OS CRAVOS BRANCOS
Tocou a
campainha para o almoço.
— Vamos, disse-me
Silvestre tomando-me o braço. É à mesa que gosto de tratar assuntos graves.
Eu sentia imensa
curiosidade, mas nada queria perguntar. Recebera de manhã um lacônico bilhete
do meu amigo, concebido nestes termos:
"Preciso
falar-te urgentemente. Vem."
Vesti-me,
praguejando por ser acordado no melhor do meu sono, e havia duas horas que,
tendo-lhe entrado em casa, esperava ouvi-lo, sem que ele se decidisse a falar.
Sentamo-nos. Um
instante depois sentia-se o tinir dos talheres e reinava entre nós um
constrangedor silêncio.
Por fim o meu
amigo, voltando-se para o criado, perguntou:
— Está tudo aqui?
— Tudo, senhor
visconde.
— Retira-te e
fecha a porta.
O criado obedeceu,
e o silêncio prolongou-se. Quando eu já me dispunha a interrogá-lo, Silvestre
ergueu a cabeça e, com voz levemente comovida, indagou:
— Tens lido a obra
de Conan Doyle?
A pergunta
surpreendeu-me em extremo.
— Tenho. Porquê?
— Que pensas
daquele sistema de dedução, empregado por Sherlock Holmes?
— Acho-o muito
interessante e sobretudo engenhoso.
— Não, não é isso.
Eu me explico. Que pensas dele como método de aplicação prática?
— Enlouqueceste,
ou estás brincando?
— Nem uma, nem
outra cousa; mas, tendo lido toda a obra do notável escritor, fiz dela um
estudo consciencioso, apliquei-a, e cheguei, por tal sinal que bem
dolorosamente, à conclusão de que a dedução é a mola real para obter a verdade.
— Sim?! Como?
— Sabes quanto sou
ciumento. Não te escondo que nestes últimos tempos a conduta de minha mulher me
tem dado seriamente que pensar, mas o meu muito orgulho impede-me de lhe
mostrar a menor desconfiança. É assim que, querendo apurar a verdade, pratiquei
a teoria de Sherlock Holmes e colhi excelentes, bem que lamentáveis,
resultados.
— Isso é decerto
engano.
— Qual? Então não
tenho as provas?
— Tens provas?
indaguei estupefato.
— Inegáveis.
— Mas…
— Eu te conto. Hás
de ter notado que a Leonor tem o gênio um pouco triste; é modesta e de gostos
simples; porém há três meses, pouco mais ou menos, mandou fazer um vestido
elegantíssimo e passou a ocupar-se bastante do toucador. Estimei, porque nada
suspeitava, e até lhe repeti um espirituoso axioma dum dos nossos modernos
escritores: "A beleza da mulher está na gaveta dos arrebiques." Ela
mostrou-se satisfeita de me agradar e começou a criar hábitos de elegância. Por
esse tempo foi-nos apresentado aquele pintor francês que algumas vezes aqui
tens encontrado. A Leonor não só pinta bem, como conhece a arte, e critica tão
judiciosamente que os melhores pintores gostam de ouvir as suas apreciações
sobre as obras de Reni, Ciseri, Castagnola, Konink e muitos outros que ela tem
estudado conscienciosamente nas mais ligeiras minúcias. Não me admirei portanto
que o pintor preferisse a qualquer outra a conversa de minha mulher. Uma noite,
nos anos de minha sogra, em que recebemos em casa algumas pessoas amigas, notei
no espelho a troca dum olhar e desde então começou o inferno para mim.
Compreendi repentinamente a transformação de Leonor e…
Uma leve pancada
na porta da sala e a fresca voz da viscondessa cortaram a palavra ao marido
que, sobressaltado e contrariadíssimo, respondeu:
— Entra.
Abriu-se a porta e
no limiar apareceu a gentilíssima figura de Leonor, mais pálida que de costume.
— Se sou de mais,
retiro-me.
— Não, não, podes
ficar.
E Silvestre,
lançando-me um olhar entendido, disse para a mulher
— Saíste?
Ela, admirada:
— Saí, sim.
— E foste por Vale
de Pereiro?
— Fui; quem te
disse?
— Ninguém. No
entanto não voltaste por lá.
— Também é
verdade.
— Passaste no
Loreto.
— Exato.
A cada afirmativa
da mulher, Silvestre lançava-me um olhar de triunfo.
— Pode saber-se
onde foste?
— Se tu já sabes,
para que o perguntas?
— Foste à Baixa
fazer compras, afirmou ele irônico e nervoso.
— É certo.
E tirando o lenço
da algibeira, a viscondessa assoou-se.
Silvestre
tornou-se extremamente pálido e disse à mulher com voz tão alterada que ela se
afligiu:
— Emprestas-me
esse lenço? Não tenho aqui o meu…
A viscondessa
estendeu-lhe o lenço e indagou carinhosamente:
— Que tens?
Sentes-te mal?
Ele, com riso
forçado:
— Nada,
absolutamente nada.
Ela então
voltou-se para mim e disse-me num tom apreensivo:
— O Silvestre
dá-me cuidado. Está com o gênio perfeitamente alterado e dum nervosismo
extremo… tão depressa o vejo lívido e lhe encontro as mãos geladas, como o noto
afogueado e coberto de suores. O Pedro devia convencê-lo a consultar os
médicos. Tenho-lho pedido muita vez, mas não faz caso do que eu digo.
— Está bem,
cala-te, intimou ele com azedume.
As lágrimas
assomaram aos olhos da viscondessa que, para as ocultar, saiu da sala.
Então Silvestre
levantou-se, fechou de novo a porta, e, tornando a sentar-se, murmurou em tom
doloroso, lançando-me um olhar febril:
— Notaste?
— O quê?
— Que não me
enganei em nenhuma das minhas afirmações?
— Ora adeus…
acaso.
— Não, senhor,
dedução. A Leonor está de roupão, mas de botas, e botas com lama: sinal de que
saiu e foi por Vale de Pereiro. O dia está ótimo e as ruas enxutas, mas
naquele sítio o terreno foi revolvido por causa das obras e a água que caiu a noite
passada tornou-o lamacento. Ora… o pintor mora na Rotunda. Voltou pelo Loreto
porque traz no peito um ramo de mignonettes, que só na
Rua Nova do Carmo se vendem. E por último, concluiu mostrando-me a ponta do
lenço que a mulher lhe emprestara, vê.
— H. D. Isso que
tem?
— São as iniciais
dele: Hervé Duquesne.
— Mas vocês estão
zangados? Porque não comem juntos?
— Porque Leonor,
sob um pretexto fútil, almoça sempre no quarto.
— E ao jantar?
— Nunca falta.
Mas, como ia dizendo, tenho-a espreitado. A Leonor sai todas as manhãs e
oculta-mo. Habituada a contar-me tudo, não sabe mentir… cai em contradições:
enfim a situação é insustentável e resolvi pôr-lhe cobro.
— Pensa bem no que
vais fazer…
— Tudo quanto há
de simples. Sabes que resolvi abrir banca de advogado? Que queres? Desde que li
o Conan Doyle apaixonei-me de novo pela minha carreira e anseio por entrar em ação.
Tenho a certeza de que nada escapará à minha investigação. Vou às Ilhas e se
aquilo por lá me agradar…
— Mas não estavas
melhor aqui?
— Talvez, talvez…
pensarei nisso. Por agora convém-me partir, e é esta a razão que dou. Não o
faço porém sem me despedir de minha mãe que chega dos Pirenéus no dia vinte e
oito; tenho portanto diante de mim quinze dias para pôr a limpo um caso que já
não oferece a menor dúvida.
— Há pouco
afirmaste ter provas…, notei como se o apanhasse em contradição.
— Eu te digo.
Holmes empregava como agentes, em casos graves, garotos com pouco mais de uma
dúzia de anos. Chamei, pois, um pequeno que me pareceu atilado e fi-lo seguir a
viscondessa. Ela… entrou em casa do pintor. Nessa tarde perguntei-lhe onde
fora. Corou, hesitou e, beijando-me na testa, respondeu com embaraço não isento
de malícia: "À missa." Fiquei como pregado na cadeira. Não ignoras as
minhas relações com Beatriz… é à missa que ela diz ir quando me vem encontrar.
Imagina o golpe que sofri.
— Meu caro, na
vida é assim: olho por olho e dente por dente. Compreendo o padecimento do teu
orgulho, mas quanto ao coração, a julgar pelo que contas, deve ter ficado incólume.
— Enganas-te. Eu
adoro minha mulher.
— Agora? indaguei
com incredulidade, a que não era estranha uma ligeira zombaria.
— Sempre. É um
espírito superior, mas a um homem não basta espírito e virtude; é preciso
alguma coisa mais. À Beatriz amo-a. Desejava minha mulher em Beatriz e Beatriz
em minha mulher.
— Isso é muito
complicado para poder ser entendido por um homem metódico nos afetos como eu
sou.
— Por isso mesmo,
adiante. Basta dizer-te que tomei quase ódio a Beatriz e estou resolvido a
quebrar com ela.
— Mas, agora
pergunto eu, que culpa tem a pobre rapariga da falta da viscondessa?
— Se eu tivesse
sido para Leonor o que devia, nada disto se tinha dado. Por quem faltei eu aos
meus deveres?
— Oh! a lógica dos
homens, exclamei indignado; tu, e só tu, é que és culpado…
— Serei, não se
discute; tu desconheces insignificâncias sempre importantes em assuntos desta
natureza. Mas, voltando ao caso, resolvi para amanhã o grande passo e, como
receio a impetuosidade do meu gênio, contei com a tua companhia e amizade.
— Fizeste bem.
Estou ao teu dispor.
— Obrigado. Jantas
comigo. À noite iremos a São Carlos e verás com os teus próprios olhos o jogo da
viscondessa. Não é ele que se desmanda.
— É francês, não
admira.
— Ela, é ela! Mas
não falemos mais do assunto, despreocupemo-nos até quanto possível. Queres um
cigarro?
— Obrigado. Pelo
que vejo destinas-me o papel do Dr. Watson? Não será uma imitação fiel de mais?
— Watson não está
sem um fim nos livros de Conan Doyle. Dir-te-ei mesmo que é um complemento de
Holmes: afaga-lhe e esperta-lhe o raciocínio, procedimento magnífico para obter
um êxito singular. Estás sem emprego; se, mediante a módica quantia (aqui
hesitou) duns trinta mil réis, quisesses servir-me de secretário particular,
ser-me-ias de não vulgar utilidade.
— Não te parece
disparatada a tua conduta?
— De modo nenhum:
é até a mais racional possível, visto que se baseia em raciocínios.
— Nesse caso,
aceito.
E, com uma
pontinha do gênio aventureiro que dorme no fundo de todo o coração português,
eu lisonjeava-me de me sentir Watson, bem que mais desejasse ver-me Sherlock
Holmes.
Silvestre
agradeceu-me comovido e, querendo mostrar-se à altura da situação dum detective perfeito, lançou mão da guitarra e, depois duns
prelúdios, entoou:
— O senhor não
sai? indagou da porta o criado.
— Sim, sim,
respondeu Silvestre, atirando com a guitarra para cima duma cadeira. Ponham o dog-cart.
Durante o passeio
o visconde mostrou-se despreocupado, mas, na sua falsa e ruidosa alegria,
percebi que ocultava um vivo sofrimento. Impressionou-me sempre mais a dor que
tenta vencer-se do que aquela que se entrega ao desespero. Procurei distraí-lo;
mas no seu olhar febril, no riso nervoso e forçado, desagradável ao ouvido como
viola desafinada, na volubilidade e rapidez com que passava dum a outro
assunto, e até na vivacidade da réplica, tudo à uma demonstrava nele um
poderoso esforço de reação.
O jantar passou-se
bem. A viscondessa, animada pela alegria do marido, fazia brilhar o seu
espírito levemente satírico, e eu observava-os a ambos, lamentando de mim para
mim a breve desunião daquele interessante par. Ao café um criado assomou à porta
trazendo na mão um lindo ramo de cravos brancos.
— Para a senhora
viscondessa!
— Quem manda?
interrogou Leonor com ligeira emoção.
— Não sei, minha
senhora.
— Então como lhe
veio à mão?
— Entregou-mo o
porteiro, dizendo que o trouxe um moço.
— Decerto uma
lembrança da estouvada da Teresa, continuou a viscondessa com voz pouco firme.
Dê essas flores à Luísa; que as ponha no meu toucador.
Durante este curto
e rápido diálogo olhei Silvestre. O rosto tornara-se-lhe lívido, os lábios
incolores e os músculos faciais agitavam-se-lhe: tinha um aspeto feroz que a
custo serenou. Voltando-se para a viscondessa, que insistia na estranheza que
lhe causava o modo por que chegaram as flores, respondeu naturalmente:
— Estás ligando
extrema importância a um fato insignificantíssimo e da mais fácil explicação. O
homem tinha pressa e esqueceu-se de entregar a carta ou bilhete que trazia;
quando der por isso voltará a reparar o erro.
Leonor mostrou-se
satisfeita com a opinião do marido e ausentou-se para cuidar do vestuário. Eu
fui envergar a casaca e segui para São Carlos.
A primeira cousa
que notei foi o pintor, passeando no vestíbulo dum lado para o outro e tendo na
lapela um cravo, em tudo semelhante aos de Leonor. Mal tinha feito esta
observação senti passos atrás de mim e a voz cristalina da viscondessa que me
dizia rindo:
— Foi pontual pela
primeira vez na sua vida.
Ofereci-lhe o
braço e olhei rapidamente em volta; já não vi o francês. Quando auxiliei Leonor
a tirar a sua esplêndida capa, notei com pasmo que no seio e na cabeça se
destacavam dois lindos ramos de cravos brancos. Silvestre, surpreendido também,
não pôde conter-se que lhe não dissesse com visível contrariedade:
— É de mau gosto e
muito pouco senhoril usar flores de que se ignora a procedência.
Leonor respondeu
naturalmente:
— Talvez tenhas
razão… tens por certo; mas não tinha outras. E, pegando gentilmente no cabo do
seu pesado binóculo de esmalte, começou observando a assistência e sorrindo ou
acenando com a mão a uma ou outra amiga ou conhecida que, como ela, ornavam a
sala. Fazia-o tão natural, tão despreocupadamente que eu não sabia que pensar.
Num dos intervalos
Duquesne veio ao camarote. Leonor recebeu-o amavelmente e, num momento em que
Silvestre e eu discutíamos acaloradamente a voz do barítono, ouvi distintamente
murmurar ao ouvido do pintor:
— Amanhã.
Ele depois
mostrou-lhe por um gesto o cravo que tinha na botoeira e murmurou:
— Quis que eu o
trouxesse…
Ela sorriu e
assentiu por um gracioso movimento de cabeça.
Então
radicou-se-me completamente no espírito a ideia da culpabilidade de Leonor, e
notei que nada há mais imprudente do que o amor, quando verdadeiro. Beatriz, a
doce e simpática amante de Silvestre, num camarote do lado oposto, desolada por
não lhe merecer um olhar, não desfitava os olhos dele sem se lembrar ou
importar com o que cada um poderia dizer. A sua angústia era visível. Leonor, a
dois passos do marido, lançava um olhar de entendimento ao pintor e
murmurava-lhe ao ouvido um amanhã que se me afigurava
cheio de promessas.
Chegara a casa e,
tirando o sobretudo, inda mal tinha tido tempo para coordenar os acontecimentos
do dia, quando Silvestre me entrou no quarto, e atirando consigo sobre o divã,
exclamou:
— Então viste?
Acenei
afirmativamente, não sabendo até que ponto ele levara a sua investigação.
— Tudo, tudo?
insistiu ele.
— Creio que sim.
— Isto também?
indagou, incrédulo, atirando sobre a mesa um papel azul amarrotado.
— Não, isso não.
— Então lê.
No papel azul, com
as iniciais de Hervé Duquesne, li estas palavras escritas rapidamente a lápis: "Hoje
foi-me impossível esperá-la. Quando volta?"
— A impressão que
senti foi tal, que, chegado a casa, não pude impedir-me de lhe fazer uma cena,
tomando como pretexto as flores, confessou o meu amigo.
— E agora?
perguntei assombrado.
— Agora mato-os,
respondeu friamente o visconde.
— Mas não era bom
interrogá-la, confundi-la primeiro? Sabes até que ponto está comprometida?…
— Que importa?
Faltou.
— E tu?
Silvestre abaixou
a cabeça e, após uns segundos de silenciosa luta interior, redarguiu:
— Tens razão, não
me compete julgar. Separar-me-ei e partiremos em seguida: mas primeiro quero
mostrar-lhe que não sou um imbecil. Amanhã também vou à entrevista.
— Era melhor não
ires.
— Vou. Se não
queres, não me acompanhes.
— Eu deixava-te lá
só numa ocasião dessas!… E a hora?
— Às sete
— Como sabes?
— É o costume.
— Bem. Vou
acompanhar-te a casa.
— Aceito. Se
quiseres perder estas horas da noite conversando comigo, fazes-me um favor
especial: pela primeira vez na minha vida sinto-me completamente desorientado.
O resto da noite
pareceu-nos interminável. Enfim, pela volta das seis e meia, sentimos uns leves
passos que deslizavam pelo corredor, e pela frincha da porta pudemos ver o
vestido branco da viscondessa desaparecendo na porta do jardim. Olhei para Silvestre.
— Sigamo-la, ou
por outra, tomemos-lhe a dianteira.
E, abrindo a porta
do vestíbulo que dava para a rua, tomamos apressadamente o caminho da Avenida.
Ao chegar em
frente da casa de Duquesne o visconde, sem hesitar, entrou.
— Agora onde vais?
indaguei tomando-lhe o braço.
— A casa dele… é
no primeiro direito… ficarei no patamar superior… quando Leonor chegar entrarei
com ela.
— Mas isso é o
escândalo, talvez a morte.
— O que for se
verá.
E, soltando-se-me
da mão, subiu a escada.
Segui-o. O coração
batia-me apressado, e pelo meu estado compreendi o de Silvestre. Decorreram
minutos, longos como séculos, e por fim os degraus fizeram ouvir o passo
ligeiro de Leonor. Olhei o visconde. Tremia e o suor inundava-lhe a testa.
Aventurou-se a espreitar. Imitei-o, e vimos a viscondessa bater à porta da
esquerda. Então Silvestre, galgando dum salto os degraus, achou-se ao pé da
mulher no mesmo instante.
A viscondessa
recuou um passo e, soltando uma sonora gargalhada, perguntou:
— E o Pedro?
Vendo-me aparecer
por meu turno, desatou a rir com tal gosto que as lágrimas lhe corriam pelas
faces. Nós olhavamo-la perplexos.
A porta abriu-se e
a viscondessa, continuando a rir, disse-nos:
— Uma vez sem
exemplo permito-lhes que entrem adiante. Por aí.
E apontou-nos o
corredor.
Entramos numa sala
onde uma senhora sexagenária conversava animadamente com H. Duquesne, que,
sentado diante dum cavalete, retocava um retrato de Leonor, em tamanho natural,
com cravos brancos na cabeça e no peito.
A senhora, ao ver
Silvestre, correu a cingi-lo nos braços, clamando alegremente:
— Meu filho, meu
querido filho! Quanto estimo ver-te!
E, voltando-se
para a nora, num tom de censura:
— Não soubeste
guardar segredo até ao fim!
— Não tive culpa,
minha querida mãe, respondeu a viscondessa, rindo e lançando-nos
alternativamente, a mim e a Silvestre, olhares impiedosos. Foi um simples acaso
que, a meu pesar, me proporcionou a agradável companhia destes senhores.
Silvestre e eu,
sem percebermos bem, sentimo-nos vexados. A viscondessa continuou:
— Por hoje, meu
caro Duquesne, fica adiada a nossa sessão. Estes senhores convidaram-me para um
divertimento a que me não posso recusar, embora tenha a maior pena de lhe
causar atraso.
Nós examinamos a
tela, dirigimos alguns elogios ao pintor, mas sentíamo-nos contrafeitos,
receando parecer ridículos. Depois de combinar nova sessão para completo
acabamento da obra, Duquesne retirou-se, parecendo não ter ligado a menor
importância à nossa intempestiva entrada.
Então Leonor,
depois de ter trocado com voz baixa umas palavras com a sogra, começou
dirigindo-se a mim:
— Vou contar-lhe
uma história, Pedro, que talvez o interesse, bem que lhe não seja completamente
estranha. Quando Silvestre pensou em ir às Ilhas disse-me que eu devia ficar,
porque se tratava duma ausência de curta duração. Magoou-me a resolução e
admirou-me por insólita, preocupando-me muito; a breve trecho um acaso me
descobriu a causa. Ouvi-o, em minha própria casa, convidar Beatriz a segui-lo.
Fugia-me? Abandonava-me? Como o poderia eu saber? A sua resolução nada tinha de
desculpável a não ser uma grande paixão. Beatriz é uma senhora, recebida em
toda a parte como tal. Se seguia Silvestre, era decerto na ideia de não mais se
separar dele, e só para realização dum tal desejo se tornava compreensível a conduta
de ambos, sobretudo a dela. A mulher hesita sempre diante dum escândalo. Se eu
chorasse e lhe pedisse que desistisse do seu intento, não obteria nada: os
homens espezinham sempre quem se humilha. Decidi, pois, servir-me das suas
novas teorias de investigação e escrevi a minha sogra pedindo-lhe auxílio.
Voltando-se ao
marido, continuou:
— Não querendo
deprimir-te na opinião de Duquesne, o que aliás bem merecias, distribuí-lhe o
papel, deixando-o na ignorância de tudo. Ajustei o meu retrato, feito a ocultas,
para te presentear no dia da tua partida.
— Agora, perguntou
a mãe de Silvestre sorrindo, quem preferes tu levar: a cópia ou o original?
— Isso nem se
pergunta, respondeu o visconde, confundindo no mesmo abraço a mulher e a mãe.
Uma palavra ainda. Como arranjaste esta casa?
— Disse-me
Duquesne que estava vaga, falando em ver se lhe cederiam um quarto para pôr o
cavalete, visto no seu atelier entrar muita gente e não ter onde o ocultar.
A mãe de
Silvestre, sorrindo, foi a uma gavetinha dum lindo contador de pau santo e,
tirando um sobrescrito, entregou-o ao visconde dizendo:
— Aí tens o plano
do ataque, a conta da mulher que bordou as iniciais no lenço, etc., etc.
— Mas o bilhete de
Duquesne? interrogou Silvestre.
— E o cravo que
ele trazia na lapela? ajuntei eu.
— Isso são
pequenos retoques que eu, como mais experiente (para alguma coisa servem os
cabelos brancos) dei na obra de Leonor. Pedi ao pintor que levasse o cravo
para, por um gesto, inquirir de Leonor se tinha recebido os que lhe mandei,
porque parecia que o moço os entregara noutra parte. O bilhete fiz-lho escrever
dizendo precisar sair caso ela não viesse. Instei com ele para que fosse a São Carlos e me trouxesse a resposta, sem que tu desses por isso.
— São habilíssimas
as mulheres quando se trata de enganar! Que dizes a isto Pedro?
— Tout est bien qui finit bien.
O visconde quebrou as suas relações com Beatriz. Dizer que a lição o deixou completamente emendado em aventuras de amor seria desconhecer o coração masculino. O que é certo é que durante um ano, ou talvez mais, Silvestre só pensou na mulher. E, no seu espírito, encontrou nela o detetive inglês um perigoso rival.
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