1/15/2023

Os cravos brancos (Conto), de Maria O’Neill

 

OS CRAVOS BRANCOS

Tocou a campainha para o almoço.

— Vamos, disse-me Silvestre tomando-me o braço. É à mesa que gosto de tratar assuntos graves.

Eu sentia imensa curiosidade, mas nada queria perguntar. Recebera de manhã um lacônico bilhete do meu amigo, concebido nestes termos:

"Preciso falar-te urgentemente. Vem."

Vesti-me, praguejando por ser acordado no melhor do meu sono, e havia duas horas que, tendo-lhe entrado em casa, esperava ouvi-lo, sem que ele se decidisse a falar.

Sentamo-nos. Um instante depois sentia-se o tinir dos talheres e reinava entre nós um constrangedor silêncio.

Por fim o meu amigo, voltando-se para o criado, perguntou:

— Está tudo aqui?

— Tudo, senhor visconde.

— Retira-te e fecha a porta.

O criado obedeceu, e o silêncio prolongou-se. Quando eu já me dispunha a interrogá-lo, Silvestre ergueu a cabeça e, com voz levemente comovida, indagou:

— Tens lido a obra de Conan Doyle?

A pergunta surpreendeu-me em extremo.

— Tenho. Porquê?

— Que pensas daquele sistema de dedução, empregado por Sherlock Holmes?

— Acho-o muito interessante e sobretudo engenhoso.

— Não, não é isso. Eu me explico. Que pensas dele como método de aplicação prática?

— Enlouqueceste, ou estás brincando?

— Nem uma, nem outra cousa; mas, tendo lido toda a obra do notável escritor, fiz dela um estudo consciencioso, apliquei-a, e cheguei, por tal sinal que bem dolorosamente, à conclusão de que a dedução é a mola real para obter a verdade.

— Sim?! Como?

— Sabes quanto sou ciumento. Não te escondo que nestes últimos tempos a conduta de minha mulher me tem dado seriamente que pensar, mas o meu muito orgulho impede-me de lhe mostrar a menor desconfiança. É assim que, querendo apurar a verdade, pratiquei a teoria de Sherlock Holmes e colhi excelentes, bem que lamentáveis, resultados.

— Isso é decerto engano.

— Qual? Então não tenho as provas?

— Tens provas? indaguei estupefato.

— Inegáveis.

— Mas…

— Eu te conto. Hás de ter notado que a Leonor tem o gênio um pouco triste; é modesta e de gostos simples; porém há três meses, pouco mais ou menos, mandou fazer um vestido elegantíssimo e passou a ocupar-se bastante do toucador. Estimei, porque nada suspeitava, e até lhe repeti um espirituoso axioma dum dos nossos modernos escritores: "A beleza da mulher está na gaveta dos arrebiques." Ela mostrou-se satisfeita de me agradar e começou a criar hábitos de elegância. Por esse tempo foi-nos apresentado aquele pintor francês que algumas vezes aqui tens encontrado. A Leonor não só pinta bem, como conhece a arte, e critica tão judiciosamente que os melhores pintores gostam de ouvir as suas apreciações sobre as obras de Reni, Ciseri, Castagnola, Konink e muitos outros que ela tem estudado conscienciosamente nas mais ligeiras minúcias. Não me admirei portanto que o pintor preferisse a qualquer outra a conversa de minha mulher. Uma noite, nos anos de minha sogra, em que recebemos em casa algumas pessoas amigas, notei no espelho a troca dum olhar e desde então começou o inferno para mim. Compreendi repentinamente a transformação de Leonor e…

Uma leve pancada na porta da sala e a fresca voz da viscondessa cortaram a palavra ao marido que, sobressaltado e contrariadíssimo, respondeu:

— Entra.

Abriu-se a porta e no limiar apareceu a gentilíssima figura de Leonor, mais pálida que de costume.

— Se sou de mais, retiro-me.

— Não, não, podes ficar.

E Silvestre, lançando-me um olhar entendido, disse para a mulher

— Saíste?

Ela, admirada:

— Saí, sim.

— E foste por Vale de Pereiro?

— Fui; quem te disse?

— Ninguém. No entanto não voltaste por lá.

— Também é verdade.

— Passaste no Loreto.

— Exato.

A cada afirmativa da mulher, Silvestre lançava-me um olhar de triunfo.

— Pode saber-se onde foste?

— Se tu já sabes, para que o perguntas?

— Foste à Baixa fazer compras, afirmou ele irônico e nervoso.

— É certo.

E tirando o lenço da algibeira, a viscondessa assoou-se.

Silvestre tornou-se extremamente pálido e disse à mulher com voz tão alterada que ela se afligiu:

— Emprestas-me esse lenço? Não tenho aqui o meu…

A viscondessa estendeu-lhe o lenço e indagou carinhosamente:

— Que tens? Sentes-te mal?

Ele, com riso forçado:

— Nada, absolutamente nada.

Ela então voltou-se para mim e disse-me num tom apreensivo:

— O Silvestre dá-me cuidado. Está com o gênio perfeitamente alterado e dum nervosismo extremo… tão depressa o vejo lívido e lhe encontro as mãos geladas, como o noto afogueado e coberto de suores. O Pedro devia convencê-lo a consultar os médicos. Tenho-lho pedido muita vez, mas não faz caso do que eu digo.

— Está bem, cala-te, intimou ele com azedume.

As lágrimas assomaram aos olhos da viscondessa que, para as ocultar, saiu da sala.

Então Silvestre levantou-se, fechou de novo a porta, e, tornando a sentar-se, murmurou em tom doloroso, lançando-me um olhar febril:

— Notaste?

— O quê?

— Que não me enganei em nenhuma das minhas afirmações?

— Ora adeus… acaso.

— Não, senhor, dedução. A Leonor está de roupão, mas de botas, e botas com lama: sinal de que saiu e foi por Vale de Pereiro. O dia está ótimo e as ruas enxutas, mas naquele sítio o terreno foi revolvido por causa das obras e a água que caiu a noite passada tornou-o lamacento. Ora… o pintor mora na Rotunda. Voltou pelo Loreto porque traz no peito um ramo de mignonettes, que só na Rua Nova do Carmo se vendem. E por último, concluiu mostrando-me a ponta do lenço que a mulher lhe emprestara, vê.

— H. D. Isso que tem?

— São as iniciais dele: Hervé Duquesne.

— Mas vocês estão zangados? Porque não comem juntos?

— Porque Leonor, sob um pretexto fútil, almoça sempre no quarto.

— E ao jantar?

— Nunca falta. Mas, como ia dizendo, tenho-a espreitado. A Leonor sai todas as manhãs e oculta-mo. Habituada a contar-me tudo, não sabe mentir… cai em contradições: enfim a situação é insustentável e resolvi pôr-lhe cobro.

— Pensa bem no que vais fazer…

— Tudo quanto há de simples. Sabes que resolvi abrir banca de advogado? Que queres? Desde que li o Conan Doyle apaixonei-me de novo pela minha carreira e anseio por entrar em ação. Tenho a certeza de que nada escapará à minha investigação. Vou às Ilhas e se aquilo por lá me agradar…

— Mas não estavas melhor aqui?

— Talvez, talvez… pensarei nisso. Por agora convém-me partir, e é esta a razão que dou. Não o faço porém sem me despedir de minha mãe que chega dos Pirenéus no dia vinte e oito; tenho portanto diante de mim quinze dias para pôr a limpo um caso que já não oferece a menor dúvida.

— Há pouco afirmaste ter provas…, notei como se o apanhasse em contradição.

— Eu te digo. Holmes empregava como agentes, em casos graves, garotos com pouco mais de uma dúzia de anos. Chamei, pois, um pequeno que me pareceu atilado e fi-lo seguir a viscondessa. Ela… entrou em casa do pintor. Nessa tarde perguntei-lhe onde fora. Corou, hesitou e, beijando-me na testa, respondeu com embaraço não isento de malícia: "À missa." Fiquei como pregado na cadeira. Não ignoras as minhas relações com Beatriz… é à missa que ela diz ir quando me vem encontrar. Imagina o golpe que sofri.

— Meu caro, na vida é assim: olho por olho e dente por dente. Compreendo o padecimento do teu orgulho, mas quanto ao coração, a julgar pelo que contas, deve ter ficado incólume.

— Enganas-te. Eu adoro minha mulher.

— Agora? indaguei com incredulidade, a que não era estranha uma ligeira zombaria.

— Sempre. É um espírito superior, mas a um homem não basta espírito e virtude; é preciso alguma coisa mais. À Beatriz amo-a. Desejava minha mulher em Beatriz e Beatriz em minha mulher.

— Isso é muito complicado para poder ser entendido por um homem metódico nos afetos como eu sou.

— Por isso mesmo, adiante. Basta dizer-te que tomei quase ódio a Beatriz e estou resolvido a quebrar com ela.

— Mas, agora pergunto eu, que culpa tem a pobre rapariga da falta da viscondessa?

— Se eu tivesse sido para Leonor o que devia, nada disto se tinha dado. Por quem faltei eu aos meus deveres?

— Oh! a lógica dos homens, exclamei indignado; tu, e só tu, é que és culpado…

— Serei, não se discute; tu desconheces insignificâncias sempre importantes em assuntos desta natureza. Mas, voltando ao caso, resolvi para amanhã o grande passo e, como receio a impetuosidade do meu gênio, contei com a tua companhia e amizade.

— Fizeste bem. Estou ao teu dispor.

— Obrigado. Jantas comigo. À noite iremos a São Carlos e verás com os teus próprios olhos o jogo da viscondessa. Não é ele que se desmanda.

— É francês, não admira.

— Ela, é ela! Mas não falemos mais do assunto, despreocupemo-nos até quanto possível. Queres um cigarro?

— Obrigado. Pelo que vejo destinas-me o papel do Dr. Watson? Não será uma imitação fiel de mais?

— Watson não está sem um fim nos livros de Conan Doyle. Dir-te-ei mesmo que é um complemento de Holmes: afaga-lhe e esperta-lhe o raciocínio, procedimento magnífico para obter um êxito singular. Estás sem emprego; se, mediante a módica quantia (aqui hesitou) duns trinta mil réis, quisesses servir-me de secretário particular, ser-me-ias de não vulgar utilidade.

— Não te parece disparatada a tua conduta?

— De modo nenhum: é até a mais racional possível, visto que se baseia em raciocínios.

— Nesse caso, aceito.

E, com uma pontinha do gênio aventureiro que dorme no fundo de todo o coração português, eu lisonjeava-me de me sentir Watson, bem que mais desejasse ver-me Sherlock Holmes.

Silvestre agradeceu-me comovido e, querendo mostrar-se à altura da situação dum detective perfeito, lançou mão da guitarra e, depois duns prelúdios, entoou:

Deixa em teus lábios de fogo
Toda a minh’alma queimar,
Porque, se a vida é um jogo,
Perdê-la assim é ganhar.
Na estreiteza dum abraço
Nas ânsias dum bei…

— O senhor não sai? indagou da porta o criado.

— Sim, sim, respondeu Silvestre, atirando com a guitarra para cima duma cadeira. Ponham o dog-cart.

Durante o passeio o visconde mostrou-se despreocupado, mas, na sua falsa e ruidosa alegria, percebi que ocultava um vivo sofrimento. Impressionou-me sempre mais a dor que tenta vencer-se do que aquela que se entrega ao desespero. Procurei distraí-lo; mas no seu olhar febril, no riso nervoso e forçado, desagradável ao ouvido como viola desafinada, na volubilidade e rapidez com que passava dum a outro assunto, e até na vivacidade da réplica, tudo à uma demonstrava nele um poderoso esforço de reação.

O jantar passou-se bem. A viscondessa, animada pela alegria do marido, fazia brilhar o seu espírito levemente satírico, e eu observava-os a ambos, lamentando de mim para mim a breve desunião daquele interessante par. Ao café um criado assomou à porta trazendo na mão um lindo ramo de cravos brancos.

— Para a senhora viscondessa!

— Quem manda? interrogou Leonor com ligeira emoção.

— Não sei, minha senhora.

— Então como lhe veio à mão?

— Entregou-mo o porteiro, dizendo que o trouxe um moço.

— Decerto uma lembrança da estouvada da Teresa, continuou a viscondessa com voz pouco firme. Dê essas flores à Luísa; que as ponha no meu toucador.

Durante este curto e rápido diálogo olhei Silvestre. O rosto tornara-se-lhe lívido, os lábios incolores e os músculos faciais agitavam-se-lhe: tinha um aspeto feroz que a custo serenou. Voltando-se para a viscondessa, que insistia na estranheza que lhe causava o modo por que chegaram as flores, respondeu naturalmente:

— Estás ligando extrema importância a um fato insignificantíssimo e da mais fácil explicação. O homem tinha pressa e esqueceu-se de entregar a carta ou bilhete que trazia; quando der por isso voltará a reparar o erro.

Leonor mostrou-se satisfeita com a opinião do marido e ausentou-se para cuidar do vestuário. Eu fui envergar a casaca e segui para São Carlos.

A primeira cousa que notei foi o pintor, passeando no vestíbulo dum lado para o outro e tendo na lapela um cravo, em tudo semelhante aos de Leonor. Mal tinha feito esta observação senti passos atrás de mim e a voz cristalina da viscondessa que me dizia rindo:

— Foi pontual pela primeira vez na sua vida.

Ofereci-lhe o braço e olhei rapidamente em volta; já não vi o francês. Quando auxiliei Leonor a tirar a sua esplêndida capa, notei com pasmo que no seio e na cabeça se destacavam dois lindos ramos de cravos brancos. Silvestre, surpreendido também, não pôde conter-se que lhe não dissesse com visível contrariedade:

— É de mau gosto e muito pouco senhoril usar flores de que se ignora a procedência.

Leonor respondeu naturalmente:

— Talvez tenhas razão… tens por certo; mas não tinha outras. E, pegando gentilmente no cabo do seu pesado binóculo de esmalte, começou observando a assistência e sorrindo ou acenando com a mão a uma ou outra amiga ou conhecida que, como ela, ornavam a sala. Fazia-o tão natural, tão despreocupadamente que eu não sabia que pensar.

Num dos intervalos Duquesne veio ao camarote. Leonor recebeu-o amavelmente e, num momento em que Silvestre e eu discutíamos acaloradamente a voz do barítono, ouvi distintamente murmurar ao ouvido do pintor:

— Amanhã.

Ele depois mostrou-lhe por um gesto o cravo que tinha na botoeira e murmurou:

— Quis que eu o trouxesse…

Ela sorriu e assentiu por um gracioso movimento de cabeça.

Então radicou-se-me completamente no espírito a ideia da culpabilidade de Leonor, e notei que nada há mais imprudente do que o amor, quando verdadeiro. Beatriz, a doce e simpática amante de Silvestre, num camarote do lado oposto, desolada por não lhe merecer um olhar, não desfitava os olhos dele sem se lembrar ou importar com o que cada um poderia dizer. A sua angústia era visível. Leonor, a dois passos do marido, lançava um olhar de entendimento ao pintor e murmurava-lhe ao ouvido um amanhã que se me afigurava cheio de promessas.

Chegara a casa e, tirando o sobretudo, inda mal tinha tido tempo para coordenar os acontecimentos do dia, quando Silvestre me entrou no quarto, e atirando consigo sobre o divã, exclamou:

— Então viste?

Acenei afirmativamente, não sabendo até que ponto ele levara a sua investigação.

— Tudo, tudo? insistiu ele.

— Creio que sim.

— Isto também? indagou, incrédulo, atirando sobre a mesa um papel azul amarrotado.

— Não, isso não.

— Então lê.

No papel azul, com as iniciais de Hervé Duquesne, li estas palavras escritas rapidamente a lápis: "Hoje foi-me impossível esperá-la. Quando volta?"

— A impressão que senti foi tal, que, chegado a casa, não pude impedir-me de lhe fazer uma cena, tomando como pretexto as flores, confessou o meu amigo.

— E agora? perguntei assombrado.

— Agora mato-os, respondeu friamente o visconde.

— Mas não era bom interrogá-la, confundi-la primeiro? Sabes até que ponto está comprometida?…

— Que importa? Faltou.

— E tu?

Silvestre abaixou a cabeça e, após uns segundos de silenciosa luta interior, redarguiu:

— Tens razão, não me compete julgar. Separar-me-ei e partiremos em seguida: mas primeiro quero mostrar-lhe que não sou um imbecil. Amanhã também vou à entrevista.

— Era melhor não ires.

— Vou. Se não queres, não me acompanhes.

— Eu deixava-te lá só numa ocasião dessas!… E a hora?

— Às sete

— Como sabes?

— É o costume.

— Bem. Vou acompanhar-te a casa.

— Aceito. Se quiseres perder estas horas da noite conversando comigo, fazes-me um favor especial: pela primeira vez na minha vida sinto-me completamente desorientado.

O resto da noite pareceu-nos interminável. Enfim, pela volta das seis e meia, sentimos uns leves passos que deslizavam pelo corredor, e pela frincha da porta pudemos ver o vestido branco da viscondessa desaparecendo na porta do jardim. Olhei para Silvestre.

— Sigamo-la, ou por outra, tomemos-lhe a dianteira.

E, abrindo a porta do vestíbulo que dava para a rua, tomamos apressadamente o caminho da Avenida.

Ao chegar em frente da casa de Duquesne o visconde, sem hesitar, entrou.

— Agora onde vais? indaguei tomando-lhe o braço.

— A casa dele… é no primeiro direito… ficarei no patamar superior… quando Leonor chegar entrarei com ela.

— Mas isso é o escândalo, talvez a morte.

— O que for se verá.

E, soltando-se-me da mão, subiu a escada.

Segui-o. O coração batia-me apressado, e pelo meu estado compreendi o de Silvestre. Decorreram minutos, longos como séculos, e por fim os degraus fizeram ouvir o passo ligeiro de Leonor. Olhei o visconde. Tremia e o suor inundava-lhe a testa. Aventurou-se a espreitar. Imitei-o, e vimos a viscondessa bater à porta da esquerda. Então Silvestre, galgando dum salto os degraus, achou-se ao pé da mulher no mesmo instante.

A viscondessa recuou um passo e, soltando uma sonora gargalhada, perguntou:

— E o Pedro?

Vendo-me aparecer por meu turno, desatou a rir com tal gosto que as lágrimas lhe corriam pelas faces. Nós olhavamo-la perplexos.

A porta abriu-se e a viscondessa, continuando a rir, disse-nos:

— Uma vez sem exemplo permito-lhes que entrem adiante. Por aí.

E apontou-nos o corredor.

Entramos numa sala onde uma senhora sexagenária conversava animadamente com H. Duquesne, que, sentado diante dum cavalete, retocava um retrato de Leonor, em tamanho natural, com cravos brancos na cabeça e no peito.

A senhora, ao ver Silvestre, correu a cingi-lo nos braços, clamando alegremente:

— Meu filho, meu querido filho! Quanto estimo ver-te!

E, voltando-se para a nora, num tom de censura:

— Não soubeste guardar segredo até ao fim!

— Não tive culpa, minha querida mãe, respondeu a viscondessa, rindo e lançando-nos alternativamente, a mim e a Silvestre, olhares impiedosos. Foi um simples acaso que, a meu pesar, me proporcionou a agradável companhia destes senhores.

Silvestre e eu, sem percebermos bem, sentimo-nos vexados. A viscondessa continuou:

— Por hoje, meu caro Duquesne, fica adiada a nossa sessão. Estes senhores convidaram-me para um divertimento a que me não posso recusar, embora tenha a maior pena de lhe causar atraso.

Nós examinamos a tela, dirigimos alguns elogios ao pintor, mas sentíamo-nos contrafeitos, receando parecer ridículos. Depois de combinar nova sessão para completo acabamento da obra, Duquesne retirou-se, parecendo não ter ligado a menor importância à nossa intempestiva entrada.

Então Leonor, depois de ter trocado com voz baixa umas palavras com a sogra, começou dirigindo-se a mim:

— Vou contar-lhe uma história, Pedro, que talvez o interesse, bem que lhe não seja completamente estranha. Quando Silvestre pensou em ir às Ilhas disse-me que eu devia ficar, porque se tratava duma ausência de curta duração. Magoou-me a resolução e admirou-me por insólita, preocupando-me muito; a breve trecho um acaso me descobriu a causa. Ouvi-o, em minha própria casa, convidar Beatriz a segui-lo. Fugia-me? Abandonava-me? Como o poderia eu saber? A sua resolução nada tinha de desculpável a não ser uma grande paixão. Beatriz é uma senhora, recebida em toda a parte como tal. Se seguia Silvestre, era decerto na ideia de não mais se separar dele, e só para realização dum tal desejo se tornava compreensível a conduta de ambos, sobretudo a dela. A mulher hesita sempre diante dum escândalo. Se eu chorasse e lhe pedisse que desistisse do seu intento, não obteria nada: os homens espezinham sempre quem se humilha. Decidi, pois, servir-me das suas novas teorias de investigação e escrevi a minha sogra pedindo-lhe auxílio.

Voltando-se ao marido, continuou:

— Não querendo deprimir-te na opinião de Duquesne, o que aliás bem merecias, distribuí-lhe o papel, deixando-o na ignorância de tudo. Ajustei o meu retrato, feito a ocultas, para te presentear no dia da tua partida.

— Agora, perguntou a mãe de Silvestre sorrindo, quem preferes tu levar: a cópia ou o original?

— Isso nem se pergunta, respondeu o visconde, confundindo no mesmo abraço a mulher e a mãe. Uma palavra ainda. Como arranjaste esta casa?

— Disse-me Duquesne que estava vaga, falando em ver se lhe cederiam um quarto para pôr o cavalete, visto no seu atelier entrar muita gente e não ter onde o ocultar.

A mãe de Silvestre, sorrindo, foi a uma gavetinha dum lindo contador de pau santo e, tirando um sobrescrito, entregou-o ao visconde dizendo:

— Aí tens o plano do ataque, a conta da mulher que bordou as iniciais no lenço, etc., etc.

— Mas o bilhete de Duquesne? interrogou Silvestre.

— E o cravo que ele trazia na lapela? ajuntei eu.

— Isso são pequenos retoques que eu, como mais experiente (para alguma coisa servem os cabelos brancos) dei na obra de Leonor. Pedi ao pintor que levasse o cravo para, por um gesto, inquirir de Leonor se tinha recebido os que lhe mandei, porque parecia que o moço os entregara noutra parte. O bilhete fiz-lho escrever dizendo precisar sair caso ela não viesse. Instei com ele para que fosse a São Carlos e me trouxesse a resposta, sem que tu desses por isso.

— São habilíssimas as mulheres quando se trata de enganar! Que dizes a isto Pedro?

Tout est bien qui finit bien.

O visconde quebrou as suas relações com Beatriz. Dizer que a lição o deixou completamente emendado em aventuras de amor seria desconhecer o coração masculino. O que é certo é que durante um ano, ou talvez mais, Silvestre só pensou na mulher. E, no seu espírito, encontrou nela o detetive inglês um perigoso rival.

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