LIÇÃO PÓSTUMA
No
carro que conduzia à casa da amiga morta, Madalena meditava com melancolia,
conchegando ao busto ainda belo as rendas negras do vestuário de luto
improvisado para esse inesperado transe.
Morrera Valentina,
a sua querida companheira da infância!… Extinguira-se de repente, na véspera,
essa doce criatura pálida, cuja vida frágil, de sempre enferma e sempre
apagada, pouco importava desde muitos anos aos seus mais próximos, nesse centro
familiar, rumoroso e alegre, onde se moviam os filhos, as filhas, os genros e
as noras da atual finada, em seu inconsciente egoísmo de entes novos, sadios e
ativos. E o principal, na aparência, de toda essa gente moça, nascida do seu
sangue ou fundida com o seu sangue, Valentina, na realidade, passara
gradualmente a ser um zero no lar, de uma sensibilidade doentia que a isolava,
sob o terror dos choques da existência comum, e de uma fraqueza de caráter que
as contínuas moléstias iam sempre agravando. Tinha a figura emaciada de uma
freira. Andava devagar, como arrastando dolorosamente os passos, sem rumo, sem
objetivo. E eis enfim que morrera, discretamente, sem ruído, num sopro de ave
cansada, que encolhe a cabeça sob a asa e expira docemente, sem incomodar
ninguém com estardalhaços de uma agonia aflitiva e prolongada.
Madalena evocava
agora esse tristonho tipo de mulher, que conhecera despreocupado na meninice,
poeticamente sentimental na adolescência, e enfim abatido nos últimos tempos —
e uma sensação como medrosa de arrepio se misturou ao sentimento natural da sua
afetuosa saudade.
Quantos anos podia
ter Valentina? Só quarenta e seis — a sua própria idade, pois tinham nascido no
mesmo ano. E, mais nervosa, Madalena atirou-se para o canto da vitória, vergou
o corpo, para enfiar a vista pelo espetáculo das ruas em todo o jubiloso
movimento das quatro horas da tarde. Que contraste com o desalento das suas
idéias! E que novidade, também, no meio da apatia dos seus dias monótonos,
sempre iguais, ao fundo dessa chácara sombria de arvoredos, porejando umidade
dos seus caramanchéis apodrecidos pelas chuvas, em que ela esquecia todos os
risos da vida por inércia de hábitos, empurrada pouco a pouco, quase sem
sentir, para o isolamento próprio dos que terminaram o seu papel no mundo! Um
relâmpago fuzilou nas pupilas de Madalena, ao acicate de um pensamento súbito e
cruel: como a Valentina!… assim mesmo é que se resvala até cair na morte, sem
reagir e sem viver — no verdadeiro sentido desta palavra tão ampla…
E, como febril,
debruçou-se mais avidamente, fartou a vista de olhar, de olhar a onda popular
espraiada pelas vias, numa ondulação crescente e vertiginosa.
O carro, vindo do
Rio Comprido, seguia pela nova e brilhante rua da Carioca, cortada de elétricos
rápidos, com a sua alta casaria de aspeto europeu, lojas de montras espelhantes
cheias de compradores, grupos remoinhando em certos pontos da calçada larga,
junto aos postes de parada dos bondes, um ar de efervescente alegria no azul do
céu, na brancura luminosa das fachadas dos prédios, nas vitrinas, nos artigos
policromos expostos à venda, nas portas, na multidão formigando apressadamente;
em tudo.
Ao pé do mercado
das flores, um embaraço qualquer deteve um instante a marcha da vitória, entre
a trepidação violenta de todo o gênero de veículos a se cruzarem, e Madalena
aspirou, com um frêmito, o aroma vivo das rosas brancas e rubras, dos cravos
purpurinos e das angélicas virginais desprendendo o seu hálito de volúpia entre
os crisântemos e as dálias sem perfume. Mas já o carro vencia o largo da
Carioca, onde desembocava toda uma torrente popular despejada pelas ruas da
Uruguaiana e Gonçalves Dias; e, ao reflexo dourado do sol, trazendo nos ouvidos
o rumor da vida tumultuosa das ruas e na rotina a visão da graça experta das
mulheres que andam às compras, parando em cada montra com um fulgor de apetite
no olhar, a saia arregaçada com arte, o pé bem calçado e nervoso — Madalena
entrou a rodar sobre o asfalto macio da avenida Beira-Mar, voltando a pensar
nessa morta que aguardava na imobilidade suprema o definitivo mergulho na terra
fria.
Em pouco, muito
pálida sob o negrume do vestido de luto, contemplava Madalena a amiga de
infância estendida sobre a eça de ouros lúgubres, entre os candelabros do
estilo: e essa face mais lívida do que a cera das tochas acesas, mais reduzida
do que um semblante de criança, com os cabelos de leve grisalhos, penteados
para o túmulo, e uma expressão de amargura nos lábios finos e roxos — essa face
defunta abalou tão violentamente a sua alma, que os soluços a sufocaram como
uma crise de nervos. Nem saberia dizer por quem chorava, se pela morta, se por
si própria, sentindo como uma trágica parecença nos seus destinos — ambas já
tendo cumprido a sua missão na existência e não havendo sabido salvaguardar a nota
pessoal, que serve de arma de defesa, instinto de conservação, na segunda e
melancólica fase da vida das mulheres.
Acudiam-lhe, de
envolta com as lágrimas, trechos de certo romance pungente de Tolstoi — uma
grande ternura ingênua que tudo dera de si, encontrando ao cabo a ingratidão
mais dura, o isolamento, o abandono…
E um pavor
subiu-lhe ao cérebro, lembrando as acomodações, as transigências, que ela fora
aceitando contra o seu interesse, por amor e por inércia. Apareceu-lhe a
chácara sombria, sentiu o vagar dos dias longos, viu-se a errar, cheia de
tédio, sem vida própria, entre a animação egoística dos seus mais próximos,
como a outra, como essa que ali jazia entre homenagens mentirosas, agora
inúteis, de coroas, flores e galões dourados… E uma reação perigosa se fez no
seu íntimo. Como a Valentina?… Não, jamais!… Ela queria viver e não morrer.
Aquilo era uma lição.
O Matias, genro de
Madalena, fumava, ao cair dessa tarde, à porta do vestíbulo, olhando a beleza
do ocaso, quando viu caminhar pela grande alameda da chácara, em direção à
casa, um vulto de mulher que ele, à primeira vista, não reconheceu.
"Mas é tua
mãe!", disse por fim à esposa, virando-se para dentro da sala, como
atônito. E no seu tom havia uma tão insólita estranheza, visto como a volta da
sogra era perfeitamente natural, que as filhas logo se ergueram e chegaram à
porta.
"Mas é mamãe!",
repetiram elas, imitando inconscientemente o ar admirado do Matias.
Efetivamente, a
silhueta de Madalena parecia mudada nas suas linhas habituais. Ela, que era
gorda e indolente, vinha num passo firme e decidido que esmagava as folhas
secas do caminho. Tinha arremessado para trás a pelerine
de rendas negras, e em seu corpo, ainda bem-feito, estava mais moça, mais viva,
mais esbelta. No silêncio curioso que a acolheu, pôs-se a contar como fora o
enterro da pobre Valentina, insistindo com rancor na insensibilidade ou
excessiva resignação de toda a família, que tinha demonstrado à evidência o
ínfimo lugar ocupado sob aquele teto pela falecida.
E como, nesse ponto
da narrativa, um netinho a importunasse teimosamente, puxando-lhe ora o leque,
ora as rendas, Madalena administrou-lhe, com nervosa prontidão, uma pancadinha
seca nos dedos. O pequeno chorou: os pais entreolharam-se, espantados; e a mãe
acabou observando, para aliviar o despeito:
"Essa D.
Valentina, afinal, não passava de uma imprestável…"
Madalena, de
ordinário paciente e vagarosa, saltou imediatamente:
"Imprestável?…
Tola é que ela foi…"
Surpresa geral.
Quando Madalena
saiu da sala, o Matias dirigiu-se ao cunhado Jorge, também casado, e, de mãos
nos bolsos, meneando misteriosamente a cabeça, a esticar um grande beiço
desolado, murmurou…
"Transformaram
tua mãe, sabes? Aqui há coisa…"
E havia. Era um
terror profundo deixado na alma de Madalena pelas impressões da morte da amiga.
Era uma reação, entretida pela vontade de fugir a vagos perigos, que chicoteava
dia a dia os impulsos da natural e passiva apatia, tentando às vezes retomar os
antigos direitos sobre o seu caráter. Nesse momento, então, Madalena corria ao
espelho para se examinar; já se via mais magra, com a face lívida e esbatida da
amiga que não soubera defender a sua nota pessoal e morrera anulada, como um
trapo inútil. E se, a essa hora, a filha ou a nora lhe anunciavam que iam
passear, pedindo-lhe para ficar, como dantes, com as crianças, ela, depressa,
contrariando o espontâneo assomo de condescendente bondade, respondia que
também tinha de sair. E saía de fato, para atestar a sua independência; andava
pela cidade, a impregnar-se, como buscando reforço à sua bruxuleante energia,
do espetáculo da vida ativa de outras mulheres da sua idade, em que bebia
lições. Como a Valentina é que nunca, nunca, jamais!
E certo dia, sob a
reprovação mal refreada dos seus, Madalena participou que se ia casar com um
senhor Salgado, quinquagenário ainda robusto, que lhe oferecia a comunhão da
simpatia contra os próximos e comuns desalentos da velhice solitária.
Por ocasião desse
casamento, enquanto a noiva, madura e satisfeita, jurava fidelidade ao futuro
de cabelos grisalhos, bem empertigado na sua casaca solene, o Matias,
sucumbido, sussurrava ao ouvido do cunhado Jorge:
"Tudo isto é
obra fatal da defunta Valentina…"
E, mais áspero:
"Eu, se ela
ressuscitasse, metia-lhe uma bengalada…"
O filho
acrescentou com raiva:
"Eu fazia
mais: assassinava a peste…"
E volvendo o olhar
torvo para as sedas lilases e farfalhantes da mãe ao pé do altar, concluiu
entre dentes:
"Ainda esta
manhã ela foi levar uma coroa de amores-perfeitos ao túmulo da amiga,
agradecendo a lição…"
Madalena,
entretanto, pesada e triunfante, ia dizendo ao senhor Salgado, cuja calva
reluzia às luzes:
"Recebo a
vós…"
Era o direito à felicidade, proclamado alto!… Era o direito à vida própria!…
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