I
Através das grades
da prisão, Miguel via uma nesga do Tejo. Era bonita e melancólica essa faixa de
rio, por onde o pobre rapaz espraiava o seu olhar. Mas sempre a mesma,
tornava-se monótona, enervante, eterna.
No entanto,
devorava-a com os olhos, era a sua companheira, bebia-lhe as auras que das suas
águas serenas e azuladas se evolavam até ele e o acariciavam brandamente,
agitando-lhe os cabelos, beijando-lhe as faces, através daqueles grossos varões
de ferro, que o separavam do mundo.
Como fora aquilo?
Pobre Miguel!
Ele, tão modesto,
tão pacato, tão inofensivo, como pôde ir parar ao Limoeiro?
Parecia-lhe um
pesadelo infindável!
— Venha comigo —
disseram-lhe um dia ao sair da repartição.
Parou interdito, e
naturalmente perguntou:
— Mas para onde?
— Vamos, nada de
perguntas, acompanhe-me — tornou a criatura embirrante e de má catadura. — Está
preso!
E levaram-no para
a cadeia.
Ali estava, em
princípio, sem saber porquê. Depois fizeram-no descer à secretaria e
submeteram-no a um interrogatório confuso, quase incoerente, que o deixava cada
vez mais surpreendido.
Perguntas cheias
de mistério, divisando em cada olhar uma ameaça, em cada palavra a convicção
duma culpa, por ele incompreendida. E às suas respondiam-lhe com um sorriso de
incredulidade e desprezo, mandando-o retirar.
Conspirador!
Tiveram de lho dizer para que enfim compreendesse.
Então ele tinha lá
pensado nunca em política?
Fora decerto a
vingança dalgum desalmado inimigo que falsamente o denunciara. Mas quem? E como
puderam acreditar tal aleivosia!
Tudo que
significava luta lhe causou sempre um horror invencível, e, contanto que
houvesse paz, qualquer Governo lhe servia. Sentia-se até incomodado quando
diante dele se discutia a mudança de regime, e, verdade, verdade, lá no íntimo,
estava contente com a República que lhe trouxera aumento de músicas regimentais
pelas ruas, o que lhe dava a impressão de mais festa e alegria. Cantarolava
constantemente A Portuguesa e era o primeiro a
descobrir-se reverente quando a ouvia na Avenida, Rossio ou Terreiro do Paço,
onde nunca faltava aos concertos grátis.
Que cousa tão
surpreendente e incompreensível!
A sua vida tinha
sido sempre duma pacatez rara. Vivia com duas tias velhas, porque os pais, mal
os conhecera. Esta orfandade não tinha verdadeiramente constituído uma
infelicidade para o nosso Miguel, porque as tias eram tão boas e dedicadas,
tinham-no enchido tanto de mimos, que ele nem quase dera pela falta dos pais.
Uma, irmã da mãe, outra, irmã do pai. Tinham-se unido, feridas por igual
desgosto, dedicando-se ao órfão que de 3 anos o destino lhes atirara aos
braços, sendo a sua missão no mundo, desde então, a educação do pequeno Miguel.
Ele era fraquito e
bom; dobrado motivo para os cuidados e desvelos das boas criaturas.
Aos 18 anos
arrumaram-no como amanuense no Monte Pio Geral.
Que dia aquele de
alegria! Era um empregado, entrava na vida do homem que trabalha, que se torna
útil e independente. E elas, as boas velhitas, rejuvenesciam de orgulho. Foram
convidados parentes e amigos, houve jantar lauto, doces, flores e à noite foram
todos para o teatro. Foi uma linda festa aquela.
Daí em diante, o
Miguel saía invariavelmente às 9 horas, já almoçadinho e muito barbeado, muito
limpo, sempre com lindas gravatas, lá ia alegre e satisfeito para a sua
repartição. Voltava às quatro e meia em ponto.
E lá estavam as
velhinhas, atentas, se teria apanhado sol, que estava constipado, que devia ter
levado chapéu, porque de manhã chuviscara, que talvez fosse melhor não tornar a
sair naquele dia… e ele, sorrindo para ambas, dizendo-se sempre óptimo,
esplêndido, que a tosse não tinha importância, e fazendo-as rir com as suas
facécias, com a sua verve dos 19 anos.
Às noites, quase
sempre, ia ao animatógrafo, era a sua extravagância. Uma hora aprazível que ele
passava. Recolhia às 11 horas, e ainda até à meia-noite, a hora do chá, tinha
de contar às velhotas as fitas que tinha visto, recreando-as imenso com aquelas
narrativas.
Ao domingo
levantava-se mais tarde. Não, que eram os únicos dias que tinha para descansar!
Ao meio-dia, o banho pronto e perfumado, em água morna para se não constipar. À
uma hora, o almoço e depois tudo ia passear. A criada tinha licença para o
resto do dia, e eles lá iam jantar ao Estoril, outras vezes a Sintra.
Podia afirmar-se
que o Miguel era um rapaz feliz. Amabilíssimo com as raparigas, adorando-as a
todas, um pouco tímido talvez, mas os namoricos sucediam-se ainda que, até
então, paixão, não havia por nenhuma. Era preciso que ele não escutasse os
conselhos das velhas tias, que o cumulavam de desconfiança contra a mulher
moderna! Nada! Passar o tempo sim, casar, isso não; pelo menos por enquanto.
Estava tão novo ainda!
Pobre Miguel! Quem
havia de dizer que este bom rapaz iria assim parar àquele imundo Limoeiro! E
então assim, de repente, como se fosse a cousa mais natural do mundo…
Ainda poderia ter
sido por uma pegadilha com qualquer atrevido, um mau encontro com alguma destas
criaturas que só vêm ao mundo para implicar com os outros, que armam conflitos
a cada passo, e a quem se lhe tornasse necessário dar algum corretivo, mas não,
não foi nada disso. Foi preso justamente por uma cousa que o pacífico Miguel
nunca faria, nem que vivesse 100 anos! por conspirador!
II
Deus nos livre de
maus vizinhos ao pé da porta! Parece que o Miguel nunca se importou com esse
terrível flagelo, porque se esqueceu de pedir, nas suas orações, para que Deus
o livrasse desse mal. Pois não foi porque as tias lho não tivessem ensinado!
Isso é que é verdade.
Mas contemos o
caso: no 3º andar da escada de Miguel morava um cocheiro da casa real;
tratava-se bem e conquanto se mostrasse orgulhoso com a privança — aliás bem
reduzida — com os grandes do paço, passava por boa pessoa, embora se
embriagasse bastas vezes, o que o tornava reinadio,
segundo a opinião dos vizinhos, para quem se tornava mais familiar, deixando de
parte os modos altivos de uma pessoa que sempre tinha a honra de guiar os
carros onde iam quase sempre os criados do rei.
O que este ilustre
varão não podia, em todo o caso, suportar, eram os republicanos. — Isso é que não
— dizia ele a quem o queria ouvir, batendo grandes murros sobre as mesas da
taberna, onde em geral abancava, e, mais ou menos, frequentada por serviçais e
moços das cavalariças da casa real —; o que o nosso Governo devia fazer era
mandar enforcar a todos. Corja!
Ora o conhecimento
desta importante criatura com o nosso Miguel era muito superficial, porque o
rapaz, por uma repugnância instintiva, evitava-o sempre que podia. Mas algumas
vezes se encontravam à porta, e então falavam-se cordialmente e subiam juntos
até à porta do Miguel, que era no 2º andar, e aí se despediam, subindo o
cocheiro ao 3º, onde morava.
Um dia chegou-lhe
lá abaixo a mulher do vizinho, muito aflita e chorosa.
O cocheiro fora
preso por ter atirado com os cavalos para cima dum homem que deixara estendido
na rua.
— Coitadinho! —
diziam as tias. — O pobre homem é que ficou pior! como fez ele isso?
— Ora — dizia a
mulher — não foi por querer. Ele estava embriagado, e
depois o homem era um republicano e chamou-lhe lacaio real,
e como ele tem um ódio enorme a essa canalha, atirou-lhe com os cavalos para
cima.
— Mas isso é
infame! — exclamou o Miguel. — Bem sei que a senhora não tem culpa, mas um
republicano é um homem como outro qualquer.
E passeava pela
casa muito agitado.
Então a mulher voltou-se
para as velhitas e disse-lhes, entre soluços, que aquilo fora uma desgraça, que
ele gastava tudo na taverna e agora nem sequer tinha dinheiro para lhe pagar a
fiança. Se as suas boas vizinhas lhe emprestassem essa quantia, se lhe valessem
naquela aflição, servi-las-ia de joelhos toda a vida.
Elas
desculpavam-se que não podiam valer-lhe, que também viviam com dificuldades.
Ela então
abraçou-se aos pés do Miguel, dizendo-lhe que ficaria sem pão, pois se o marido
não saísse logo e lá no paço o viessem a saber, seria imediatamente despedido.
O Miguel sentiu um
dó imenso pela pobre criatura que lhe chorava aos pés, e como tinha algumas
economias, porque do seu ordenado pouco ou nada gastava, foi buscar 20$000 e
deu-os à mulher, exclamando: — Olhe que faço isto só por si, porque o seu homem
não merece nada.
As tias
comoveram-se com o bom coração do sobrinho e não ralharam.
A mulher partiu
radiante, e o cocheiro, à noite, foi dar-lhe um abraço mostrando-se muito grato
e prometendo pagar logo que tivesse dinheiro.
Veio a República.
O cocheiro dançou na rua, de regozijo. Por covardia, ou por bebedeira? Talvez
por ambos os motivos. A verdade é que, com pasmo de toda a vizinhança, deu
morras à monarquia, de quem tinha vivido, e deu vivas aos republicanos, que o seu
ódio dantes esmagava.
Dentro em poucos
meses tinha um lugar qualquer de confiança do Governo, onde auferia bons
lucros.
É claro que o
Miguel ainda não estava pago dos seus 20$000 réis, embora por mais duma vez,
timidamente, lhos tivesse lembrado, ao que o outro sempre lhe respondia com
evasivas ou desculpas.
Agora, porém, que
o ex-cocheiro estava um figurão, o rapaz apertava mais com ele, porque enfim,
não era rico e estava a juntar para uma viagenzita a Paris. Mas qual! o grato vizinho, agora, já lhe respondia altivamente.
— Que esperasse,
que diabo! uma porcaria daquelas, nem valia a pena falar-se nisso.
Ultimamente,
quando lhe passava por pé da porta, escarrava com força, e a mulher, a que se
abraçara a chorar aos joelhos de Miguel, tinha risos irônicos e trocistas
quando encontrava a criada do 2º andar no talho, a comprar meio quilo de carne
para coser.
— Que pelintrice!
— dizia ela, levando sobraçada uma perna de carneiro.
Quando alguma das
velhinhas punha à janela a secar umas camisas do rapaz, muito bem engomadas, a
antiga monárquica deitava-lhes água, ou cuspia-lhes em cima, o que afligia
imenso as pobres criaturas, principalmente a mais nova, que era quem as
engomava, tinha 65 anos e sofria do coração.
Um dia o Miguel,
já farto de ouvir queixas, encontrando-se com o recente republicano, disse-lhe
que ainda iam ter um desgosto, se as coisas continuassem assim.
Terminou
acusando-o de ingrato.
— Que me não pague
— exclamava o rapaz — vá, já nem penso nisso, mas que, ainda por cima, insulte
as minhas pobres tias, é repugnante e reles; e eu, com risco de ir preso, ainda
lhe parto a cara. Entendeu bem? E olhe que se não o fiz já, é por amor delas,
para não lhes dar mais desgostos.
O outro era
covarde, olhou-o torvo e casquinou num riso mau:
— Tudo isto por
uns porcos 20$000 réis… até mete nojo! deixe estar que os não perde!
— Sabe que mais? —
volta o Miguel, com uma pronunciada expressão de desprezo. — Afinal, nem me
posso admirar que isto suceda. Que diabo lhe fiz eu comparativamente com os
favores que recebeu dos seus amos? A ingratidão foi sempre apanágio das almas
baixas; guarde o dinheiro e faça de conta que nunca me conheceu. Já é favor.
E voltou-lhe as
costas.
O outro ameaçou-o
já de longe, de punho cerrado, e gritou-lhe:
— Deixa estar!…
Talassa!
III
Agora, ali
sozinho, quando as velhinhas saíam de o visitar e ele via afastarem-se aquelas
figurinhas, vestidas de preto, muito pálidas e lacrimosas, que lhe haviam
contado quanto as fazia sofrer a atmosfera de ódio em que os vizinhos malditos
do 3º andar ainda as envolviam, ao pobre rapaz levantava-se-lhe o peito em
ânsias sufocantes de represálias contidas, sentindo todo o horror da sua
fraqueza e impotência.
Uma noite,
encostado à pequena mesa de pinho que guarnecia o seu exíguo quarto, numa
trapeira do sujo casarão que se chama Cadeia Central de Lisboa, rememorando as
cenas doces e harmoniosas da sua vida passada, com os olhos úmidos de lágrimas,
na recordação desses anos tranquilos, decorridos entre os dois afetos que o
acalentavam, tempos ainda tão próximos, mas que a situação presente lhos
afigurava tão longínquos, quando foi despertado daquela espécie de sonho, por
um barulho inesperado e confuso.
Gritos,
imprecações, gente que parecia fugir, corpos rolando no chão, uivos, gemidos,
como que um montão de pessoas que se esmagam, esfaqueiam, estrangulam, ou fogem
espavoridas ante um perigo qualquer inesperado… um sinistro talvez.
Os cabelos
puseram-se-lhe em pé. A ideia dum incêndio acudiu-lhe ao pensamento como um
látego a fustigar-lhe o cérebro. Correu para a janela, numa angústia
indescritível, os dedos enclavinharam-se-lhe nas grades, ao sentir o contato
dessa barreira invencível.
Do Tejo, centos de
olhos fosforescentes pareciam olhá-lo com terror!…
Luzinhas oscilando
nos barcos como se estremecessem pelo perigo que o ameaçava a ele… O suor
inundava-lhe a fronte numa agonia inconfundível. Voltou, cambaleando, para a
porta, abriu-a, e logo deparou com uma cena de inqualificável horror:
Guardas levavam
criaturas ensanguentadas que se tinham esfaqueado, presos, que numa luta de
animais ferozes, liquidavam ódios de momento, questões de ocasião, saldadas
ali, a murro e à facada.
Nessa noite não
dormiu, numa agitação febril revolvia-se na enxerga de palha, não podendo
conciliar o sono. Só quando os pálidos clarões da aurora começavam a invadir o
quarto, entrou nesse amargo torpor que precede os sonos pesados do infortúnio.
Mas procedia-se à
contagem dos presos: umas pancadas secas à porta avisaram-no que tinha de
entrar na forma, como todas as madrugadas. E o mísero Miguel lá foi, nessa
manhã, a tiritar num frio nervoso, embrulhado no comprido casaco que as tias
lhe tinham mandado para a prisão.
Ao voltar para a
cela, atirou-se para cima da cama, prostrado, sem forças quase para pensar. Mas
como uma infelicidade nunca vem só, estava escrito que o infeliz conspirador não poderia dormir nessa manhã. Era dia de
banho.
— Toca para o
banho! — gritou-lhe uma voz grossa e áspera.
Agora é que foram
elas. Agulheta em riste, zás! Um esguicho medonho fê-lo dar um grito, e era tão
forte e gelado, tão intenso para aquele pobre corpo franzino, espreitado pela
tuberculose, que o fez cambalear, gelando-o até aos ossos, obrigando-o a erguer
os braços numa sufocação que o punha louco de sofrimento.
Ao chegar ao
quarto, desatou a chorar; não podia mais.
Nesse dia, quando
as velhinhas, muito pálidas, o abraçavam, naquela visita regulamentar do
meio-dia às duas horas, ficaram muito aflitas porque o pobre Miguel ardia em
febre e tinha os olhos vermelhos das lágrimas.
À saída ainda as
acompanhou até ao fim do corredor, querendo fazer-se forte para as não molestar
mais. E elas, todas trêmulas, caminhando entre aquele bando enorme de gente,
que tem de sair junta e à mesma hora, empurradas por criaturas asquerosas, que
as troçavam e magoavam, que lhes batiam com os cestos nas costas, casquinando
facécias ignóbeis, comentando os seus modos receosos e a limpeza do seu
vestuário, agarravam-se uma à outra, no balanço daquela onda humana, sentindo,
cheias de nojo e angústia, o contato de todas aquelas sujidades, e o bafo
fétido e nauseante do vinho azedo e das bocas mal tratadas.
E isto todos os
dias, todos os dias! Muito unidas, muito juntinhas, as duas fracas criaturas,
que eram, em todo o caso, o único amparo do desgraçado rapaz, respiravam enfim
ao chegarem cá fora, quando se abria a última jaula à saída daquela massa de
gente; mas voltando os olhos para o tenebroso edifício, soltavam o mesmo
suspiro doloroso, caminhando ambas chorosas e desalentadas com a lembrança do
seu filho, do seu pequeno Miguel, que ali lhes ficava sofrendo.
E todos os dias
este calvário inconcebível, mas naquele mais horrível ainda, porque ele lá
ficava doente e sem lhe poderem valer.
Os viandantes
passavam indiferentes, e alguns riam… Duas velhas a chorar!… que cousa tão
ratona! Se fosse numa fita de animatógrafo, talvez despertassem interesse, mas
ali, nas ruas, que disparate! E já tinham sorte em não serem apupadas…
No outro dia, lá
estava o Miguel na enfermaria; o infeliz delirava na intensidade da febre.
Julgava-se então o
Paiva Couceiro, sim, era ele, a desfazer soldados da República, a tentar
incursões, rodeado de conspiradores e, entrando, por fim, triunfante na
capital, a gritar:
— Abaixo os
rebeldes! Corramos ao Limoeiro. Abaixo esse maldito antro do vício e da desgraça!
Não deixem pedra sobre pedra. Soltem os presos, todos, todos! Que não fique lá
o nosso Miguel! Tudo para a rua… A Bastilha também caiu. O Limoeiro cairá
enfim!…
Como era possível
agora, às pobres velhinhas, que o ouviam aterradas, provarem, com a simplicidade
das suas lágrimas e queixumes, que ele não era, depois daquelas palavras subversivas, o mais temível dos conspiradores?
Oh! não, pobres
criaturas, não valia a pena cansarem-se! Tudo impossível, tudo inútil. Pois se
ele havia confessado! Se a febre o tinha atraiçoado e… mesmo sem querer, tinha
dito tudo…
IV
No dia do
julgamento lá estava o denunciante: o antigo lacaio da casa real.
Com um sorriso
satisfeito, o seu escuro bigode, à semelhança dum rato imundo, sobre uns beiços
delgados e lívidos, erriçava-se-lhe de vez em quando, na alegria selvagem e
cruel de ver o antigo benfeitor perdido, a pobre criança que o salvara da fome,
em troco dos 20$000 réis, agora roubados e que já não lhe seriam exigidos.
É claro que a
carga que lhe fez foi medonha.
Em casa das velhas
reuniam-se pessoas finas, tudo talassas.
O rapaz recebia
cartas dos conspiradores, uma das quais, interceptada pelo ex-cocheiro, era
terrivelmente comprometedora. Pudera! Pois fora o próprio Paiva Couceiro quem a
escrevera, o imprudente!
Tão parvo e ingênuo
que apenas disfarçou a letra e mandou-lha, muito naturalmente, pelo correio de
Lisboa, quando uma vez por aqui passou, oculto. Pois então? Era uma revelação
importante! O antigo lacaio sabia cousas inauditas!
Era um homem
prestimoso!
Estava mais que
provado que o Miguel era um dissimulado e, por isso mesmo, um temível
conspirador. Tinha 19 anos, é verdade, mas que importava isso?
Essa idade também
a tiveram os maiores criminosos.
Não houve meio de
o salvar. A carta escrita pelo próprio cocheiro, que fora o seu único autor,
era esmagadora.
O advogado, se
continuava a defendê-lo com muito calor, seria tosado à saída.
Era preciso
cuidado. O júri também não esteve para se meter em trabalhos…
O rapaz foi
condenado em dois anos de prisão maior celular, seguidos de oito de degredo.
Miguel, uma sombra
do que fora, tão pálido e abatido que mais parecia um velhinho do que um rapaz
na flor da vida, cambaleava ao levantar-se do banco maldito, ouvindo a sua
sentença de morte…
Olhou para as
pobres velhinhas, que soluçavam e levou aos lábios o lenço que ficou tinto de
sangue.
Elas tremiam,
caminhavam atrás dele, de olhos esgazeados, faces lívidas, as mãozitas,
descarnadas, apertando-se convulsamente…
À porta, quando o meteram no carro celular, a mais nova tombou docemente… e a outra, a mais velhinha e enrugada, só encontrou de encontro ao peito o cadáver da irmã, da outra mãe do seu Miguel que com ele lhe desaparecia também, para sempre…
***
Passados dias,
nada restava do pobre amanuense, senão mais um número na Penitenciária e uns
olhos, quase cegos de chorar, que se divisavam, embaciados, através dos buracos
da máscara maldita.
E enquanto a mais
nova das velhinhas dormia o seu último sono, à sombra dos ciprestes, ali, no
Cemitério dos Prazeres, mais próxima do seu Miguel, a outra, a que sobrevivera,
vagueava, mais distante, por aquela casinha solitária e desconfortada, outrora
tão feliz, sorrindo vagamente para o retrato do sobrinho que o representava aos
15 anos, todo sorridente e gracioso e ali estava a segui-la com o seu olhar
meigo e bom.
Lampejos do
passado que surgiam, por vezes, no cérebro adormecido da pobre idiota…
E ele? Ele… que
importa saber?… Tinha sido feita justiça e a sociedade estava satisfeita.
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