ATO I
(Harém de Salomão)
CENA I
A Sulamita e as mulheres do harém.
UMA MULHER
Quem me dera que eu ficasse
De amores perdida e louca,
Contanto que assim lograsse
Um beijo da sua boca!...
CORO DAS MULHERES
Os violentos perfumes,
Acres, sutis, enervantes,
Dos teus seios palpitantes,
Causam vertigens e ciúmes...
Os teus nervosos carinhos
Matam, a todos de amores:
Tens mais aroma que as flores,
Embriagas mais que os vinhos!
O teu nome, — nós pensamos
Ouvir um hino encantado,
Vendo um óleo derramado...
Eis porque todas te amamos!
A SULAMITA
(Com enfado, faltando consigo mesma)
Vamos! eu quero, além,
Viver contigo! embora
O rei me prenda agora
Neste sombrio harém...
CORO DAS MULHERES
Formosa rival das flores,
Que embriagas como os vinhos!
— Terás os nossos carinhos,
Ouvirás sempre louvores!...
A SULAMITA
Sou trigueira, mas formosa,
— Filhas de Jerusalém!
Sem inveja de ninguém,
Eu me comparo, orgulhosa,
Aos pavilhões triunfantes
E às tendas em profusão
Que ostentam de Salomão
As riquezas deslumbrantes.
Não zombeis com ironia
Por ver minha cor morena:
É que eu andava, sem pena,
Exposta ao sol todo o dia.
Além disso, com as vizinhas
Os meus irmãos passeavam,
Enquanto a mim... me deixavam
Nos campos guardando as vinhas.
Eu mil modos empreguei
Por bem guardá-las; eu tinha
Tal intenção: mas a minha...
Ai, dela me descuidei!...
CENA II
(As mesmas e Salomão)
A SULAMITA
(Cismando)
Dize-me tu, bem-amado,
Por que lado
Conduzes os teus rebanhos,
Para que eu não vague errante,
Tão distante,
Entre pastores estranhos.
Quero ver, sempre às parelhas,
As ovelhas
Cor de espuma, dê tão brancas;
Que eu via passando, outrora,
Campo fora,
Ou a saltar nas barrancas.
Dize à tua bem-amada
Por que estrada
Te desvias da floresta,
Quando conduzes ao banho
Teu rebanho
Nas quentes horas da sesta.
Vem dizer ao meu ouvido,
Comovido,
Teus juramentos de amores,
Para que eu não vá, saudosa,
Vergonhosa,
Procurar-te entre os pastores.
UMA MULHER
Ó formosa entre as formosas!
Se és tão simples e modesta,
Vai nos campos correr lesta
Como as cabras mais fogosas.
Vai colher frutos e flores,
Expondo-te ao sol, aos ventos;
E entre ovelhas e jumentos
Enamorar os pastores!...
SALOMÃO
Bela!... Comparo-te só
Á minha égua luzida
Quando arrasta à toda a brida
Os carros de Faraó!
As tuas faces rosadas
Aos brilhos dos teus olhares
São como ao sol os colares
De pérolas agitadas.
Os contornos triunfais
Do teu pescoço comprido
Lembram-me um galho florido
Todo enleado em corais.
Formosa entre as mais formosas!
Morena — inveja das claras!
Terás as coisas mais raras
E as joias mais preciosas!...
CENA III
(A Sulamita, depois Salomão)
A SULAMITA
(Só)
Enquanto o rei no seu divã macio
Jaz sonolento,
Eu penso nele... que anda exposto ao frio,
Ao sol e ao vento.
O nardo, que perfuma os meus cabelos,
Tem seu aroma;
Os mais pastores enchem-se de zelos
Quando ele assoma!
O meu amado é para mim um ramo
De mirra; é flor!
Há de em meus seios repousar: que o amo
Com muito amor!...
É o cacho das vinhas que eu, outrora,
Longe daqui,
Colhi, cantando, ao despontar d'aurora,
Em terras de Engaddi.
SALOMÃO
(Entrando)
Como que a formosura
Dos meus desejos zomba,
— Dando ideal doçura
Ao seu olhar de pomba!
A SULAMITA
(Pensando no Pastor ausente)
Antes que meus beijos colhas,
Previno-te, ó bem-amado,
Que o nosso leito de folhas
É de flores perfumado.
SALOMÃO
Meu palácio se reveste
De arvoredos e cascatas:
Os tetos são de cipreste,
São de cedro as colunatas.
CENA IV
(A Sulamita e o Pastor)
A SULAMITA
(Cantando)
Minh’alma sabe os segredos
Que o perfume diz ao som...
Sou a rosa dos silvedos,
Sou o lírio de Saron!...
O PASTOR
(Entrando)
Como o lírio no meio dos espinhos
Assim és tu no grupo das donzelas:
Teus seios — são dois pombinhos,
Teus olhos — duas estrelas!
A SULAMITA
Como a árvore altiva da floresta
Assim és tu na roda dos pastores:
Macieira, à cuja sombra
Quero, nas horas da sesta,
Cansada de colher frutos e flores,
Dormir, deitada sobre a verde alfombra.
(Reúnem-se os amantes)
O meu amado, com mimo e arte,
Introduziu-me no seu celeiro,
Na sua adega deu-me vigor;
Sobre nós ambos seu estandarte
Flutua ovante, belo, altaneiro...
E esse estandarte — chama-se Amor!
(Ao coro das mulheres)
Dai-me uvas e frutas,
Que eu sinto o langor
Das feras, nas grutas,
Morrendo de amor!...
(Cai meio desmaiada nos braços do amante)
A sua mão esquerda ampara-me a cabeça,
Com a direita aperta ao seio os seios meus;
Ai! sinto-me morrer... Que tem que eu desfaleça,
Se desmaio de amor, feliz, nos braços seus?...
O PASTOR
(Às mulheres)
Pelas corças e gazelas
Que andam errantes além,
— Filhas de Jerusalém,
Deixei-a, mulheres belas!
Deixai-a dormir, sonhando,
Que é bom sonhar a dormir:
Quem sonha — acorda a sorrir...
E o sono dela é tão brando!
ATO SEGUNDO
(O mesmo harém)
CENA I
A SULAMITA
(Só, como em sonho)
É a voz dele, a voz do meu amado!
Ei-lo que vem, pulando nas montanhas,
Saltando nas colinas...
Ouço nos ares vibrações estranhas:
São as notas suaves, argentinas,
Do seu canto inspirado!
Não saltam mais ligeiros os cabritos,
Nem correm com mais ímpeto os veados,
Do que ele, quando vai, cantando, aos gritos,
Por esses descampados...
Ei-lo que vem: encosta-se à parede,
Olha pela janela,
A espreitar pelas altas grades dela,
Esgueirando-se... vede,
A ver se vê quem vive só por vê-lo!...
Como é bom desejá-lo e merecê-lo!
Que bom que é vê-lo, em plena liberdade,
Livre correr para quem quer prendê-lo...
Por presa se sentir — e por vontade!...
Ei-lo que vem, correndo, a olhar para mim,
Dizendo alegre assim:
(Imita a voz do Pastor)
— Levanta-te, formosa!
Ó minha amiga, vem!...
Já longe vai a quadra nebulosa
Das chuvas e dos ventos; já ninguém
Espera que o sol doure as penedias
Para nos dar bons-dias...
As flores já rebentam novamente
Nos galhos oscilantes,
Onde pipilam delirantemente
Leves aves de penas fulgurantes.
Brincam raios de luz nas amplidões;
Tremem fios de prata
No lago e na cascata...
É este o tempo alegre das canções!
Já as rolas arrulham no arvoredo...
Já os novos rebentos da figueira
Enrubescem ao sol;
Como é belo acordar de manhã cedo
E saltar pelos campos, de carreira,
Aos raios indecisos do arrebol!...
A vinha em flor exala o seu aroma;
Levanta-te, formosa!
Chega à janela, assoma
Ao balcão dessa casa misteriosa,
Tão cheia de grandezas e primores...
Que só me inspira zelos e temores!...
Levanta-te, formosa!
Ó minha amiga, vem!...
Minha pomba inocente e carinhosa,
Que voaste dalém,
Indo pousar no côncavo da rocha,
Dura e fria, onde a flor não desabrocha!...
Escondida no alto do rochedo,
Nos buracos das pedras aninhada,
Deixa-me ouvir a tua voz a medo
E ver teu rosto, minha bem-amada!
Pois tua voz — é um canto
E o teu rosto — o meu suave encanto! —
(Canta)
Arma o laço às raposinhas,
Arma o laço, ó caçador!
Que elas devastam as vinhas:
E eu tenho uma vinha em flor.
(Cismando)
Não sei de nada
Que mais me encante
Do que isto: a amante
Ser muito amada!...
E o meu amado é meu, é meu somente,
Como eu sou toda do meu bem amado,
Que doura o meu porvir no seu presente
Desde o nosso passado!...
Como eu gosto de vê-lo!... E como estranho
Que as mais todas não sintam meus delírios
Ao vê-lo apascentar o seu rebanho
Por entre os lírios...
Onde estás, brando sonho da minh'alma?
Onde estás, meu amor, que eu te não vejo?
Não vês que sem te ver não tenho calma?
Voa... — nas asas deste meu desejo!...
Quando as sombras caírem, vacilantes,
Do sol poente aos últimos arrancos
Volta, como os cabritos saltitantes,
Ou os enhos das corças nos barrancos.
CENA II
(A Sulamita, depois o Pastor)
A SULAMITA
Acordando, esta noite, achei-me só no leito;
Senti o coração querer saltar do peito
De medo e de ciúme... Ergui-me, alucinada,
Fui à porta, saí... “Onde está ele?” Nada...
Debalde andei à toa, errante, pelas ruas,
Ó ingrato! ninguém me deu notícias tuas!...
Estrelas, que expirais à luz da aurora...
Onde está ele, o que a minh’alma adora?
Voltei, quase sem ar; mas, ao entrar em casa,
Não pude mais (se eu tinha esta cabeça em brasa),
Desatei a chorar... Saí de novo; errante,
Fui, correndo, ao mercado, às tendas do Levante,
E às cisternas do sul... Chegando ao fim da praça,
Vejo a ronda; mas, nisso, um vulto ao longe passa.
Soldados! tende pena de quem chora...
Onde está ele, o que a minh'alma adora?
Eu perguntava assim, por ti, no mesmo instante
Em que te vi passar, meu adorado amante!...
Eras tu! eras tu! nem ninguém mais podia
Ser visto em horas tais senão só quem eu via:
Não com os olhos, não, mas com os meus sentidos
Todos num só, por ti, contigo confundidos!...
Ei-lo comigo, o que a minh'alma adora!...
Vamos à minha casa sem demora,
Antes de amanhecer, meu bem-amado!
Abraça-me! inda mais! beija-me, louco!
Olha-me... — num olhar bem demorado!
Ai! que saudade que eu sentia há pouco...
E que feliz já sou, por ser contigo!...
Anda, leva-me, vamos, vem comigo!...
Como eu me sinto bem, por ter agora
Nos braços meus o que a minh’alma adora!
Eu quero que antes que desponte o dia
Minha Mãe abençoe esta alegria
Que já transborda dos meus seios nus...
Quero que ela nos deixe, sem cuidados,
— Sozinhos, venturosos, aninhados —
No mesmo quarto onde me deu à luz!...
(Os amantes se reúnem. Aparecem as mulheres do Harém. A Sulamita desmaia nos braços do Pastor)
O PASTOR
(Às mulheres)
Pelas corças e gazelas
Que andam errantes além,
— Filhas de Jerusalém,
Deixai-a, mulheres belas!
Deixai-a dormir, sonhando,
Que é bom sonhar a dormir:
Quem sonha — acorda a sorrir...
E ô som no dela é tão brando!
ATO TERCEIRO
(Ruas de Jerusalém)
CENA I
CORO DE HOMENS
(Aparece ao longe o cortejo de Salomão)
O que é aquilo
Que se levanta
Em espirais da banda do deserto?...
Ah! é decerto
A coluna de fumo, ardente e santa,
Subindo em nuvens pelo ar tranquilo.
E que aromas suaves, penetrantes!...
— Boia no ar o cheiro das resinas,
Como de incenso e mirra os odorantes
Vapores sobre brasas purpurinas.
(Passa cortejo)
PRIMEIRO BURGUÊS
Eis o andor de Salomão... Garbosos,
Rodeiam-no os guerreiros vitoriosos
Do povo de Israel;
Passam todos altivos, triunfantes,
Com elmos de penachos oscilantes,
Arrastando as espadas em tropel.
Ante o sereno aspeto dos valentes,
Dessa coorte aos vivos resplendores,
As mulheres sorriem-se, contentes;
Fogem da noite os tétricos pavores.
SEGUNDO BURGUÊS
O régio palanquim foi todo feito
Das madeiras do Líbano mais raras;
E que riquezas se gastou com isso!...
Vede... que finas púrpuras no leito!
São só de prata essas colunas claras
E os balaústres são — de ouro maciço.
No fundo, entre nuvens de sedas e rosas,
Sem que ouse fitá-la de perto ninguém,
Vai—cheia de argolas e pedras custosas —
A filha mais bela de Jerusalém!
CORO DE HOMENS
(Às mulheres, que estão dentro de suas casas)
Correi, donas e donzelas,
Chegai depressa às janelas,
Para ver a bela das belas
A esposa de Salomão:
Ei-lo... em seu trono sagrado
— Com sua coroa coroado —
E o manto de ouro bordado,
Ó meigas filhas de Sião!
CENA II
(Harém)
SALOMÃO
Minha amiga, como és linda!...
— Os olhares que me lanças
São mais suaves ainda
Que os olhos das pombas mansas
Teu cabelo, em fios solto
Da cabeça aos pés, revolto,
Quase no chão a roçar,
Lembra as cabras penduradas
Pelas íngremes quebradas
De Galaad, a pastar...
Teus dentes têm mais brancura
Do que a lã suave e pura
Das ovelhas
Que às parelhas
Saem do banho, apressadas,
Todas d'água borrifadas...
— Lanígeros singulares:
Que aumentam sempre o rebanho,
Pois têm os filhos aos pares,
E os gêmeos dum só tamanho.
Os teus beiços cor de rosa
Lembram vermelhos corais;
E a tua boca mimosa
É uma fruta cortada,
Por uma aresta afiada,
Em duas partes iguais.
A tua fala é suave
Como o gorjeio duma ave.
Não sei quem te terá posto
Romãs e rosas no rosto,
Bois se beijo — com vistas desinquietas —
Essas faces macias e cheirosas,
Penso estar a morder romãs abertas...
Penso estar a sorver pétalas de rosas!...
Teu colo altivo, ofegante,
É o pedestal triunfante
Do torreão deslumbrante
Desse pescoço — enleado de colares,
Pescoço mais belo ainda
Que a muralha antiga e linda
Da torre de Davi, onde os heróis gloriosos
Penduravam os seus escudos vitoriosos,
Perdendo-se nos ares!...
Teus peitos duros, cheirosos,
Palpitantes, voluptuosos,
Onde parece que apenas
Pousaram duas abelhas
Na polpa, foram deixando
Essas pontinhas vermelhas;
Ai! os teus seios, criança,
Trazem-me sempre à lembrança
Duas corcinhas pequenas
Entre lírios ressonando.
Quando a sombra rolar nos descampados
E a luz crepuscular, tremeluzindo,
For as nuvens dourando...
Sairemos nós dois de braços dados,
A colina do Incenso ambos subindo
E no monte da Mirra pernoitando.
CENA III
(Noite)
SALOMÃO
És toda linda!... Também
Como tu não há ninguém.
O PASTOR
(Fora, junto da torre do serralho)
A mim, a mim, querida da minh’alma!
Desce daí — do píncaro elevado
Desse Líbano escuro... e ao meu lado
Vem ver nos ermos como a noite é calma!
A um lado o Sanir se ostenta,
Fica o Hermon sombrio além...
Vê se foges: olha, intenta
Quebrar as grades... e vem!...
Fugiremos os dois para o fim do mundo!
Desce desta montanha do leopardo...
Estás da caverna do leão no fundo...
Sem que te possa defender meu dardo!...
Olha pra mim, ao menos!...
(A Sulamita debruça-se para ele)
Arrancaste
Meu coração de dentro deste peito
No derradeiro olhar que me lançaste
Debruçada desse alto parapeito!
Minha irmã! minha esposa! minha amiga!
Teu olhar trespassou-me o coração
De forma tal, que eu já não sei que diga
Para pintar ao vivo esta paixão!...
Os teus lânguidos carinhos
Me embriagam mais que os vinhos,
Doce amor!
As tuas carnes cheirosas
São mais suaves que as rosas,
Linda flor!
Há bálsamos odorantes
Dos teus seios palpitantes
Na frescura!
Em teus lábios encarnados
Há leite e mel derramados
De mistura!...
Tuas roupas, agitadas
Quando rijo sopra o norte,
Têm o cheiro ativo e forte
Dessas resinas queimadas
Do Líbano entre a folhagem,
E que se embebem na aragem
Que a gente ao longe respira:
E para... e sorve... e aspira...
Como flores machucadas.
Às vezes eu fico mudo,
Pensativo, ansioso, triste,
Porque vejo em toda parte
Que na terra nada existe
A que eu possa comparar-te:
Pois tu vales mais que tudo!
Mas teimo, medito, insisto.
E apenas lembro-me disto:
Do jardim cheio de flores,
Onde voa o passarinho,
Cantando ao fazer o ninho
Para esconder seus amores.
Da cisterna bem guardada,
Toda noite e todo dia,
Cheia d'água descansada,
Muito clara e sempre fria.
Duma fonte vagarosa,
Vagarosa e transparente;
Transparente e buliçosa,
Buliçosa e negligente...
Dum bosque muito entrançado.
Onde ninguém penetrasse,
E nem sequer avistasse
Do monte mais elevado
As suas sombrias grutas
E os mil ramos tentadores,
Cheios de folhas e flores,
Vergando ao peso das frutas.
Dum regato que manasse
Do Líbano, e que, de rastros,
Num lago se transformasse,
Servindo de espelho aos astros.
Isso me vem à lembrança
Ao ver teu corpo, criança!
Ah! mas como o meu desejo
Não se limita só nisto,
E nada tão belo eu vejo
Como o teu corpo, — desisto
Desse propósito louco,
E triste, sombrio, mudo,
Vejo apenas que é bem pouco,
Depois de ver-te, ver tudo!...
(Aparece Salomão, perto da Sulamita)
O PASTOR
Brisas do sul e virações do norte!
Vinde, correi, voai!... Quero que um forte
Tufão violento agite o meu jardim:
Antes que um outro sorva os seus odores,
Quero ver derramadas estas flores
Numa chuva de aromas sobre mim!...
A SULAMITA
Pois entra na tua gruta
E come da tua fruta.
(Dá-lhe um beijo)
O PASTOR
(Comigo mesmo é que luto
Por abrandar meus ardores)...
Primeiro dá-me das flores,
Depois me darás do fruto
(A Sulamita salta da janela, caindo-lhe nos braços; beijam-se)
O PASTOR
Não mais meus ímpetos domas!
— Dá-me os teus seios morenos:
Quero sorver-te os aromas,
Embora tenham venenos!...
Sonho — acordado — em teu seio,
Como é bom sonhar assim!...
O bálsamo, — respirei-o...
A mirra, — colhi-a enfim!...
Comi meu favo gostoso,
Meu vinho e leite bebi;
Oh! não se morre de gozo...
E a prova é que eu não morri!...
(Desprendendo-se dos braços da amante)
Venham agora os guerreiros!
Já posso afrontar perigos!...
(Ao coro)
Bebei, bebei, companheiros,
Embriagai-vos, amigos!...
ATO QUARTO
(Harém)
CENA I
A SULAMITA
(Só)
Mesmo dormindo eu velo, porque vela
Sempre o meu coração;
Quantas vezes no leito perfumado
Não ouço as falas do meu bem-amado,
Dizendo-me: — Formosa! minha bela!
Tira-me desta densa escuridão!...
Minha irmã! minha esposa! minha amiga!
Se estás dormindo, acorda, os sonhos corta...
E corre a abrir-me a porta,
Que o vento a chuva sobre mim fustiga!...
Tenho os cabelos todos ensopados
E as roupas gotejantes...
— Vens tão tarde: já cantam, vigilantes,
Os matutinos galos;
Já me despi, já tenho os pés lavados;
Hei de agora sujá-los? —
Teimoso, então, o meu querido amante
Quis abrir a janela nesse instante:
Empurrando-a, fez bulha... quando eu via
Que o ferrolho rangia,
Faltou-me o ar, — e de alegria tanta
O coração saltava-me à garganta!...
Levanto-me, dum pulo! e, por brinquedo,
Finjo opor-lhe uma leve resistência;
Do úmido ferro onde roçou meu dedo
Pingou de manso uma suave essência...
E eu recolhi a mão, no mesmo instante,
De orvalhos e de mirra gotejante.
Tomo a túnica às pressas, porque o frio
Me fazia tremer como um arbusto;
Abro a janela... e qual não foi meu susto
Ao ver-me a sós nesse lugar sombrio?!...
O meu amado desaparecera...
Tinha fugido!
E o brando som da sua voz morrera
No meu ouvido...
Perco a razão de todo:
Saio, de pés descalços sobre o lodo,
Enquanto a chuva molha-me os cabelos,
Ao vento embaraçando-se., em novelos...
Corri, alucinada, em ansiedade;
E desatei no pranto,
Pois perseguem-me os guardas da cidade,
Que me pisaram — ao tirar-me o manto!...
(Ao coro das mulheres)
Imploro-vos, suplicante,
Peço-vos, belas, insisto,
— Filhas de Jerusalém!
Se virdes o meu amante,
Dizei-lhe que a causa disto
É ele só, mais ninguém!...
Dizei-lhe que eu ando louca,
Cheia de prantos e dor!
Que ouvistes da minha boca
Estas loucuras de amor!...
CENA II
CORO DAS MULHERES
Que dotes tem esse amante,
Tão raros e tão sublimes,
Que num delírio constante
Tão viva paixão exprimes?
A SULAMITA
Olhem... a cor do seu rosto
É como a nata do leite;
Não há quem não sinta um gosto
Assim que os olhos lhe deite.
A sua cabeça é de ouro;
Os cabelos são escuros
Como o corvo. E tem de puros
Pensamentos — um tesouro.
Seus olhos são pombas mansas
Roçando n'água corrente,
Ou a voar sobre as franças
De arvoredo viridente.
Suas faces lembram rosas
Que vão se abrindo, orvalhadas;
— São frescas e perfumadas
Como as plantas mais cheirosas.
Os seus lábios, em se abrindo,
Vertem mirra; são dois lírios
Que a gente sorve, fruindo
Cheiros que causam delírios!
As suas mãos são uns aros
De ouro com pedras custosas,
Pedras de Társis, radiosas,
Como as dos anéis mais raros.
Os seus quadris opulentos
São redondos, são assim
Como as torres de marfim
Dos sagrados monumentos.
As suas pernas, iguais
Às dos deuses de mais glórias,
Lembram colunas marmóreas
Em seus áureos pedestais.
O seu aspeto formoso
É como o cedro altaneiro
Que se ostenta sobranceiro
No Líbano silencioso.
Tão belo e tão delicado
Como ele não há ninguém;
Tal é o meu bem-amado,
Filhas de Jerusalém!
O CORO
Ó formosa entre as mulheres!
É só dizer neste instante
Para que lado o teu amigo
Foi, — o teu formoso amante! —
Que nós iremos contigo
Buscá-lo, se assim o queres.
(Encontram-se os amantes)
A SULAMITA
Desceu o meu amante ao seu jardim,
No canteiro de bálsamos parou;
Seu rebanho entre os lírios dispersou
E voltou-se para mim.
O meu amado é meu, é meu somente,
Como eu sou toda do meu bem-amado,
Que doura o meu porvir no seu presente,
Desde o nosso passado!...
Como eu gosto de vê-lo!... E como estranho
Que as mais todas não sintam meus delírios
Ao vê-lo apascentar o seu rebanho
Por entre os lírios!...
ATO QUINTO
(Harém de Salomão)
CENA I
SALOMÃO
Minha amiga! tu és linda
Como Tersa, e mais ainda
Que a bela Jerusalém!
És formosa!... Mas, também,
És terrível e bravia
Nesses teus ímpetos fortes;
E a tua cólera aterra
Como as tremendas coortes
E toda a cavalaria
Dum grande exército em guerra!
Já que te esquivas, bravia,
Resistindo a quem te afaga,
Teus olhos de mim desvia,
Que o teu olhar me embriaga!...
Teu cabelo, em fios solto,
Da cabeça aos pés revolto,
Quase no chão a roçar,
Lembra as cabras penduradas
Pelas íngremes quebradas
De Galaad, a pastar.....
Teus dentes têm mais brancura
Do que a lã suave e pura
Das ovelhas,
Que às parelhas
Saem do banho, apressadas
Todas d'água borrifadas...
— Lanígeros singulares,
Que aumentam logo o rebanho,
Pois têm os filhos aos pares
E os gêmeos dum só tamanho.
Os teus beiços cor de rosa
Lembram vermelhos corais;
E a tua boca mimosa
É uma fruta cortada,
Por uma aresta afiada,
Em duas partes iguais.
O PASTOR
(Fora)
Sei que há lá dentro encerradas,
Neste inferno delicioso,
Umas sessenta rainhas,
Mais de oitenta concubinas,
Fora as donzelas votadas
Ao sacrifício do gozo!...
Mas a única inocente,
A única imaculada
É a minha bem amada,
O meu lírio florescente!
Alva e leve como a túnica
Com que dorme no seu leito,
É a mais bela: — é a única
Que a todos impõe respeito!...
Concubinas e donzelas,
As rainhas, todas elas,
Chamam-na a bela das belas,
A formosa sem rival!
E cheia de mimo e graça,
Prodígio da nossa raça,
Quando orgulhosa ela passa,
Rompe um coro triunfal!...
CENA II
CORO
Quem é aquela, que tem
A aurora no seu olhar,
Formosa como ninguém,
Rival do sol e do luar?
E tão linda flor da terra
É tão terrível e forte
Como a tremenda coorte
Dos exércitos em guerra!...
A SULAMITA
(À parte, voltando as costas ao coro)
Quem me mandou descer, naquele dia,
Ao pomar de nogueiras,
Indo ver se a romeira florescia
E se pendiam cachos das parreiras?...
Imprudente que fui!... Nem pressentia
Que o séquito do príncipe nessa hora
Passava estrada fora...
Quis vê-lo: e curiosa
Meti-me, na carreira,
Entre os seus carros, prendem-me: e saudosa
Eis-me aqui prisioneira!...
AS MULHERES DO HARÉM
Nuvem do céu ao sol posto,
Qual onda que vai e vem,
Sulamita! volta o rosto
Que queremos ver-te bem!
UMA DANÇARINA DO HAREM
Quem vai ver a Sulamita,
Quando pôde contemplar
O meu corpo — que palpita
Nas danças que eu sei dançar?
(Dança)
SALOMÃO
Que lindos são os teus pés
Nessas sandálias bordadas,
Filha de príncipe, que és!...
As curvas arredondadas
Dos teus quadris, meu tesouro,
São como as dum colar de ouro
Feito por hábil artista,
Como outro igual não exista.
O teu seio me recorda
Taça esférica e prismática
Que, cintilando, transborda
Doce bebida aromática.
Teu corpo, (que alucinado
Bem sei o que é, mas não digo).
Parece um feixe de trigo
Todo de lírios rodeado.
Os teus seios, ricos prêmios
Do teu amor, minha bela!_
São assim como dois gêmeos
De uma ligeira gazela.
Teu pescoço... como é bom
Vê-lo!... é a torre das campinas
Teus olhos são as piscinas
Das muralhas de Hesebom.
Teu nariz é afilado
Como o torreão que assenta
Sobre o Líbano, e se ostenta
De Damasco para o lado.
Tua cabeça é formosa
Como o Carmelo; e os cabelos
— Os grilhões dum rei — ao vê-los
Vejo púrpura sedosa.
Ah! mas que atroz crueldade!
Como fascinas e prendes
Nas horas em que te estendes
Com tanta sensualidade!...
Teu corpo é como a palmeira;
Teus seios são cachos de uvas,
Ora molhados das chuvas,
Ora rubros da soalheira.
Ao ver-te, eu disse: Pois vamos!
Embora sinta canseira,
Hei de subir à palmeira,
Hei de apanhar os seus ramos!
Encanto da vida minha!
Porque te esquivas?... Consente
Que sejam, para mim somente,
Teus seios cachos de vinha.
— A tua respiração
Suave e tranquila, cheira
Como se uma macieira
Tivesses no coração!...
Do vinho da tua boca
Deixa pingar um bocado
Neste meu lábio abrasado,
Que me abrande a sede louca!
A SULAMITA
(Persistindo na resistência)
Sou só do meu bem amado,
Sou só dele, que também
É só meu, de mais ninguém!
CENA III
A SULAMITA
(Correndo para o Pastor)
Vem, meu amado, vem!
Que eu sinto a alma de saudades cheia!
Assim que despontar a luz da aurora,
Correremos nos campos, como outrora;
E quando o sol for descambando além,
Dormiremos na aldeia!...
Vamos viver enfim nas solidões,
Onde há fios de prata
No lago e na cascata...
E é este o tempo alegre das canções!...
Já as rolas arruínam no arvoredo;
Já os novos rebentos da figueira
Enrubescem ao sol...
Como é belo acordar de manhã cedo
E sair campo fora, na carreira,
Aos raios indecisos do arrebol!...
Que bom!... Vou ficar doida de delícias!...
Vamos! mas corre, vem!...
E lá — onde não haja mais ninguém —
Lá te darei, então, minhas carícias!
Olha... o pomo do amor solta de si
Um perfume — que enerva e que conforta...
Cai o fruto e a flor à nossa porta...
Tudo eu guardo para ti!...
Ah! por que não és tu, meu bem amado,
O meu irmão, para eu poder beijar-te
E andar em toda parte
Contigo ao pé de mim, sem ser notado?...
Eu quero que hoje, vendo-te aos meus beijos,
Minha Mãe abençoe estes desejos
Que já transbordam dos meus seios nus...
Quero que ela nos deixe, sem cuidados,
— Sozinhos, satisfeitos, aninhados —
No mesmo quarto onde me deu à luz!
Das ovelhinhas mortas sobre as lãs
Tudo me ensinarás!... Devagarinho
Lá poderás beber todo o meu vinho...
La poderás comer minhas romãs!...
(Desfalece e diz ã meia voz)
A sua mão esquerda ampara-me a cabeça;
Com a direita aperta ao seio os seios meus.
Ai! sinto-me morrer... Que tem que eu desfaleça,
Se desmaio de amor, feliz, nos braços seus?...
O PASTOR
(Ao coro)
Pelas corças e gazelas
Que andam errantes além,
— Filhas de Jerusalém,
Deixai-a, mulheres belas!
Deixai-a dormir, sonhando,
Que é bom sonhar a dormir;
Quem sonha — acorda a sorrir...
E o sono dela é tão brando!
CENA IV
(Supõe-se já efetuada a jornada de Jerusalém para a aldeia)
O CORO
(Vendo a Sulamita, que o amante traz desmaiada nos braços)
Quem é essa que surge do deserto,
Sem sentidos, nos braços de quem ama?...
(Os amantes chegam à aldeia)
O PASTOR
Acorda... estamos perto
Da casa onde nasceste; vejo a rama
Das árvores da horta de teus lares...
Vê, com teus olhos, todos os lugares
Onde sempre a meu lado
Enchias de prazer nosso passado!...
(Descansa a amante debaixo da macieira da casa materna e acorda-a)
Acordas mesmo embaixo da macieira
Aonde eu te beijei à vez primeira.
A SULAMITA
Une-me bem ao coração! — aperta
Meu seio contra o teu! passa o teu braço
Pela minha cintura!...
Ninguém nos vê... a aldeia está deserta,
Somente as aves, pelo azul do espaço,
Invejam nosso amor, nossa ventura!
Ai! — o amor é perenal e forte!
Ai! — a paixão é forte e perenal!...
O amor é poderoso como a morte,
Como o inferno é fatal!
O SÁBIO
(Aparecendo para tirar a conclusão do poema)
Sim! o amor não se apaga,
Nem sob a chuva que alaga
Toda a terra em todo o mundo;
Sim! o amor não mergulha
Na torrente que marulha
No rio mais grosso e fundo!
Ai do néscio, que pretenda
— Como coisa que se venda —
Querer comprar o amor!
O amor é dado: e é tão raro
Que, se o vendessem bem caro,
Tiravam — o seu valor!...
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