1/15/2023

O regresso do filho (Conto), de Florbela Espanca

 


O REGRESSO DO FILHO

— Nazaré! Eh, Nazaré! Onde diacho se meteria o raio da rapariga!

E depois duma breve pausa berrou mais alto:

— Ó Nazaré!

— Pai! — gritou de dentro uma vozita esganiçada —, lá vou!

— Então tu não ouves chamar, mulher?! Há mais de quanto tempo "ó Nazaré, ó Nazaré" e tu sem apareceres! Pareces mouca!…

— É que eu…

— Anda lá, anda lá — atalhou o velho bruscamente —, lê lá a carta que chegou agora da vila. É do teu irmão!

E o senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas, metia à cara da rapariga, num alvoroço, numa impaciência impossíveis de disfarçar, a carta já saída do envelope onde as garatujas do filho se ostentavam grossas e bem legíveis sobre a brancura da folha de papel.

A rapariga pegou na carta e rapidamente deu princípio à leitura:

"Meu pai:

Quando esta carta lhe chegar às mãos vai ficar muito triste com a notícia que tenho para lhe dar, pois vossemecê gostava muito do Justino que era seu afilhado. Pois é verdade, o Justino tenho a certeza de que morreu lá para aquelas malditas terras do interior, para onde a sua desgraça o levou vai fazer um ano. Nunca mais se teve notícias dele e já não é o primeiro que para lá fica…"

A rapariga, com a voz a tremer, interrompeu a leitura para enxugar uma lágrima à ponta do aventalito de chita. O senhor Justino Urbano tossiu para disfarçar a comoção que o invadia.

— Anda lá… anda lá… — murmurou.

A rapariga, firmando a voz, continuou a ler:

"… Coitado do compadre Gabriel quando souber. Eu não lhe mando dizer nada. Escrevo-lhe a si para lhe ir dar a notícia, que sempre será melhor, pois o filho deve estar morto a estas horas. Já há mais de três meses que chegaram boas notícias de todos os que foram com ele e por cá o que consta é que ele morreu.

Eu estou aqui bem e não faço tenções de ir para mais banda nenhuma a não ser para as nossas terras, pois isto de terra de pretos nunca costuma dar bom resultado, como aconteceu ao pobre do Justino.

Dê recados meus à prima Isabel e às pequenas, ao Elias, ao compadre Josué, ao Manel da Tenda e a todos os que por mim perguntarem.

Diga à nossa Nazaré que eu em breve lhe escrevo e que já cá lhe comprei, para lhe levar, um colar muito lindo de marfim e uns brincos de coral como os da professora de S. Bento.

E o meu pai receba um aperto de mão e muitas saudades deste seu filho que lhe pede a bênção.

Francisco Urbano"

Ao terminar a leitura da carta, a rapariga, num ar de interrogação aflita, ergueu para o pai os grandes olhos escuros, marejados de lágrimas como duas amoras orvalhadas.

O pai, a olhar vagamente, ao longe, a mancha negra do montado, não fez um movimento.

A sombria moldura da porta da cozinha, aberta de par em par sobre o silêncio dos campos, fazia lembrar uma cuvette onde a paisagem luminosa, arqueando-se em grandes ondas largas até às altas serranias azuladas de Espanha, tomava o seu banho de ouro.

Veio até eles o brando arrulhar dum pombo. Outro desceu num grande frêmito de asas e começou a apanhar as migalhas, em movimentos rápidos, receosos, que lhe faziam cintilar o largo colar de esmeraldas e rubis que lhe cingia o pescocito airoso.

A rapariga, num gesto muito doce, amarrotava a carta, seguindo-lhe os movimentos.

De repente, a um gesto brusco do velho, o pombo desapareceu batendo asas. Com um fundo suspiro, o velho transpôs a porta da cozinha, sem uma palavra.

***

No dia seguinte, logo depois do almoço, o senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas, meteu-se a caminho do monte das Chãs para ir dar a triste notícia ao compadre Gabriel.

Manhã tórrida de Junho. As ceifas estavam à porta. Já os trigais maduros erguiam o ouro pesado das espigas nas hastes altas, num gesto hierático de oferta a qualquer deus pagão, enquanto as perdizes, repletas e desconfiadas, atravessavam à pressa os regos, por entre as searas, com a filharada atrás. O senhor Justino Urbano caminhava devagar, enxugando de vez em quando, com o grande lenço de chita vermelha, o suor que, sob o negro chapeirão, lhe inundava a testa, toda sulcada de rugas miudinhas. Inquieto, distraído, não tinha um olhar para o que o cercava, às voltas com o problema da sua árdua e tristíssima missão.

Que havia ele de dizer àquele pai?… Como havia de dizer àquele desgraçado que já não tinha filho?… Em que túmulo fechado iria ele transformar aquela casa, adormecida na feliz expectativa do regresso do herdeiro, logo que lhe transpusesse os umbrais?!…

O senhor Justino Urbano parou de repente junto a uma copada azinheira que, no cotovelo do atalho, desdobrava um lencinho de sombra na aridez da terra de pousio, tirou o chapéu que lhe escaldava a testa, atirou com ele para o chão num gesto raivoso, estendeu o lenço e sentou-se.

A terra onde os olhos se lhe perderam parecia não ter fim até aos longínquos horizontes onde se confundia com o céu. Minúsculas borboletas dum azul muito carregado, outras dum amarelo intenso como ocre lembravam flores de charneca a que de repente tivessem crescido asas na ânsia de fugirem ao triste destino que, tão doces, as prendera àquelas hastes secas e duras que jamais tinham visto curvar-se em blandiciosos gestos de doçura. A seara madura era como que um outro céu mais abrasado, dum esmalte mais vivo. As grandes azinheiras escuras, espalhadas aqui e ali, desenhavam desgrenhadas flores de sombra no ouro em pó das suaves colinas, arredondadas e fugidias, cordilheira de ondas pequeninas até onde os olhos as podiam seguir.

Em volta, o silêncio era tão profundo, tão religiosa e extática a paz dos campos, que os olhos do lavrador incrédulo se ergueram da terra numa instintiva ação de graças. A alma do homem, tão insignificante, sente-se às vezes ultrapassar o mistério infinito da própria existência e procura ansiosa um infinito maior ainda onde perder-se; é nessas horas que o homem se sente perdoado do nefando crime de ser homem.

O Justino Urbano soltou um profundo suspiro e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas ao dar com o "monte" do compadre Gabriel, erguido no alto da mais elevada colina em torno, a uma meia hora de caminho. Era uma grande casa quadrada, branca de neve, à torreira do sol, sem a doçura duma árvore a dar-lhe sombra. É que os sombrios olhos alentejanos precisam encher-se de infinito, precisam das amplas extensões onde o ar corre liberto e o Sol, pelas tardinhas solitárias, adormece cansado, imperador aborrecido do seu trágico gozo de incendiar.

O Justino Urbano fixou por largo tempo o "monte" do compadre Gabriel; depois, lentamente foi-se levantando, apanhou o chapéu, o lenço, que dobrou cuidadosamente, deu dois passos para a frente, outros dois para trás e por fim parou, indeciso, sem saber o que havia de fazer.

— Não querem lá ver vossemecês a minha vida! — resmungou em voz alta.

De súbito, encolhendo os ombros, raivoso e aborrecido, vociferou num ar de grande resolução:

— Pois vou-me embora, pronto! Quem quiser que lho vá dizer!

E a passos rápidos, sempre resmungando, voltou costas à colina, onde a casa quadrada alvejava ainda a grande distância, tomando o caminho de casa.

Nada! Que ele tinha dois filhos que eram como duas medalhas e não queria acarretar-lhes desgraça falando em desgraças, não queria matá-los levando notícias de morte a um pobre homem que nunca lhe tinha feito mal nenhum!

"E quem sabe lá!", continuava ele no seu descosido monólogo. "Estas coisas tão longe nunca uma pessoa assente lhes pode dar creto logo às primeiras. Os governos lá estavam para dar às pessoas estas tristes notícias, que eles lá é que sabem quem vive e quem morre. Não era só décimas e mais décimas em cima dum homem a pontos de, a bem dizer, lhe levarem quase a seara toda! O compadre Gabriel havia de o saber, que as más novas sabem-se sempre! Antes se não soubessem!", rematava num suspiro.

— Nada, nada! — repetia. — Não, que eu tenho dois filhos!

E no supersticioso medo, cheio de inquietação e egoísmo que de repente lhe oprimia o coração como numa tenaz de ferro, olhava desvairado a imensidade daquela terra que o cercava, como se ela lhe fosse cair toda às pazadas sobre os corpos inanimados dos filhos.

Quem o visse de longe tomá-lo-ia por um bêbado, coisa que o sisudo lavrador nunca tinha sido em dias da sua vida, tais eram os gestos e a raiva com que sacudia o chapeirão e o grande lenço de chita vermelha, desfraldado como um pendão de revolta, a que de vez em quando limpava a cara alagada.

Quando chegou à herdade, a filha, que o não esperava tão cedo, por pouco não deixou cair a arregaçada de ovos que trazia da capoeira ao vê-lo de camisa desabotoada, o chapeirão derrubado para a nuca, o sobrecenho carregado, e mais assustada ficou quando o viu arremessar para cima do grande poial da porta da cozinha, onde àquela hora se estendia já uma nesga de sombra, o lenço que trazia na mão.

Não se atreveu a interrogá-lo nem o velho lhe deu tempo.

— Vai-me buscar um púcaro de água! Quem quiser que lho diga! Eu é que não estou para isso! — trovejou, deixando-se cair para cima do poial.

A rapariga entrou na cozinha, donde voltou passados instantes com um grande púcaro de barro cheio de água fresca, e enquanto o pai bebia, sôfrego, a água límpida, ficou-se a olhar para ele, interdita e inquieta.

— Mas vossemecê não foi às Chãs?… — perguntou-lhe a medo.

— Não — tornou o velho numa voz mais doce. — Não tive ânimos. Faltou-me a coragem. Ainda cheguei ao Caminho Velho; depois, assim que de lá avistei a casa, voltei para trás. Quem quiser que lho diga!

E, depois duma pausa, murmurou em ar de confidência:

— Tu bem sabes que o compadre Gabriel, desde aquela doença, nunca mais ficou bom. Tem lá assim, a modos que umas ideias esquisitas… Não ficou lá muito certo! Tive medo que lhe desse alguma coisa, que ficasse para aí maluco, ou…

Deteve-se, vendo debuxar-se nos lábios da Nazaré um levíssimo sorriso.

— Vocês são mesmo umas cabras! — bradou, dando uma forte palmada no poial. — Tudo é uma risota! Tudo é uma risota!

A rapariga voltou a cara e ficou muito corada, entretendo-se a enrolar e a desenrolar a ponta do aventalito de chita. O velho caiu nas suas meditações, olhando vagamente o muro branco, em frente, onde o sol batia de chapa.

— Se vossemecê quisesse… — arriscou a rapariga, numa vozita receosa.

O velho voltou-se para ela, interrogando-a com o olhar.

— A ti Ana passa aí à noite. Hoje é quarta-feira e ela foi à vila com o Roque, que eu vi-os passar de manhãzinha. Diz-se-lhe a ela e…

— Ora é isso mesmo! — interrompeu o pai. — Tiveste boa ideia. A ti Ana criou o rapaz, vai ter muita pena, mas o pai sempre é pai e ninguém melhor do que ela lho pode dizer. Tiveste boa ideia. Pois é a ti Ana mesmo que lho há de dizer!

***

Efetivamente, ao sol-posto, a ti Ana passou montada no burrito que o Roque, um garoto de rosto vivo e corpo desempenado, levava brandamente pela arreata a caminho do "monte". A Nazaré tinha-a ido esperar à entrada do montado que cortava a meio o atalho que ia direito às Chãs.

— Pareces uma sardinha a assar nas brasas! — gritou-lhe de longe a ti Ana a rir, ao vê-la aparecer, delgada e morena, sobre o horizonte avermelhado onde o Sol se sumia lentamente.

Quando porém, meia hora depois, a ti Ana tornou a montar o burrito a que o Roque tomou a arreata num gesto de impaciência, pois era quase noite e as Chãs ficavam longe, a pobre velha já não ria; levava mais vinte anos sobre os ombros curvados e os olhos tinham-se-lhe cavado subitamente, cegos das mais dolorosas lágrimas que uns olhos podem chorar.

O irmão ainda mourejava lá por fora quando ela chegou a casa. Chegou dali a bocado, já noite fechada, com o gado. Da cozinha, onde punha a mesa para a ceia ajudada pela afilhada, uma filhita dum criado que tinha puxado para casa, ouvia-se o vozear dos homens, o tropear dos machos nas pedras do pátio, de vez em quando o mugido profundo e lamentoso dum boi, o ladrar insistente dos cães, à distância. A ti Ana parava de momento a momento na sua lida e ia disfarçadamente à porta da cozinha, para que a pequena não visse limpar à ponta do lenço preto os olhos que se lhe inundavam de lágrimas teimosas.

Quando o irmão transpôs a porta da cozinha, conversando com os dois criados, deu-lhe as boas-noites em voz sumida e foi numa tremura que serviu a ceia sem dar palavra.

Quando acabaram de comer, o irmão levantou-se e, como de costume, nas noites abafadas de Verão, foi fumar um cigarro, sentado num poial de tijolo que corria a todo o comprimento da casa e donde se avistavam, em noites luarentas, os "montes" muito brilhantes engastados na meia luz dos outeirinhos suaves correndo brandamente até às altas serranias de Espanha.

— Estava muita gente na feira? Trouxeste as cordas? — perguntou-lhe ele de lá, ouvindo-a ainda lidar na cozinha.

— Trouxe — respondeu ela num murmúrio.

— Sabes? — tornou ele —, aquelas terras de semeadura da banda de cá do rio, as do ti Samuel, estão para vender. Fui hoje vê-las. Quando o rapaz voltar… Aquilo era tudo uma herdade. Não te lembras?

Ela não pôde responder, a garganta opressa pelos soluços.

Ele continuou:

— Bem boa seara a do Brás! A terra é igual… Eu não tenho agora dinheiro, mas se elas não se venderem até lá, quando o meu rapaz voltar…

— Ó Gabriel — conseguiu ela articular, transpondo a porta da cozinha e ficando de pé ao lado dele. — Não sei o que me adivinha o coração… Há quase um ano que não temos carta do Justino… Se lhe tivesse acontecido alguma coisa?…

O velho, sobressaltado, levantou para ela o rosto, subitamente duma palidez de cera.

Via-se como de dia. O luar era uma cascata de luz despenhando-se dos outeiros. Inundava e submergia tudo. As sombras tinham-se refugiado aos cantos, muito encolhidinhas, expulsas de toda a parte pelo dilúvio; e o manancial de luz correndo pelas colinas arredondadas, pelos vales fugidios, perdendo-se nos longes, era de minuto a minuto mais farto e transparente, alagando os "montes" muito caiados erguidos a meio das encostas ou nos altos duma brancura milagrosa.

— Sim… — gaguejou ela. — Soa-se para aí que o nosso Justino…

E já com as lágrimas a correrem-lhe em fio pela cara abaixo:

— Foi em casa do compadre Justino que mo disseram, hoje mesmo, quando voltava da feira. Receberam carta do Chico em que dizia que o nosso Justino, coitadinho, tinha morrido, lá para aquelas terras do interior…

Foi tão desvairado o olhar que o velho lhe lançou que ela teve medo e apressou-se a dizer, enxugando as lágrimas:

— Ninguém nos mandou dizer a nós. Tem fé, Gabriel! Quem sabe lá! Pode ser que não seja assim…

O velho não respondeu, mas deixou pender a cabeça e os braços num ar de desolação tão atroz que a ti Ana correu para ele e, levantando-lhe a cabeça, procurou animá-lo. Ele, sem forças para a interrogar, tinha fechado os olhos como se esperasse o golpe supremo, resignado.

— Então, Gabriel! Tem ânimo, homem! Pode ser, pode muito bem ser que o nosso Justino volte. Isto há de ser tudo mentira! O padrinho diz o mesmo. Lá dos governos é que têm obrigação de dizer quem vive e quem morre. A gente cá não sabe nada. Então, Gabriel!

O velho ergueu lentamente a mão trêmula para que a irmã se calasse e, numa voz que mal se ouvia, murmurou:

— Deixa-me sozinho.

E como ela se preparasse para responder, ele repetiu a súplica no mesmo tom muito doce, na mesma voz sem timbre:

— Deixa-me sozinho.

Ela não ousou desobedecer-lhe. Fez-lhe a vontade e entrou na cozinha, reprimindo os soluços que lhe afogavam o peito. Ao retirar-se para o seu quarto, depois de tudo arrumado, foi à porta espreitá-lo; viu-o na mesma posição, quase deitado sobre o banco, a cabeça pendida para o peito, os braços caídos.

— Vou-me embora, Gabriel — disse-lhe muito baixinho. — Tem cuidado com a porta da cozinha. Vê lá, não a deixes aberta…

Ele não respondeu.

Quando se sentiu completamente só e o silêncio o envolveu como as rígidas pregas dum sudário, sacudiu o torpor em que caíra, levantou-se lentamente e deu uns passos pelo pátio. Depois, sem lançar sequer um olhar para a porta da cozinha, aberta de par em par, encaminhou-se para a horta, de que se via alvejar à distância o murozinho branco. Empurrou o portão de ferro que nunca se fechava. Na bela terra alentejana não há ladrões porque não há fome e o lavrador não é desconfiado. Entrou. A horta, com o muro à volta, baixo, caiado de fresco, fazia pensar num alegre e romântico cemitério de aldeia onde mortos dormissem descansadinhos, na paz do Senhor.

O velho sentou-se numa pedra rente à terra e abraçou num olhar vago os talhões bem tratados, o regato de água límpida que cortava a horta, para as regas, o laranjal, massa sombria ao fundo, donde vinha em lufadas um ar carregadinho de perfumes. A Lua, espreitando por cima do muro, deslizando por entre os ramos das árvores, caía de borco sobre a fonte e os seus mil raios prateados eram na água outros tantos barquinhos luminosos que as gotas, caindo da bica em branda cadência, faziam vogar e submergir-se. O regato, a seus pés, corria sem cessar, num estonteamento de garoto, rindo a bom rir por entre o morangal até sumir-se lá ao canto, junto ao muro, na sua fofa caminha de musgos de veludo verde-escuro.

O velho abrangeu tudo aquilo num olhar que a pouco e pouco se ia tornando mais consciente, sorveu o ar com a ânsia de quem se sente asfixiar e levantou a cabeça num gesto de desafio e de orgulho.

Ah, não! Não podia ser! O seu filho não podia ter morrido assim, longe dele, longe da terra, longe de tudo que o vira nascer, de tudo que o vira crescer e fazer-se homem! Ah, não! Não podia ser! O filho!… O seu menino, o seu rapaz, que tanto lhe custara a criar sem mãe, que tantos cuidados lhe dera, que só a fraqueza do seu amor deixara partir assim à aventura como seu desejo fora, o seu maior sonho de riqueza, teria desaparecido assim como uma pedra do chão, um punhado de terra, uma haste de erva rasteira, sem nada ter ficado dele, nem ao menos um túmulo, um montão de terra num cemitério com uma cruz ao alto a proteger-lhe o sono!

E aquelas árvores, que já ali estavam quando ele nascera, que as nortadas tinham sacudido, queimadas pelas geadas, despidas e açoitadas pelas mãos brutais do Inverno, continuavam ali, continuavam a viver, poupadas pelos anos, protegidas pelo destino, intactas, quase iguais às que ele vira em pequenino!

Ah, não! Não podia ser!…

E a esperança foi-se-lhe insinuando no peito, toda a noite, a passos leves, cautelosa e traiçoeira. Um clarão de loucura atravessou-lhe as pupilas baças e os cantos duros da boca torceram-se num jeito de sorriso. Levantou mais a cabeça. Uma quase certeza invadia-lhe a alma torturada, fazia-lhe bater o coração como se tivesse vinte anos e um grande milagre lho florisse como um altar. A sua imaginação, sempre um pouco insensata, apresentou-lhe o filho cheio de força e saúde, com as mãos plenas de riquezas, de volta à casa onde nascera, comprando terras, todas as terras em volta, as terras de pão que ninguém a peso de ouro recusaria vender-lhe, fazendo das Chãs a maior herdade daquelas redondezas, daquelas vinte léguas até serras de Espanha.

E quando, de manhãzinha, o Sol assomou, todo cor-de-rosa, no horizonte vestido de cores pálidas, dum louro de topázio, dum suave lilás de anêmona, dum verde translúcido de certas asas de libélulas, o nosso homem tinha tanto a certeza de que o filho havia de voltar, e voltar rico, como tinha a certeza de existir, certeza firme e funda como firmes e fundas aquelas árvores tinham vivido quase intactas, anos e anos pregadas ao duro chão alentejano.

E daquele dia em diante, acentuando-se a loucura, mais se lhe meteu em cabeça a cisma de que o filho estava vivo e voltaria rico, e começou por toda a parte a falar com grande entusiasmo da compra de terras que ia fazer, chegando a entrar em negociações com os proprietários que, conhecendo-lhe a mania, abanavam gravemente a cabeça com um misto de comiseração e ironia e uma grande malícia nos olhos escuros, semicerrados.

Passaram-se assim dez anos. Nasceu gente e morreu gente; voltou remediado e de saúde o filho do senhor Justino Urbano, da Herdade das Pedralvas; o mundo continuou nas suas voltas e reviravoltas eternamente incógnitas ao nosso entendimento, mas do Justino do Gabriel das Chãs é que nunca se soube nem novas nem mandados. A pouco e pouco, um primeiro, outros depois, todos o foram esquecendo… Só o pai continuava à sua espera, certo do seu regresso como no primeiro dia. "Quando o meu rapaz voltar…", dizia ele…

***

Ora deu-se o caso que um belo domingo de Fevereiro, estando o senhor Justino Urbano a acabar de jantar em companhia dos dois filhos, viram com grande surpresa entrar pela porta dentro o vulto dum desconhecido, um vulto estranho e inquietante que fez soltar à Nazaré um grito de terror.

Parecia efetivamente um maltês, um desses mendigos vagabundos que costumam rondar pelas herdades ao lusco-fusco, rosnando a súplica que é quase uma ameaça, da tigela da sopa e do agasalho para a noite. Vinha enrolado quase até às sobrancelhas numa manta velha cujas pontas tocavam o chão; trazia na mão direita um grosso cajado a que se arrimava, na esquerda um saquinho de chita onde mal podia caber uma muda de roupa.

Mal podendo ter-se nas pernas, amarelo como um círio, o homem desembuçou-se um pouco, encostou-se à porta e, numa voz que a emoção enfraquecia e os soluços embargavam, murmurou:

— Padrinho! Sou eu…

O senhor Justino Urbano deu um salto como se um aguilhão o picasse ao reconhecer naquele espectro o afilhado, e correu para ele abraçando-o a rir e a chorar, num alvoroço.

— Ó Justino! Ó rapaz!

A Nazaré, debulhada em lágrimas, e o Francisco foram-no amparando, levando-o devagarinho para uma cadeira baixa, ao cantinho da chaminé.

O senhor Justino Urbano parecia doido. Fazendo grandes gestos, não deixando falar ninguém, fazia andar tudo numa poeira, dando ordens e mais ordens, todo entregue à mais inebriante alegria da sua vida.

— Deixa lá, homem! Tira-te daí Francisco — berrava para o filho. — Deixa-o tomar ar, c'os diabos! Vai buscar lenha seca à loja! E tu, boca aberta — gritava voltando-se para a filha, que, de pé, considerava o Justino com os olhos rasos de água —, que estás para aí parada como um andor?! Despacha-te! Vai matar um frango! Põe água a ferver, anda mulher!…

— Ora esta! — dizia para o afilhado. — Uma assim nunca na minha vida vi! Ora o Justino!… Mas como vieste tu cá parar ao fim de tantos anos?!

O Justino sorria enlevado, estendendo à chama as mãos muito magras e trêmulas.

Como tinha vindo cá parar!… Como os regatos vão parar ao mar, a planta ergue a haste para o Sol e as nuvens se fundem nos horizontes! A terra chamara-o sempre e, longe dela, nunca a sorte o bafejara, nunca! Ai, as saudades que ele tinha tido! Naquelas terras de África exuberantes e riquíssimas, entre aqueles extensos milharais dum verde intenso e cru, no meio de toda aquela opulenta vegetação carnuda e forte, crescendo à doida, lamentara do mais fundo da sua cismática e austera alma alentejana os seus campos incultos, as suas charnecas bravias, o cheiro a feno, a ervas amargas, a tostado, os seus pequeninos prados, colchas bordadas a malmequeres e a botões de ouro que a Primavera estendia à beira dos raros regatos, os ondulantes trigais salpicados de papoulas, toda a sua terra a saber a rosmaninho e a alecrim, toda a sua linda província recolhida e calma, que ele evocava como uma doce rapariga de rosto moreno, olhos baixos e boca séria. Ai, as saudades que ele tinha tido!

E o Justino, em voz muito fraca e ansiosa, depois de tomar a pequenos goles a chávena de caldo muito apetitosa a cheirar a hortelã que a Nazaré lhe preparara num instante e de ter chupado uma asita e uma perna de frango, pôs-se a contar aos três, que o ouviam cheios de piedade, a sua triste história, história de desilusão e amargor. Os anos de luta e de esperança primeiro, as suas ambições, os seus sonhos; depois a sua partida para o interior, o roubo de que tinha sido vítima, a doença, as malditas febres, a falta de recursos, por fim, o hospital, a vergonha que alguém soubesse na terra a miséria em que caíra, o desânimo que dele se apoderara e que o fizera permanecer ignorado e esquecido, dado por morto durante todos aqueles anos. Depois, ao sentir aproximar-se a morte, a ansiedade de partir, de vir abraçar os seus, de morrer na sua terra, na sua cama, de vir ver a sua casa e os seus campos. A ideia de ficar para ali, abandonado como um cão, sem ninguém que lhe fechasse os olhos, enchia-lhe a alma de pavor. Numa voz que de vez em quando se molhava de lágrimas, contou depois a medonha odisseia da viagem, tudo o que tinha sofrido, pensando não chegar vivo a casa, com o pensamento atroz de morrer no mar, de ser atirado para os peixes com um peso aos pés, como um bocado de carne podre. Mas conseguira chegar a Lisboa, depois à vila. Por uma vez tivera sorte! Pusera-se logo a caminho, a pé, pois gastara os últimos cinco réis e já não se importava de morrer, agora que estava na sua rica terra da sua alma!

— Qual morrer, nem qual carapuça! — bradou o senhor Justino Urbano, dando uma palmada em cima da mesa que fez tilintar a tigela e o copo. — Quem é que fala em morrer?! Com uma açordinha todos os dias ao levantar, umas migas com chouriço e um bom copázio de vez em quando, crias carne e ficas rijo e fero num mês! O Francisco também assim chegou um pelém! E olha para ele, a ver se o conheces!

A Nazaré e o irmão enxugavam os olhos disfarçadamente. O Justino sorriu, menos pálido, menos trêmulo na atmosfera de bem-estar e de cordialidade de que se sentia rodeado.

— Agora — tornou o senhor Justino Urbano —, lá para a tardinha, quando te sentires com mais força, põe-se o macho ao carro e vamos até às Chãs…

O Justino ergueu para ele os olhos brilhantes de febre e atreveu-se a fazer a pergunta que desde a chegada se lhe adivinhava nos lábios. A medo murmurou:

— E a minha tia?… E o meu pai?…

— A tua tia — respondeu o senhor Justino Urbano, num tom um pouco contrafeito e esforçando-se para dar às palavras um tom natural. — A tua tia lá está, muito velhinha mas lá anda. Agora o teu pai… sim… vais vê-lo. — E em voz mais firme: — Está rijo! Está bom!

O Justino sorriu apaziguado e ficou-se a dormitar.

À tardinha, o macho posto ao carro, o Justino bem instalado numa cadeirinha e bem agasalhado num amplo capote à alentejana de farta gola de pele de raposa, os três homens lá foram a caminho do Monte das Chãs.

A tarde declinava já. Os campos abandonados espreguiçavam-se a perder de vista vagamente polvilhados de ouro, dum ouro pálido que esmaecia. O rapaz ia calado, embevecido. A cada canto um fantasma, uma recordação; a cada volta da estrada uma saudade. Os olhos prendiam-se-lhe a tudo, pareciam levar beijos no olhar como se pousassem devotamente em qualquer coisa de sagrado.

Passou no alto um bando de pássaros negros. Só num pé, à beira dum regato, grave e melancólica, uma cegonha cismava. O Justino sorriu. Era tudo como dantes. Nada tinha mudado.

Ao atravessarem o montado do Ribeiro, o padrinho voltou-se para trás e inquiriu num ar vagamente inquieto:

— Vais bem?

Ele acenou que sim com a cabeça.

Dali a instantes o senhor Justino Urbano tossiu, assoou-se e, sem se atrever a olhar para ele, tornou:

— O teu pai… não o estranhes… Anda a modos que esquisito de há um tempo para cá…

E ao ver o rapaz sobressaltar-se:

— Não é nada de cuidado — apressou-se a explicar. — Velhice. Ele já deve andar pelos setenta. É mais velho do que eu um bom par de anos…

O silêncio caiu cheio de pensamentos tristes. O Francisco, para se animar, começou a assobiar as "saias" daquele ano. O macho caminhava sem se apressar, contornando os montes, que, na brandura da tarde, pareciam recolher-se como pássaros para dormir.

Ao passarem pela azinheira grande, no cotovelo do atalho onde o senhor Justino Urbano, anos antes, tinha passado uns momentos bem amargos, avistaram a casa, o montado das Chãs, o murozinho da horta em baixo. O rapaz estendeu os braços como se quisesse abraçar tudo num abraço muito apertado, muito cingido ao peito alvoroçado e contente naquela bendita hora, tão sonhada, do regresso!

Era noite quando chegaram. Inquietos, os cães ladraram raivosamente. A ti Ana, corcovada e trôpega, abriu a porta da cozinha e espreitou para fora. Ao reconhecer a voz do compadre Justino, recuou e foi à pressa buscar a candeia.

— Quem é? — perguntou uma voz do canto da chaminé.

— Boas noites — gritou da porta o senhor Justino Urbano. — Cá estamos, compadre! Venha de lá uma pinga! Trago-lhe uma visita!

— Uma visita… — balbuciou o velho, interrompendo o cigarro que estava fazendo e olhando curiosamente para onde sentia o rumor das vozes.

Entraram todos. A ti Ana, que ainda segurava a candeia, ao dar com os olhos no Justino, deu um grito e agarrou-se num desespero ao Francisco, sem tirar os olhos do sobrinho, que reconhecera logo.

Este, sem poder avançar um passo, branco como a cal, ficou à porta, a olhar de longe o pai, sentado à chaminé.

— Ora essa, compadre! — tornou a voz trêmula do velho. — Entre. Cheguem-se cá para o lume.

O senhor Justino Urbano avançou, amparando o afilhado, que tremia como varas verdes. Entrou com ele na zona iluminada. A chama do lume e a luz da candeia deram-lhe em cheio no rosto, descobrindo-lhe as feições como em pleno dia.

Todos olhavam como que petrificados, os peitos opressos pela poderosa emoção da cena, à espera…

O velho, muito alquebrado, trêmulo, levantou a cabeça toda branca e cravou os olhos no filho, que de pé, ansioso, fremente, o olhava também, pronto a lançar-se-lhe nos braços.

O velho abriu mais os olhos. Um lampejo de lucidez atravessou-lhe, numa vertigem, as pupilas baças, teve um sobressalto brusco, quase deixando cair o cigarro que segurava, o rosto contraiu-se-lhe numa expressão de ansiedade, de angústia, num esforço de compreensão, de tortura inenarrável, e os braços ergueraram-se-lhe instintivamente no largo gesto de quem vai abençoar.

Mas foi um momento… Desviou os olhos… as pálpebras tornaram a descer brandamente sobre as pupilas foscas que as sombras da loucura obscureciam. Estendeu o braço, procurando no lume um ramo a arder onde acender o cigarro e, indiferente, longínquo, tornou, na sua voz trêmula, num risinho pueril e quebrado:

— Pois é verdade, compadre… Quando o meu rapaz voltar…

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