes,
Ou é algum ladrão, mas não me assusto,
Não sou mais rico. — Pois também, amigo,
Tenho sérios negócios.
PANFÍLIO
Seja franco,
Somos aqui sozinhos, por ventura
Vem espreitar meus passos?
ANFILÓFIO
Menos essa!
Eu não sou espião, nem o conheço!
E dê graças a Deus se nos separam
As águas deste rio, malcriado,
Senão lhe gravaria nas bochechas
Os princípios da sã civilidade
E boa educação!
PANFÍLIO
Paz, meu amigo,
Paz; a desgraça me tornou grosseiro,
A dor me transviou!
ANFILÓFIO
A dor, entendo,
Entendo, vem aqui chorar seus males?
Eu também sofro; diga-me, precisa
De alivio e de consolo?
PANFÍLIO
Não; eu venho,
Eu venho aqui morrer! Não há consolo
Que abrandem minhas mágoas!
ANFILÓFIO
O que escuto!
Eu também vim aqui buscar a morte
No fundo destas águas! Deus louvado,
Morramos juntos como bons parceiros,
Contentes, de mãos dadas, e fujamos
Deste mundo cruel como dois ébrios
À meia noite de uma escura tasca.
Mas conte-me primeiro seus pesares;
Foram azares da fortuna? A morte
De uma esposa querida? O vício? O crime?
Erros da mocidade?
PANFÍLIO
Antes o fosse!
De que me serve repetir-lhe a história
Das mais negras desditas que aniquilam
coração humano? As tristes lendas
De um amor infeliz?
ANFILÓFIO
Bem o previa.
Sua amante deixou-o...
PANFÍLIO
Sim, deixou-me!
A mim, alma de fogo, alma inspirada,
Cheia de sonhos e ilusões formosas,
Por um parvo, um sandeu endinheirado,
Um chatim miserável, cuja bolsa
Valia mais aos olhos da traidora
Do que todas as odes e sonetos
Dos poetas da terra!
ANFILÓFIO
Pois comigo
Sucedeu o contrario. A minha deusa
Sugou-me à gorda burra o leite todo,
Deixou-me sem vintém. Dizia amar-me,
E no entanto eu soube que passava,
Durante minha ausência, horas e horas
Entre os braços de um biltre empomadado,
Possessor de uma dúzia de bengalas,
Umas de pau com caras de cachorro
Ou patas de peru, outras de chifre
Com cabeças de Chins, outras mais feias
Que o próprio frontispício do malandro
Que meus bens devorava em comandita,
À sombra da velhaca! — Eia, morramos!
Quem pulará primeiro dentro d'água?
Sem dúvida, o senhor?
PANFÍLIO
Oh! caro amigo,
A boa educação manda que eu ceda
Esta honra ao mais velho.
ANFILÓFIO
Nada, nada,
Nada de cerimônias, eu não gosto
De fofas etiquetas.
PANFÍLIO
Pelos anjos!
Eu cumpro o meu dever.
ANFILÓFIO
Não, deste modo
Se gastamos o tempo a rasgar sedas
E fazer cortesias um ao outro
Nenhum se atirará. Bem, concordemos
No que passo a propor: em voz bem alta
Pronunciemos vezes três o nome
De nossas infiéis, à vez terceira
Arrojemo-nos juntos.
PANFÍLIO
Seja, vamos.
AMBOS.
Cíntia!
ANFILÓFIO
Por Deus, repita, sim, repita!
Cintia disse, não é?
PANFÍLIO
Sim eu o disse,
Disse o senhor também!
ANFILÓFIO
Eu também disse.
E a sua namorada assim se chama?
PANFÍLIO
Certamente.
ANFILÓFIO.
E sua cor, sua estatura,
Seu aspecto, seu ar, sua morada?
PANFÍLIO
Alta, morena, de aneladas trancas,
Pés e mãos pequeninos, olhos negros,
Moradora na rua das Estrelas
Número quinze.
ANFILÓFIO...
É ela! É ela! Não há dúvida!
PANFÍLIO
Ela, quem?
ANFILÓFIO
Pois não vê? a minha amante.
PANFÍLIO
Era o senhor o celebre papalvo?
Era o senhor? Ah! deixe que me ria!
Oh! que aventura! Vale a pena agora
Voltar de novo à vida!
ANFILÓFIO
Já lhe disse,
Já lhe fiz ver há pouco que não gosto
De certas brincadeiras, e mormente
Na hora de morrer! Quem pensaria
Que era o senhor o biltre, o peralvilho
Cúmplice da malvada! Eu lhe perdoo!
(Aparece Marculfo no fundo)
MARCULFO
Vou me arrojar às ondas deste rio!
Quero morrer, meu plano está formado,
Já não há nem apelo nem agravo!
Eu um homem de honra e probidade,
Que há três anos padeço, trabalhando,
Longe da pátria, longe dos amigos,
Acho ao voltar, depois de tantas penas,
Minha mulher perdida e difamada.
Meu nome escrito em vergonhosos versos
Nas esquinas das ruas! Se eu pudesse
Dos dois marotos me vingar ao menos,
Do tal capitalista e do tal vate!
Mas os patifes hão fugido, e eu morro
Levando este pesar na consciência!
Porém ouço falar, vejo dois vultos;
Escutemos.
(Neste ínterim Panfílio tem passado para a outra margem onde está Anfilófio)
PANFÍLIO
Vivamos, companheiro,
A ingrata Cintia, a estrela impiedosa
Da rua das Estrela perseguida
Pelo remorso, chorará seus crimes,
Nos abrirá de novo os braços meigos,
E nós...
MARCULFO
De Cintia eu escutei o nome,
Ouvi falar na rua das Estrelas,
Trata-se dela, pelos santos! Calma!
Calma, meu coração!
ANFILÓFIO.
Viva em sossego,
Não amo a companhia em tais matérias.
Estou pobre, arruinado, eu o mais rico
Capitalista desta terra. Agora,
Dado o caso que viva, o desespero
Não deixará meus passos.
PANFÍLIO
Eu não posso
Me olvidar da infiel! Por toda a parte
Sinto o aroma sutil de seus cabelos,
O hálito celeste de seus lábios,
O imbre mavioso de seus cantos!
Volto de novo à rua das Estrelas,
Caio a seus pés...
MARCULFO (gritando)
Ah! monstros! Ah! perversos!
Eu inda vivo, esperem que lhes mostro
Quanto penetra a ponta de uma faca!
ANFILÓFIO (espavorido)
Fujamos, meu amigo! É o marido!
E o marido que chegou, fujamos!...
Ei-lo! Que brilho seu punhal espalha!...
Como é grande, meu Deus! como é terrível!
Corramos, que já sinto pelo ventre
O imperioso anuncio do perigo!...
Fica para outro dia o nosso plano!
PANFÍLIO
Sim, fujamos, fujamos sem demora!
(Saem correndo)
MARCULFO
Não quero mais morrer! Já descobri-os!
Hei de viver para vingar-me! Eu parto!
Eu parto, e em breve há de saber o mundo
O que fez um marido indignado!
ORAÇÃO FÚNEBRE
Segue o caminho antigo onde passaram
Outrora nossos pais. Vai ver os deuses
Indra, Yama e Varuna.
Livre, dos vícios, livre dos pecados,
Sobe à eterna morada, revestido
De formas luminosas.
Volte o olhar ao sol, o sopro aos ares,
A palavra à amplidão, e os membros todos
Ás plantas se misturem.
Mas a essência imortal, aquece-a, oh! Agnis,
E leva-a docemente à clara estância
Onde os justos habitam,
Para que aí receba um novo corpo,
E banhada em teu hálito celeste
Outra vida comece...
Desce à terra materna, tão fecunda,
Tão meiga para os bons que a fronte encostam
Em seu úmido seio.
Ela te acolherá terna e amorosa
Como em seus braços uma mãe querida
Acolhe o filho amado.
AO DEUS CRIADOR
Deus da Luz apareceu, e apenas
Ele mostrou-se foi senhor do mundo,
E encheu o céu e a terra.
Glória ao Deus que há partido o ovo de ouro!
Que Deus receberá nosso holocausto?
Dele dimana a vida, a força, o ânimo.
A lei que ele traçou todos os seres
Submissos se curvam.
Glória ao Deus que há partido o ovo de ouro!
Que Deus receberá nosso holocausto?
Foi ele que formou estas montanhas,
E este mar que rebrame sem descanso,
Os sábios o disseram.
Glória ao Deus que há partido o ovo de ouro!
Que Deus receberá nosso holocausto?
É por ele que o céu, a terra, os astros,
Tremem de amor e tremem de desejos
Quando o sol aparece.
Glória ao Deus que há partido o ovo de ouro!
Que Deus receberá nosso holocausto?
Quando as túmidas ondas que conservam
A essência universal se revolveram,
Ele agitou-se nelas.
Glória ao Deus que há partido o ovo de ouro!
Que Deus receberá nosso holocausto?
Ah! proteja-nos ele, o Deus piedoso,
O espírito das coisas invisíveis,
O Senhor do universo!
Glória ao Deus que há partido o ovo de ouro!
Que Deus receberá nosso holocausto?
HINO A AURORA
Ela mostrou-se enfim,
Ela mostrou-se enfim, a mais formosa,
A mais bela das luzes!
Por esse azul cetim
Caminhando tão linda e tão garbosa,
Aonde nos conduzes?
Aonde, branca Aurora?
Filha também do Sol, a Noite escura
Tua estrada marcou.
Com as lágrimas que chora,
A vasta senda da eternal planura
Ao passar orvalhou.
Unidas pelo berço,
Ambas iguais, eternas, sucessivas
Na marcha e na existência,
Percorreis o universo,
Aurora e Noite, sempre redivivas,
Opostas na aparência.
Rósea filha do Dia,
Brilhante a nossos olhos apareces,
Cheia de glória e amor;
E espalhas a harmonia,
A vida, o gozo, ao mundo que esclareces
Com teu sacro esplendor.
Segues a mesma senda
Das auroras passadas, e precedes
As que estão no futuro.
Rasgas da Sombra a venda,
E os negros planos previdente impedes
Do crime hórrido, escuro.
Há muito que passaram
Os que viram no céu luzir outrora
Teu fulgido clarão.
Seus olhos se apagarão,
E nós por nossa vez também agora
Vemos-te na amplidão.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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