MEMÓRIAS DE UMA BOLSA VERDE
I
Um dia fora eu assistir, por curiosidade, a um leilão que se fizera em casa de
uma rica viúva que falecera. Os parentes, apressados em se desfazerem de todos
esses moveis, que para eles não tinham valor algum, abriram o leilão apenas se
fechou a campa que ia encerrar a pobre finada. O que importavam aos herdeiros
esses pobres livros, por exemplo, sobre os quais se debruçara tantas vezes a
fronte encanecida da viúva, esses misteriosos confidentes dos seus pesares e
das suas saudades, cujas páginas teriam sido regadas com tantas lágrimas, e que
tantas vezes teriam repousado sobre os seus joelhos trêmulos, quando ela,
interrompendo a leitura noturna, fitasse os olhos umedecidos no sítio onde seu
marido se costumava sentar, a lâmpada a cuja doce luz tinham tantas vezes
travado uma dessas deliciosas conversações intimas, tornadas mais suaves
ainda pelo conchego do lar, e pelo prazer de sentir a chuva bater nas vidraças,
e o vento gemer de caixilhos das janelas? Que significação tinham essas coisas
para os corvos ávidos, que esperam ansiosamente que o corpo se transforme em cadáver,
para descerem em bandos a saciar a fome impaciente? E quem sabe se, reunidos em
volta do leito mortuário, não miravam com os olhos afetadamente compungidos,
onde brilhavam algumas lágrimas de convenção, os trastes do quarto, e os próprios
lençóis que agitava o estertor da moribunda? Quem sabe se eles não estariam já
calculando o valor aproximado desses objetos? Ai! todo o anjo, que baixa a este
mundo, tem um demônio que lhe espia os passos, que o segue cautelosamente
sorrindo com um sorrir diabólico, que esconde na sombra projetada pelas asas
brancas do habitante do céu as negras asas do habitante do inferno, e que,
apenas aquele acaba de cumprir a sua missão divina, começa a cumprir a sua
missão infame, e a desfazer por todos os modos o efeito salutar produzido pela cândida
aparição.
Após o anjo do amor vem o demônio do ciúme, após o anjo da caridade o demônio
da ingratidão, após o anjo da morte o demônio da cobiça.
Morre uma criatura boa, pura, santa; vem um anjo de
Deus cerrar-lhe os olhos, e levar para os céus, no regaço da sua túnica transparente, o espírito imaculado que se desprendeu do invólucro terreno. No
rosto do cadáver, sereno e tranquilo, fica como que um reflexo do clarão que
derramaram sobre ele as asas luminosas do Senhor. Nada mais próprio para
inspirar respeito do que essa morte sossegada, tão sossegada como a de um
passarinho que esconde sob a asa a gentil cabecinha. Uma suave compunção se
apodera do ânimo de todos os circunstantes. Ninguém ousa perturbar o majestoso silêncio
da câmara funerária; todos temem profanar a augusta santidade daquela cena. Mas
o demônio da cobiça lá estava espreitando à porta com o seu olhar de tigre.
Assim que o anjo bateu as asas, entrou pé ante pé, debruçou-se sobre todas as
frontes pendidas, bafejou-as com o hálito repugnante, e logo todos se ergueram
apressadamente, e trataram de fazer desaparecer o cadáver, de anunciar o
leilão, de preparar tudo para se reduzir a dinheiro, e para se fazerem as
partilhas. "É preciso tratar da vida", dizem eles. Regateiam-se as
despesas do enterro, e, para se ressarcirem delas, não conservam um único objeto,
por mais desprezível que seja o seu valor. Aí tem pouco mais ou menos a cena
horrenda que precede um ato tão natural como é um leilão.
Por isso eu sempre ressinto uma impressão desagradável, quando me vou confundir
com a multidão de compradores que penetram, com tão pouco respeito, nesses
quartos outrora tão sossegados, agora tão ruidosos.
No dia em que assisti ao leilão em que falo, ocorreram-me
estas ideias que acabo de expender.
Já se tinha vendido a maior parte da mobília. Os sofás, as mesas, as cadeiras, os livros, tudo se dispersara já. O pregoeiro continuava a fazer aparecer os diferentes lotes, e, com o ouvido à escuta, repetia maquinalmente os lanços dos circunstantes com uma rapidez, e com uma segurança tais, voltando a cabeça ora para um lado, ora para outro, que pareceria ser antes máquina do que homem, se não fossem as chalaças com que entremeava o seu pregão monotonamente saltitante (se assim me posso exprimir). Eu estava encostado a uma porta, e contemplava com certa tristeza aquele grupo, em que figuravam os rostos indiferentes dos compradores, as fisionomias ávidas dos herdeiros, e a cara maliciosamente alvar do pregoeiro, pago para alegrar a assembleia com os ditos joviais que tinha fabricado, e que provavelmente já lhe teriam servido para dezenas e dezenas de leilões daquela espécie.
Finalmente apareceu um objeto, cuja exibição (perdoem o
anglicismo) foi acompanhada com um comentário burlesco do pregoeiro, e acolhida
por uma gargalhada da assembleia.
Era uma bolsa de seda verde com borlas de ouro. Mas que bolsa, senhores! Era necessária
toda a cortesia do pregoeiro para conservar esse nome a um objeto que já não
tinha forma! Era uma bolsa de cabelos brancos! Rota, esburacada, sem cor
definida e em cujas borlas o ouro brilhava... pela sua ausência! O pregoeiro
passeou-a triunfantemente por diante de todos, e todos se riam, e todos
zombavam, e todos faziam uma observação que redobrava as gargalhadas.
Finalmente o pregoeiro passou por diante de mim, e mostrou-ma. Foi então que eu
a pude ver bem.
Se a pudessem ver como eu a vi, haviam de se compadecer dela. No meio da
alegria geral, que a rodeava, ela só parecia chorar, e conservar uma triste
recordação daquela de quem todos se esqueciam! Se a pudessem ver como eu a vi,
balouçando-se tristemente na mão grosseira daquele homem que a
estortegava, apertando os seus frágeis membrozinhos de seda! E a pobre bolsa
parecia olhar com uma tristeza profunda para todos aqueles rostos cruéis, em
que a zombaria se pintava, e de cada um dos rasgões que tinha aberto no seu
corpinho, d'antes tão gentil, a mão destruidora do tempo, parecia sair um
gemido.
Que profunda impressão me causou o seu aspeto!
Talvez os meus leitores chegando a este ponto, se riam de mim. Pois não tem
razão! Eu acredito que os objetos inanimados, que nos rodeiam, recebem de nós
como que um reflexo de sensibilidade. Quando morre uma pessoa numa casa, não veem
como tudo toma um aspeto lutuoso? A sala, em que tantas vezes estivemos sós enquanto
essa pessoa vivia, tinha por acaso o silêncio lúgubre que lhe notamos apenas ela
deixa de existir? Os livros, cuja leitura desperta em nós o entusiasmo, serão
simplesmente mudos reprodutores dos pensamentos do escritor, e não conservarão
como que o vestígio do talento, que por intermédio deles se manifestou? E qual
será o motivo dessa inexplicável afeição que nós consagramos a certos moveis
queridos? do pesar que sentimos ao vermo-nos obrigados a abandoná-los?
Quando alta noite acordam, e, sem poderem conciliar o sono, ficam deitados de
olhos abertos a contemplar as trevas, e a escutar o silêncio, não sentem de
repente um indizível murmúrio, e umas inexplicáveis luzes encherem o quarto e
rasgarem a escuridão? Como explicam isso? Eu creio firmemente que esse ruído,
que se não ouve quando não estamos nessas circunstâncias, é o que produzem as misteriosas
conversações dos espíritos invisíveis que existem escondidos em cada um desses
moveis, e que alta noite se reúnem, para segredarem uns com os outros, e que
esse tênue fulgor é resultado do cintilar das pequeninas asas desses silfos
sutis.
Quer me acreditem, quer não, o que eu lhes posso assegurar é que a tal pobre e
velha bolsa verde, quando viu a minha fisionomia séria no meio de tantos rostos
zombeteiros, lançou-me um olhar suplicante a pedir-me que a livrasse daquela
triste posição.
E o caso é que a comprei, com grande espanto de todos os circunstantes, que
principiaram por olhar para mim com uns olhos muito abertos, e que concluíram
por sorrirem uns para os outros, dando a entender que me julgavam doido. O
pregoeiro entregou-me a bolsa, e recebeu o dinheiro, tendo cuidado de interpor,
como se fosse por acaso, uma cadeira entre nós ambos, com receio que me desse
alguma fúria.
Escuso de dizer que ninguém me disputou o lanço. Nem mesmo esses agentes, que
tem, em gíria de leilão, o nome expressivo de picadores, ou, por
abuso de metáfora, de toureiros, ousaram erguer a voz para ma
fazerem pagar mais caro.
A surpresa emprestara-lhes um bocadinho de consciência.
Pois o que é certo é que eu comprei a bolsa, e saí com ela muito ancho, sem me
importar com as largas alas que me abriam as pessoas presentes, imitando a prudência
do que ma vendera.
E, como eu passo a mostrar-lhes, não tive motivo de me arrepender.
II
Era uma noite de maio. Eu estava sentado à mesa do trabalho. Um caderno de
papel, ainda virgem de letras, estendia-se diante de mim aterrador na sua
alvura, que me advertia mudamente da obrigação que eu tinha contraído de a
fazer desaparecer debaixo de uma aluvião desses monstrozinhos negros, que se
chamam letras, que, amontoando-se umas em cima das outras, formam as palavras,
essas misteriosas colmeias, dentro das quais se agita o Cândido enxame das ideias.
O tinteiro, boquiaberto, não cessava de me mostrar o oceanozinho sombrio que
tumultuava dentro de seus vítreos muros. A pena, debruçando se sobre esse mar
tenebroso, contemplava-o com indiferença, preparando-se para o sulcar
atrevidamente, quando eu julgasse oportuno começar a navegação.
Uma janela aberta opunha aos meus desígnios um obstaculo insuperável.
Uma janela aberta? ― diz o leitor; por que a não fechava?
O leitor de certo se não recorda de eu lhe ter dito que estávamos em maio.
Fechar uma janela quando a fada da primavera percorre as urnas das flores,
colhe todos os aromas que encontra, e vai espalhá-los prodigamente no regaço
das brisas, que doidejam depois na atmosfera, alegres como as crianças folgazãs
que correm na campina com as suas arregaçadas de flores! Fechar uma janela! E
porque não fecha o leitor os ouvidos quando está escutando uma melodia de
Bellini, e os olhos quando está vendo um quadro de Rafael?
Eu, com um charuto na boca, docemente recostado na minha cadeira, aspirava os
perfumes do ambiente, sem me importar com as provocações do papel, com as
agitações da tinta, e com as sugestões da pena. Devo até dizer, para ser
completamente verídico, que me deliciava em desprezar tudo isso.
Fi donc! Um escritor!
Eu queria vê-los no meu lugar! Uma laranjeira a enviar-me perfumes pérfidos, e,
quando me via prestes a estender a mão para a pena, a balouçar-se sem piedade,
e a remeter-me diretamente nas asas da viração uma taça inebriante, cheia a
trasbordar dos seus eflúvios! E um rouxinol, um travesso rouxinol, muito
escondido numa alcovazinha de folhas, que o demônico da laranjeira lhe tinha
arranjado de propósito para acabar de me tentar, a desentranhar-se em melodias
que era um enlevo escutá-las! Sem falar numas roseiras, que a pretexto de
serem diletanti, e de serem impelidas pela aragem, perpassavam por
diante da minha janela para ouvirem mais de perto aquele Tamberlik plumoso! Não
metendo em linha de conta a lua, que se ria no céu a bandeiras despregadas,
escancarando com os frouxos de riso umas nuvens teimosas, que por força queriam
esconder-lhe as perolas que ela com as gargalhadas mostrava à natureza, e que
tinha a inocente vaidade de contemplar espelhadas nas fontes! Vão lá, com tudo
isto, debruçar-se sobre um caderno de papel e escrever!
Escrever; mas escrever o quê? Um romance de amores?! Um poema?! Romances e
poemas tinha eu na imaginação, sublimes, portentosos, admiráveis, como
todos os tem, e como ainda ninguém os escreveu.
Se eles se desprendem, capítulo a capítulo, estrofe a estrofe, e vão flutuar na
atmosfera de envolta com os perfumes da rosa, com os cânticos do rouxinol, e
com os raios da lua!
E, apesar disso, não deixam que outros, que se possam entornar sobre o papel,
nos ocupem ao mesmo tempo a imaginação.
Assim estava eu, torturando o espírito para obter uma ideia, e encontrando nele
mundos de poesia, não digo bem, um caos de poesia, cujo fiat lux eu
nunca poderia descobrir.
De vez em quando revestia-me de animo, e tentava levantar-me para ir fechar a
janela! Mas a laranjeira balouçava-se e deixava cair uma chuva de perfumes, o
rouxinol redobrava de gorjeios encantadores, os ramos da roseira prendiam-se,
ao perpassar, no parapeito da janela, e deixavam ficar as suas rosas de cem
folhas, purpúreas e embalsamadas, a mirarem curiosamente o meu quarto; a lua
desprendia indolentemente dos ombros o seu manto de luz, arrastava-o no
firmamento, e eu caía desanimado na cadeira.
De repente senti aos meus ouvidos uma voz ligeira como um murmúrio, que me falava
numa linguagem desconhecida, mas que eu, por uma intuição inexplicável, compreendi
imediatamente.
Voltei-me, e com grande pasmo, vi a bolsa verde em cima da mesa.
Era ela quem me falava.
― Amigo, dizia-me a velha bolsa, tu valeste-me numa grande aflição, e é justo
que tenhas a recompensa. Queres escrever? A tua imaginação preguiçosa,
enervada pelos eflúvios desta noite de primavera, recusa-se a ditar-te o que
deves lançar no papel? Eu substituirei a tua imaginação. Pega na pena, e
escreve o seguinte no alto dessa página branca: "Memórias duma bolsa
verde."
Eu, estupefato, obedeci maquinalmente, e aí vão ver os meus leitores o que a
pobre bolsa velha me ditou. Desculpem os erros do autor. Não há nada que se
pareça menos com um literato do que uma bolsa. A razão é muito simples. A bolsa
tem muitas vezes dinheiro, e um escritor... Vamos ao assunto.
III
"Gira, gira, agulha ligeira, impelida por mão tão delicada. Cinge a frágil seda em suave abraço, enlaça os tênues fios uns aos outros, e prepara esse
corpinho gentil, a quem há de o amor dar vida.
"O amor, sim. Não vês a loira cabecinha do anjo de meigo sorriso,
debruçando-se por cima do ombro da tua formosa dona, a contemplar curiosamente
os teus rápidos movimentos?
"Gira, gira, os instantes são preciosos, e pode subitamente chegar quem
transtorne a surpresa tão cuidadosamente preparada! Gira, gira sem cessar,
agulha, agulha subtil.
"Que suave serenidade transparece no límpido olhar daquela cuja mão febril
te dirige! Quando um sorriso anima a graciosa fisionomia, contempla-se com enlevo
o céu azul que lhe ri nos olhos, e as perolas, que os lábios entremostram! A
quem for perspicaz também esse sorriso mostra a alma, que é mais celestial do
que o olhar, mais cândida do que as perolas da boquinha.
"Mas a esse límpido firmamento doura-o agora o sol de um afeto suave, cujo
brilho não é ofuscado por nenhuma nuvem. Os seus raios aquecem-lhe o coração, e
alegram-lhe ao mesmo tempo todos os horizontes da vida.
"Porque vem misturar-se, contudo, uma inquietação febril com o sentimento
de felicidade que lhe anima as feições? Oh! não receies nada! Essa mesma
inquietação é um prazer. Teme não ter completo o presente que desejava oferecer
a seu marido, que fazia anos nesse dia.
"E por isso a agulha girava, girava com impetuosidade, e os fios de seda
agrupavam-se com uma ligeireza inconcebível!
"Está a concluir-se a tarefa. A agulha aproxima-se do sítio marcado. Um
mate, um mate risonho lá surge no horizonte. Apressa-te, agulha, faze prodígios
de celeridade. Enfim!
"Dera-se o mate. As douradas borlas pregaram-se instantaneamente. Ei-lo, o
gentil produto de oito dias de trabalho! A formosa senhora contempla-o com
ternura. O amor sacode o regaço cheio de perolas, e em cada ponto faz pulular
mil pensamentos apaixonados.
"O ente, que nascera, era nem mais nem menos do que esta humilde bolsa
verde que lhe está ditando essas linhas, senhor mandrião.
IV
Quando cheguei a este ponto interrompi eu a bolsa.
― Minha senhora, observei com a respeitosa cortesia que um escritor consagra ao
narrador oficioso que lhe conta uma história, vossa excelência tem falado até
agora numa linguagem que me tem penetrado de admiração, porque me parece bíblica,
e o emprego desse estilo é muito para apreciar numa bolsa que não foi contemporânea
de Isaías. Mas se vossa excelência antes de nascer fala nesse tom, receio muito
que, se continuar na ascensão, quando chegar à velhice, já os leitores, ainda
que se metam no balão de Nadar, não serão capazes de a seguir com a vista nessas
esferas inacessíveis. Pedia, portanto, a vossa excelência o favor de baixar o
voo à terra, algumas vezes, afim de que os nossos leitores percebam alguma
coisa do que se for passando, sacrificando por conseguinte o diploma de sócia
da academia... do anfiguri, que, segundo me parece, está em caminho de obter.
Desculpe-me esta ligeira observação.
A bolsa olhou para mim com modos um tanto severos, e respondeu:
― Admiro-me bastante de tu te queixares. Sabe que nem cheguei a dar-te uma
ligeira amostra do estilo pomposo que eu deveria empregar, e que te poupei o prólogo
obrigado que precede lá entre vós outros, os homens, a magra biografia daqueles,
a quem nomeais grandes, com a mesma convicção com que os antigos romanos faziam
a apoteose dos Tibérios e dos Calígulas. Já vês que a rajada vai começar, e que
se me excitas mais, bailam-te no meu discurso gregos, assírios, índios e
hebreus. Mas voltemos ao que importa. Em lugar de te queixares, devias-me
agradecer o eu não ter dito uma palavra só acerca do estado da Europa na época
do meu nascimento, nem de ter falado nos grandes homens que se agitavam no
mundo, enquanto a minha gentil criadora unia uns aos outros os fios que me
haviam de formar. Podia fazer-te gastar com estes preâmbulos dez páginas, pelo
menos. Não o fiz, e tu acusas-me! Para te castigar não devia dizer nem mais uma
palavra.
― Oh! por amor de Deus, continue vossa excelência como quiser; estou pronto a
admirar tudo quanto eu não entender, nem vossa excelência também. Estou
esperando.
V
"Nasci, continuou a bolsa, e a minha vista não encontrou nada que a
ferisse, nada que lhe repugnasse no quarto onde eu viera à luz. No móvel mais
insignificante se denunciava a riqueza e bom gosto dos donos da casa. Eu
repousava molemente no colo da minha dona, e os meus membros recém-nascidos
sentiram logo o suave contacto da seda. Um alegre raio de sol entrava pela janela,
acariciava o meu corpinho verde, e fazia resplandecer as minhas borlas douradas.
As agulhas repousavam ao meu lado, contemplando curiosamente a obra prima que
tinham acabado de produzir. A gentil habitante do quarto beijava-me
carinhosamente e, beijando-me, murmurava estas palavras que eu conservei de cor:
― "Vai, pobre bolsinha, repousar sobre o coração daquele a quem tanto
amo. Conserva a impressão dos meus beijos, e, quando ele te aproximar do rosto,
oh! anima-te, por um milagre de amor, e sê tu a mensageira destes ósculos que
eu te confio. Dize-lhe, conta-lhe que em segredo trabalhava em te fazer coquete,
elegante, para seres digna dele. Olha, lê bem no fundo do meu coração, para
poderes narrar ao meu esposo os tesouros de afeto que em mim se abrigam. Vai, e
Deus queira que ele te ache a seu gosto, e te faça um bom acolhimento.
"Neste momento um rapaz, cujo lábio superior era levemente assombreado por
um bigodinho nascente, entrou, e, dirigindo-se à minha dona, beijou-a com
ternura.
― "Que deliciosa bolsinha tu tens no colo! ― disse-lhe ele. Foi presente
ou compra?
― "Agrada-te? ― tornou ela, contemplando-o meigamente.
― "Acho-a lindíssima.
― "É tua.
― "Minha?
― "Tua, sim. Não te lembras que dia é hoje? Completas vinte e dois anos.
Trabalho há oito dias a furto para te dar este presente. Sorria-me sozinha,
quando pensava na surpresa que te ia causar, quando te desse a bolsa, e,
saltando-te ao pescoço, te dissesse alegremente:― Aí tens um presente da tua
querida mulher, é para veres que pensa sempre em ti. ― E então agora não mereço
um beijo em paga?
"E a galante senhora, unindo a ação à palavra, tinha-se pendurado no
pescoço de seu marido, e contemplava-o com olhos úmidos de ternura.
"Ele estreitou-a meigamente, e disse-lhe ao ouvido baixinho, e
beijando-lhe os cabelos:
― "Amo te, meu anjo da guarda! Amo-te e sou feliz, feliz com o teu amor.
― "E isso é dito com sinceridade? ― perguntou ela, sorrindo, travessa.
― "Não sou eu quem fala, é o coração.
― "Sim? Sobre esse coração é que eu quero que esta bolsa ande sempre!
Advirto-te que tenho dentro dela um gênio familiar que me obedece, que há de ler
através do teu peito, e que me há de vir contar os segredos que tu julgares
mais recônditos. Aceitas?
― "Que remédio, meu anjo! Venha esse gentil espião, cuja cor me anima já,
porque é a cor da esperança. Hei de lhe dar o observatório mais cômodo que o
meu casaco lhe poder proporcionar; telescópios não devem ser necessários a quem
possui a vista subtil dos espíritos. Mas por caviloso o declaro, se ele
descobrir no meu coração outra estrela que não seja a tua imagem.
― "Não gosto da comparação; as estrelas são sempre ofuscadas umas pelas
outras.
― "Mesmo quando essa estrela se chama Vênus?
― "Viva! O meu maridinho a fazer madrigais! Queres que eu continue no
mesmo tom? Dir-te-ei nesse caso que a Vênus, mais do que a qualquer outra, sucede
o que acabei de dizer. Á tarde vem a lua ofuscá-la, pela manhã o sol.
― "Não, minha querida, não sucederá assim contigo. Sempre viva, sempre
pura a tua imagem resplandecerá no meu peito. É isto o que a tua bolsa te há de
dizer constantemente.
― "Querido Eduardo!
― "Querida Camila!
― "Amo-te!
― "Adoro-te!
"E foi assim que eu passei das mãos da loira Camila para as mãos do moreno
Eduardo.
VI
"Não tive razão de queixa. O meu dono trazia-me nas palminhas. Quando saía
ocupava sempre um lugar de honra na algibeira do casaco, e ali ia eu, sentindo
pulsar o coração de Eduardo, regalando-me, porque estávamos no inverno, de
caminhar bem abafadinha e conchegada, enquanto muitas das minhas irmãs estariam
talvez tiritando de frio nas algibeiras rotas dos seus possuidores. Que justo
orgulho se apoderava de mim, quando Eduardo, sacando-me negligentemente para
fazer alguma compra, me colocava em cima do balcão; como todos olhavam cobiçosamente
para as minhas formas arredondadas, e que belo efeito que eu produzia com as
libras que fulgiam através dos interstícios da seda.
"Nunca me há de esquecer a cara de piedade que fez a bolsa de um empregado
publico, a quem o acaso colocara junto de mim. Era uma bolsinha de lã, tão
magra, tão magra, tão escorrida que metia dó. Uns pobres meios tostões
escondiam-se envergonhados no fundo, e alvejavam tristemente, aborrecidos da
sua solidão. A pobre bolsa olhou para mim com uma certa inveja, e não me
dirigiu palavra. O dono da loja cumprimentou-me respeitosamente, e desviou
com desdém a minha vizinha. Ela não ousou protestar, e pôs-se de parte,
esperando que eu me dignasse voltar ao meu alojamento ambulante! E eu ria-me e
pavoneava-me toda ufana! Mal sabia que ainda havia de passar pelas mesmas
humilhações!
"E o caso é que eu supunha que todos esses cumprimentos eram devidos à minha
gentileza, à formosura da minha cor! E Eduardo julgava igualmente que era a
influencia, que a sua pessoa exercia, a causadora das humilhações, do
servilismo que o rodeavam! Eduardo atribuía a si o que a mim era devido. Eu atribuía
a mim o que era devido às libras que eu abrigava, e as libras também atribuíram
a si o que se devia simplesmente à soma de gozos que elas proporcionam. Todo o
homem se adora a si mesmo nos objetos perante os quais se curva. O "eu"
é o ídolo constante da humanidade. O egoísmo é o seu único motor."
E neste ponto a bolsa filosófica soltou um profundo suspiro.
"Á noite, continuou ela, repousava dentro da gaveta de uma linda
secretária de pau rosa, e ali ficava até pela manhã tagarelando com umas cartas
de amores, minhas vizinhas, que me contavam os mil deliciosos segredinhos que
lhes tinham sido confiados; e nesta doce pratica voavam para mim as lentas
horas da noite.
"Contudo, eu começava a pressentir o meu futuro destino. Eduardo era o que
vulgarmente se chama uma cabeça de vento. Frequentes vezes, e com as melhores
intenções deste mundo, se esquecia de mim, e me deixava ficar à noite em cima
da mesa, em vez de me conduzir à minha deliciosa alcova da secretária.
28"Uma vez, tendo acabado de fazer umas compras, deixou-me em cima do
balcão. Não posso explicar a impressão dolorosa que senti quando o vi
desviar-se distraidamente, e quando reparei, olhando em torno de mim, nos
ávidos olhares dos caixeiros. Segui-os tristemente com a vista, e já me ia a
despedir dele para sempre, quando Eduardo, chegando à porta, mostrou
recordar-se de alguma coisa, e, voltando se precipitadamente, correu ao balcão.
Deu logo com a vista em mim, que estava toda trêmula de alegria, e, beijando-me
fervorosamente, escondeu-me no seio.
"Infelizmente nem sempre lhe sucederia isso.
VII
"Uma vez (sempre me hei de lembrar deste dia nefasto) Eduardo, estando a
fazer umas contas, tirou me da algibeira e pôs-me em cima da secretária. Depois,
a pouco e pouco, foi amontoando os papéis em cima de mim, de forma que eu já
parecia um pobre Enceladozinho de seda, debaixo de um Etna de papelada.
"Quando acabou o que tinha que fazer, Eduardo levantou-se, e, como
estivesse tocando a sineta para o jantar, foi para a mesa e não se lembrou mais
da pobre bolsa.
"Por infelicidade, na véspera, tinham os donos da casa recebido a visita
de uma jovem viúva, muito galante, muito coquete, e que parecia
desejar jungir ao seu carro de triunfo o marido de Camila, sobre quem não se
cansava de experimentar o efeito dos seus olhares cheios de fogo e de estratégia.
Eduardo, como podem imaginar, nem reparara em semelhante coisa; porém sua
esposa, com a perspicácia de mulher, adivinhara tudo, e sentira o ciúme, não
digo bem, o despeito apoderar-se dela. Não sei a que propósito, Eduardo me fora
buscar, e a jovem viúva mostrou desejo de me ver. Eduardo entregou-me cortesmente
nas mãos da baronesa (a viúva era baronesa) e os dedos involuntariamente
encontraram os dedos da gentil coquete. Um raio de indignação fuzilou
nos olhos de Camila, a baronesa sorriu-se, Eduardo ficou impassível, e eu previ
uma próxima tempestade.
"Por isso, e apesar da mão da baronesa ser tão delicada e macia como a da
minha criadora, apesar dos elogios que ela me prodigalizou, eu não fiquei
satisfeita senão quando me vi livre da sua análise.
"Mas desta vez foi a mão de Camila quem me
recebeu. Rápidos como o relâmpago, os dedos elegantes, que me tinham lançado
ao mundo, adivinharam, antes dela a executar, a tenção que a baronesa formara de
me entregar ao meu dono, e apressaram-se em preceder a mão solicita de Eduardo.
"Devo confessar que, desde essa visita fatal, o bom humor de Camila alterara-se
sensivelmente, alteração cujas consequências Eduardo sofria com grande pasmo
seu. Não podia compreender o azedume que sentia em todas as palavras de Camila,
e, muitas vezes, espreitando pelo buraco da fechadura da minha gaveta, o vi de
pernas cruzadas, e em atitude meditativa, perguntando a si mesmo quais seriam
os diabos azuis que atormentavam sua esposa, e a ele por conseguinte.
"Depois de jantar, os dois esposos vieram tomar café para o sítio onde eu
estava; a conversa que se travara entre eles afrouxava a cada instante, porque
os esforços que Eduardo fazia para a sustentar eram completamente infrutíferos,
por causa da sequidão das respostas de Camila.
"Acabaram de tomar o café, e Camila foi encostar-se à janela.
― "Está uma tarde tão bonita! ― disse Eduardo, não queres aproveitar este
lindo dia de inverno para ires ver os campos, que estão experimentando já os
mantos verdejantes com que hão de comparecer na festa anual da primavera?
― Está estragando comigo a sua poesia, respondeu Camila secamente, guarde-a
para as pessoas que quiser deslumbrar. Isso era bom quando me fazia a corte.
― "E não sou eu sempre o mesmo, Camila; deixaste tu um instante só de ser
a noiva gentil que eu adorei, que adoro, e que sempre hei de adorar? Não sou eu
sempre o namorado solicito dos primeiros tempos? Isso, a que se deu, por
convenção, o triste nome de prosa do casamento, teve nunca entrada nos nossos
corações?
― Ah! Ah! que diferença! O que me dizia então: "Oh! nunca me hei de
separar de ti! Hei de estar sempre ao teu lado! Que valor tem o mundo inteiro
junto do teu olhar?" E agora sai quando lhe parece, anda por fora o tempo
que quer, demora-se a conversar com os amigos; porque sua mulher, essa não
serve senão para estar num canto da casa, à espera que o senhor lhe
faça a esmola da sua presença. Não é porque eu me importe com isso! Eu, sim!
É-me completamente indiferente! Nunca estou melhor do que quando está
longe de mim! Olhe, disso pode estar certo! Se falei, foi porque me enraiveceu
a sua hipocrisia.
― "Quanto és injusta, Camila! Pois eu não desdenho tudo, tudo neste mundo
para estar junto de ti; não prefiro a todos os vãos divertimentos, a todos os
prazeres a nossa deliciosa intimidade? E, quando os meus negócios me chamam fora
de casa, não me afasto de ti tão penalizado, e não aproveito a primeira ocasião
de me desembaraçar deles para correr alegre, satisfeito, risonho, a abraçar-te,
a beijar-te, a testemunhar-te o imenso e inalterável afeto que te consagro?
― "Negócios! que grandes negócios que tem! Quais são eles? Talvez ir
visitar a baronesa!
"Eduardo levantou-se, olhou fixamente para sua mulher, e disse:
― "A baronesa! A baronesa, por quê?
― "Foi a primeira pessoa que me lembrou, tornou Camila, fazendo-se
ligeiramente corada.
― "Nada! Isso è um tanto inverossímil.
― "Inverossímil, por quê? ― tornou Camila, irritando-se e fazendo-se vermelha de despeito. Talvez imagine que eu tenho ciúmes
do senhor. Que vaidade tão louca! que presunção! Que fatuidade! Ora esta! como
logo supôs que eu era ciumenta!
― "Mas, filha...
― "Ciumenta e de quem? Ah! Ah! Ah! é de um ridículo incrível! Não querem ver
o formoso Richelieu, que anda semeando paixões por toda a parte! E julga talvez
que eu me importo com semelhante coisa! Namore à sua vontade! Faça o que quiser!
Esteja certo que nunca me há de dar cuidado! convença-se... entendeu? Convença-se
bem de que nunca tive ciúmes do senhor, porque eu nunca o amei. Foi uma predileção
passageira! Foi um capricho de que me arrependo!
― "Parece-me contudo, tornou Eduardo ferido no seu amor próprio, que a
união eterna de duas pessoas não é coisa tão ligeira que se possa decidir
levianamente, e, se não sentias por mim o amor imenso que eu te consagrava,
mais valia que me despedaçasses o coração, do que me dirigisses agora essas
palavras amargas.
― "Então chegou o momento! Sempre fica sabendo que se enganou; quando supôs
que eu tinha ciúmes da baronesa.
― "Mas foi coisa em que não falei, filha, bradou Eduardo um pouco
impacientado.
― "Bem o deu a entender! Não o disse, mas pensou-o. E então escolheu bem a
pessoa que me poderia tornar zelosa! A baronesa, uma tola presumida, uma coquete insuportável,
que não tem nem beleza, nem espírito, nem graça, nem elegância, mas que possui
em compensação uma vaidade imensa.
― "Pobre baronesa!
― "Defenda-a, ande! então porque a não defende? É o que lhe falta unicamente!
Ouse tomar, diante de sua esposa, o partido de uma mulher como é a baronesa.
― "Ih! Jesus! Camila! Eu não tomo a defesa de pessoa alguma. Mas tu falas
da pobre senhora, como se lhe tivesses um ódio mortal.
― "E tenho, bradou Camila, erguendo-se com os dentes cerrados e os olhos
fuzilantes, tenho ódio a essas mulheres de maneiras afetadas, de olhares
languidos, de vistas fascinadoras, deslumbrantes na aparência, grosseiras
na realidade, a quem os homens seguem tolamente, como as borboletas seguem a
luz, ainda que essa luz emane de uma candeia afumada. Quando ela ontem quis ver
a bolsa que eu fizera, tive tentações de a rasgar, para lhe poupar uma
profanação. E a propósito, onde a tens tu?
"Eduardo, ao ouvir esta pergunta, que parecia dever servir de transição
para uma conversação mais serena, começou-me a procurar alegremente por todas
as algibeiras. O acaso fora-me colocar muito mirrada na extremidade da secretária.
No remexer dos papéis eu tinha quase caído ao chão; felizmente ou infelizmente,
um ressalto da secretária tinha-me retido, e eu ali ficara suspensa por uma das
borlas, estando esta de mais a mais completamente oculta por um fragmento microscópico
de papel. Da posição em que eu estava, podia ver e ouvir tudo, sem que ninguém
me pudesse divisar.
"Quando Eduardo começou a revolver as algibeiras não pude deixar de me
rir. Era tão cômico o espanto dele, quando, depois de ter esquadrinhado
minuciosamente todos os cantos do seu fato, não encontrava coisa alguma, que
eu, ignorando ainda quais seriam as consequências daquela cena, ria-me a
fartar.
"Camila contemplava-o com um sorriso irônico, e batendo o compasso com o
pé no sobrado da sala.
― "Talvez lhe esquecesse lá por fora! ― disse ela, acentuando muito as
palavras.
― "É impossível; lembro-me perfeitamente de a ter nesta algibeira. Já
depois de estar em casa eu a vi, e até lhe peguei.
3― "Talvez a tivesse confiado a alguém! ― tornou Camila com o mesmo
sorriso estereotipado nos lábios.
― "A quem? ― perguntou Eduardo com a maior ingenuidade.
― "Eu sei! A alguém que a visse, que gostasse dela, e que a desejasse
conservar por algum tempo.
― "Ora essa! Não podes supor que eu fizesse tal!
― "E porque não? Os homens julgam que tudo lhes é permitido.
"Mas Eduardo não a ouvia. Tinha-se recordado das contas que fizera, e
tinha corrido a revolver os papéis que estavam em cima da secretária. Eu, que
via a má figura que o negócio ia tomando, não desgostei de que ele tomasse aquela
resolução.
"Contudo, debalde Eduardo deitou ao meio do chão toda a papelada com uma
impaciência febril, debalde tentou, depois de os ter reunidos, separá-los um a
um. Eu não aparecia; preza na minha esquininha, sem poder revelar por forma
alguma onde estava, assisti, espectadora muda mas não indiferente, àquela
caçada férvida, em que tanto interesse tinham em se encontrar a caça como o
caçador, mas que apesar disso ficava sem resultado. Vi os papéis, impelidos
pela mão de Eduardo, revolutearem nos ares em torno de mim, senti a sua mão
impaciente pousar em cima das minhas borlas, sem saber que estava a meia polegada
de distância da extremidade dos seus dedos o objeto que tanto procurava. E ele
bafejava-me com o hálito e não tinha um pressentimento que o advertisse,
desviava com a mão trêmula os papéis que me encobriam, e de nenhum deles saia
uma voz misteriosa que lhe dissesse: 35"Para conseguires esse tesouro,
que tu pagarias agora com dez anos da tua vida, basta-te abaixar a cabeça, e estender
a mão."
"Finalmente Eduardo, pálido, com a fronte inundada de suor, deixou-se cair
prostrado em cima de uma cadeira, e dirigindo-se a sua mulher, disse com voz
sumida:
― "Creio que a perdi.
"Camila não se pôde conter. As lágrimas, tanto tempo retidas, rebentaram
finalmente, e inundaram-lhe as faces.
― "Era isso que eu esperava havia muito tempo, bradou ela com voz
entrecortada. Eis a resposta com que não só pagam a minha dedicação, mas também
com que pretendem iludir a minha boa fé. Anda! trabalha com amor, com alegria,
despende nessa pobre bolsinha tesouros de afeto, sorri só ao pensares que essa
obra das tuas mãos vai ser a constante companheira daquele em que tu só pensas,
por quem tu só vives, cuja aparição te enche de prazer, cuja ausência te faz
ficar imensamente triste. Ai! quanto te iludes, pobre louca, esse teu mimo há de
ser desprezado, porque tu tens esse título malfadado de esposa, e o amor
conjugal é uma coisa altamente ridícula. Aceitam com desdém o teu presente, e
vão depressa oferecê-lo à primeira namoradeira que prender, nas suas redes
vulgares, a ave fugida do ninho da família, ninho cuja prisão lhe é insuportável.
Devia ser esta a minha sorte. Ninguém se exime a ela.
― "Ih! Jesus! Ih! Jesus! ― dizia o pobre Eduardo com as mãos na cabeça;
mas, filha... eu sou um estouvado... a bolsa há de estar por aí... Da
nefanda traição de que me acusas é que sou completamente incapaz.
― "Traição! ― tornava Camila procurando, sem o conseguir, conter o pranto;
pode-me trair à sua vontade que me é completamente indiferente. Engana-se se
julga que eu dê o menor apreço à sua fidelidade.
― "Mas nesse caso por quê?
― "Cale-se! Diga-me: zombaram bastante de mim? Riram-se das minhas criancices?
Quantas caricias lhe valeu esse sacrifício tão pouco custoso?
― "Isto é demais! Juro-te...
― "Cale-se. Quanto mais jura mais mente. Também me jurou amor eterno, e...
"E a pobre senhora desatou a soluçar, e caiu sentada numa cadeira.
Eduardo, com as lágrimas nos olhos, ajoelhou aos pés dela, e exclamou com voz
comovida:
― "Camila, não chores que me despedaças o coração. Sou um grande
criminoso, mas não mereço castigo tão cruel. Bem sabes que o amor que te
consagro é imenso, é exclusivo, e que, desde que te conheço, nunca mais ergui
os olhos para outra mulher. Camila...
"Mas esta levantou-se enxugando as lágrimas, e disse-lhe com modo
friamente desdenhoso:
― "Aproveite a inspiração para algum arrufo que tiver com a baronesa.
"E saiu da sala, deixando ficar o pobre Eduardo com um joelho no chão, as
mãos erguidas, a boca aberta, espantado, aterrado, paralisado, petrificado,
estupefato!
"Finalmente levantou-se, dirigiu-se de novo à secretária, e procurou
entre os papéis. Com o revolver caíram alguns, e eu caí de envolta com eles; o
acaso fez-me ainda ficar tão mirrada entre duas folhas, que, quando Eduardo veio
procurar ao chão, escapei com grande desespero meu às suas pesquisas. Um tal acesso
de desespero se apoderou do meu dono, que, pegando num grande molho de papéis,
no meio dos quais ia eu, sem ele o saber, amachucou-o, e depois enraivecido,
atirou-o pela janela fora. O vento desfez o molho, e neste instante ouvi dois
gritos, um de Eduardo, outro de Camila, que estava numa outra janela por traz
dos vidros.
"O vento forte que soprava, tinha-me separado dos papéis, meus involuntários
carcereiros, eu caía majestosamente isolada, à vista dos dois cônjuges, sobre
as pedras da rua.
VIII
"Nunca vim a saber o que se passara na casa, d'onde fora tão bruscamente e
tão involuntariamente expulsa! Apenas eu caíra no chão, um gaiato de pé
descalço, que passava por acaso, abaixou-se, apanhou-me, e largou a correr,
apertando-me nas mãos, com uma tal velocidade, que, por mais ligeiro que fosse
Eduardo em me vir apanhar, logo percebi que não havia esperança alguma de que o
conseguisse.
"A corrida era desenfreada. Apertada na mão calosa do garoto, eu,
habituada ao fino contacto das mãos aristocráticas, que até aí me tinham
manuseado, sentia dores atrozes, e uma profunda humilhação. Eu, a favorita dos
opulentos, tratada assim tão irreverenciosamente por um rapaz pertencente
à escoria da sociedade! Ao meu passado de gavetas de secretárias, de sofás, de divãs,
de tapetes, ia suceder um futuro de palheiro, de calças esfarrapadas, de
degraus úmidos de escadarias. As feridas abertas na minha pele, tão
cuidadosamente curadas e cicatrizadas pela minha senhora, iam agora ser
abandonadas, e talvez alargadas pelos dedos travessos do rapaz da rua. Tudo
isto ia eu pensando, enquanto o meu roubador corria a bom correr, primeiramente
pelas ruas da cidade, e depois já pelo campo.
"Ninguém se tinha importado com ele. Um rapaz descalço à desfilada, não é
um caso tão grave, e tão raro, que os encarregados da policia descessem da sua
dignidade, para inquirirem o que motivara a carreira despedida em que ele ia.
"Chegou ao pé de uma fonte, e, pensando provavelmente que já estava fora
do alcance dos seus perseguidores, entendeu que podia descansar. Por
conseguinte estirou-se em cima da relva, e tirando da algibeira um lenço muito
esfarrapado, começou a limpar o suor que lhe escorria pelas faces.
"Estávamos já nos primeiros dias da primavera, e os campos revestiam-se de
um manto verdejante, que os malmequeres e as boninas esmaltavam. A água da
fonte corria com um doce murmúrio, e miríades de insetos com as asinhas douradas
pelo sol, esvoaçavam zumbindo pelo prado. O sopro, misteriosamente vivificador
da primavera, percorria a criação.
"O meu novo possuidor deitara-se, como já disse, em cima da relva, e colocara-me
ao seu lado. Para mim tudo quanto me rodeava era completamente novo. Eu nunca
tinha saído da cidade, e o aspeto dos campos enchia-me de prazer. Parecia-me
que respirava um outro ambiente, que via um céu mais largo, mais azul! Um enxame
de novas sensações se agitava dentro de mim.
"Assim estava eu boquiaberta, olhando para tudo com uma alegre
curiosidade. As fêveras da erva que se agitavam em torno, metiam as suas
cabecinhas também curiosas pelos interstícios da seda, afim de observarem que
monstro desconhecido eu era. As boninas coquetes como todas as
flores, mostravam-me com desvanecimento a sua formosura, para verem se delas me
enamorava. Era a tentação que todas as formosas sentem, de fascinar os
estrangeiros. Os dois provérbios: "Ninguém é profeta na sua terra" "Santos
de casa não fazem milagres", são, neste caso, da mais escrupulosa exatidão.
As abelhas, que vem de fora, extraem mais depressa a essência das flores, do
que as que pertencem à colmeia do jardim.
"Eu sentia correr um indizível murmúrio pelo prado. O vento, acamando a
relva e as florinhas, perguntava-lhes, no seu dialeto incompreensível, que vós
não entendeis, mas que para todas nós é claríssimo, quem era a recém-chegada. E
os bichinhos pequeninos que arfavam debaixo de mim, respondiam que era o Himalaia,
e os insetos zumbidores respondiam que era uma grande flor verde com estames de
ouro.
"O que é certo é que eu consubstanciava-me de todo com a relva que me
cercava. Igualmente verde, não transtornava em nada a unidade do tapete, e as
minhas borlas de ouro matizavam-no agradavelmente.
"Assim estava naquele dolce farniente, e confesso que,
apesar de me lembrar de vez em quando dos donos que me eram tão afeiçoados, e de quem me tinha separado,
as saudades que sentia eram atenuadas pelo prazer completamente novo que me
embriagava.
"Mas aquele ócio não podia durar sempre. O Títiro, que me apanhara, não
estava muito disposto a repousar sub tegmine fagi, mais do que
convinha à sua índole vagabunda, e depois de ter saboreado, por espaço de dez
minutos, quando muito, as delícias da posição horizontal sucedendo à rapidez da
corrida, levantou-se, dirigiu-se à fonte, encheu de água a palma da mão,
disposta para esse fim, levou-a à boca, bebeu, repetiu duas ou três vezes esta
operação, e depois, dirigindo-se a mim, levantou me do chão, e foi-me levando
sossegadamente pelos campos fora.
"É tempo agora de descrever o meu novo dono. Era um rapazito dos seus
quatorze anos, de rosto alegre e queimado, com uns olhos negros muito vivos e
rasgados, uma boca grande, que parecia estar sempre preparada para as
gargalhadas. Todo o seu fato consistia numas calças rotas, numa camisa muito
suja, e numa jaqueta tão arremendada, que era um verdadeiro mosaico, porque
creio que tinha todas as cores do espectro solar, e todas as combinações que
com elas se podem fazer. Um boné, que estava rodeado por uma densa armadura de
sebo, ocupava o alto da cabeça; porque julgo não haver exemplo de ter sido colocado
na posição habitual, e a testa do garoto, se lhe dissessem que este possuía um
boné, estou que ficaria sumamente espantada.
"E lá ia ele por aí fora, balouçando o corpo a compasso de uma cantiga,
devida ao seu gênio musical, distraindo-se no caminho a apanhar
borboletas, a atirar pedras aos cães, fugindo depois a bom fugir quando estes o
perseguiam ladrando, trepando acima das árvores da estrada a espreitar se já
haveria ninhos entre os seus ramos, cobertos de novas folhas, e saltando os
muros dos pomares, para se ir empoleirar nas laranjeiras, trincando as laranjas
verdes ou maduras, que se lhe deparavam.
"Devo confessar que a minha situação durante estas excursões, motivadas
pelos entretenimentos do meu dono, não eram das mais invejáveis, e que
bastantes vezes amarguei o gosto que sentira, respirando o ar dos campos. Com efeito
o gaiato atendia mais aos seus prazeres do que às minhas comodidades, e nem posso
descrever os sustos que curti, quando os cães corriam atrás de nós, e que eu
via os seus dentes agudos, que seriam capazes de me despedaçar num segundo; a
triste impressão que eu sentia, vendo as borboletas tão gentis, tão
galantinhas, nas garras do seu caçador cruel; as dores que me faziam os
esgalhos das árvores, rasgando me sem piedade, enquanto ele subia descuidoso, indiferente, afastando a ramaria, para ver se, nalguma verdejante alcova,
não teria ido a carinhosa mãe dos passarinhos depor o berço gentil, que as
auras embalariam.
"Sobre tudo o que me atormentava era o costume que ele tinha de saltar os
muros dos pomares para se ir sentar nas laranjeiras, a fartar-se desses pomos
que a antiguidade chamou áureos por serem vermelhos, e que o seu Camões
asseverou terem
A cor que tinha Dafne nos cabelos;
o que é pouco lisonjeiro para a beleza dessa ninfa,
que vinha a ser hiper-ruiva, se acreditarmos as asserções do cantor dos Lusíadas.
Neste ponto tornei eu a interromper a bolsa tão prodiga em reflexões.
― O espanto, em que me coloca a sua erudição, impede-me de repreender
energicamente o tom com que fala nessa gloria nacional. Mas diga-me, quem a fez
tão instruída?
― Não antecipemos os acontecimentos, como diria o visconde d'Arlincourt,
respondeu-me a bolsa.
― O quê? Pois também leu ou ouviu os romances do visconde d'Arlincourt?
― Então! meu amigo, tornou-me a narradora, suspirando, nem tudo são rosas na instrução.
― Bem, continue.
"Como já disse, esse costume do meu dono incomodava-me sobremaneira;
porque a escalada tinha para mim todos os seus inconvenientes, e muitos mais,
sem ter nenhuma das suas vantagens. Em primeiro lugar a subida pelo muro era sumamente
incomoda; porque o bom do meu amigo, tendo todas as algibeiras rotas, e, por
conseguinte, não me podendo confiar a nenhum desses tonéis das Danaides, de que
as suas calças e a sua jaqueta estavam tão amplamente providas, levava-me na
mão, apertava-me sem cerimônia de encontro ao muro, e esmagava-me, torturando
ao mesmo tempo uma pobre meia coroa que eu tinha dentro de mim, e que eu
sentia, de aflita, resmungar no meu seio.
"Depois, quando, à força de trabalhos e de arranhões, chegávamos ao cimo
do muro, novos desastres nos esperavam. Garrafas partidas formavam uma
espécie de negra paliçada, dispostas daquela maneira para enterrar os seus
dentes agudíssimos nos aventureiros que intentassem a conquista. Mas o meu
dono, que era, segundo parece, já pratico naqueles assédios, tinha tomado as
suas precauções, e foi então que eu vi que não era só a questão das algibeiras
que o inibia de me resguardar, mas sim também uma questão de defesa própria.
Eu, malfadada, servia-lhe de escudo! Eu era, para assim dizer, o cesto,
à sombra do qual o garoto jogava o murro com as paredes. Numa das mãos ia eu,
na outra o lenço de assoar muito embrulhado. A mão que eu protegia, era ainda
assim a que estava resguardada melhor; porque o tal lenço, para falarmos
verdade, parecia a moldura de um quadro ausente; um imenso rasgão formado por
uma multidão de rasgõezinhos que se tinham anexado, ocupava o centro-rodeado em
toda a extensão por uma pobre tira. Creio que a história dessa transformação se
pode explicar geograficamente. Imagine que o lenço ao princípio se assemelhava
com aquele território da América do Norte, onde existe o lago Ontário, cercado
de muitos outros. Suponha que um grande cataclismo rasgava os terrenos que
separam esses lagos, e que as águas trasbordando, e unindo-se, formavam um
verdadeiro mar no gênero do mar Cáspio. Aí tem o que sucedeu com os rasgões do
lenço do garoto.
― Vossa excelência permite-me, interrompi eu, que a proponha para sócia do
Instituto Geográfico de Paris?
― Muito obrigada! Não estou agora decente para entrar numa academia.
― Pelo contrario, minha senhora, tornei eu, as bolsas vazias devem ser da
mesma forma que as cabeças, as que mais depressa sejam admitidas nessas
sociedades sábias. Pode continuar.
"Não findavam aqui os meus sofrimentos. Experimentava alguns rasgões, mas
consolava-me com o pensamento de que o meu sacrifício era útil às mãos do meu
dono, por quem eu professava uma secreta e inexplicável simpatia. É verdade que
o demônico do rapaz parecia não se afligir muito com as arranhadelas que
recebia. A mão esquerda, confiada à proteção nominal do lenço de assoar,
chegava toda em sangue, e isso, em vez de lhe diminuir a alegria, parecia
aumentar-lha e dar melhor sabor às laranjas com que se fartava.
"Aí se empoleirava ele, por conseguinte, sentando-se no ponto de união de
dois ramos, toucado de folhas, balouçando os pés no ar, e enviando as mãos em
toda a direção, a fazerem uma atrevida razzia aos tais pomos de ouro
do antigo jardim das Hespérides. E quer as laranjas estivessem ainda verdes, e
por conseguinte amarelas (nesse caso tem razão Camões e a antiguidade), quer
estivessem já em pleno sazonar, e por conseguinte trajassem a púrpura que
merecem, como rainhas que são de todas as frutas, o meu bom gaiato apanhava-as
sempre com uma imparcialidade digna de especial menção, e, ministro justiceiro
dos negócios do seu estômago, escolhia para funcionários todos os frutos, sem
distinção de cores.
"Era um belo espetáculo o desse rapazito roto, esfarrapado, mais feliz no
seu trono de cortiça do que os reis no seu trono de ouro, comendo as laranjas
do próximo com mais satisfação, de certo, do que a que sente o czar da Rússia
ao devorar o produto dos roubos de que é vítima a infeliz Polônia.
"Mas por fim de contas vinha a ser eu quem sofria as más consequências dos
prazeres do meu senhor. Para poder comer à sua vontade, o meu amigo largava-me
e pendurava-me no primeiro ramo que lhe ficava à mão. O vento balouçava o ramo;
às vezes um gatinho, que andava passeando por cima dos muros, vendo-me ondular
na extremidade, saltava e principiava a brincar comigo. A isto reunia-se o
susto de me ver numa altura para mim desmesurada. Era necessário que os latidos
de um cão de guarda viessem inquietar o meu dono, para que ele se lembrasse de
me tirar da minha incomoda posição, afim de operar a sua retirada.
Já vê, por conseguinte, que a minha existência aventurosa, se tinha as suas
vantagens, tinha também os seus inconvenientes.
IX
"O meu possuidor reconhecera, desde o primeiro momento, que eu não estava
vazia, mas ainda se não dera ao trabalho de verificar a quanto montava a sua
nova riqueza. Finalmente, depois de estar saciado de laranjas, cansado de
trepar às árvores, entendeu que era já tempo de atender aos negócios do tesouro.
Sentou-se por conseguinte numa pedra da estrada, abriu-me com toda a gravidade,
e tirou de dentro triunfalmente a moeda de cinco tostões.
― "Olá! um caiado! ― bradou ele com alegria, e para demonstrar
melhor o seu regozijo entoou a ária da Saloia, e atirou comigo ao ar a
uma distância imensa, com grande desespero meu, porque vim assustadíssima,
aos trambolhões pelo espaço, cair na mão aberta do garoto.
"Este não ficou em contemplação diante do seu tesouro; meteu o outra vez
no sítio em que estava, levantou-se, e continuou o seu caminho, cantando com
uma voz de Stentor, atirando comigo ao ar, e tomando, para me receber, atitudes
de tambor-mor.
"A estrada, que se ia aproximando da cidade, ia sendo também mais
frequentada. Os caminhantes multiplicavam-se, e as casas começavam a aparecer.
Nem por isso o gaiato deixou de cantar a Saloia a plenos
pulmões, com grande escândalo das velhas sentadas nos degraus das portas, que
acompanhavam cada estrofe da ária popular com um desafinadíssimo coro de
imprecações.
― "Valdevinos! ― Brejeiro! ― Gaiato sem emenda! ― D'onde vens tu, maroto?
― Ah! boa sova! ― Fosse eu tua mãe que te havia de moer o corpo com pancadas! ―
Só se perdiam as que caíssem no chão! ― D'onde vens tu, desavergonhado, vens de
roubar laranjas? ― Tu vais direitinho para o inferno! ― Berzabum te
valha, demo pequeno! ― O descarado vem a cantar para quebrar a cabeça às almas cristãs!
― Quem te pusesse uma farda às costas!
"E outras amabilidades de igual jaez, a que ele só respondia, grave e
serenamente, com esta invariável apostrofe:
― "Eh! bruxas!
"Quis o acaso que passasse ao nosso lado um sujeito gordo, com umas barbas
de fariseu, uns olhos esgazeados e orlados de vermelho, uma destas fisionomias baixamente
orgulhosas, onde se lê ao mesmo tempo o servilismo para com os poderosos, o
desabrimento para com os humildes. Desbarretava-se até ao chão quando passava
alguma carruagem, onde ia pessoa conhecida dele, e correspondia ligeiramente à saudação
dos pobres trabalhadores, que levantavam o chapéu, com aquele ar gravemente
cortês dos homens do campo, para lhe dizerem:
― "Guarde-o Deus, senhor Domingos Gil.
"Para o meu gaiato, vê-lo, e conceber a ideia de lhe fazer alguma, foi ato
simultâneo. Com um sorriso malicioso nos lábios enrolou-me na mão muito bem
enrolada, de sorte que só ficasse de fora o sítio onde estavam os cinco
tostões, e aproximando-se, pé ante pé, do empavesado passeante, ergueu a mão,
vibrou-me com toda a força, e fez-me desabar, indo a meia coroa de esquina, na
copa do chapéu do gorducho.
"A gebada foi magistral; o chapéu enterrou-se até aos
olhos; e enquanto o dono dele, espumante de raiva, procurava desembaraçar a
cara daquele inesperado invólucro, o rapaz pôs-se fora do seu alcance, e, já lá
muito ao longe, ouviu as exclamações furiosas da sua vítima, que ameaçava prendê-lo,
matá-lo, enforcá-lo, esquartejá-lo.
"O homem ficara desesperado. Pois não tinha razão; o seu chapéu, como
sempre, tinha-se curvado ao dinheiro.
X
"Livre de perigo, o meu dono, refletindo no caso, houve por bem rir-se às gargalhadas
do que praticara. Com efeito merecia a pena. Eu, apesar de ter padecido,
não desgostei da correção.
"Depois de se rir à vontade, entendeu o autor da gebada que
não poderia ser completa a sua satisfação se não visse a cara do paciente
depois do castigo. Refletiu como poderia conseguir vê-lo sem ser visto, e como
afim de refletir melhor, quando olhava para o céu a procurar inspiração, deu
com a vista numa árvore que se erguia mesmo ao seu lado. Vê-la, e trepar a ela,
foi uma e a mesma coisa. O mirante era ótimo, bem arejado, completamente
resguardado da curiosidade dos profanos, proporcionando ao seu habitador provisório
um delicioso panorama para se entreter enquanto não passasse aquele a quem
esperava. Atendendo, pois, ao merecimento e mais partes que concorriam na
pessoa da dita árvore, estabelecemo-nos nela sem cerimônia, eu numa caminha de
folhas, ele encostado a uma espécie de janela verdejante, d'onde via otimamente
tudo quanto se passava na rua.
"Assim, todo escondido, de joelhos, com a sua fisionomia curiosa e
maliciosa à espreita por entre os ramos, parecia um macaquinho ágil, que espera
ocasião propícia para apanhar um fruto que lhe fica distante.
"Por baixo de nós um pobre velho, pálido,
magro, macilento, mostrando no rosto a timidez envergonhada daqueles que um sofrer
verdadeiro obriga a pedir esmola, estendia o chapéu a quem passava. Lagrimas silenciosas
lhe deslizavam nas faces encovadas: o selo da desventura estava gravado na sua
fronte lívida. Os cabelos brancos, que o vento agitava, cingiam aquele infortúnio
de uma aureola de majestade. Era augusta aquela miséria!
49"Contudo, nenhum dos que passavam deixava cair uma pobre moeda de cobre
naquele chapéu suplicante, que se lhes estendia. Uns seguiam desdenhosos o seu
caminho, sem responderem sequer com um gesto à muda rogativa do mendigo!
Outros, um pouco mais humanos, faziam distraidamente um gesto negativo, levando
ao mesmo tempo a mão ao chapéu. Outros, mais caritativos ainda, murmuravam "Tenha
paciência" ou "Não levo troco", e todos diziam, lá de si para
si, a frase conhecida: "Este maroto provavelmente tem mais dinheiro do que
eu. Desavergonhado! Abusarem assim da caridade publica! Os que mendigam não são
os que precisam; nas águas-furtadas é que se aninha a verdadeira pobreza."
"Ah! miseráveis! que fingis pensar que é um oficio divertido o expor-se um
velho, alquebrado de forças, ao sol, ao vento, à chuva, às humilhações, ao
desprezo, para fazer uma pobre colheita de dez ou doze moedas de cinco réis, e
às vezes de nenhuma! E a chuva a inundar os membros mal resguardados do pobre pai
de famílias! E o sol a abrasá-lo! E a imagem dos seus filhinhos, lívidos e
esfomeados, a despertar-se-lhe na imaginação, e a redobrar-lhe as amarguras!
"Porque vós não sabeis, ou antes fingis não saber, vós que julgais que
esse homem vem pedir esmola para se ir embebedar na taverna próxima, não sabeis
que há nalgum canto obscuro e doentio da cidade uma família de espectros, que
espera ansiosamente a volta daquele a quem despedis com as mãos vazias! Não
sabeis, vós que acusais de falta de resignação, de falta de animo, o pedinte
que vos exora com as lágrimas nos olhos, não sabeis que lhe foi necessário mil
vezes mais valor para se embrulhar na pobre capinha, sair furtivamente do
misero alojamento, e ir colocar-se, espectro da miséria, às portas da opulência,
do que lhe seria preciso para se despenhar da janela da sua água-furtada e
despedaçar a cabeça nas lajes da rua!
"Continuemos.
"Todos passavam, como já disse, e ninguém dava sequer ao pobre velho a
esmola de um olhar de compaixão. O meu gaiato mirava-o de vez em quando.
"Passou finalmente o Sr. Domingos Gil. O pobre velho estendeu-lhe o chapéu,
murmurando mansinho:
― "Uma esmola por amor de Deus. Meus filhos morrem de fome.
"O Sr. Domingos Gil vinha, como facilmente imaginará, de muito mau humor.
Trazia a gebada, para assim dizer, atravessada na garganta. As sobrancelhas
franzidas, o olhar fuzilante, a cara fula de raiva, denunciavam o rancor que o
consumia. O chapéu, ainda um pouco amolgado, também mostrava ressentir uma
nobre indignação.
"A voz do mendigo como que abriu no Sr. Gil uma válvula de segurança, por
onde pode sair uma porção de cólera, que, mais tempo contida, o faria rebentar.
Evitou-se desta forma uma grave perda para a humanidade.
"O Sr. Gil desabafou, bradando, ao passo que desviava bruscamente o chapéu
do pobre velho:
― "Súcia de mandriões! Estão estes marotos à esquina de todas as ruas,
para nos roubarem o dinheiro que nos custa a ganhar com o suor do nosso rosto!
Você não tem vergonha de pedir esmola? Vá trabalhar, ou meta-se no hospital se
está doente, ou vá para o asilo! Está o governo a pagar um bom par de
contos de réis ali em Santo Antonio dos Capuchos, e pessoas ricas a deixarem
quantias avultadas, que bem tolo é quem cai em tal, não há de ser nunca o meu
dinheiro que eles hão de apanhar; mas está ali aquele estabelecimento pronto a
receber todo o fiel patife que não tem eira nem beira, para que? Para andarem
estes velhacos a incomodar-nos. Fosse eu da câmara municipal! Rede para os
cães, rede para os mendigos. Vá para o demônio! Não lhe dou nem cinco réis!
Canalha!
"E o digno homem continuou majestosamente o seu caminho.
"Uma lágrima caiu das pálpebras abrasadas do velho! Fez um gesto de
resignação, e deixou pender a cabeça sobre o peito.
"E a noite estendia já sobre a terra o seu manto negro. A noite com o seu
duplo cortejo de alegrias, de festas, de prazeres, de suspiros enamorados, e de
tristezas, de crimes, de horrores, de soluços da miséria! A noite, fada misteriosa,
e negra feiticeira! A noite que se deixa iluminar pelo lustre dos salões, e
pela candeia das águas-furtadas, mas felizmente também e em toda a parte pelo
fulgor das estrelas, que é o olhar de Deus.
"E o velho cismava tristemente. Não tivera resultado o sacrifício! Nem um
pedaço de pão podia levar aos filhos esfaimados! Tristeza! A brisa soprava
asperamente, e ele não a sentia! As lanternas das carruagens que passavam
pareciam olhar para ele ironicamente, mas as estrelas, essas miravam-no
tristemente.
"E o velho cismava! A pobre água-furtada, onde vivia,
representava-se-lhe na imaginação! Via a filha doente, ela que à força de
trabalho sustentava os irmãos, os pobres inocentes, que pediam de comer! E ele,
o triste velho, ia-lhes aparecer sombrio, para lhes dizer: "Morrei, não
tenho que vos dar!"
"Então pareceu-me ver na fronte do garoto surgir uma estranha aurora! Imóvel
na árvore, contemplava o pobre velho, e a sua fisionomia maliciosa tornava-se
pensativa! Eu tinha-o ouvido durante o caminho fazer mil projetos para o
emprego dos cinco tostões, comprar bolos, ir ao teatro, alugar um burro, mil extravagâncias
que ele acariciava com o amor de criança! Naquele momento não trocaria os cinco
tostões por um império!
"Depois de contemplar por um instante o velho, estendeu a mão para mim,
tirou-me do ramo, e deixou-me cair no chapéu do mendigo.
"E depois de ter gozado por um instante da estupefação do pobre homem,
deixou-se escorregar da árvore, e escapou-se sorrateiramente.
"O garoto desaparecera; mas quem olhasse bem podia ver alvejarem
vagamente, na escuridão noturna, as asas luminosas do anjo da caridade.
XI
"Quando me achei no chapéu, e depois na mão do pobre velho, a primeira sensação
foi a da alegria, a do desvanecimento. Parecia-me que eu também participara da
boa ação do rapaz, e que me competia uma parte dos agradecimentos que lhe eram
devidos. O que e "Quando me achei no chapéu, e depois na mão do pobre
velho, a primeira sensação foi a da alegria, a do desvanecimento. Parecia-me
que eu também participara da boa ação do rapaz, e que me competia uma parte dos
agradecimentos que lhe eram devidos. O que estava longe de esperar, é que
seria eu quem os receberia a todos.
"Com efeito o pobre velho, depois de olhar muito tempo em torno de si,
depois de mirar bem a árvore, cujos ramos se estendiam sobre a sua cabeça,
concluiu por atribuir ingenuamente a um milagre da Providência o beneficio que
recebera; e, depois de ter refletido bastante tempo, convenceu-se deveras de
que a bolsa lhe caíra do céu, e tão arraigada conservou esta convicção, que ninguém
seria capaz de lha arrancar. Venerável candidez de crenças! Não se importou
com o pensamento de que não valia a pena fazer um milagre para
dar cinco tostões, e que, ainda que o céu estivesse inclinado a economias, não
era natural que a Providência tomasse a precaução de colocar a sua esmola
dentro de uma bolsa de seda verde.
"A tudo isso responderia ele que a menos que a bolsa não se formasse no
ar, e caísse por si mesma, ou que existissem atualmente árvores com esse fruto,
esse dinheiro não podia vir senão do céu. E vinha com efeito.
"Por conseguinte o bom do velho, passando do imenso desalento à imensa
alegria, ajoelhou, beijou-me fervorosamente, depois levantou-se, e correu com
uma ligeireza de rapaz a fazer as compras necessárias à sua pobre família.
"Foi então que eu me pude convencer de que não eram a mim que se dirigiam,
no tempo da minha prosperidade, os cumprimentos que tanto me enchiam de
orgulho, mas sim e unicamente à opulência que eu representava. Foi essa uma
desilusão fatal, e que me causou uma tristeza pungente! Ah! meu amigo,
bastará esse dia para eu conhecer o egoísmo dos homens. Desde o instante
em que eu saíra da casa em que nascera, no curto espaço de duas ou três horas,
que de amargas lições, que de tristes ensinamentos!
"Nas casas em que entrava com o meu pobre possuidor, ninguém olhava para
mim, assim como ninguém olhava para ele. Numa loja de capelista onde o velhinho
foi comprar agulhas, o instrumento de trabalho de sua filha, a frágil armazinha
com que ela combatia intrepidamente o demônio da miséria, estavam umas senhoras
arrastando sedas, e resplendendo em joias. Estavam comprando não sei o quê, mas
fosse qual fosse a compra, elas demoravam-se imenso, porque desejavam escolher
à vontade, e obrigavam a dona da loja, que satisfazia as suas exigências com
toda a complacência, a revolver todas as caixas, a mexer em todas as gavetas, a
abrir todos os armários.
"O bom do meu velhinho, impaciente como estava, para levar de comer à sua
pobre família, depois de esperar um pedaço, não pôde deixar de dizer, colocando-me timidamente em cima do balcão:
― "Se a Sra. Inácia me pudesse aviar num instantinho...
"A capelista, interiormente enfurecida pelas maçadas que lhe estavam dando
as suas opulentas freguesas, voltou-se, e empurrando-me bruscamente, tão
bruscamente que caí no meio do chão, bradou com uma voz desesperada:
― "Espere, não tenha pressa, guarde o seu dinheiro. Não vê que estou a
servir estas senhoras?
"O meu pobre dono calou-se, e apanhou-me sem murmurar sequer. O que havia
ele de fazer? A capelista fiava lhe os utensílios necessários a sua filha,
em ocasiões de apuro, e até às vezes, porque no fundo a tia Inácia tinha um bom
coração, lhe emprestava os seus vinténs.
"Eu é que não admiti circunstância atenuante possível para o ultraje que
recebera. Nessa manhã mesma eu fora tratada tão amavelmente numa loja de capelista
com estanco, onde Eduardo entrara a comprar charutos, que não percebia qual fosse
o motivo da súbita diferença.
"Já vê que as lições ainda não tinham aproveitado.
"Nesse ponto foi que eu principiei a avaliar as amarguras da minha nova
posição. Felizmente, a cena que se lhe seguiu veio adoçá-las um pouco.
XII
"Tremulo de alegria, subiu o velho os íngremes degraus de uma escada
tortuosa e escura, que conduzia à água-furtada onde habitava. Quando chegou ao último
patamar parou para respirar. O coração batia-lhe com alegria. Pensara tanto em
subir aquela escada lentamente, como um homem que leva sobre os seus ombros o
peso enorme do infortúnio; pensara tanto no sofrimento que o havia de dilacerar
quando chegasse com o desespero na alma ao mesmo sítio onde parara ébrio de
alegria; pensara tanto no triste espetáculo que se lhe havia de deparar, no
desgosto profundo que havia de sentir; pensara tanto em tudo isso, que chegara quase
a costumar-se a essa ideia, e que a felicidade encontra-o armado para a
desgraça e desprevenido para a ventura.
"Finalmente entrou.
"Que espetáculo tão novo para mim foi esse que eu divisei! Das trevas, que
envolviam a casa, saiam gemidos abafados, soluços horrendos, murmúrio
dilacerante, reflexo pavoroso do sussurro dos condenados do inferno acumulados
na tenebrosa geena que Dante visitou. O meu dono, depois de
abrir a porta, ficou um instante parado, e involuntariamente as lágrimas
inundaram-lhe as faces, parando nos lábios, que sorriam com um sorriso de
consolação.
"Quando o meu olhar se costumou às trevas, pude então ver no fundo do
quarto, e deitadas em cima de uma pobre enxerga, duas crianças de nove para dez
anos, pálidas, magras, com os seus corpinhos quase nus, tremendo de frio naquele
recinto úmido. Choravam, e choravam de fome! Mais ao fundo, num pobre catre,
que era ainda assim o único traste da casa, jazia a filha mais velha, rapariga
dos seus vinte e tantos anos, a quem o sofrimento arrancava gemidos. Uma pobre
coberta esfarrapada mal a resguardava. E contudo, a pobre rapariga estava com
uma febre violentíssima; o delírio apoderara-se dela. Murmurava frases incoerentes,
gemia, soluçava. E as trevas, a escuridão atroz a sufocá-la! E lá ao fundo, na
sombra, a fulgirem sinistramente as garras do demônio lívido da fome!
"Uma toada de musicas alegres entrava pelo quarto. No primeiro andar havia
baile. A dois passos do risonho turbilhão das valsas o horrido vendaval do infortúnio!
"Ó destino!
"O velho, silencioso, acendeu uma vela. Depois pôz na chaminé a lenha que
trouxera, e acendeu o lume. Espalhou-se no quarto um doce calor.
"Os pequenos tinham-se levantado na cama, estupefatos!
"Depois, sempre silencioso, pegou num braçado de couves, migou-as, tirou
um pão, fê-lo em sopas, deitou tudo dentro de um pobre tachinho de barro, e pô-lo
ao lume. Os pequenos tinham-se aproximado dele.
"O velho voltou-se. A sua cabeça, coroada de cãs, inclinou-se meigamente
para as loiras cabecinhas que o rodeavam.
"E, vendo-os trêmulos, mal se podendo suster em pé, abraçando-lhe os
joelhos, as lágrimas saltaram-lhe de novo dos olhos, a voz embargou-se-lhe na
garganta, e só pôde dizer:
― "Meus filhos!
― "Pão! ― foi a resposta das crianças.
― "Sim, meus filhos, esperem, esperem um instante. Haveis de cear, haveis
de cear, meus pobres pequeninos, e haveis de dormir depois o sono de inocentes,
que a fome repele há tanto tempo de cima das vossas gentis cabecinhas! Deixai-me,
deixai-me ir tratar de vossa irmã, da minha querida filha, que tanto sofre por
nossa causa.
"E o velho aproximou-se da pobre doente, que olhava para ele com uns olhos
desvairados, coou-lhe por entre os dentes um calmante, que comprara numa
botica, porque o pobre do homem gastara até aos últimos cinco réis, e contudo
quantas coisas de primeira necessidade tinham ficado ainda por comprar!
"O calmante produziu um bom efeito. Ao delírio sucedeu a prostração, e a
costureira adormeceu com um sono pacifico e reparador.
"Então o resto da família agrupou-se em torno da enxerga, mesa
improvisada, para onde foi trazido em triunfo o tacho das couves. Os pequenos
lançaram-se sofregamente à comida, e em poucos minutos desapareceram as couves
e as sopas, sem omissão de um talo, sem esquecer uma migalha.
"O velho mal tinha bebido um golo de caldo. Embevecido na contemplação de
seus filhos satisfeitos, nem pensara na sua própria fome. De vez em quando
levantava ao céu os olhos arrasados de água, e murmurava palavras incompreensíveis.
É essa a oração que a Deus mais agrada; porque é a efusão sincera, e livre de
preceitos, de um coração que trasborda de reconhecimento.
"Quando terminou a ceia frugal, o bom do velho chamou as crianças para
junto de si, e fazendo-as ajoelhar, e unindo-lhes as tenras mãozinhas,
disse-lhes com voz grave:
― "Meus filhos, agora que por uma esmola divina saciaram a fome, é justo
que se não esqueçam daquele que se amerceou de vós. Vinde, e repeti comigo:
― "Pai do céu, Vós que, apesar da vossa onipotência, vos não esqueceis dos
vossos filhinhos, que destes pão a quem tinha fome, e consolações a quem estava
aflito! Vós que, por um milagre da vossa infinita bondade, nos salvastes da
morte, e a nosso pai do desespero! Vós que sois todo misericórdia, tende
compaixão de nossa pobre irmã! E vós, nossa mãe querida, que sois agora uma
santa no céu, rogai também 59a Deus que dê saúde a quem é o nosso amparo!
Nós vos damos graças, Deus todo-poderoso, e prometemos sempre ser dignos da
vossa afeição, e conservarmo-nos no caminho da virtude, para que a alma da
nossa mãezinha se não aflija de nos ver pecadores."
"E as criancinhas repetiam com a sua voz argentina aquelas singelas
palavras, pronunciadas pelo velho, comovido, que estendia as mãos trêmulas
sobre essas cabeças inocentes, e erguia para o céu os olhos umedecidos.
"Depois beijou-as na fronte com ternura, e mandou-as deitar. Ele apagou a
luz e o lume; sentou-se à borda da enxerga, e, encostando a cabeça nas mãos,
meditou.
"Porém o dia fora agitadíssimo; a natureza foi mais forte do que ele, e daí
a pouco tempo o velho, cerrando a pouco e pouco as pálpebras, adormeceu.
"As trevas encheram de novo o quarto. Mas o horror fugira. Á porta, um
anjo do Senhor, com um dedo nos lábios, velava meigamente sobre o sono da inocência.
XIII
"Cinco tostões não duram eternamente, e a prova disso é que já tinham desaparecido.
A miséria, que fugira um instante espavorida, voltava de novo a bater à porta.
Que remédio senão abrir-lha!
"Não era feliz no mendigar o meu pobre dono. Raras vezes obtinha o
dinheiro suficiente para comprar o necessário. Sua pobre filha melhorara sim,
por um prodígio da natureza completamente desajudada da ciência; mas a sua
convalescença, desprotegida daquele conforto, daqueles cuidados tão indispensáveis
para o restabelecimento da saúde, prolongava-se, apesar de todos os esforços
que a animosa rapariga fazia para resumir, e que, como é fácil de supor, só contribuíam
para a acrescentar. Queria pegar em trabalho, mas estava tão fraca, tão fraca,
que, apenas dava dois ou três pontos, caía desmaiada sobre a costura, e assim
passava os dias em continuados desfalecimentos.
"Seu pai também estava completamente impossibilitado de trabalhar. Eu
chamei-o velho, porque com efeito os desgostos e as privações essa aparência lhe
haviam dado; mas não o era efetivamente. Ainda não contava cinqüenta anos, e já
não tinha na cabeça um só cabelo preto.
"Despedido da fabrica de oleados em que trabalhava, porque a sua nímia
fraqueza o tornava completamente impróprio para os rudes trabalhos manuais da
fabrica, vira-se só com três filhos, sem recursos, sem poder obter, num outro
emprego mais suave, o pão para si e para eles.
"A sua completa ignorância tornava-o impróprio para qualquer trabalho que
não fosse manual.
"Ó ignorância, negra irmã da lívida miséria!
"Como eu ia dizendo, eram poucos ou nenhuns os proventos que o pobre homem
tirava da mendicidade. As comidas iam sendo cada vez mais frugais, e a pobre
rapariga, debilitada, enfraquecida, ia-se tornando cada vez mais incapaz de
trabalhar.
"Admira-se de certo de eu continuar a existir numa casa onde reinava tão
profunda miséria! Espanta-se de que me não tivessem vendido no dia imediato àquele
em que tinham gasto os cinco tostões. Eu lhe explico esse fato na aparência
incompreensível, eu lhe dou a chave desse enigma.
"O meu dono considerava-me, para assim dizer, como uma enviada de Deus, e
não estava muito longe de imaginar que existisse no meu seio um anjo oculto.
Tocar-me era quase uma irreverência, vender-me seria de certo uma profanação.
"Candidamente supersticioso, o bom velho tinha lá de si para si que eu,
como mensageira que fora de uma esmola providencial, não podia deixar de fazer
a felicidade daqueles que me possuíam. Vender-me ser-lhe-ia tão difícil, como
aos romanos cederem, em troca dos mais enormes tesouros, o paládio que fazia a
republica invencível. Eu era a égide da casa, enfim.
"Mas um dia o pobre pai de famílias voltou mais triste e amargurado do que
nunca. O dia correra-lhe como aquele em que eu o tinha visto pela primeira vez,
com a diferença que nenhum garoto compassivo, enviado pela Providência, se fora
esconder na ramaria de uma árvore protetora. O velho entrava, pois, em casa,
sombrio, triste, como entraria uns poucos de dias antes, se não fosse eu aparecer-lhe
inopinadamente.
"Entrou, sem dizer palavra. Dirigiu-se logo a um armário que havia na
parede, onde eu habitava, e, tirando-me para fora, disse-me, depois de me ter
contemplado lugubremente alguns instantes:
― "Vai, pobre bolsinha, que me trouxeste momentos de alivio, e cuja cor
suave me aconselha a esperança. A esperança?! não a posso ter já! Ai! a minha
sina fatal é mais forte do que a tua benéfica influencia! Ramo verde que uma
pomba do céu trouxe no bico a esta pobre arca, que vai sem rumo nas águas de
um dilúvio de infortúnios, enganaste-me involuntariamente! Não parou a
tempestade! Nem há de parar talvez! Vai, não procures lutar mais contra a minha
má estrela! Vai, e que a tua mesma partida nos seja ainda benfazeja! Os anjos
de Deus, ou quando descem ao mundo, ou quando voltam ao paraíso, sempre enviam
adiante, ou deixam após si, um rasto luminoso!
"E beijando-me com fervor, meteu-me no seio, e saiu.
"Foi triste a sua peregrinação à procura de um comprador que se resolvesse
a dar por mim um preço razoável. Todos, vendo-o assim pobre, mostrando no rosto
lívido a fome que o impelia a vender-me, ofereciam, depois de me terem mirado
com desdém, um preço tão baixo, que, fosse qual fosse a extrema necessidade que
o meu dono tivesse de dinheiro, entendeu que me não devia deixar ir assim.
"Contudo, percorríamos lojas e lojas, e nenhum dos donos delas se resolveu
a comprar-me. Pois eu não valia tão pouco como isso, e estou convencida que
muitas das pessoas, a quem o velho mendigo me apresentava, desejariam ficar
comigo. Rebaixavam-me muito, mas, segundo depois vim a saber, isso é trica de
negociante para especular com a miséria. Sabem que ainda que a sua primeira
proposta repila o vendedor, este, por fim de contas, sempre volta ou a aceitá-la
ou a diminuir muito o preço que estabelecera.
"Chamam eles a isso esperteza no negócio. E quem não quer não venha cá, acrescentam,
terminando com a frase pitoresca: "Eu não lhe pus a faca aos peitos."
É regra estabelecida que o vendedor peça um preço exorbitante, e o comprador ofereça
um preço diminutíssimo. Que venha à discussão, mesmo por acaso, o valor
real do objeto, isso é raro. Um negócio de compra e venda é um jogo de azar em
que dois jogadores trapaceiam. Ver qual dos dois há de roubar o outro, that
is the question. Nunca um só vendedor se lembrou de calcular: "Este
objeto custou-me tanto, devo tirar o juro razoável de tanto, logo vendo-o por
tanto, e nem um real de mais, nem um real de menos"; e o comprador de
pensar: "Posso gastar tanto, se o objeto valer mais, não compro."
Isso nunca: sem uma discussão preliminar, é sensabor o negócio. Se a invenção
da moeda simplificou as relações mercantis, quanto as não simplificaria a
invenção desta moeda dos corações nobres, que se chama "boa fé!".
"A antiguidade, que fez Mercúrio o deus dos ladrões e dos negociantes,
acertava deveras se acrescentasse― e dos consumidores.
"Desculpe estas reflexões um pouco prolixas; mas eu sou o Nestor das
bolsas, e desde o célebre ancião homérico, cujas palavras eram doces como favos
de mel, e que talvez por isso eram prodigalizadas por tal forma pelo rei de Pilos,
que não sei como os gregos não tomaram uma indigestão de melaço: desde esse
vulto épico, todos os Nestores gostam de pregar grandes maçadas. Eu não me
podia esquivar à regra geral.
"Agora vou continuar.
"O meu dono lutou muito tempo contra a avidez dos compradores, e fez-lhes
falhar os cálculos. Saía das lojas com o desespero na alma, o rubor da
indignação na fronte, e não voltava.
"Assim se passaram duas horas.
"O preço, que lhe ofereciam, ia sempre diminuindo: por quê? Porque de
cada vez a fisionomia do mendigo se tornava mais lívida. A ansiedade
pintava-se-lhe nas feições. Cada ruga de mais, que se lhe cavava na fronte
angustiada, traduzia-se imediatamente em cinco réis de menos no preço que lhe ofereciam.
"Finalmente, exausto, prostrado, desfalecido, entrou numa última loja, e,
quando entrou, deixou-se cair em cima de uma cadeira. As pernas recusavam-se a
sustentá-lo mais tempo.
"Na loja estavam o mercador, e um freguês escolhendo não sei o quê. Sei
apenas que era um rapaz de uma fisionomia simpática.
"Ambos olharam espantados para o pobre velho, mas o espanto do primeiro
era um espanto encolerizado, o do segundo um espanto compadecido.
"O dono da loja receava para as suas cadeiras o contagio da miséria. Que
um cão se estirasse em cima delas, passe; mas um mendigo!
"O meu dono estendeu-me com mão trêmula para o lojista, e disse com voz
que mal se ouviu:
― "Eu desejava vender esta bolsa. Quanto me dá o senhor por ela?
― "Que diz você? ― tornou o dono da loja com modos irritados. Fale de
maneira que se entenda! Julga que tenho ouvidos de tísico? Graças a Deus sempre
gozei de boa saúde.
― "Desculpe-me, senhor, respondeu o meu dono fazendo um esforço sobre si
mesmo para falar com voz mais inteligível, é porque estou muito fraco. Desejava
saber quanto o senhor me dá por esta bolsa.
― "Ah! até que enfim! Não seria mau que você se levantasse, porque este
senhor talvez se queira sentar.
― "Deixe estar o pobre homem, ― interrompeu o freguês com veemência, não
vê que mal se pode ter em pé. Coitado!
― "Pois sim, sim! ― resmungou o lojista, se toda a gente que não pode
andar se me viesse pespegar nas cadeiras, estava eu arranjado. Mas vamos lá a ver
a bolsa. Ah! está toda esfarrapada! que trapo! isto não vale cinco réis. Quanto
quer você por isto!
― "V. s.a dirá quanto quer dar por ela!
― "Eu! olhe, já lhe digo que não lhe dou mais de quatro vinténs. Nem um
real. Serve-lhe?
― "Quatro vinténs por uma bolsa de seda, senhor! ― tornou o meu dono com
uma profunda acentuação de amargura na voz.
― "Sim! que ela está muito bonita. E quem me assevera que você não roubou
isto? Nada, parece-me que nem os quatro vinténs lhe dou.
― "Roubar! eu? ― bradou o meu bom velho, erguendo-se indignado da cadeira.
― "Sim! sim! Eu já conheço essas capas de santidade. O senhor não pode
imaginar, continuou ele, voltando-se para o freguês, quanto esses malandros são
finos! Olhe, um dia destes...
― "Este homem não tem cara de ladrão, interrompeu bruscamente o
desconhecido.
― "Muito obrigado, senhor, muito obrigado! ― exclamou o meu dono.
Sirvam-me de consolação as suas palavras! Faz-me bem ouvi-las! Partem de um
coração nobre.
― "Enfim, tornou o lojista um pouco despeitado, se me quer dar a bolsa aí
tem os quatro vinténs.
― "Que remédio, senhor! A necessidade é má conselheira! aí tem a
bolsa! Sempre meus filhos não morrerão hoje de fome!
― "Não, interrompeu ainda o generoso rapaz, agarrando no braço do mendigo,
não consentirei que se pratique um roubo assim na minha presença. Sou eu quem
lhe compra a bolsa. Aí tem dez tostões, é tudo quanto tenho comigo. Creio que a
bolsa não valerá muito mais.
"E, pondo na mão do mendigo duas meias coroas, saiu levando-me consigo,
deixando o lojista estupefato, e sendo acompanhado pelas bênçãos do velho.
XIV
"Quando cheguei ao alojamento do meu novo dono, percebi que a minha
posição não melhorara consideravelmente. A mobília da casa não era muito mais
numerosa, do que a da miserável água-furtada, d'onde eu saíra nesse mesmo dia.
Uma estante de pinho, vergando ao peso dos livros, e uma mesa cuja superfície
desaparecia debaixo de uma tríplice camada de papéis, aí tem quais eram os
moveis principais daquela casa.
"O resto da mobília, se o meu amigo quiser absolutamente uma descrição à Balzac,
compunha-se de um leito de ferro, e de duas cadeiras de pinho, uma das quais se
distinguia pela ausência de um pé, o que lhe dava as prerrogativas de trípode,
e a outra primava na singular docilidade com que se domava a todo o corpo que
se lhe pusesse em cima; porque se prostrava imediatamente no chão em sinal de obediência.
Confesso que, quando o meu generoso possuidor atirou comigo para a tal
cadeira nimiamente flexível, receei que apesar da minha leveza, obrigasse o
pobre móvel a dar provas da sua habilidade ginástica.
"O meu proprietário, assim que entrou, despiu o casaco e atirou com ele irrefletidamente
para cima da cadeira cortês, onde eu, por minha desgraça, estava também colocada.
Receber o casaco, fazer um plié com toda a habilidade de um mestre
de dança, e ir parar ao chão arrastando-me na queda, foi uma e a mesma coisa
para a cadeira. O meu dono nem reparou em tal, e, dirigindo-se logo para a
outra, sentou-se à mesa, pegou numa pena, molhou-a no tinteiro, e começou a
escrever com uma rapidez incrível.
"Eu entretanto não estava lá muito à vontade. Literalmente esmagada
debaixo do casaco, tinha, para cumulo de desventuras, mesmo encostado a mim um
grosso caderno de papel, que saía de uma das algibeiras, e que me pregava no
chão, comprimindo-me atrozmente. Eu ficara embirrando com papéis, desde o
momento em que, por causa deles, fora expulsa irrevogavelmente da casa dos meus
primeiros donos, e ai! sem esperança de para lá voltar.
"Mas, ainda que eu não tivesse essa justificadíssima prevenção contra a papelada, bastava a atitude agressiva, que este caderno
tomara para comigo, para eu ficar odiando mortalmente a sua raça. Debalde eu
gritava, ralhava, resmungava, fazia esforços inauditos para me desembaraçar do
peso que me oprimia, tudo era inútil. O caderno era inflexível, e o casaco
ainda mais. Não tive remédio senão resignar-me.
"Vendo-me sossegada, o caderno de papel começou a entabular umas tais
ou quais relações comigo. Percebendo que, por fim de contas, a melhor
resolução, que eu podia tomar, era corresponder à amabilidade com que me
tratavam, troquei algumas palavras com ele, primeiro num tom bastante seco, e a
pouco e pouco mais agradavelmente. Enfim, daí a cinco minutos estávamos os
melhores amigos deste mundo.
"Foi então que ele me disse que o seu dono era literato, como quem diz,
não tinha oficio nem beneficio. Andava sempre abundantemente provido de ideias
e de dividas. As ideias eram sublimes, as dividas eram pasmosas. Nem por umas
nem por outras havia quem desse dez réis. Tinha por costume confiar ao papel os
seus pensamentos; mas por mais empenhos que o papel almaço metesse com o papel
de imprensa, nunca tinha conseguido que este se encarregasse de repartir com ele
as honras da confidencia. Não porque o literato não tivesse talento; pelo
contrario, asseverava o papel que tinha muito; mas infelizmente, como ainda não
se descobrira o meio de se começar a escrever pela segunda obra, e os editores
queriam unicamente imprimir os seus escritos se ele já fosse conhecido, o homem
estava seriamente ameaçado de nunca os ver em letra redonda.
"Em compensação, um editor Mecenas, um protetor das letras com loja de
livros numa escada, oferecera-lhe o honroso lugar de tradutor dos romances de
Paulo de Kock, e de outros notáveis escritores franceses, com o pingue ordenado
de três mil réis por mês. Este homem era tido pelos seus colegas como um perdulário.
"Outro editor, ainda mais estroina ou mais inexperiente, concebera a
atrevida ideia de tentar fortuna imprimindo as obras do pobre diabo. Pedira-as
para as ver, pedido que ia dando com o escritor em doido... de alegria, e
mostrou-as a um entendedor seu amigo. Este folheou os diferentes cadernos por espaço de cinco minutos, e devolveu-os ao livreiro,
asseverando que o rapaz tinha uma letra tão boa, que não podia chegar a ser um
grande escritor, o que fez com que o bom do empresário de literatura devolvesse
os cadernos a quem os escrevera, oferecendo-lhe ao mesmo tempo um lugar de
caixeiro.
"O literato atirara com os cadernos à cara do editor, depois com os livros
que achou à mão, e já balouçava a cadeira ginástica para lhe fazer tomar o
caminho que haviam tomado os livros e os papéis, quando o bom do editor descia
os últimos degraus da escada, e sacudia o pó das suas sandálias à porta de casa
tão pouco hospitaleira.
O que o caderno meu vizinho me afirmou (e devo dizer de passagem, que fora ele
um dos projéteis de que o seu dono se servira, um dos navios encarregados de
operarem um reconhecimento nas costas editorais), o que ele me afirmou foi que,
se o nosso homem não sacudisse tão depressa o pó das suas sandálias, o escritor
vinha-lhe a sacudir mas era o pó da sobrecasaca.
"Aqui está em resumo o que me narrou o meu oficioso vizinho.
"Não tentarei descrever a vida que eu passei durante dois ou três meses em
casa desse seu colega. Pode imaginar qual era; repouso completo, inércia
absoluta. Colocada na estante, ali passei todo o tempo, sempre sossegada,
sempre vazia, conversando muito com os livros meus vizinhos, que me ensinaram
tudo quanto eu sei, e me fizeram adquirir a erudição que tanto o admirou, e
vendo o meu dono passear no quarto, sempre agitado, e sempre procurando alguma
coisa, ou uma rima, ou um lenço de assoar, ou um editor.
"Rimas encontrava ele quase sempre, lenços de assoar algumas vezes,
editores nunca!
"A traça fora o editor único daqueles papéis.
"Um dia foi ele também procurado por uns sujeitos, que lhe apresentaram um
papel selado, e que lhe disseram serem eles os encarregados pelo Sr. Bartolomeu
Nunes, de proceder a uma penhora por causa de não sei quantos mil réis que ele
devia ao dito senhor.
"O meu dono não fez a mínima objeção, pegou no chapéu e saiu, dizendo:
― "Escolham o que quiserem.
"Coisa que eles não o obrigaram a repetir. Percorreram minuciosamente
todos os cantos e recantos. Nada lhes escapou. Tudo inventariaram, tudo
levaram. Eu, já se vê, não escapei ao desastre; lá fui envolvida com os livros,
e sabe quem eu vi também no frete?
"A celebrada cadeira das mesuras. Até isso lhes servira!
XV
"O meu dono (quinto, segundo vê; eu se não fosse tão modesta dizia-lhe que pusesse no título, em vez de Memórias de uma bolsa verde, a Odisseia de uma bolsa verde), o meu novo dono era um usurário amador. Magro, com umas pernas que se cansavam antes de chegar aos pés, a tez biliosa, o nariz adunco e cavalgado por uns óculos, era perfeitamente o tipo que Shakespeare (que foi meu vizinho) atribui à sexta idade do homem, na célebre comédia intitulada: As you like it, título que o leitor pode traduzir como quiser. Observando rigorosamente as regras da economia, não comprando senão o que lhe era restritamente necessário, e assim mesmo inventando para seu uso próprio um necessário especial, as riquezas que obtinha, moeda de cobre a moeda de cobre, serviam-lhe unicamente para as ter enterradas numa burra colocada no seu quarto.
"Nesse ponto tinha ele uma certa coqueterie. As libras douradas,
em que transformava os patacos dos desgraçados, encerrava-as dentro de uma
infinidade de bolsas elegantes e ricas até, que estavam dispostas simetricamente
por fileiras, no fundo do seu cofre forte. Todas as noites, antes de
se ir deitar, abria-o, descerrava as bolsas, e fazia cair sobre o solo uma
chuva de ouro. Ali, Danai de si mesmo, estirava-se ele, enchendo as mãos de
punhados de libras, e fazendo-as cair no monte a pouco e pouco, enterrando os
dedos naquela eira monetária, revolvendo-a, fazendo-a rolar, apanhando-a espiga
a espiga, juntando-a, contando-a de novo, enchendo as bolsas, e tornando-as a
colocar dentro da burra. Tudo isto ele fazia com uma delícia, com uma sofreguidão
tais, que não trocaria de certo este prazer pelo melhor divertimento do mundo.
"Quando eu cheguei à porta já ele estava à nossa espera. Ajudou a
descarregar o frete, procurou os livros, determinou que os vendessem imediatamente,
e deu um grito de surpresa quando eu apareci.
"Era uma bolsa que o acaso lhe dera para juntar à sua coleção. Bem sei que
eu estava um tanto rota, um pouco esfarrapada, e que os rasgões me adornavam,
apesar de eu ser ainda bem nova. Mas as cicatrizes, num rosto imberbe, dão a
esse rosto a majestade da velhice, e eu, considerada debaixo desse ponto de
vista, estava majestosa a mais não ser. De mais a mais, nos empréstimos que o usurário
fizera ao literato, os juros tinham absorvido o capital, havia já tanto tempo,
que se podia dizer que toda a mobília do meu ex-possuidor vinha a sair de graça
ao honesto agiota. E nesse caso que importava que eu estivesse rasgada? "A
bolsa dada não se olha à seda."
"Por conseguinte o bom do velhote magrito, assim que me viu, fez-me mil
caricias, e, depois de ficar só, foi a uma gavetinha, não sem olhar primeiro
para todos os lados afim de se assegurar se alguém o espreitava, tirou de
dentro um cartucho de libras, despejou-o dentro de mim, prestando um ouvido
encantado ao som metálico do dinheiro, e, levando-me com toda a cautela bem
apertada na mão, dirigiu-se pé ante pé para o seu quarto, abriu a burra que
estava ao pé da cama, e depois de contemplar por um instante as bolsas,
amontoadas umas em cima das outras, deixou-me cair com um suspiro de satisfação,
e fechou o cofre.
"Eu ao princípio fiquei completamente atordoada. Esta passagem repentina
da luz para as trevas, do ar livre para um cárcere estreito, produziu em mim
uma impressão terrível. Contudo a pouco e pouco fui-me costumando e resignando.
Comecei a distinguir alguns objetos naquela escuridão. Os perfis vagos de umas
coisas informes, que eu percebia estarem junto de mim, foram gradualmente
fixando os seus contornos, e no fim de um quarto de hora compreendi que estava
rodeada de uma chusma de minhas irmãs.
"Agora percebo eu que fui pouco hábil na narração. Pois não o devia ser;
porque na estante do literato conversara muitas vezes com uma coleção da Presse e
do Constitutionel; e os folhetins romances destes jornais tinham-me
ensinado todos os estratagemas, com que se tem suspensa a curiosidade do
leitor, incitando, aguilhoando-o com a espora do mistério, de forma que ele
percorra a narração, como um cavalo desenfreado percorre a planície, sem se
importar com as belezas dos acessórios, e desejando só chegar ao fim, que é
para o cavalo o precipício em que se despenha, para o leitor a peripécia
ultima, que se pode compor, à vontade do romancista, ou de trinta punhaladas,
ou de vinte casamentos.
"Apesar dessas lições, vê se que eu ainda estou muito inexperiente, e que
se os meus companheiros de estante chegarem a conversar alguma vez com esse
papel, que o meu amigo transformou em confidente das minhas tribulações, hão de
envergonhar-se da má discípula que tiveram.
"Com efeito, para que fui eu dizer totalmente ao leitor que o usurário se
debruçara a contemplar as bolsas? Privei-me assim de umas poucas de frases
interrogativas, que produziriam uma ótima impressão!
"O que seriam esses objetos informes imóveis no fundo da caixa? Que mistério
se ocultaria naquelas tenebrosas profundezas?" Etc., etc. Ora vejam o que
eu perdi.
"Enfim o mal está feito, e não tenho remédio senão continuar a
narração, prescindindo desses auxiliares de que me lembrei tão tarde.
"Um murmúrio confuso se elevou assim que eu cheguei. Na existência monótona
dos presos é sempre um acontecimento importante a chegada de um estranho. A
curiosidade irritada por uma longa abstinência, procura saciar-se com frenesi
assim que se lhe oferece ocasião para isso. Era destino meu concorrer para
matar a fome, umas vezes de pão, quando eram humanos os que sofriam, outras
vezes de curiosidade quando eram bolsas.
"Por isso, apenas trocamos os primeiros cumprimentos, logo caiu sobre mim
a chuva de perguntas. Quem era eu? d'onde vinha? como fora ali parar? De todos
os cantos do baú saía uma interrogação; todas as bolsas olhavam para mim, as
mais distantes punham-se nos bicos dos pés, para me verem melhor, depois
cochichavam entre si; as novas faziam observações zombeteiras acerca das minhas
feições, e, comparando-as com as suas, concluíam que eu nunca lhes poderia
disputar o pomo da beleza; as que estavam intactas achavam-me horrenda por
causa dos meus rasgões; as que estavam mais rasgadas do que eu, achavam que me
ficava pessimamente o estar pouco dilacerada; as velhas só olhavam para mim com
complacência, lembravam-se do seu tempo, suspiravam, e chamavam-me "filha."
"Depois de satisfazer, o melhor que pude, a curiosidade geral, chegou a
minha vez. Não foi necessário que eu rogasse muito, para ser informada da vida
das minhas companheiras, não foi preciso até que eu dissesse uma só palavra a
esse respeito. Se de alguma coisa me pude queixar, foi da pressa que elas
tinham de me contar a sua história, o que fazia com que falassem todas ao
mesmo tempo, havendo na caixa uma balburdia incompreensível. Dir-se-ia que era
ali a base da torre de Babel!
"Ai! meu amigo, que horrendas coisas eu vim a saber! Que de crimes estavam
ali escondidos, destes que escapam à justiça dos homens, mas sobre os quais estão
abertos os olhos vigilantes da Providencia! Cada moeda de ouro acumulada naquele
cofre, representava uma enorme soma de sofrimentos. Aqui uma viúva, reduzida à miséria!
mais adiante uma donzela, pura como os anjos, lançada no abismo da devassidão!
Acolá um órfão defraudado da herança paterna. Somas consideráveis representavam
vidas e vidas de torturas incríveis, sofridas pelos vossos pobres irmãos, cujo
rosto o acaso do clima revestiu com um manto lutuoso! Que horrores jaziam ali
escondidos! Que de trevas entravam na composição do fulgor daquele ouro!
"Era já noite. Sentimos uma chave ranger na fechadura; tudo entrou no silêncio.
"Abriu-se o cofre, e apareceu-nos o rosto lívido, e a extensa figura do usurário.
Estava de barrete de dormir e de roupão. Trazia um castiçal.
"Colocou-o em cima da mesa da cabeceira, sentou-se no chão, despejou-nos
uma a uma, e começou a revolver a massa brilhante do ouro.
― "Saltem, saltem, minhas meninas, dizia ele em voz baixa e roufenha,
saltem que bem me custam a ganhar. Não as crimino por isso; pelo contrario. Que
prazer há aí que se compare com o que eu experimento neste instante? Como tudo
isto deslumbra! Tenho aqui o suficiente para comprar Portugal todo, incluindo
as consciências dos seus habitantes. Para quê! Puf! Que me importa a mim
com essa canalha, que me chama usurário, e que me vem lamber os pés. Prazer,
inefável prazer é este que vós me dais. Saltem, saltem, minhas meninas!
"E sorria-se com um sorriso de hiena, o miserável!
"Finalmente cansou-se, tornou-nos a encher com toda a paciência, fechou o
cofre, e foi-se deitar.
"Caiu tudo em silêncio de novo.
"Deu meia noite!
"As pancadas do relógio ressoaram lenta e lugubremente na solidão do
quarto.
"E eu senti um frio terror percorrer-me o corpo; porque um vago e convulso
estremecimento agitara no meu seio as libras silenciosas.
"E o cofre abriu-se como se mão invisível o tocasse, e um vulto melancólico
e severo, com asas negras nos ombros, apareceu em pé junto de nós.
"Era o anjo do remorso! Que majestade naquela fronte sombria, que pungente
contração no seu lábio severo!
"E ele estendeu a mão com um gesto imperioso, e eu, gelada de susto, senti
as peças de ouro moverem-se por si mesmas, e adquirirem como que umas asas
pequeninas.
"Um vago e sinistro suor lhes percorreu a fronte, e esse suor era um suor
de lágrimas!
"E todas se ergueram; o enxame de sinistras abelhas saiu em bando da
tenebrosa colmeia, e a bulha das suas asas metálicas produzia não sei que lúgubre
som!
"E, ao mando do anjo do remorso, foram todas pairar sobre o leito do
avaro.
"Então vi um terrível espetáculo; de cada uma dessas peças de ouro
começaram a escorrer lágrimas e sangue, que iam cair gota a gota na livida
fronte do usurário.
"E ele agitava-se na cama, erguia as mãos suplicantes, procurava limpar a
fronte, debalde! porque a horrenda chuva caía incessante, incessante, e
alastrava em nodoa imensa, que parecia o fúnebre selo da reprovação de Deus.
"E das peças de ouro saía um concerto dilacerante! concerto composto de
gritos, de soluços, de blasfêmias, e de imprecações!
"Depois, a um sinal do anjo, as moedas desapareceram e transformaram-se em
espectros, que vieram doidejar em torno do leito do meu dono.
"E a punição ainda era mais cruel!
"Uma tomara as formas de uma mulher, jovem, bela, um anjo enfim, mas um
anjo caído!
"E aproximou-se do usurário, e disse-lhe com voz rouca:
― "Era virgem, estava só! Protegia-me a dupla auréola da inocência e da orfandade!
Tu vieste, especulador infame, arrojaste-me a um abismo, e manchaste de lodo a
minha cândida túnica.
"E outra mudava-se num pobre velho, de cabelos brancos, que arrastava uma
grilheta preza no pé:
― "Eu era o símbolo da honra; mas tinha filhos! Reduziste-me à miséria, e
eu roubei!
"E todos os espectros bradavam com voz pavorosa:
― "Sê maldito!
"Era horrível, horrível aquela cena!
"E durou até que os primeiros e tênues clarões da madrugada entrassem
timidamente pela janela do quarto.
"Com o primeiro raio da aurora, vi aparecer no quarto um anjo de brancas
asas, com a face luminosa banhada em pranto.
"Veio e ajoelhou aos pés do seu terrível irmão.
― "Ainda não está satisfeita a tua vingança? ― bradou ele com uma voz
melodiosa, de que é apenas um frouxo eco o plangente suspiro da harpa eólia.
"Era o anjo da guarda do usurário, que o tinha abandonado, chamado pelo
Senhor, mas que atraído pelo invencível amor, que nos consagram estes celestes
protetores, vinha na hora do suplicio invocar, para o seu protegido, a misericórdia!
"E o anjo do remorso, vencido pelas preces do seu cândido companheiro, fez
um sinal, e o tumultuoso enxame entrou no cofre, que se tornou a fechar.
"Um vago bater de asas denunciou-me que os dois anjos tinham voltado ao céu
levados pelo primeiro raio do sol da manhã.
XVI
"Isto repetia-se todas as noites. O costume já me tornara indiferente.
"Passaram-se talvez seis anos, durante os quais eu nunca saí da minha
prisão, e em que, pelo contrario, entraram muitas novas companheiras que vinham
aumentar o volumoso pecúlio, e, ao bater da meia-noite, tornar também mais
numeroso o fúnebre cortejo dos fantasmas.
"No fim de seis anos morreu o meu usurário! Morreu de repente! Não
tivera tempo de fazer testamento, e, segundo me disseram, íamos passar para as
mãos de uma herdeira, parenta muito afastada do finado.
"Com efeito, poucos dias depois da morte de Bartolomeu Nunes, vieram uns
quatro galegos para levar a burra a pau e corda.
"Tivemos a consolação de os derrear!
"Quando chegamos à casa para onde íamos, os galegos escorriam em suor, e
praguejavam como uns danados.
"Uma voz argentina fez-se ouvir junto de nós. Esta voz não me era
desconhecida; mas onde a ouvira eu? Impossível lembrar-me!
"Finalmente rangeu a chave na fechadura, e abriu-se o cofre. Que rosto
imagina que me apareceu? O de Camila! o da minha criadora!
"Descrever-lhe a alegria que senti é-me completamente impossível.
"Ela primeiro não me conheceu. Espantada de tanta opulência, não fazia
senão repetir:
― "Como aquele homem era rico!
"Depois tirou para fora algumas bolsas. Entre elas ia eu.
"Camila mirou-me atentamente, e murmurou:
― "Que estranha semelhança... É impossível!... Seria extraordinário!
"Era-lhe fácil sair daquela incerteza. A sua delicada mãozinha bordara no
meu corpo as iniciais dela e de seu marido; por conseguinte, podia procurar
esse sinal. Foi o que fez.
"As duas letras "C E" cá estavam enlaçadas amorosamente.
80"Camila deu um grito de alegria. Beijou-me freneticamente, exclamando:
― "Ó minha gentil bolsinha! Torno a encontrar-te. Como estás desfigurada!
Que te tem acontecido? Ainda conservas as nossas iniciais num estreito abraço! Símbolo
de um amor que passou, que doce amargura eu sinto em te ver!
"Que se passara naquela casa? Que acontecimento motivara as tristes
palavras de Camila?
XVII
"Juro-lhe que nesse momento tive pena de não ser um ente possuidor da
faculdade do movimento, de vida, enfim, para poder corresponder aos ternos
beijos com que a minha boa dona me saudava. Infelizmente, tinha de me contentar
com os receber e não podia retribuí-los. Via-me obrigada a ficar imóvel,
gelada, na aparência indiferente.
"Para lhe poupar o trabalho, que eu tive, de saber a pouco e pouco o que
se passara, eu lho digo em poucas palavras.
"Camila, como sabe, tinha gênio ciumento. Eduardo era impaciente e
teimoso.
"Tinham-se repetido muitas vezes cenas semelhantes àquela que me obrigara a
sair pela janela, como um amante surpreendido. Uma vez, porém, a discussão fora
mais agitada, do que era habitual. Eduardo irritara-se, Camila teimara, e o
rompimento seguira-se. Fora uma espécie de divorcio intra muros,
com consentimento de ambos. Não havia nem sombra de escândalo. Muito amáveis
um para com o outro na sociedade, em casa viam-se apenas às horas da comida, falavam-se
muito cortesmente, e depois cada um partia para o seu lado.
"Esta intolerável situação durava, ia para seis meses. E não julgue que o
amor dos dois esposos tinha afrouxado; pelo contrario, amavam-se cada vez mais;
porém o seu gênio orgulhoso impedia a cada um deles dar o primeiro passo para a
reconciliação. Sofriam, e sofriam em silêncio.
"Aí tem a explicação das frases de Camila.
"Estava-me ela ainda beijando, quando bateram à porta devagarinho.
― "Dá licença? ― disse a voz de Eduardo.
"Camila enxugou os olhos rapidamente, colocou-me em cima da mesa, e
respondeu com voz ainda um pouco trêmula:
― "Entre!
"Eduardo entrou. O tempo não alterara a beleza varonil do mancebo; só um bonito bigode negro substituíra o
ligeiro buço do adolescente.
"Eduardo devia ter vinte e nove anos.
― "Desculpe-me incomodá-la, disse ele, sorrindo; mas nomeou-me procurador
neste negócio da herança, e, por conseguinte, vejo-me obrigado a estar sempre a
importuná-la para lhe dar as minhas contas. O ministro da fazenda deve ter
entrada franca junto del-rei.
― "Pode vir sempre sem receio de me importunar.
― "Ah! diga isso à vontade. Eu nunca tomo as coisas ao pé da letra. Erro
grosseiro, que tanta gente comete, e d'onde resultam tantos desenganos. É para
mim axiomático o seguinte princípio: Todo o homem na conversação deve ser
um agiota feroz; não receber as palavras sem um desconto de cinqüenta por cento.
Eu podia neste ponto fazer um calembourg sobre as palavras e
as letras... de cambio; mas sou misericordioso. Ah! a propósito de agiota;
estava dando balanço aos fundos do seu parente? Já vejo que não podia chegar em
melhor ocasião.
― "Não! enganas-te; estava contemplando as bolsas em que ele metia o
dinheiro. Tem algumas que não são feias.
― "Ia jurar que conhecia esta, atalhou Eduardo, erguendo-me com
vivacidade; parece-se tanto com uma...
"Interrompeu-se, passou a mão pela testa, e depois continuou:
― "Com uma que desapareceu, como tudo o que ela simbolizava.
― "Recordações?! tornou Camila, sorrindo ironicamente.
― "Não, vento de inverno que sacudiu um instante as cinzas frias de um
amor que morreu! Se uma centelha fulgurou por acaso, desculpe-me.
― "Desculpá-lo?!
― "Sim, desculpar-me! Nem todos têm força suficiente para arrancar pela
raiz, do jardim do coração, as ridentes flores da mocidade. Sobre o túmulo, em
que sepultamos o passado, brotam involuntariamente rosas. Passa uma aragem
ligeira, e lá nos vem um perfume acariciar de novo. Mas deixe, que hei de
decepar a roseira, ainda que da haste cortada corra o sangue em borbotões.
― "Quem foi o culpado disso?
― "Quem? Nem eu sei. Sei apenas que esse algoz desconhecido retalhou-me
bem fundo o coração. Bem fundo! Como vê, a cicatrização não foi perfeita, e a
ferida ainda sangra de vez em quando! Que loucura! ― continuou ele mudando de
tom, e sentando-se numa cadeira com modos afetadamente joviais, se não foi
melhor assim! Para falarmos verdade, Camila, já nos íamos tornando ridículos
com o nosso eterno arrulhar! Que absurdo! Dois pombinhos namorados,
atravessando o mundo, atados um ao outro com o laço cor de rosa do santíssimo matrimonio!
O mundo ria-se e tinha razão; porque o mundo tem sempre razão. Agora é que
estamos bem. Somos uns esposos comedidos; encontramo-nos três vezes por dia; eu
sou o seu procurador, vossa excelência a minha intendente. Eu sou o encarregado
dos negócios estrangeiros, vossa excelência dos do reino. Vejam se há neste
mundo viver melhor! A paz do Senhor habita conosco! Ah! ― continuou Eduardo
animando-se sucessivamente, morram as suaves recordações! Arrase-se o jardim,
para fazer brotar a ora das conveniências! Morra tudo quanto nos possa recordar
as doces horas do alvorecer do nosso amor, esses arrufos, chuvas de primavera,
os beijos da reconciliação, íris delicioso! Olhe, dê-me licença que afaste da
nossa vista tudo quanto possa despertar pensamentos perigosos, prejudiciais ao
nosso repouso. Morra este último objeto, que ainda se atreveu a falar-me em
coisas para sempre esquecidas.
"E, dizendo isto, levantou-se num incrível estado de agitação, e agarrando
em mim com veemência, ia a atirar-me pela segunda vez pela janela fora. Eu
estava já desesperada pela incrível tendência que Eduardo mostrava para me
fazer saltar pela janela, e "E, dizendo isto, levantou-se num incrível
estado de agitação, e agarrando em mim com veemência, ia a atirar-me pela
segunda vez pela janela fora. Eu estava já desesperada pela incrível tendência que
Eduardo mostrava para me fazer saltar pela janela, e pensando na minha
triste sorte, que ia atirar comigo ao mar das aventuras, quando julgava entrar
no porto de salvação.
"Um grito de Camila foi quem me livrou de travar de novo conhecimento com
o espaço.
― "Eduardo, Eduardo, bradou ela com as lágrimas nos olhos, vê bem essa
bolsa!
"Eduardo contemplou-me, viu as iniciais, reconheceu-me, e, voltando-se
para Camila, leu-lhe nos olhos uma tal expressão de amor, que, sem se poder conter,
caiu-lhe aos pés, banhado em lágrimas deliciosas, enquanto ela, num êxtase inefável,
lhe beijava os cabelos.
"Que momento aquele!
XVIII
"Termina aqui a minha narração. Nas bolsas como nas nações, são felizes as
que não tem história.
"Dir-lhe-ei unicamente que fui conservada em casa de Camila e de Eduardo,
como uma relíquia preciosa, que se conservava tal qual eu tinha reaparecido,
para trazer a concórdia àqueles dois estouvados.
"Quando Eduardo morreu, fui eu a confidente e a consoladora de Camila.
Como esta nunca tinha tido filhos, era comigo que falava em seu marido, e
muitas vezes me regou com as lágrimas que derramava. A pobre senhora conservava
sempre viva e ardente no coração a imagem do seu esposo.
"Morreu a opulentíssima viúva. Os herdeiros, também já bastante ricos, quiseram
liquidar aqueles imensos haveres. Venderam tudo, eu fui com a mobília da casa, e ali, graças ao meu amigo, salvei-me de cair nas garras
de algum segundo Bartolomeu Nunes, que me tivesse seis anos fechada em cofre.
"Ao menos com o senhor tenho podido tagarelar.
"Aqui ponho ponto."
XIX
Assim falou a bolsa, e eu, secretario fiel, fui escrevendo textualmente o que ela
me ditou.
Tiro de cima dos meus ombros toda e qualquer responsabilidade.
A aurora começava a apontar no horizonte. Ao passo que a deusa dos róseos dedos
abria as portas do Oriente, a bolsa a pouco e pouco ia perdendo a animação fictícia,
que um poder sobrenatural lhe emprestara, e ia-se deixando cair em cima da mesa.
Eu, ingrato, não me importei com isso. Enquanto ela ia voltando ao seu estado
normal, contemplava satisfeito o papel inundado de garatujas, cuja perpetração
principal não fora cometida por mim, e escrevia no fundo da última página, as
seguintes palavras sacramentais:
Finis, laus Deo.
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