DIÁRIO DUMA CRIANÇA
Creio que
não é bem exato o título que escrevi no alto da página. Isto não é
verdadeiramente o Diário duma Criança, não é, mas sim
a minha vida toda recordada dia por dia, hora por hora, com uma precisão de fatos
e sensações de que o Chico muito se admira.
Decerto não sou
muito velha — fiz em Março vinte e dois anos — mas, assim mesmo, ele acha
extraordinário como os episódios da minha infância se me fixaram na memória tão
vivamente, e os posso recordar com tanta nitidez, como se a minha alma tivesse
a receptibilidade mecânica de um fonógrafo.
Não pensei nunca
em escrever; sei, tão-pouco, que nenhuma novidade pode trazer ao mundo a minha
prosa descuidada e frouxa.
Fui sempre pouco
estudiosa e nenhuma honra dei aos meus professores. O Chico, que é um sábio, é
que me disse, uma tarde, resumindo toda uma longa palestra em que eu lhe contei
os mil incidentes de vida estranha em que o meu pobre espírito se debateu até chegar
à doce paz da nossa felicidade de hoje:
— Se tu
escrevesses isso tal qual o contas, faríamos um belo estudo de psicologia
infantil!…
Eu, que adoro o
meu Chico, não o queria desgostar, mas escrever tudo quanto sentia, tudo quanto
me lembrava ter sofrido, parecia-me tão difícil!… Vida toda feita de sensações
e estranhezas de carácter, quem poderá ter interesse em conhecê-la?!
Oh que coisa tão
custosa de realizar, este desejo, quase imposição, do Chico!…
As minhas memórias
são leves fios de aranha que não servem para urdir e tecer utilmente uma sólida
obra caseira.
Escrever o Diário da minha infância, eu que nunca tive paciência de
rabiscar cartas muito grandes — a não ser para o Chico!…
Depois, sei
unicamente escrever o que sinto, e os escritores — dizem — não fazem assim. O
Chico sente os versos que faz tão lindamente, mas esse… oh esse é outra coisa!
Por muito tempo
discutimos, mas, como o senhor meu marido é adoravelmente teimoso e eu não sei
ainda contrariá-lo, deixei-o ir uma noite destas ao teatro, recusando-me a
acompanhá-lo a pretexto de ter sono, e quando voltou, eram duas horas da manhã,
entreguei-lhe o manuscrito, que leu sem descansar, tal qual o mandou imprimir
logo no dia seguinte.
Isso é que me
custou!… Porque, depois de o escrever duma só vez, e sem hesitar diante duma
única palavra que não correspondesse ao meu pensamento, deixando correr a pena
nervosamente, em galopada doida, quando as recordações vinham em montão,
chamadas umas pelas outras, numa lufada de quase vertigem, sempre imaginei que
ele emendaria aquilo e lhe daria uma forma mais correta.
Mas — qual
história! — o querido infame teve o descaramento de se
rir na minha cara e de me responder:
— Que se o
emendasse estragaria tudo!
Foi assim que
saiu, tal qual o escrevi, numa hora de febre.
Chamo-me Raquel.
Creio que este nome é hereditário na minha família, porque a minha avó e a mãe
da minha avó eram também Raquel. Não sei. De genealogias, como de tudo mais,
entendo pouco.
O mais longe que
posso recordar na minha existência humana, vejo-me feliz.
Era uma grande
casa de aldeia, a nossa. Havia ali de tudo quanto pode desejar uma criança
acostumada à simplicidade da vida campestre.
Os pátios eram
habitados por uma multidão de animais domésticos, que nos conheciam bem, de
tanto milho que às escondidas lhes deitávamos.
Eu era a mais
velha, e os meus quatro irmãozitos seguiam-me alegremente pelos campos fora,
como um rebanho segue o pastor. Nada nos era defeso, nem parede que não
tivéssemos escalado, nem árvore que não conhecêssemos como os nossos dedos. Os
frutos eram vigiados desde que as árvores se cobriam de prometedoras flores, e
antes, muito antes de a família os ver em casa, já nós tínhamos feito a nossa
primeira escolha. Quando a nossa pobre burrica
descansava do fatigante trabalho da nora, íamos desamarrá-la da manjedoura,
saltávamos-lhe para cima, e fazíamo-la trotar pelos caminhos pedregosos da
aldeia como um pur-sang trotaria nas avenidas areadas
dum luxuoso parque.
Felizes tempos!…
Mas, no fim de contas, eu era uma rapariga; às vezes lembrava-me disso, e nem
sempre estava disposta a fazer de general no exército fraternal.
Muitas vezes
mesmo, o instinto do meu sexo pedia-me brincadeiras mais sossegadas: queria governar casa, ser a mãe, exercer a
minha atividade de mulher trabalhadeira e que conhece o seu lugar. Chamava
então as pequenas da minha idade e brincávamos às donas de
casa: improvisando os nossos lares em qualquer recanto do jardim, servindo
de baixela fragmentos de louça, cozinhando pétalas de
flores e ervas que tínhamos mais à mão; indo ao tanque lavar a roupa das
bonecas, as nossas filhas; carregando a água com a
cantarinha em equilíbrio sobre a rodilha, no alto da
cabeça; tendo as nossas disputas e conversas como víamos às senhoras
vizinhas, lá no povo. Ralhávamos com os homens,
os meus irmãozitos — porque entravam tarde, andavam por lá com os amigos…
Na aldeia não
havia meninas finas, e então arranjara as minhas
amigas e companheiras nas humildes filhas dos nossos caseiros e serviçais.
Tinha os seus
modos desempenados, os seus gostos simples, e, apesar disso, não me parecia com
elas!
Sempre me há de
lembrar o que escandalizava meus pais quando afirmava peremptoriamente: que de
todas as casas da vila próxima, onde as havia muito boas, era a mais humilde de
todas a que mais me agradava.
Cuidaram que era
uma perversão do meu senso estético, mas vendo-a há pouco, já depois de mulher,
confesso que não mudei de opinião. É que sentia intuitivamente o pitoresco que
os nossos artistas andam hoje procurando com tanto afã…
Na verdade, a
casinha térrea, construída sobre a rocha onde tinham cavado os degraus, com seu
alpendre e o seu pé de videira a ensombrá-lo, era duma originalidade, na sua
singeleza primitiva, que me encantava.
Nunca, como tantas
crianças na minha idade, me lembrei de imitar a mamã, as tias, ou as senhoras
das nossas relações. Nada! Só procurava ser aquilo que nunca conseguiria, por
mais esforços que empregasse.
Melhor fora que
tivesse conseguido o meu desejo e ficasse como as outras raparigas da minha
aldeia: uma perfeita camponesa, cheia de saúde e de alegria, sem mais cultura
do que a delas!…
Meu Deus! A
delicada ternura do Chico compensa-me de muitos desgostos passados, abre-me um
caminho largo a uma existência toda inundada de sol; mas, quando penso em
quatro anos da minha existência, sinto em mim uma tão grande repercussão de
dores passadas, que não sei quanta bondade lhe será precisa para mas fazer
esquecer!…
Enquanto eu
suportei todos os tormentos que uma pobre criança pode sofrer, sequestrada de
tudo quanto lhe rodeou e acariciou os primeiros anos; enquanto o meu espírito,
sacudido pelas lutas mais violentas, angustiado pelas mais sombrias dúvidas, se
abria à compreensão duma vida que dizem superior; enquanto o meu coração
aprendia na dor os infinitos cambiantes dos sentimentos complicados; a Rosita,
a Maricas, e a Aninhas da mestra — as queridas companheiras da minha infância —
cresciam e faziam-se boas e laboriosas mulheres, cheias de vida e saúde, sem
incompreensões mortificantes do seu próprio coração.
Quando elas me
viram voltar à aldeia, tristemente grave, empalidecida pela dor, adelgaçada
pelos anos, o trajar cuidado de quem não desconhece os preceitos da elegância,
não compreenderam as lágrimas que bruscamente me vieram aos olhos e correram
impetuosas pelas faces, como vaga interior vencendo todos os diques.
Imaginaram — as
pobres! — que eu tinha saudades das amigas de Lisboa e as desprezava a elas. Oh
não, mil vezes não! Tinha uma pungente saudade do tempo em que o meu espírito,
não fatigado, se comprazia nas suas conversas simples, e em que os seus gostos
naturais eram também o meu gosto.
Chorava
desesperadamente a minha alegria, para sempre tocada de mal incurável; tinha
desprezo — e muito — por essa educação que me roubara quatro anos de vida feliz
e proveitosa, dando-me em troca uma ignorância mais completa do que a sua!
Porque as minhas amigas e companheiras de infância sabiam muita coisa útil, e
eu apenas me pudera convencer de que não sabia nada — o que é altamente
desconsolador.
Como já disse,
durante a infância considerei-me feliz. A minha mãe era bondosa, como muita
gente o é, porque assim tinha nascido, pela mesma fatalidade psicológica que a
podia ter feito nascer uma criminosa. Mas juntava a essa inconsciente bondade
muita justiça e bom senso.
Cuidava
escrupulosamente do amanho interior da nossa casa, não deixando as criadas
levantar mão dos serviços, com uma disciplina que invejariam muitos instrutores
de recrutas. Rezava as orações obrigatórias de cada dia; cabeceava à boca da
noite, antes de se acender o candeeiro para o serão; e depois de espertar era a
última a deitar-se em casa, depois de ver todas as portas e apagar todas as
luzes — não fosse o inimigo sonso que se lhe metesse algum ladrão em casa, ou
as raparigas se descuidassem com o lume! De manhã era a primeira a madrugar,
para a mesma labuta de todo o ano — que era afinal a de toda a sua vida.
De sabedorias para
si, importavam-lhe pouco, mas queria-as para mim, que no seu entender devia
tornar-me uma verdadeira menina educada: tocando piano,
ataviando-me com jeito de quem sabe, que não privasse com as raparigas
da rua, que lesse romances para ter umas luzes de história, que bordasse
a matiz e a escama de peixe ou a casca de castanha, cantasse ao piano em
francês ou italiano, soubesse, enfim, estar numa sala…
Duma tão grande
infelicidade que a única filha tinha modos de rapaz, detestava o piano,
adormecia a ler os mais patéticos romances, e fazia a cabeça doida ao padre
José, que nos dizia a missa na capela da casa e toda a semana carregava com a
pesada cruz de nos iniciar nos mistérios da língua portuguesa.
Ralhavam comigo,
mas, por mais que ralhassem, não conseguiam fazer-me compreender a
possibilidade de estar perfilada numa cadeira a receber as visitas na sala,
como via as filhas do recebedor e as do médico da vila quando vinham à nossa
casa. Francamente, abominava as adoráveis meninas, que ficavam com sorrisos
murchos ao cimo da escada, recusando-se a seguir-nos à quinta com medo de
estragar os lindos vestidos à moda, esses vestidos aparatosos, cheios de fitas
e rendas, que usam na província as meninas ricas.
Eu, que era uma
selvagem incapaz de tolerar um colete justo ou umas botas apertadas, que pedia
para que me cortassem o cabelo para não sofrer os penteados, que só gostava dos
vestidos depois de afeitos ao corpo pelo uso, olhava com verdadeiro assombro
aquelas meninas modelos.
Às vezes, a minha
boa Maria Augusta tentava apertar um pouco os cordões do colete — "para me
tornar elegante" —, mas eu protestava tão energicamente que tinha de desistir
logo, dizendo-me, arreliada:
— Ó menina, é
preciso sofrer para ser formosa!
— Pois sim, espera
por essa… Eu nem quero sofrer nem quero ser formosa!
Uma vez
levantei-me cedo, estava uma manhã gloriosa de Inverno, deste Inverno tão
nosso, em que o azul do céu é limpo, puro e transparente como se fabricado
fosse pelo mais escrupuloso dos artistas e da mais preciosa das porcelanas.
Em casa, apenas as
criadas traquinavam na cozinha, encetando a labuta do dia, e a Maria Augusta
abria janelas e portas para a limpeza do rés-do-chão.
Acordara cedo; a
chilreada dos pardais madrugadores era o meu despertador.
O Sol começava a
aureolar o cume dos montes, e, como a nossa casa ficava ao cimo dum vale,
depressa me inundou o quarto duma luz rósea que enchia de alegria os meus olhos
e me fazia cantarolar e rir sozinha, como se estivesse no maior divertimento.
E vesti-me à
pressa, com grande abundância de gestos, batendo na água fria, que atirava para
a cara com as mãos em concha, satisfeita e feliz como se uma alma nova
despontasse em mim.
Em baixo, a Maria
Augusta e as outras criadas festejaram o meu sorriso jubiloso, a minha
madrugada feliz.
Correndo para o
pátio, comecei por dar liberdade a toda a capoeira que ainda permanecia
fechada, por soltar o Tigre que os criados já tinham acorrentado à sua grilheta
diurna, e fui à estrebaria ver a nossa boa Cacilda, a burra, que me
cumprimentou com um zurrar festivo.
Iniciando assim o
que a Maria Augusta chamava irreverentemente a série dos meus disparates, não
parei no princípio, o que seria prova de pouca independência de caráter…
Desprender a Cacilda e trazê-la para a horta, para que ela pudesse saborear à
vontade as couves que o velho hortelão guardava avaramente dos seus dentes de
apreciadora, pareceu-me a coisa mais natural do mundo.
Depois, ela bem
almoçada, e naturalmente tão alegre como eu e como o Tigre, que a seguíamos
satisfeitos de a ver escolher uma a uma as mais tenras folhas da horta, achei
também natural, como um simples remate de tal festa, que fôssemos dar um
passeio até à mata.
Chamando a
Cacilda, acariciei-lhe o pescoço, dei uma volta à corda na mão, e dum pulo
fiquei-lhe montada sobre o dorso como um rapaz.
Um pequeno assobio
ao Tigre preveniu-o da minha resolução, e aí vamos nós todos três, alegres e
felizes, porque o céu estava límpido e o Sol brilhava, porque o ar era puro e
os campos reverdeciam numa jovialidade de Primavera próxima.
A meio da carreira
sobreveio-nos um obstáculo inesperado, na vera pessoa do bom padre Zé, que já
voltava das suas árvores em cata do almoço, e fez estacar a Cacilda com os seus
gestos e gritos indignados.
— Para onde vai a
menina assim montada?!
— Dar um passeio à
mata. É para abrir a memória e o apetite — respondi-lhe a rir.
— Mas isso não são
modos de menina bem-educada! — apostrofou-me aflito.
— Eu não sou menina, nem bem-educada! —
retorqui-lhe numa gargalhada.
— Se a mamã
sabe!….
— Não lhe diga
nada, que eu já volto.
E, dando um sinal
à Cacilda, partimos a galope, deixando o bom do padre no mais profundo pasmo.
Agora são os
médicos os primeiros a preconizar às senhoras essa maneira de cavalgar, e não
tardará que a moda a imponha como a última palavra do chic.
Como a razão é intuitiva e se faz sentir na inteligência liberta da criança!
Mas à volta é que
foram elas! Tinha levantado um verdadeiro temporal de protestos e queixas com
os meus atos, tão espontâneos e naturais quanto me pareciam humanos e justos…
Pois não seriam
eles meritórios: abrir as prisões, soltar os presos, dar de comer aos que
tinham fome, e em seguida premiar-me a mim mesma indo passear?!
Não o entenderam
assim em casa, lá porque as galinhas, tendo encontrado aberto o portão do
quintal, tinham acabado a destruição da horta, que a Cacilda encetara com tanto
brio! O hortelão parecia doido e a minha pobre mamã benzia-se assustada,
temendo que eu tivesse o diabo no corpo.
Fui chamada ao
escritório, àquele escritório de paredes revestidas de velhos livros onde o meu
pai recebia os caseiros, fazia a sua escrituração, e lia, a maior parte das
vezes, os seus in-fólios mofentos.
O caso era
realmente grave, mais do que poderia presumir, para que assim se tivesse
apelado para a autoridade paterna…
Assentado na larga
cadeira antiga, de couro lavrado e braços abertos num carinhoso afeto, onde ele
descansava as suas finas mãos de intelectual, diante do pesado bufete de
pau-santo torneado em três cordas, como um juiz austero, o meu pai admoestou-me
severamente por tanto disparate e terminou por dizer: — que me tornava o
escândalo da família e assim não podia continuar…
E como esta outras
muitas fiz, que não acabaria se as fosse a contar todas.
A mamã queixava-se
da minha extrema ignorância e incapacidade de ser apresentada diante de gente,
o que o meu pai corroborava dizendo por seu turno: — ser absolutamente preciso,
e muito urgente, mandar vir uma professora que tomasse conta de mim e me
sujeitasse a uma "disciplina de ferro".
— Que não, isso
que não! — acudia a minha mãe — não queria estranhas metidas em casa a verem e
a ouvirem tudo quanto se faz e em pouco tempo a saberem mais da nossa vida do
que nós próprios. Nem a gente pode falar à sua vontade, nem ter as suas coisas,
porque enfim não há casa que as não tenha, sem que tudo se saiba e se comente…
Depois, cerimônias, niquices, exigências… nada, isso
não!
— Pois é o único
meio: — opinava o papá triunfante — uma senhora que lhe fale uma língua
estrangeira e que a sujeite a um regime invariável.
— Nada, um colégio
é ainda o melhor; mete-se lá a pequena e fica-se livre de cuidados.
Meu pai hesitava —
tinha lá as suas ideias contra os internatos —, e estou em crer que me preferia
ignorante, como a Zefinha da horta ou a Teresita do barbeiro, a ter que me mandar para um colégio.
Os meus irmãozitos
todos se afligiam quando se ventilava a magna questão, que os ameaçava da minha
ausência, e eu, sem bem saber o que preferia, ia gozando alegremente os dias na
bela paz da minha aldeia florida e ensoalhada.
Mal suspeitava que
a desgraça estava a bater-me à porta — e mais terrível do que podia imaginar!
Parece-me estar a ver entrar na cozinha de grande chaminé, onde se enxugava o enchido e as castanhas secavam no caniço,
a mulher dos recados que fora à vila buscar o correio, e me dizia,
alvissareira:
— Olhe, menina,
aqui vem uma carta para a mamã. É do seu tio Manuel; já lhe conheço a letra.
Muito alegre,
arrebatei-lha das mãos e fui-me pela casa fora a gritar pela mamã até dar com
ela no celeiro a receber uma pensão. Lembro-me bem — cinquenta e sete! — gritava o caseiro, e a mamã, muito
serena, ia apanhando um grão de milho por cada alqueire que o homem despejava
na tulha. Quando entramos — eu e os meus quatro irmãozitos — como se fôssemos
uma revoada de pardais bulhentos, ela toda se agastou… — Como isto me ficou
nítido na memória! — Quando viu de quem era e o que dizia a carta, correu toda
satisfeita em busca do marido, enquanto nós aproveitávamos a falta de
vigilância para saltarmos todos para dentro do milho. Eu, que era a maior,
enterrava-me até à cinta nos grãos amornados e enchia os bolsos do meu bibe
branco, para levar uma lembrança ao pombal. Um dos pequenos gritava que as suas
botas, de canos muito largos por terem pertencido ao mais velho, levariam mais
dum saco de milho, para a ração suplementar da Cacilda.
Ríamos
perdidamente, atirando uns aos outros aquela chuva de grãos muito secos, ainda
cheirando a campo e ao sol das eiras onde se aloirara e brunira!
O caseiro achava
muita graça aos meninos — pudera não! — e na sua cabeça lanzuda esboçava-se,
talvez, o pensamento finório de se enganar na conta com alguns alqueires a
menos. É provável que assim sucedesse, porque a carta do tio Manuel tinha
transtornado por tal forma a mamã, que até se riu quando nos veio encontrar a
todos aninhados dentro do milho, e não passou revista às nossas algibeiras
quando saltamos para fora e nos safamos com presteza — não fosse ainda cerceada
a merenda que levávamos aos nossos protegidos da capoeira, do pombal e da
estrebaria!
Já fora e ainda
ouvíamos a contagem dos alqueires que entravam para a tulha, arrastada e
monótona. Os bois, jungidos ao pesado e primitivo carro de duas rodas,
estacionavam no quintal, ainda carregados com os sacos cheios com o resto da pensão, guardados por uma criancita vestida de jaqueta,
calças compridas e grande chapéu, como um pequeno homem de caricatura. O que
nós rimos! Era o filho do caseiro, o Tonito, mais novo
do que o mais novinho dos meus irmãos, mas já útil como uma pessoa crescida.
São assim os
filhos do nosso povo, duma sujeição ao trabalho que os predispõe para uma longa
existência paciente, sofredora e produtiva.
Como esse foi o
último dia feliz da minha infância, não me esqueceram nenhuns destes detalhes,
nem o cheiro à poeira do milho e aos queijos da serra da Estrela, que secavam
em tábuas presas ao teto do celeiro por cordas isoladas com testos de barro,
por causa dos ratos, providências caseiras da minha mãe.
Desde essa
luminosa tarde de Outono, ainda quente como se o sol caísse a prumo, num
estiramento inesperado de Estio, e já perfumada pelos frutos maduros, que se
recolhiam à pressa, e pelo mosto de cheiro forte que ferve nas dornas ainda
antes de recolher ao lagar, a nossa casa transformou-se completamente. Eram só
conferências sobre o que se daria aos manos, e mais os
lençóis bordados, a coberta de damasco para a cama, as toalhas de linho com
ricas franjas de renda de Peniche… Tudo quanto havia de melhor se levava para o quarto da laranjeira, o mais vasto e cômodo da casa, o
próprio quarto de meus pais, que tudo achavam pouco para receber condignamente
o mano Manuel, que voltara havia pouco tempo do ultramar, casado com uma
estrangeira. E assim passaram oito dias em que se não pensou nem falou noutra
coisa.
A minha mãe fazia
esforços de memória por se recordar bem nitidamente dos traços fisionômicos do
irmão, como se volvidos tantos anos gastos em trabalhos e fadigas, ele pudesse
ter ainda o rosto levemente rosado, o buço mal lhe sombreando o lábio superior,
a cabeleira negra ondeada que lhe davam um tão gentil aspeto no retrato em daguerreótipo, tirado quando assentara praça em cadete, e
que nós não nos cansávamos de ir ver à sala de visitas, no seu estojo forrado
de veludo granada.
Até o padre José
afrouxava a sua vigilância pelo nosso estudo e punha-se ao dispor da mamã —
para o que fosse necessário. A minha mãe sorria benévola e agradecia, mas não o
ocupava em coisa alguma, porque ele, muito forte no português e no latim e
mesmo um tanto no francês, tirado disso só à mesa, diante duma travessa cheia
de açorda, ou no pomar podando e cuidando das suas queridas árvores, era homem
de alguma utilidade.
Um santo, o nosso
bom professor! Que saudades dele eu tive depois, quando comparava a sua maneira
tão lhana de ensinar, a sua ingenuidade de bom, respondendo meio comprometido
às nossas curiosidades extemporâneas, e quando se atrapalhava à nossa pergunta
atrevida:
— Ó padre Zé, para
que está sempre a falar no diabo?
Era o costume
dele, o seu bordão.
— É verdade —
respondia-nos muito ingênuo —, é um diabo duma mania que eu tenho de estar
sempre a falar no diabo!…
Um bom homem,
afinal de contas; um santo velho, nada fanático, de bolsa franca para todas as
misérias, palavras de consolação para todas as lágrimas, espírito bem
equilibrado e muito lógico, um filósofo sob a aparência dum sólido camponês.
Conseguira que eu aprendesse da minha língua aquilo que ainda hoje sei; conseguiria
— era capaz! — ensinar-me talvez o latim e até a ajudar-lhe à missa. O que não
faria desta sua rebelde discípula a paciência beneditina do bom padre José!
O tio Manuel era
irmão mais velho da minha mãe. Saíra de casa muito novo; a última vez que
empreendera a incômoda viagem à aldeia, era apenas cadete, como tirara o
retrato. Depois fora para a África, na ânsia de ganhar honras e postos. De lá
percorrera quase todas as possessões ultramarinas, sem mais se lembrar de
escrever à família. Só havia pouco tempo mandara notícias participando ter
casado, e dizendo a sua resolução de voltar em breve ao reino.
Alguns meses mais
tarde, nova carta dava conta da sua chegada a Lisboa, onde estava tratando de
se instalar, e convidava a irmã e cunhado para irem fazer-lhes uma visita. Na
última carta, aquela que tanta impressão causara em todos nós, dizia: — que, em
vista da dificuldade que os meus pais opunham em deixar a casa, viria ele
visitá-los e apresentar a sua senhora.
No dia em que
deviam chegar, logo de manhã nos envergaram os fatos domingueiros,
recomendando-nos muita cautela — não fossem os tios julgar-nos uns besuntões!
Nesse dia era
escusado o lembrete, pois nenhum de nós pensava em
diabruras, ansiosos como estávamos por ver chegar os hóspedes.
O Papá partira
cedo para a vila, para esperar a diligência que traria os viajantes, e nós
subimos às janelas mais altas a ver se descobríamos o carro por entre as faias
da estrada real.
Lá para o meio-dia
descobriu um de nós uma nuvem de poeira ao longe — tal qual como no Barba Azul
— e, logo depois, ouvimos o guizalhar da diligência que já se avistava numa
volta da estrada. Corremos alvoroçados a prevenir a mamã, que na cozinha dava
as últimas instruções à criada sobre a cozedura do peru e o assado de leitão.
Um quarto de hora
depois apeava-se à nossa porta, entre o povo curioso, a mais extraordinária
pessoa que até esse tempo eu tinha conhecido.
Depois disso, no
caminho da vida, que já não é curto pelo muito que tenho sentido e sofrido,
tenho visto bastas figuras caricaturais: gente de todos os modos e feitios,
tipos de comédia e tipos dolorosos de tragédia, riscados em dois traços por
Gavarny, risos disformes em pálidos abortos, exageros de vestuário igualmente
ridículos, ou pela extrema elegância ou pelo extremo desleixo… Tenho visto de
tudo, e jamais senti o pasmo que essa primeira pessoa estranha causou no meu
espírito desprevenido.
Os meus irmãos, em
frouxos de riso, fugiram para dentro de casa, e o Miguelzinho, que era o mais
velho, abaixo de mim, puxava-me pela manga sublinhando risos muito irônicos.
Eu, não sei
porquê, não tive vontade de rir; qualquer coisa me dizia cá dentro de mim que
era para pranto, e não para riso, a entrada daquela gente na minha vida.
Primeiro apeou-se
o meu tio, um velhote bastante alquebrado, mas alegre por se ver na terra
natal. Abraçava toda a gente, e tratava por tu velhas
que eu me acostumara a considerar avós, e que limpavam os olhos lagrimejando
por o verem tão acabadinho… E ele ria — raparigada do seu tempo, todas essas
velhinhas, e queriam que ele estivesse um rapaz, e mais que não tinham andado
por trabalhos e canseiras de climas inóspitos!…
E achava
extraordinário que a irmã, uma garotinha de saias curtas quando ele partira,
estivesse já mãe de filhos…
— E já de cabelos
brancos — visse bem o mano!…
Atrás dele, saiu
do carro uma pequena de cinco anos, parecendo ter o dobro, nem bonita nem feia,
extravagantemente vestida à inglesa de torna-viagem, e toda doutoral nas suas
frases. Fora a última a nascer, depois de bastantes anos de casamento, em que
todos os filhos lhes tinham morrido; por isso era respeitada como milagre vivo.
Por fim, quando os
criados tinham carregado uma aluvião de malas, necessários, sacas de linho
bordadas, e tanta coisa que nos fazia arregalar os olhos de espanto, a nós
pobres pequenos selvagens, que, a respeito de viajar, íamos às quintas próximas
pelo tempo da vindima e até ao rio em folgada pescaria uma vez por festa.
Depois começou a sair um prodigioso chapéu de palha envolto em gaze cor de
castanha, e, a seguir, um corpo enorme vestido com um guarda-pó de xadrez em
largas mangas perdidas.
Era monstruosa a
minha tia! Nunca lhe pude dar este nome porque o meu espírito se recusou sempre
ao convencimento desse parentesco, que repugnava à minha afetividade.
Alta como um
carvalho e gorda em proporção, o que a tornava ainda mais exótica entre gente
miúda como é a nossa. Talvez não tivesse sido feia, mas as feições estavam
enterradas em tecido adiposo, e só naquele deserto de cara branca brilhavam uns
olhos metálicos e frios que nenhum sentimento conseguia adoçar. Quando os pousava
na miudinha figura de morenita que eu era então, toda a minha carne se
arrepiava numa tremura e os meus nervos vibravam desagradavelmente.
Trazia o cabelo,
já a embranquecer, cortado pelo pescoço — à estudanta,
diziam por lá as pequenas da aldeia —, modos autoritários, voz de comando,
andar de granadeiro, e uma língua-de-trapos que ninguém entendia.
Mãos e pés não
tinham fim, e o seu desembaraço irritava-me pela mania que tinha de fazer tudo
e melhor do que ninguém, de falar alto e atirar os braços para a frente num
gesto resoluto de jogador de box.
Meu pobre tio
admirava-a e escutava-a, submisso, como a um oráculo, nada fazendo sem a
consultar.
Sobretudo nenhuma
delicadeza feminil, muito orgulhosa da sua superioridade e senhora da sua
pessoa, dizendo mal — de pórtuguês, e
tudo quanto é pórtuguês, muito estúpidos!…
Dizia-se filha dum
banqueiro da Havana prodigiosamente rico, mas tais riquezas — como as de Pedro Cem — perdiam-se na sombra da lenda.
Contava coisas
estupendas de seu papá, descendente em linha reta de grandes de Espanha, pelos vistos, dos soberbos companheiros
de Colombo… A sua mamã, essa era uma aristocrática lady, viúva dum membro da aristocracia britânica, que não se
dignara de aliar o seu puro sangue azul ao de descendente dos audazes
conquistadores…
A fortuna de seu papá pesara por muito tempo nos destinos do vizinho
reino, como o luxo da mamã dera brado na corte de
Madrid e na vilegiatura de San Sebastian, uma vez que os dois tinham visitado a
metrópole.
Coisas que ela
dizia, que, ao certo, quem pode dizer donde vem essa gente, retalhos
desencontrados e disparatados das raças do mundo inteiro?!
Apreendi depois,
no decorrer da nossa convivência, por meias palavras escapadas a uns e a outros
e por inconfidências de pessoas das relações e que os tinham conhecido lá fora,
que o banqueiro caíra vergonhosamente numa falência que fizera estrondo e a lady não passava duma aventureira, dessas que a Inglaterra
exporta, sob a capa angelical de sérias institutrices,
e que por todos os meios querem arranjar uma existência mais cômoda.
Orgulhava-se
extremamente dessa sua origem britânica, como de ter nascido na América, como
se fosse uma legítima filha dos Estados Unidos…
Oh, a livre América,
sonho de todos nós os que nos sufocamos sob a pressão do convencionalismo
europeu, como essa mulher no-la mostrava odiosa, opressiva, duma rigidez de
puritanismo fanático!
— Oh! Amérricana, grande
coisa!… Eurrópa, muito
desmoralizada!… Pórtuguês, muito estúpida!…
Igual ao seu
orgulho de ter nascido numa ilha da América e de pais tão ilustres, só o
desprezo, e a ignorância propositada, por nós, pelos nossos gostos e
aspirações, pelo nosso povo tão laborioso e inteligente, embora inculto, pelo
nosso país tão belo, o nosso clima tão doce no Sul e tão soberbo junto às
montanhas que a neve cobre nas invernias grandes…
Desconhecia a
nossa história, não sabia ler os nossos poetas, não se entusiasmava com os
nossos prosadores. Os nossos costumes, tão pitorescos, eram, aos seus olhos, de
selvagens; as canções do nosso povo achava-as sem brilho nem graça, melopeias
só próprias para adormentar crianças.
Oh, o horror que
nos causava essa criatura, que assim abocanhava tudo quanto nos era querido,
achando sempre que dizer das superioridades dos outros países! Nós, os
pequenos, que não tínhamos adquirido com o decorrer da vida a fleuma risonha
com que meu pai a escutava, a indiferença com que a minha mãe ia tratando da
sua vida sem lhe prestar atenção, nem a paciência do padre Zé, que abanava a
cabeça embranquecida como única resposta; nós desesperávamo-nos por não nos
permitirem contrariar a hóspeda. E o Miguel, que já pensava muito bem e tinha
observações muito a propósito, dizia-me baixinho, de cada vez que a ouvia
denegrir as nossas coisas: — Não sei como, sendo tão mau o nosso país e a gente
tão estúpida, ela casou com um português e veio para cá maçar-nos!…
Mas o que eu não
compreendo é como essa criatura, que para nós era tão desagradável, conseguiu
convencer meus pais da sua inteligência, chegando a dar-lhe razão nos seus
grossos dislates.
Principalmente na
minha pobre mãe, que se julgava uma ignorante — ela que dirigia a sua casa com
tanto critério e olhava providencialmente por nós todos —, fizera profundo sulco
a torrente de sabedoria enciclopédica que jorrava enfaticamente da sua boca.
Logo que chegou,
desembaraçada dos apetrechos da viagem, olhou-nos com altivez. Depois tomou-me
à sua conta, por ser eu a mais velha e por ser rapariga. Um dia sujeitou-me a um
interrogatório em forma:
— Menina sabe
francês?
— Não, menina não
sabia francês.
— Oh!… vergonha!
Estive para lhe
responder: — E a senhora sabe português?!
Chamaram-me sempre
atrevida nas respostas, mas o que é certo é que me arrependo sempre das poucas que
tenho deixado de dar tal qual as penso.
— Menina sabe
inglês?
— Não.
— Oh! sabe desenha?
— Não.
— Oh! muito linda! Aquelas sombras!… Na Amérrica
toda a gente sabe desenha!… Sabe piana?
— Não.
— Oh! vergonha,
vergonha, uma menina não tocar nem cantar!…
E seguiu-se uma
preleção sobre tudo quanto enumerava e que eu, pertinazmente, ignorava. Na
verdade, eu sabia pouquíssimo, mas estou certa de que ela não conhecia senão de
nome a maior parte do que dizia. Aquilo tudo era papagueado, elementos de
coisas que aprendera no decorrer movimentado da sua vida.
O meu querido
padre José pasmava: — Como podia uma senhora saber tanto?!…
E a minha mãe
desculpava: — Oh, a mana não imagina a falta de professores que há por estes
sítios! Temos pensado em mandar a pequena para um colégio, mas o pai prefere
uma professora… Eu, professoras em casa — tenho-lhes um medo!
Demoraram-se,
apesar de todos os incômodos a que se sujeitavam naquele selvático país, um
longo mês em nossa casa. Depois…
Quando penso,
ainda estremeço de raiva! Depois de longas conferências e segredos com os meus
pais, combinaram que eu iria com eles para Lisboa e ficaria em sua casa para me
educar.
Quando nós, os
pequenos, soubemos o que significavam tais mistérios, já tudo estava resolvido.
Eu desanimei; os meus irmãozitos choravam pelos cantos, e chegavam-se a mim
para os animar. O Miguelzinho, que era o preferido da mãe, tentou discutir tal
resolução e pedir para que me não entregassem à estrangeira,
mas ficou desiludido da sua influência porque o chamaram pateta e proibiram-lhe
terminantemente de se meter onde não era chamado.
Cá por mim, nada
pedi nem objetei; fechei-me num mutismo que exprimia já, mais do que as
palavras, a onda de revolta que se me ia formando no coração.
Sucumbi. Já não
tinha gosto para nada: não voltei à quinta nem procurei mais a Cacilda, para a
cavalgar como os rapazes e percorrer os caminhos tão conhecidos e amados. Os
meus amigos do pombal sentiram por certo a minha falta, como os da capoeira a
tinham já sofrido…
Nunca mais procurei
as pequenas minhas companheiras, mas via-as por detrás dos vidros da janela
dançarem em rodas, ouvia-lhes as cantigas joviais, percebia que jogavam a laranjinha ou faziam de senhoras vizinhas…
E ficava-me indiferente, já alheada da sua alegria, afastada para sempre do seu
convívio, desprezando inconscientemente a sua humildade. Era como aquelas
pessoas, quase na agonia, que já não são deste mundo nem o que nele passa lhes
interessa — e ainda não entraram no supremo descanso da morte.
Decerto que muitas
vezes pensara em sair da aldeia, percorrer novos caminhos, ver paisagens
inéditas, terras lindas de encantar como as sonhava por esse mundo fora!…
Invejara, não poucas também, os vagabundos que passavam pela aldeia e nos
contavam coisas estranhas para os nossos espíritos, e de que eles traziam nos
olhos um vago assombro… Devaneando, o Miguelzinho e eu, quantas vezes não
conversamos sobre a divertida existência dos ciganos, que andam de terra em
terra com os ursos e os macacos e sob a sua esfarrapada tenda têm todo o seu afeto
e interesse no mundo?!
Sair dali… ir
viajar… ver paisagens novas em folha para a minha retina, terras desconhecidas,
gentes exóticas, seria uma libertação, mas ir na companhia duma pessoa que nos
era tão particularmente antipática, confiada à sua guarda, colocada sob a sua
autoridade, isso nunca o podia ter sonhado, nem como pesadelo me assaltara
jamais o espírito.
Não chorava,
porque a profundeza do golpe me revoltou até quase à loucura. Desde o dia em
que me deram a notícia do meu destino, deixei de ser a criança que fora até aí
para me tornar numa sombria criatura, raro abrindo em risos a sua alma ingênua.
Tinha doze anos,
cheios de saúde e alegria; era uma perfeita criança, sem sombra de malícia a
macular-me o espírito — uma pequena criatura muito humana e muito bondosa. Fui
depois uma pobre alma torturada, contorcida em ódios, desprezando e
desconfiando de tudo e de todos.
O mundo deixou de
ser para mim uma festa cheia de sol para se tornar num álgido subterrâneo.
Hão de dizer que
exagero, que o caso não era para tanto, nem a mulher de meu tio merecia o
repulsivo ódio que lhe votei… Mas que querem?! Não há animais que odeiam uma
determinada criatura, numa repugnância instintiva, sem aparente razão?
Tal o meu
sentimento por ela: instintivo, invencível, fatal.
Meus irmãos
choraram muito quando eu parti; a minha mãe abraçava-me soluçando
convulsivamente, apesar de toda a sua serenidade de mulher que nunca sentira
rebate de nervos em vibrações assustadoras, mas eu desprendi-me dos seus braços,
de olhos enxutos, pálida e sombria, concentrada na convicção íntima de que não
me estimava verdadeiramente quem assim me expulsava do seu lar, para me colocar
sob a autoridade despótica duma quase desconhecida e já detestada criatura.
Antes o colégio! —
pensava com amargura. Ao menos teria amigas que sofreriam comigo o cativeiro,
teria talvez professoras que estimasse…
Toda a gente da
aldeia acorrera para me dizer adeus; assim eu andava de braços para braços,
levando beijos que me repugnavam mas aos quais não tinha coragem de me negar.
As criadas, uma por uma, vieram ainda à porta do carro dizer-me os últimos
adeuses, e quando a Maria Augusta me abraçou apertou-me com tal ânsia que um nó
se me deu na garganta, e teria fraquejado ali, diante da estrangeira,
se a não visse no fundo do carro sorrir com ironia da cena, que aos meus olhos
nada tinha de ridícula.
Quando na vila, ao
partir da diligência, meu pai se voltou para limpar as lágrimas furtivamente,
toda a minha alma explodiu num adeus — que mais era um grito de protesto… Até
ele! Todos, todos, me abandonavam. Era demais!
Aninhei-me a um
canto da carruagem, estupidificada pelo assombroso do caso, e deixei-me
transportar como um fardo, sem vontade nem iniciativa; era mais um volume a
acrescentar aos inúmeros sacos, malas e maletas que abarrotavam a diligência
alugada por conta da minha enorme tia.
De pouco me
recordo dessa jornada triste que me levou a Lisboa. Dias chuvosos de princípio
de Outono, estradas desertas, campos desnudando-se numa paisagem uniforme,
tristezas da alma e tristezas da boa natureza, que se despedia dos meus olhos
num compungimento de simpatia.
Ainda bem que
chovia! Se fizesse sol, se as raparigas cantassem pelos campos, e os carros de
bois arrastassem pelos caminhos a fartura da colheita, quanto isso seria
infinitamente mais desolador para a minha pobre alma confrangida!
Assim cheguei a
Lisboa por uma madrugada nevoenta, sem sequer me ter admirado do caminho-de-ferro
que pela primeira vez vira no Entroncamento, onde o fomos tomar. O que podia
interessar e comover o meu espírito atordoado por esse repelão da vida, que tão
cedo começava a magoar-me?!
Ah, como se sofre
quando se é criança, quando ninguém respeita a nossa dor e a nossa vontade,
quando decidem do nosso querer como se fôssemos títeres animados por maquinismo
industrial!
Lisboa não me
deslumbrou, porque mais, muito mais, fantasiara dos seus encantos e fausto no
meu sonhar de criança. As ruas da Baixa, com as suas altas casarias alinhadas e
uniformes, que a rigidez pombalina decretou, faziam-me uma terrível saudade dos
campos largos por onde a vista passeia e cabriola como cabritinho montês.
Apertava-se-me o coração recordando os horizontes que se esbatem ao longe, nas
serranias violetas; e o marulhar da multidão irritava-me os nervos, mal me
podendo recordar o rumorejar embalante dos pinheirais atravessados pelos ventos
em livres carreiras de tardes outonais…
O meu pobre tio
mostrava-me coisas, queria que me extasiasse com a capital, eu pobre serrana
que nunca vira nada, mas a faculdade admirativa tinha-se embotado em mim. Era
um corpo sem alma — que essa por lá me ficara, errando pelos campos da minha
risonha terriola.
Só quando o mar se
descobriu diante dos meus olhos, eles se abriram numa atenção de velha
simpatia. Não, nunca tinha visto o mar, mas sonhava-o e amava-o desde muito,
com o afeto entranhado e atávico que todos nós lhe temos. O mar, a nossa
estrada movediça e terrível!… O mar, essa nossa segunda pátria, foi a única
coisa onde descansei a vista com enlevo e que durante os quatro anos de
cativeiro me deu algum prazer à vista. Quando, entre duas ruas, o descobria lá
ao fundo, numa nesga rutilante de sol, toda a minha alma se refrescava e
florejava de sorrisos.
Felizmente que a
casa do tio era num bairro afastado e novo, onde raro chegavam os pregões
berrados das ruas e só de longe em longe o rodar duma carruagem fazia
estremecer os vidros das janelas. E, por fortuna, tinha atrás um jardinzito,
entalado entre casas é verdade, mas enfim mimoseando-nos com um pouco de ar mais
puro para os robustos pulmões desenvolvidos pelo ar forte da montanha.
A cubana tinha formas dogmáticas sobre a educação, que serviam
para os cinco anos da filha e para os meus doze de rapariga núbil.
Era preciso que me
levantasse cedo — vá! Isso não me custava, acostumada desde criança às
madrugadas na aldeia. Mas, depois de me levantar, não podia correr pela quinta,
abrindo o apetite ao almoço suculento que me esperava na mesa; tinha que fazer
a cama, arrumar o quarto, e estudar.
Em casa, para
ajudar a Maria Augusta, muitas vezes lhe tirava a vassoira das suas pobres mãos
encarquilhadas, e varria, cantando festiva, auxiliando-a no fazer das camas e
mais arranjos domésticos; ali, obrigada, mandada por aquela monstruosa
criatura, sentia um tal desespero, um tal rancor a referver-me na alma, que
todas as minhas ideias eram negras como fuligem, todos os meus sentimentos eram
maus a roçarem pela perversidade.
Encostada aos
vidros da janela do meu quarto, olhava a gente que seguia o seu caminho,
apressada ou vagarosa, alegre ou triste, pobre ou rica — e a todos eu invejava
com verdes invejas de réptil!…
Era preciso que
estudasse três horas antes do almoço, e o meu espírito vagabundeava pelos
caminhos pedregosos da minha terra, debruçava-se na ribeira onde os salgueiros
refletiam a folhagem leve e as margaridas rosadas, as pervincas azuis e os
miosótis da cor do céu espreitam entre a verdura da erva tenra…. Era preciso
que inclinasse sobre os livros a minha pobre cabeça pesada de sono, e os meus
olhos fechados reviam os milharais regados de fresco, as cerejas vermelhas
suspensas como pingos de lacre das árvores amigas, as amendoeiras em flor, as
encostas cobertas de olivedos pálidos, os pinheiros esguios, os castanheiros
arreganhando a boca dos seus ouriços para nos darem o fruto saboroso. O meu
espírito não acompanhava o pobre corpo oprimido, que se estiolava num quarto
fechado, diante de estéreis livros que não compreendia; não! Ele assistia, lá
ao longe, à ininterrupta festa da natureza; alegrava-se com os divertimentos do
campo; procurava os magustos, onde se comem as castanhas assadas na fogueira;
ia aos serões, onde as velhas avós contam lindas
histórias às raparigas, fiando à mortiça luz da candeia suspensa do velador de
pau enegrecido pelos anos; evocava as ranchadas que vão às romarias, cantando e
tocando a viola e os ferrinhos, e os que vão para as feiras álacres, entre
festivos e afadigados, na policromia do trajar das mulheres e na gravidade
interesseira do comerciante que oferece ou compra a mercadoria e discute
largamente o seu negócio…
A fuga era o único
deleitoso pensamento que se esboçava no meu cérebro. Fugir! Ser livre! Não ter
mais diante dos meus olhos a figura estupenda da mulher de meu tio, nem a face
simiesca da petiza!… Era o ideal supremo que acariciava, um sonho redentor que
se me fixava na cabeça por mil pontos delicados e imperceptíveis. Formava com
esta única e obsessiva ideia projetos sem conto, e se não fosse a covardia ante
o escândalo, que é ainda uma servidão do nosso espírito, se não fosse o receio
atroz de ser apanhada pela polícia, vir o meu caso por miúdos nos jornais, e
ser finalmente trazida de novo ali, certamente teria feito
alguma!… Faltava-me a energia determinante dos fortes caracteres. A
revolta traduzia-se pelo embrutecimento, pela apatia, pela oposição passiva dos
fracos e dos ignorantes.
Fechada no quarto
todas as manhãs, em vez de estudar deitava-me sobre a cama, e afiguravam-se-me
as tábuas alinhadas e estreitas do teto como se fossem as tábuas do meu caixão.
Lá fora era a
vida: os pregões que atravessavam a rua solitária numa festa ruidosa de cores,
revoadas de andorinhas riscando o azul em ziguezagues caprichosos, a chilreada
estúrdia dos pardais pelos telhados…
Morria de
aborrecimento, e morrer, creio, foi o pensamento mais consolador que nesse
tempo se alojou no meu cérebro.
Não estudava, o
que era em mim um velho hábito, mas com as lições do padre Zé tinha chegado a
compreender alguma coisa, e agora sentia-me sem nenhuma inteligência,
sonolenta, parada, sem sombra de vivacidade intelectual.
Tinha uns poucos
de professores, pagos pelos meus pais é claro. E por sinal que eram bem
generosos com o dinheiro dos outros…
O inglês
ensinava-mo ela, mas eu odiava-a tanto e o meu espírito começava a achar um tal
prazer em contrariar os outros, que me sublevava contra mim mesma quando
começava a compreender essa língua que ela tinha como sua.
Farta já de a
saber, obrigava-a a algaraviar o português para me rir intimamente dos seus cômicos
disparates.
Estava assim.
Pouco saí durante
os quatro anos que durou o meu cativeiro — porque a sua companhia me
desagradava cordialmente, porque os passeios por ela escolhidos eram
odiosamente disparatados, e porque a sua imposição de me ensacar em verdadeiros
horrores, que ela alcunhava de vestidos à inglesa, me causava um asco
invencível.
Sem ter nunca
apreciado os laçarotes e as rendas esbanjadas nos
vestidos provincianos das minhas antigas conhecidas, sem ambicionar a elegância
casquilha das meninas lisboetas, o meu espírito era demasiadamente meridional,
demasiado artista, para se não prender com a forma e não se encantar pela cor e
pela beleza do trajo, como de tudo quanto me pertencia e rodeava.
Assim, achava meio
de me esquivar sempre que saíam, o que era raro, pretextando estudos que nunca
fazia.
De meses a meses,
a visita ao cônsul inglês era o único parêntesis de luz na tristeza da minha
vida. Tinha umas filhas encantadoras, algumas já senhoras, e, entre elas, a
Maud era muito gentil para mim, consolando-me e alegrando-me, nas poucas vezes
em que nos avistávamos, das muitas horas de incomportável tédio que passava
naquela casa.
Maud era muito
inglesa na sua educação para censurar uma pessoa das relações da casa, mas o
simples sorriso dos seus lábios finos, a ligeira carícia dos seus olhos puros,
era quanto bastava para me encher o coração de reconhecimento e ter na sua
amizade toda a confiança.
Pobre Maud! Levada
pelo destino para longe, obrigada a ganhar a sua vida pela morte dum pai afetuoso
e inteligente, em que país, em que terra, em que família, o seu sorriso
honesto, a sua graça séria, serão consolo e júbilo para alguma criança infeliz,
como eu era?!
Outra qualquer
pessoa, por menos melindrosa e susceptível que fosse, não se sentiria feliz num
meio em que tudo era violento e desagradável.
A cubana ralhava por tudo, nada estava feito a seu gosto, de
manhã à noite lamentava ter vindo para um país de que dizia indelicadamente,
grosseironamente, os últimos horrores: — a vida era caríssima, os criados eram
mandriões e inábeis, era preciso olhar por tudo, ver tudo, desde a roupa da
lavadeira até à limpeza da casa…
Tornava desgraçada
toda a gente, e não consentia que ninguém se considerasse infeliz — possuindo a
rara fortuna de a ter ao lado!
Ao meu pobre tio
impunha uma felicidade que ele estava longe, bem longe, de sentir. Não podia
formular uma opinião sua; era obrigado a confirmar tudo quanto ela dizia, e
ainda dizer-se o mais ditoso dos maridos e fazer elogios à sua alta
inteligência, bom senso e sábia economia.
Meu pobre tio!
Verdadeiramente, aquela pressão moral em que conservava o bom do velho,
revoltava-me. Nunca pensei em impor a minha vontade a ninguém, e tudo quanto
seja coagir a dos outros, tirar ao ser humano a liberdade de sentir e pensar
por si mesmo, exaspera-me como violência contra mim própria exercida.
Depois, a pequena
tinha a bela qualidade de espiar e ir contar-lhe tudo quanto se dizia e fazia
em casa, e por muitas vezes o que nem sequer se sonhava dizer ou fazer. Um amor de criança!
As criadas
entravam e saíam com uma velocidade de comboio expresso.
Quando
mal-humorada, dava-lhes bofetada e descompostura que as fazia fugir
espavoridas; mas, se por outro lado lhe desse na cabeça, enchia-as de presentes
e favores. Era conforme elas sabiam ou não lisonjear-lhe a vaidade.
A última que lá
conheci, talvez a mais velhaca de todas, essa soube cativá-la, e fazia quanto
queria sem que ouvisse uma simples reprimenda. Adiante falarei na menina
Eulália, que entrou para muito na minha vida.
Meu tio é que
escrevia para casa e lá dizia dos meus adiantamentos, que, francamente, não
eram nenhuns. Às notícias dos meus pais, tão carinhosas e prolixas, eu
respondia com aquelas cartas incolores que todas as crianças prisioneiras nos
internatos, ou onde quer que lhes ponham sentinela ao pensamento, têm escrito.
Cartas em que nem um vislumbre da alma infantil entreluz; cartas feitas só de
palavras ouvidas, e que são o primeiro passo para a mentira social a que nos
querem sujeitar, como a cães sábios sob o chicote domesticador e o medo… A
criança, que sabe que as suas cartas serão maculadas pelos olhares
indiferentes, e os seus verdadeiros sentimentos procurados nas linhas em branco
da sua pobre correspondência, perde a sinceridade, não se expande com lisura,
não diz o que sente…
Os bilhetes que
metia no mesmo sobrescrito de meu tio eram frios, pouco mais ou menos o que me
diziam que era dever escrever: — que estava bem, que era bem tratada, que me
sentia feliz… Nada do que, em verdade, eu teria desejo de dizer!
É certo que a
minha alma irritada julgava-se ofendida pelo desamor com que me tinham expulso
de casa para me atirar para o poder daquela mulher, que para mim resumia tudo
quanto eu podia odiar mais.
Nesse tempo não
gostava de ninguém — nem de mim mesma. Era injusta, mas era humana. O animal
criado em toda a expansão da sua vida material e forte, não se subjuga sem
rebelião, não se obriga sem muito custo a entrar no regime de servidões a que
se convencionou chamar deveres sociais.
Assim, quando meu
pai empreendia a longa viagem da aldeia à capital para me ver, eu não
correspondia de modo algum ao seu afeto e interesse.
Sem compreender o
enorme sacrifício que faziam para me dotarem com uma educação que supunham ser
um precioso instrumento de felicidade para toda a minha vida, achava que era
desamor o que me consagravam e tão somente desejo de me verem longe da sua
casa, porque o meu feitio moral os desconcertava e lhes era talvez odienta a
minha presença…
Às perguntas
insistentes que me fazia, vendo-me tão delgadinha e triste, o meu orgulho
fazia-me responder com sistemática negativa.
Se ele se
demorasse, se insistisse, a minha energia não seria mais forte do que a revolta
contra o sofrimento, tão natural ao ser humano quando novo e saudável.
Mas o meu pai não
supunha encontrar tais meandros e sutilezas no sentir duma criança que
conhecera defeituosamente franca e impulsiva. Por outro lado, os negócios da
casa não o deixavam demorar mais do que um dia ou dois, o que não era muito
para fundir o gelo que se formara no meu coração contrariado e amarfanhado.
Ora de estudos ia
eu muito mal. Os meus professores classificavam de estupidez a minha
incapacidade de satisfazer as lições, e creio bem que o era.
Não estudava, e
mesmo que estudasse não compreendia.
A cabeça
parecia-me de chumbo, pesava-me como o capacete dum guerreiro antigo. Não
faziam nada de mim, pela certa!
A professora de
desenho era a única que tinha dó dos meus traços indecisos e me dirigia com
boas palavras, por isso fiquei sabendo um pouco mais dessa arte, que das
outras, e com imensa pena de não poder fazer tudo quanto ela me dizia que seria
capaz de realizar, com a minha paixão pela correção das linhas clássicas, a
minha expansiva busca das cores, que ousava procurar inéditas e brilhantes na
paleta de principiante…
Sentia-me infeliz,
e, se verdadeiramente me quisesse queixar, não saberia bem precisar o que me
magoava naquela casa. Talvez porque era tudo, desde a gente até à comida.
Chegava a ser um suplício; acostumada em casa a encher abundantemente o meu
pequeno estômago voraz, ali tinha até medo de meter na boca um pedaço a mais,
porque via todos os olhos a pesarem e a medirem tudo o que a minha garganta
oprimida conseguia deixar passar.
Por economia e por
hábito, eram todos frugais, e eu, por cerimônia, quando os via recusar o roast-beef, que se comeria frio no almoço do dia seguinte,
recusava-o também, embora às vezes sentisse um bom apetite de animalzinho
carnívoro, que não se sente satisfeito.
O meu único
desafogo era o jardinzito, que tratava com todo o cuidado. As sementeiras iam a
horas para a terra, e não lhes faltavam as regas, com a água que eu mesmo
tirava da bomba, nem a cobertura de palha, mais tarde, por causa das geadas.
Andava sempre a
espreitar o crescimento das plantas tenrinhas, que mal despontavam na terra
pobre de adubos vitalizadores; e quando, na Primavera, as árvores que mal se
desenvolviam na sombra daquele jardinzito entalado entre prédios altos, se
enfloravam, toda a minha alma florescia com elas, recordando as que lá ao longe
perfumavam os campos onde a minha saudade me levava errante…
Ora o jardim era
dividido do que pertencia ao rés-do-chão da esquerda por uma sebe de madeira,
que eu pensara em disfarçar sob a verdura abundante duma trepadeira de folha
permanente. Passava horas desembaraçando as finas hastes para as ir guiando e
atando. Quantas vezes, de tanto as querer estender e espaldar, não parti
grandes pedaços, que depois lamentava muito contristada! O mal de quem tem
muita pressa… em contrafazer a natureza.
Ao fundo, era
limitado pela parede dum outro jardim, que nunca tivera a curiosidade de
procurar ver, embora por lá sentisse as risadas de crianças mais felizes do que
eu…
A tristeza até
embota a curiosidade, essa forma, embora inferior, da vivacidade intelectual.
Concentrava-me no meu próprio sentir, e todo o mundo me era estranho.
Ora isto foi assim
até que num dia veio para o rés-do-chão vizinho uma nova família: pai, mãe, e
filha, uma pequena encantadora, que começou a sorrir-me e a cumprimentar-me
quando me via na minha faina de jardineira.
A Mariquinhas, com
a sua mobilidade graciosa, falou-me uma primeira vez, a propósito de nada, só
para encetar conversa. Respondi-lhe acanhadamente de princípio, mas em breve
toda a minha timidez desaparecera diante da sua ampla cordialidade. Conversamos,
e logo à despedida nos beijamos, por cima da sebe que já conseguira vestir duma
folhagem de lindo verde brunido.
Em poucos dias ficamos
as maiores amigas do mundo. Pela minha parte entreguei-me com ardor ao estranho
prazer dessa amizade; agarrei-me a essa ventura com o desespero de quem se vê
só, num meio irritante e hostil, sem um único afeto a confortar um pobre
coração feito para o sentimento.
A Mariquinhas era
a única e amimada filha duns pais, que a tinham só a ela, duns poucos que no
seu ninho tinham batido asas palpitantes de alegria e esperança e a morte lhes
levara numa impiedosa e cega colheita.
Era em casa uma
pequenina rainha, que não abusava é certo da sua autoridade, antes punha uma
suprema graça nas suas ordens e caprichos.
Hoje, recordando
bem as suas feições, que o tempo já quase deliu na minha memória, acho que não
devia ser, talvez, uma formosura, mas nesse tempo era para mim tudo quanto
conhecia de mais puro enlevo.
Magrinha,
elegante, duma finura de traços angelicais, tinha a pálida beleza das camélias
delicadas, que as fortes chuvas do Inverno desfolham rapidamente.
Era muito
instruída, uma pequena e encantadora sabiazinha, que sorria, maternalmente
conselheira, da minha supina ignorância.
Já quase mulher,
um tudo-nada garrida, vestindo divinamente os lindos vestidos da sua escolha,
ela materializou no meu espírito o ideal duma santa ou dum anjo salvador, que
Deus tivesse mandado ao meu purgatório.
Porque…
esquecia-me mais esta: a mulher de meu tio era protestante, mas da última hora.
Com todo o fanatismo dos neófitos e a sua terrível mania de impor as suas
ideias e de pregar as suas convicções, todos os dias me ensinava e explicava o
evangelho, à sua moda, isto é: analisando-o e adaptando-o à vida quotidiana,
com uma banalidade desesperadora.
Na minha aldeia
nunca ouvira falar em evangelho senão no latim do padre Zé, à missa, quando a
minha mãe nos dava a consolação de nos pormos de pé. Mas estava acostumada a
conversar com o Anjo da guarda como se fosse um irmão, e no rosto delicado das
esbeltas Santas góticas, que ornavam as paredes da nossa velha igreja, lia
enlevadoras histórias que elas me sorriam…
Arrancar a uma
pobre alma de meridional, apaixonada pela cor e pela forma, o olor dos incensos
subindo em dolentes preces para um céu recamado de ouro e pedrarias, onde
lindas crianças cantam e tocam flautas e guitarras maravilhosas, onde florescem
jardins ideais, e correm fontes inesgotáveis de perfumes suaves; tirar-lhe a
ilusão magnífica duma vida embalada pela esperança do milagre, e dar-lhe em
troca a frieza do raciocínio, a clara e positiva significação das palavras, a
simplicidade da forma despida do encanto da arte, será por certo de muito bons
resultados futuros — e foi-o para o meu espírito, que se habituou ao rigoroso
cumprimento da verdade — mas nesse tempo constituía um sacrifício a mais a
juntar aos muitos outros.
Pois a Mariquinhas
encarnou, para a minha imaginação mortificada, o anjo meu companheiro e protetor.
Pela sua mão seguiria por sobre a frágil ponte que
representa o difícil caminho da virtude, nas imagens popularizadas pela
oleografia barata, em que o guarda angélico guia uma criancinha, com a sua mala
de viagem a tiracolo, pela áspera senda do bem…
Foram os dias bons
da minha permanência naquela casa.
Não sei como a
terrível cubana se não opôs à nossa convivência,
embora distanciada, apenas entretida pelas fugitivas palestras trocadas a medo
por sobre a sebe que as minhas trepadeiras iam vestindo e matizando com uma
floração policroma.
Lembro-me agora
que a Mariquinhas, com a sua viva inteligência cultivada no convívio da
sociedade, compreendera desde logo de quanta vaidade e orgulho se enchia a
enorme criatura, e sabia lisonjeá-la com leves delicadezas, das quais eu nem
sequer compreendia o alcance, na minha inteireza selvagem.
Hoje, era uma
linda flor mandada pela pequena para a mamã pôr no seu lugar, à mesa; amanhã,
notícias lidas por acaso nos jornais sobre coisas passadas em Inglaterra ou nos
Estados Unidos; depois, uma correta atenção aos discursos que lhes algaraviava,
quando acontecia vê-la da janela.
Com tão pouco, a
Mariquinhas vencera a resistência feroz daquela fortaleza e achava-se senhora
da situação. Nunca pensei que eu teria, talvez, conseguido o mesmo se o orgulho
— que é uma virtude que nos nobilita, mas torna difícil a vida social — não me
fizesse olhar com desprezo para esses processos que me punham numa dependência
moral que me irritava. Decididamente a Mariquinhas era muito melhor política;
onde o meu temperamento voluntarioso punha energia revoltosa, a doçura do seu espírito,
tão levemente irônico quanto profundamente conhecedor das fraquezas alheias,
usava o suborno da lisonja, que a todos conquista e agrada.
Apesar de as
famílias não terem nunca encetado relações que as tornassem do mesmo convívio —
porque a mãe da Mariquinhas detestava a espanhola,
como lhe chamava —, conseguira a criança, com as suas blandícias de lisboeta
amável, que me deixassem ir passar algumas tardes a sua casa.
Era um banho
dulcíssimo de calma para o meu espírito, que fermentava em sublevações
concentradas mas nem por isso menos violentas.
A D. Emília era
uma destas almas boas e sãs, tal qual a da minha mãe, modestas no cumprimento
religioso duma existência que nunca teve dúvidas nem sobressaltos de
consciência. O seu espírito era simples, e os seus olhos diziam na clara
expressão o que às vezes os lábios não se atreviam a proferir, com receio de ir
infelicitar os outros com uma observação menos resignada… ou mais verdadeira.
Conversar com a
boníssima criatura era abrir o coração e deixar correr as palavras livremente,
numa fluência de ribeira múrmura e límpida deslizando por campo sem obstáculos;
ouvi-la era escutar o carinhoso conselho duma rara alma humana que nunca se
tinha poluído numa mentira.
Ah, como o meu
coração se aliviou da tristeza imensa em que se afundava, contando-lhe a minha
vida; e como ao contar-lha precisei verdadeiramente o mal de
viver, que me vencera e arrastava para o desespero! E como ao
escutar-lhe a palavra mansa e insinuante, compreendi, e melhor apreciei, a
modesta e nobre missão da minha pobre mamã!…
O pai da
Mariquinhas parecia viver só para tornar felizes as duas criaturas, que eram
todo o seu cuidado e amor. Aposentado do seu lugar de lente duma escola
superior, passava os dias estudando e lendo no seu gabinete cheio de livros,
que já lhe invadiam a secretária, que a filha todas as manhãs lhe ia enflorar
com lindos ramilhetes que ela mesma cortava e ajeitava nas jarras.
Que suave e
dúlcida existência! E como a vida corria sem se sentir entre aquelas três
criaturas, tão estreitamente unidas pelo amor, sem violências nem coações… Que
diferença da nossa casa, onde a mulher de meu tio queria impor não só a sua
autoridade absoluta, o que já seria abominável, como os seus gostos e sentir e
toda a sua maneira particularíssima de ver as coisas!
Aquela atmosfera
pacificadora fazia-me bem, domesticava-me o coração que se tinha tornado feroz
no ódio e na desconfiança.
A única receita
eficaz para se ser amado sinceramente é amar; era a que usavam os meus amigos,
e por isso venceram a minha rudeza e fizeram com que os amasse com todo o
entusiasmo da minha alma apaixonada.
Com o refrigério
daquele contato a vida tornou-se-me menos pesada; suportava melhor a desgraça
desde que tinha quem me compreendesse e lamentasse. Pobre criança expatriada,
que eu era — naquele meio tão estranho e adverso!
Passado o
sofrimento que nos crucifica, tirados do lugar em que fomos martirizados,
olhando a frio para o que nos fizeram sofrer, é que verdadeiramente
compreendemos e sentimos a dor, mas com um sentir retrospectivo que se torna
tanto mais agudo quanto maior é a convicção do que foi a nossa miséria.
Durante o
sofrimento a sua própria veemência nos atordoa e dá um anestésico moral, que é
a única compensação para os que têm sentido pesar sobre si a infinita maldade
humana.
Quantas vezes,
lendo a história do passado, não nos atravessa o espírito a dúvida de que fosse
possível ao frágil organismo humano resistir aos ferozes martírios físicos e
morais que as páginas ensanguentadas de todos os povos nos mostram; mas,
olhando em roda de nós, sabendo o que se faz ainda hoje e que a tirania já não
pode esconder ao nosso conhecimento, porque os protestos dos condenados ressoam
mais alto na consciência humana ou os nossos ouvidos se apuram mais para os
escutar, convencemo-nos de que é um fato esse embrutecimento sensacional que
pela própria violência da dor atenua a mesma dor, que quase nos insensibiliza à
força de sofrer.
É o motivo por que
hoje pasmo da resistência passiva que eu fiz ao martírio daqueles quatro anos
de educação inquisitorial. Ou não fosse a minha tia uma legítima descendente
dos hidalgos inquisidores que civilizaram a ferro e a
fogo os infelizes seus conquistados!
Ora na casa a que
pertencia o jardim que confrontava com o fundo dos nossos, vivia uma família
das relações dos meus amigos — fora até a causa de eles virem morar para o
nosso lado, soube-o depois.
A Mariquinhas
falava-me muitas vezes no Chico, que vivia do outro lado do muro e era filho da
grande amiga de infância da sua mamã. Dizia-me que nessa ocasião passava ele as
férias no campo, e que quando voltasse eu veria como era gentil e bom
companheiro de brinquedos.
E falava com tal
entusiasmo do seu pequeno amigo, um belo estudante já quase a terminar o curso
do liceu, que o meu afeto — confesso — se sobressaltou, e um dia perguntei-lhe
ansiosa:
— Ó Mariquinhas,
tu gostas mais do Chico do que de mim, não gostas?!…
Teve um fino
sorriso incompreensível para a minha ingenuidade lorpa e respondeu-me com o ar
irônico duma verdadeira mulher:
— Ele é um rapaz,
e tu uma rapariga.
— E isso que tem
para seres mais sua amiga?
— Tem tudo. Não é
a mesma coisa.
Não percebi como
pudesse existir tal diferença nos afetos, mas resignei-me a ficar sem mais
explicações para que o sorriso de desdém com que a Mariquinhas acolheu a minha
evidente tolice não lhe aflorasse de novo aos lábios finos.
Bastas vezes me
ficava meditabunda, entristecida, perguntando a mim mesma se nova complicação
não viria por aquele lado entenebrecer a minha pobre existência, onde se abrira
uma nesga de céu azul.
Felizmente não foi
assim. O Chico, apesar de mais velho do que nós dois anos, foi um ótimo
companheiro das nossas tardes de recreio.
A Mariquinhas ao
pé dele tornava-se mais senhora, mais cheia de gravidade e importância, sorrindo-se
para o Chico quando eu dizia alguma infantilidade, como uma mãe que acha
encantadora a ingenuidade do seu filhinho.
E bem criança que
eu era, apesar dos meus quatorze anos, ao pé da Mariquinhas, refletida,
instruída e séria como o não são muitas mulheres feitas.
O Chico, que já
então era um sábio em miniatura, ensinava-me muita coisa, lia-me lindas
histórias de viagens e descobertas, que era o que mais o interessava, e
explicava-me cheio de paciência as minhas lições.
Saltava pelo muro
para o quintal da Mariquinhas, de maneira que não fosse visto de minha casa,
com receio de sobressaltar a estrangeira, e vinha ter
conosco associando-se aos nossos brinquedos com um bom humor que nos encantava.
Que a Mariquinhas
e o Chico esboçassem já então um destes idílios deliciosos de infantilidade que
são às vezes o princípio de grandes e puros afetos, que se enroscam na alma e
influem para sempre na sua modalidade, pode ser, mas que eu não compreendia
nada dessas precocidades sentimentais, é também certo!
Foi nesta altura
da minha vida que entrou para criada da nossa casa a menina Eulália. Não sei de
que terra ignorada de província teria vindo aquele espécime bem acabado da
criada alfacinha, mas é certo que ela já trazia o cunho particular, os vícios e
o jeito dessa peste que entra nas casas como a traça na roupa. Que diferença
entre essas criaturas falsas, interesseiras e intrigantes e as nossas criadas
da província, à moda antiga, um pouco boçais e confiadas, é certo, vivendo com
os amos numa certa igualdade familiar, mas tão fiéis, tão amigas e carinhosas
para nós! A Maria Augusta, coitada, com quanta ternura eu pensava na boa mulher
que nos criara com extremos de mãe, e tanto chorara a última vez que me fora
vestir, para a jornada!
E a cozinheira
solícita e desembaraçada, que nunca esquecia de meter na fornada semanal do pão
de milho, para os criados, os bolos para os meninos?! E a paqueta,
a pequena criada que se vai avezando de criança aos usos da casa, e é, às
vezes, no futuro, a melhor de todas?! E a de fora, encarregada da criação e dos
porcos, que nos trazia abadas de fruta quando ia às propriedades distantes?! E
os criados, desde o rapaz dos recados ao feitor, como toda essa gente era
sincera julgando-se na sua própria casa — dizendo as nossas
casas, as nossas matas, as nossas
rendas!…
Quanto melhores,
apesar dos defeitos de educação que lhes notava a mulher de meu tio, do que
essa turba avarenta e mal-educada que vi desfilar por sua casa durante os
quatro intermináveis anos que lá vivi!
Eulália era baixa
e magra, as faces manchadas, os dentes postiços, os cabelos frisados, e uns
olhos pequenos e inquietos que nunca se fixavam em nós com franqueza.
Não gostava dela
intimamente, mas acostumara-me já a nada mostrar dos meus sentimentos e nada,
pois, lhe disse que a fizesse supor tal antipatia.
No entanto, ela
compreendeu desde logo que eu era pouco na casa, e ria-se de mim com a Loló (o nome familiar da pequena de meu tio), que enchia de
falsas carícias. Tinha grandes demonstrações de afeto pela sua
rica senhora, a quem lisonjeava para despertar a sua generosidade, que
percebera existir quando gostava das criadas, o que não era vulgar.
Com o meu tio,
cada vez mais doente e enfraquecido, ninguém se dava mal.
Portanto, ia a
menina Eulália ser a primeira que por lá se conservasse mais de um mês ou dois.
Era mais uma
criatura hostil a seguir os meus passos, mais uma boca a denegrir o meu
procedimento, mais uns olhos a espiarem-me, e um pensamento alerta que se
exerceria contra mim.
Apesar disso, as
minhas relações com a Mariquinhas não afrouxavam, e a mulher de meu tio não se
opunha a elas porque encontrara enfim o meio infalível de domar o meu orgulho e
fazer-me dócil e estudiosa. À simples ameaça de me proibirem esses momentos de
desafogo, não havia nada que eu não fizesse! Se era a única felicidade para o
meu coração — e o ser humano tem dela tanta necessidade! Nem os professores já
se queixavam de mim, que a Mariquinhas e o Chico tinham-me tornado quase
estudiosa, com os seus conselhos e com os seus exemplos.
O tempo nunca pára
e por pior que estejamos corre do mesmo modo veloz, ainda que tal nos não
pareça, dobradas como são as horas de amargura. Já ia para quatro anos que ali
estava e, relativamente, os últimos dois, desde que conhecera a Mariquinhas,
tinham sido de relevado encanto para mim. Não pensava nem queria pensar no que
me rodeava, para só ver os meus amigos e com eles viver, mesmo quando ausente.
Foi então, quando
nós íamos já contar dezesseis anos, que a Mariquinhas entrou a adoecer.
A toda a hora se sentia
mal. A mãe, muito inquieta mas sem o querer mostrar, envolvia-a de carinhos,
procurava satisfazer-lhe todos os desejos. Enchia-se de apreensões, e toda a
sua alma se enregelava e tremia num pavor de dores já sentidas a prognosticarem
amarguras ainda inéditas.
Pobre mãe! Era bem
certo que a Mariquinhas lhe daria, e breve, o maior desgosto da sua vida.
O Outono vinha
chegando, duma estranha doçura esse ano, a infiltrar-se na alma, todo doirado
nos poentes tépidos a esmorecerem em lentas agonias, como nas árvores que se
cobriam do ouro das folhas mortas para mais depressa se despirem e esperarem
arrepiadas e friorentas o triste Inverno.
O jardim
constelava-se de crisântemos, que na nossa terra têm o sugestivo nome de despedidas de Verão, brancos como flocos de neve, rubros,
amarelos, dum roxo desmaiado como leves aguadas, outros de cores intensas,
mesclados e rajados, variando na cor como na forma, desde o desgrenhado da
cabeleira boêmia ao recorte regular da máquina de fazer flores de papel.
Debaixo do caramanchão,
que também se ia despindo, primeiro das flores, depois das folhas, a
Mariquinhas, quase deitada na cadeira de verga que a mãe lhe almofadava
desveladamente, olhava melancólica os seus queridos crisântemos, que todas as
manhãs desabrochavam de novo e vinham preencher a falta dos que se cortavam ou
pendiam emurchecidos.
Com as suas mãos
translúcidas, que eram uma das suas grandes vaidades, entretinha-se por vezes a
juntar em ramalhete as flores que eu lhe ia levando. E mandava-me ir dispô-las
no gabinete do pai, como outrora ela fazia. Mas o triste velho é que não lhe
achava o mesmo encanto, e com a cabeça entre os braços cruzados sobre a
secretária, mal me via desatava num soluçar de criança, que me compungia
extraordinariamente.
Às vezes mandava-mas
cortar duma só cor, e juntando-as num ramo, dizia-me, sorrindo enigmática:
— Vês? Gosto mais
assim. As brancas junto das outras pareciam-me ainda mais pálidas. É como os
doentes ao pé dos que têm saúde.
Tinha então manias
esquisitas, caprichos inconcebíveis, maus humores, que me faziam sofrer
enormemente. Impacientava-se quando me via chorar com as suas maldades, mas
chamava-me daí a pouco para me beijar, numa solicitude, numa súplica, de quem
deseja ser perdoado.
Às tardes, quando
o Chico recolhia depois das aulas, pedia-lhe para que fosse ler-lhe histórias,
lindos romances, que ele ia escolher à estante clara, de érable,
do seu lindo quarto de donzela.
Foi assim que
ouvi, como o decorrer dum sonho delicioso, aqueles adoráveis romances de Júlio
Dinis, que ficaram sagrados como livro de rezas para o meu coração de rapariga.
Depois, nem já
mesmo isso; às horas a que costumava entrar o Chico, mandava-me embora, com uma
crueldade, um desamor, que me enchia de desespero e me fazia chorar horas
seguidas, com a cabeça enterrada nas almofadas da minha cama para que ninguém
suspeitasse do motivo da minha pena.
Voltavam todos os
meus desesperos e tristezas como bando de corvos, por um pouco afugentados pela
alegria.
Dizia adeus às
tardes joviais de recreio, adeus a tudo quanto me tinha consolado de viver!…
Algumas vezes, mas
sempre quando não estava o Chico, a Mariquinhas mandava-me chamar com muito
empenho. Ia logo, correndo alvoroçada, e encontrava-a então carinhosa como
nunca, num redobramento de afeto e ternura que me fazia esquecer todos os
agravos.
Era então a
Mariquinhas doutro tempo, a boa fada que transformara a minha dura existência,
o doce e querido anjo da guarda dos meus sonhos.
Uma tarde, em que
estava melhor, olhou fixamente para mim, com um estranho olhar que nunca lhe
vira, e disse-me, como quem faz uma descoberta:
— Ó Raquel, tu és
bonita, sabes?
Eu ri-me
francamente, como quem nunca ouvira tal nem se preocupara com o assunto.
— Não… sério! —
acrescentou convincente — tens uma cara estranha, que não é bonita à primeira
vista, mas que, pensando bem, te há de fazer uma simpática mulher.
E quis que a
acompanhasse ao seu quarto, que tinham mudado para o rés-do-chão, para que não
se fatigasse a subir escadas; enfeitou-me com todos os seus enfeites e jóias,
penteou-me de muitas formas, e batia as palmas satisfeita, queria que todos me
vissem, perguntava à mãe: se realmente eu não tinha o tipo daquela mulher que o
Chico lhe trouxera o outro dia numa magnífica gravura tirada duma revista e era
a cópia dum quadro que obtivera o prêmio na última exposição do Salon.
A pobre mãe
sorria, um pouco animada por aquele entusiasmo que lhe parecia prenúncio de
melhoras.
Mas não, aquilo
foi como descanso da doença, como que para retomar força e voltar ao assalto
com redobrada violência.
Sofria muito, a
pobre alma! Já mal podia andar; melhor se poderia dizer que se arrastava,
encostada às pessoas que a acompanhavam. Tinha gestos tão cansados, sorrisos
tão murchos, carícias tão frouxas, que eu chorava sem saber porquê, só de olhar
para ela.
Queria consolar-me
e sorria, mas esse sorriso vinha molhado de lágrimas e descobria-lhe os dentes
descarnados numa boca exangue.
Nunca mais os
nossos encontros foram a horas em que estivesse o Chico. Também, pouco me
lembrava dele, triste como andava com a doença da Mariquinhas; mas, quando às
vezes perguntava notícias do nosso amigo, respondia-me tão secamente que
cheguei a imaginar que estavam mal.
A D. Emília metia
dó, e ela também olhava para mim fixamente e tinha uma frase de profundo desconsolo,
de quase inveja, que revelava o estado do seu espírito:
— Como a Raquel
tem saúde!…
O mal agravava-se
de dia para dia, sem remédio possível para a pobre querida que suportava
heroicamente todos os martírios que a medicina tem inventado para prolongar a
vida dos condenados. E ela que queria tanto viver! Tinha tanto amor à vida que
nunca tivera senão carícias para os seus adoráveis dezesseis anos!…
Os pais já sabiam:
todos os filhos na idade da Mariquinhas lhes tinham ido da mesma maneira, com
os pobres pulmões esfacelados, deitando pela boca todo o sangue dos seus
corpinhos exauridos, sem que a opinião dos médicos chegasse a ser uniforme
sobre o verdadeiro mal.
Quando o tempo
piorou e ela também já se não podia arrastar até ao caramanchão, ficava por
trás dos vidros da janela para que eu a pudesse ver de longe.
Depois, nem isso,
deixei de a ver; e, por mais que espiasse no jardim os movimentos da casa, raro
conseguia saber notícias.
Vivia num tal
desespero, agora que, desde que a doença se agravara, não consentiam que
visitasse a Mariquinhas, com medo de contágios!…
E viver ali, a
dois passos da única afeição que me enchia a alma, sabê-la gravemente enferma,
vê-la de longe e não poder falar-lhe, era uma verdadeira tortura para o meu
temperamento de impulsiva e apaixonada.
Era uma angústia
curtida em silêncio, que me despedaçava brutalmente o coração.
Um dia, quando
atravessava a cozinha para ir à minha piedosa espionagem, a Eulália voltou-se
para mim com uma frigideira na mão e disse-me, com um ar escarninho que me
arrepiou:
— A menina
Mariquinhas — sabe? — está a morrer.
E ante a dúvida,
claramente expressa no olhar com que a fitei, esclareceu:
— É verdade!
Disse-mo a criada da cozinha. Até lá ficou o médico esta noite.
Empalideci, e
cambaleei como se fosse perder os sentidos. A Eulália, que me dissera a
novidade mais por espírito alvissareiro do que por verdadeira maldade, ao ver a
minha dor teve realmente pena. Chegou-me uma cadeira, foi a correr buscar água,
que me obrigou a beber, e tentou consolar-me. Era tarde. O médico em casa da
Mariquinhas a passar a noite… tinha-me soado como um dobre a finados. Sempre,
para o meu espírito de criança, a sua presença assídua fora presságio de
desgraça próxima. Era a certeza de que a morte, que tantas vezes chamara para
mim, andava perto, a bater à porta da Mariquinhas…
Uma tremura
convulsiva fazia-me bater os dentes como se estivesse a tiritar de frio — era
todo o frio da alma que me enregelava o sangue.
A Eulália
consolava-me, apiedada — talvez que no fundo ela não fosse verdadeiramente má.
A vida, com as suas exigências e cruezas, torna tão diferentes as criaturas que
não têm a alma temperada para as grandes resistências! — Porque não pedia eu
licença para ir visitar a minha amiga? Talvez não fosse verdade!…
— Pedir à tia?!
Nunca lhe tinha pedido nada, a Eulália sabia. Era esse o meu orgulho, a única
coisa que me tornava, aos meus próprios olhos, num ser independente e
respeitável.
E a criada, muito
conciliadora, como se tivesse despertado na sua alma a natural bondade da nossa
raça de sentimentais pelo apiedamento que a minha mágoa lhe causava,
ofereceu-se para pedir, como coisa sua, a devida licença, se eu quisesse…
Eu quis, é claro.
Era a primeira vez que o meu orgulho se dobrava numa convivência com a criada,
o que me amarrotava e inferiorizava à minha própria consciência, que foi sempre
o único julgador que temi.
A licença não veio
logo, para mais cruelmente me fazerem sentir a dependência, mas a rapariga não
desistiu e tanto disse que à tarde me entrou no quarto, triunfante, com a
autorização para ir fazer a visita tão ambicionada.
A noite caía num
agonizar de luz, que as nuvens pesadas de chuva mais velavam.
Ao entrar
distingui apenas formas indecisas, movendo-se silenciosamente no quarto mal
alumiado. Logo a seguir, não sei quem colocou uma lamparina de vidro coalhado
sobre uma mesa, aos pés da cama onde a Mariquinhas agonizava.
Olhei com dolorida
surpresa: ela, que fora tão linda, duma graciosidade que dourava toda uma
mocidade que se abria em flor, tornara-se com a doença pavorosamente feia.
De princípio
apenas percebera o estertor rouco, que fazia arfar o seu corpinho mumificado, e
uma frouxa mão muito pálida, que apanhava, inconsciente, a roupa da cama.
Depois, com os olhos afeitos à quase obscuridade em que me encontrava, fitei-a
com terror e não podia, por mais que quisesse, deixar de olhá-la, num crescendo
de angústia que me apertava a garganta e me comprimia o coração.
Chorei então
silenciosa mas desesperadamente, num desânimo de quem vê afundar-se todo um
passado de alegrias e não vê no futuro luzeiro de esperança.
A Mariquinhas ali
estendida, a sofrer, a morrer, ela tão linda, tão gentil, a gárrula, algum
tempo antes! Ai, pobre, pobre querida, como desejei sinceramente e como
formulei no silêncio da minha consciência o desejo de que a morte me levasse
antes a mim e a deixasse a ela, à boa fada dos meus sonhos, ao anjo da guarda
que descera até à minha miséria desdobrando as suas brancas asas acalmadoras!
Mas a luz, avivada
num momento, bateu-lhe em chapa no rosto, naquele pálido rosto tão
completamente mudado; a impressão foi por tal forma brutal que as lágrimas
secaram-se de súbito nos meus olhos e um grito de terror veio expirar nos meus
lábios.
Endireitei-me
sufocada, e ia fugir, numa revolta instintiva, à miséria do meu ideal
despedaçado. Antes, antes a não tivesse procurado ver, e guardasse na memória a
linda imagem do que fora — dizia no íntimo da minha alma aquela voz egoísta, e
tão fundamente humana, que faz a felicidade dos que a podem escutar a tempo.
Não sei quem me
ciciou ao ouvido: — Vai morrer!
E, não sei por que
estranha percepção daquela inteligência prestes a desaparecer, ela me
pressentiu e me reconheceu. Abriu os olhos, uns olhos enormes já postos noutro
fito; levantou a mão, já quase entorpecida; e soltou uns sons inarticulados,
que mal pareciam de voz humana.
— Chamou-a,
quer-lhe dizer alguma coisa — murmuraram-me ao ouvido, empurrando-me para a
cama.
Fui cair,
desorientada, de joelhos, junto desse corpinho débil que tanto sofria para ser
arrancado à vida.
E nunca, nunca
mais poderei riscar da memória o olhar fundíssimo de amargura, quase odiento,
com que a Mariquinhas me envolveu toda, como que sondando-me…
Meu Deus! eu não
compreendi, não podia compreender então o desespero da pobre alma ao ver-me
cheia de saúde e de vida, enquanto ela — que tanto amava e desejava viver! — ia
desaparecer, para todo o sempre!
Ai pobre querida,
que remorso imenso senti depois! Mas nesse instante, fixada por esse seu
doloroso olhar cruel, senti uma surda revolta que subiu do mais íntimo da minha
alma e me invadiu completamente o espírito. Toda a animalidade saudável e forte
do meu ser se insurgia contra a inveja expressa nesse olhar de moribunda — que
não queria ser vencida…
E que tinha ela
que invejar-me, se alguns momentos antes toda a minha vida, toda a minha saúde,
o meu sangue quente e palpitante, tudo eu lhe daria de boa vontade?!…
A mãe, de joelhos,
do outro lado da cama, escondia a cabeça na roupa para que os soluços não
amargurassem a doente que tudo ouvia e compreendia.
O pai, enterrado
numa poltrona, parecia paralisado pela violência extrema da dor.
Daí para diante
não fui mais senhora de mim. Criaturas serviçais, muito práticas em idênticas
cenas, aconselhavam-me o que devia fazer. Uma velha, principalmente,
apoderou-se da minha pessoa e foi-me indicando, com uma intimativa que não
admitia tergiversações — o que é costume fazer uma menina na morte de uma
amiguinha.
— Ela quer falar —
segredava-me —, pergunte-lhe se quer alguma coisa.
E tocava-me nos
ombros, para que me inclinasse sobre a face cadavérica da Mariquinhas.
Queria fechar os
olhos ao ríctus de quase caveira que tinha nos seus dentes descarnados, e cada
vez os abria mais, até que a sua imagem me ficou tão profundamente vincada na
memória, que me vem sobre todas, que é superior a todas, às mais ridentes como
às mais dolorosamente trágicas.
Um som qualquer
escapou desses lábios que inutilmente se moviam num esforço para falar, e a
velha murmurou, traduzindo o que ninguém poderia ter compreendido: —
Coitadinha, falou no menino Chico!
Depois, tive que
apertar-lhe a mão, mas ao tocar na frieza plácida desse corpo que vinha
morrendo aos poucos, não sei que onda de sangue me subiu ardente do coração
confrangido, que perdi a compreensão nítida das coisas e fugi desastradamente,
empurrando todos, sentindo atrás de mim mãos de moribundos agarrarem-me nas
costas, leves mãos feitas de sombra que não tinham força já para segurar-me…
Ninguém deu pela
minha fuga, suponho, porque logo após senti o chorar ruidoso dos que já não
tinham que conter a explosão da sua dor diante do pobre corpo que umas tênues
radículas de vida prendiam à terra. Voltei atrás. A mãe da Mariquinhas,
abraçada ao corpo inanimado da filha, chorava tão angustiadamente que eu sentia
ao ouvi-la uma dor física tão aguda, tão sangrenta, como se me estivessem
esfaqueando o corpo.
O pai estava
sucumbido — era como se o seu espírito tivesse acompanhado o da filha
estremecida.
Não sei como saí
dali e me encontrei nos braços da pobre D. Emília, que chorava beijando-me com
uma ternura que nunca lhe tinha conhecido. E não sei dizer, também, quem me
levou para casa e me fez deitar essa noite no meu quarto onde fiquei transida
de pavor, esperando o dia como se com a luz terminasse aquele terrível pesadelo,
que me recusava a aceitar como a verdade irremediável!
Com a morte da
Mariquinhas toda a alegria acabou para mim. Nunca mais voltei ao jardim, a
olhar as janelas do seu quarto, agora sempre fechadas.
O Chico, quando
voltou, pensativo e triste, só de longe me acenava com a mão um cumprimento
amigo.
A vida
tornou-se-me insuportável: despida de interesse, vazia de desejo. Voltei a não
estudar, e pior do que nunca tolerava as repreensões, conselhos e imposições da
inevitável estrangeira. Com o sofrimento voltava-me a revolta; e, como com os
meus dezesseis anos já raciocinava mais, via melhor as coisas, compreendia que
meus pais não me tinham abandonado…
Sim… eu confesso
que me tornei alguma coisa difícil de aturar. A tia queixava-se, queria domar a
selvagenzinha — como me tratava — e convencia-se que havia de vencer o meu
espírito rebelde.
Mas isso, já o
devia saber, era menos fácil do que sujeitar uma águia a viver numa capoeira.
Uma tarde,
encostava-me aos vidros da janela do meu quarto quando na rua vi passar o
Chico.
Sorriu-se para mim
e perguntou-me se estava doente, tão demudada e triste eu lhe parecia. Mal o
vi, uma onda de lágrimas me subiu aos olhos e retirei-me soluçando da janela,
sem atinar com palavras com que respondesse à sua surpresa.
Nesse dia chorei
sempre, e já a noite ia adiantada quando me levantei da cama, acendi a vela, e
assim mesmo, em camisa e descalça, fui escrever ao Chico a contar a minha dor,
dizendo-lhe o meu desespero, e pedindo-lhe que me livrasse daquela prisão onde
em breve morreria, como a Mariquinhas — estava certa! Escrevia, pela primeira
vez, tudo quanto sentia, vertiginosamente, sem pesar as palavras,
surpreendendo-me a escrever melhor do que se falasse…
Depois de a carta
escrita e arrecadada debaixo do travesseiro, eu pus-me a imaginar o que faria o
Chico. Certamente não me abandonaria à minha sorte, correria em meu auxílio
como paladino doutras eras…
O que uma cabeça
de rapariga arquiteta aos dezesseis anos na sua primeira noite de insônia!…
Toda a minha
esperança era o Chico — se ele me faltasse, o mundo acabaria para mim!
De manhã reli a
carta, que me pareceu ainda dizer pouco do que sentia, e tentei escrever outra
— que me saiu pior. Meti-a no bolso e fui ao jardim com ideia de a entregar ao
meu amigo, mas um invencível acanhamento fez-me voltar para casa.
A Eulália, na
cozinha, parecia adivinhar a minha intenção, e disse-me, maliciosa, muito
habituada a fazer de capa às meninas que servira: — O
menino Chico está aqui em casa da Sra. D. Emília, entrou há pouco para lá.
E eu, fingindo uma
grande serenidade, que ela bem conheceu ser falsa: — Ah, sim?! Eu queria
entregar-lhe uns papéis… uma carta… que a Mariquinhas deixou para ele.
A mentira fez-me
corar, balbuciar; envergonhei-me de mim mesma.
— Se a menina
quer, eu levo-lha lá…
E quis. E ela
levou a carta, enquanto eu ficava ansiada, mal contendo o coração, que parecia
saltar-me no peito.
— Ele disse que
respondia já — veio a Eulália, toda prazenteira, anunciar-me.
Recolhi ao meu
quarto, muito triste, sem saber o que fazer, até que a carta do Chico viesse
trazer-me a esperança ou a morte.
Como aos dezesseis
anos a vida se nos apresenta duma simplicidade que não admite a resignação nem
a tolerância!…
Não tardou muito
sem que a Eulália viesse, com um ar de camaradagem e cumplicidade que me
irritou, trazendo a resposta do Chico debaixo do avental.
Recebi-a simulando
indiferença, e pu-la de lado, sem a querer abrir enquanto os seus olhos
maliciosos ali estivessem a perscrutar os meus sentimentos, como que a
assoalhar-me a alma…
Desconcertada pela
minha atitude, saiu; e então, tremendo como quem comete uma ação criminosa,
rasguei o sobrescrito, e li e reli cem vezes, com os olhos turvados, as poucas
linhas que o Chico me escrevia:
"Raquel:
Obrigado pela sua
carta e pela confiança que deposita em mim. Escreva aos seus pais contando-lhes
a sua tristeza e mande-me a carta que eu me encarrego de lha fazer chegar às
mãos. A Senhora D. Emília e a mamã acrescentarão algumas palavras para dar
força às suas queixas. Todos nos interessamos pela nossa amiguinha Raquel e
temos muita pena de a ver sofrer. Creia na dedicação e afeto do seu amigo —
Chico."
Não era muito para
o que eu tinha sonhado, mas era alguma coisa, era o apoio moral que me faltava.
Sentia-me
protegida e amada, e isso era o bastante para me tornar feliz. Relia ainda a
carta, que ia meter no seio, quando a porta do quarto se abriu de improviso e a
cara detestada da minha prima apareceu perguntando-me, trocista:
— Então a menina
recebe cartas de namorados e não diz nada à gente?!…
— Vai-te daqui
para fora! — gritei desesperada.
— Ah, estás assim
soberba com o teu Chico?! Pois eu direi à mamã, deixa estar!
— Importa-me pouco
a tua mãe, dou-lhe tanta importância como a ti — e, empurrando-a com violência
para o corredor, fechei a porta por dentro.
A rapariga
vingou-se: foi levantando um grande alarido de queixa que tudo contou à mãe. E
não tinham decorrido talvez cinco minutos sem que a abominável criatura não
estivesse a bater com violência à porta, gritando como possessa para que lha
abrisse.
Com uma serenidade
de que ainda hoje me surpreendo, fui abrir, e ficando entre portas perguntei,
sem me alterar, o que desejava.
— Oh! Não ter
vergonha! Menina dizer a mim você recebeu carta dum maroto e pergunta o que mim
quer! Ver esse carta já! Vergonhas, vergonhas, dar maus exemplos a meninas!
Quando vier seu tio mim dizer tudo!…
E a torrente de
destemperos parecia não se estancar.
No meio daquela
gritaria pude apenas levantar a voz para lhe dizer resolutamente:
— Não lhe dou a
carta, pode berrar à vontade.
Perdeu então de
todo a cabeça e fez um gesto de ameaça, que me desvairou.
— Dá-me carta já!
À sua violência
respondeu a minha violência. O meu carácter altivo, o meu temperamento
indomável, a minha educação livre, o meu próprio sangue, que vinha de heróis,
tudo se poderia amoldar e quebrar na luta surda e persistente de todos os dias;
assim brutalmente, pela violência, dava-se a reação que produz a revolta.
Ergui-me duma só
vez a toda a altura do meu orgulho e tornei-me soberba de energia desesperada.
— Dar-lhe esta
carta?! — E passei-lha insolentemente por diante dos olhos. — Nunca! Fique
sabendo, nunca! Prefiro engoli-la.
As palavras
vinham-me aos lábios tumultuosamente, numa abundância que me espantava.
Então, a terrível
criatura vomitou coisas abomináveis que me insultaram infamemente e das quais —
tenho hoje quase a certeza —, na sua ignorância do português, ela não sabia o
verdadeiro sentido.
Uma onda de sangue
me subiu ao rosto e me turvou os olhos; toda a candura da minha alma, todo o
pudor do meu corpo de virgindade absoluta, se insurrecionou. Fitava-a,
desvairada; sim, creio que, se não recuasse e não baixasse as mãos que tentavam
prender-me, a teria estrangulado. Saí do quarto violentamente, empurrando a
Eulália, que observava sardônica a cena que preparara com a sua baixa intriga.
Ao contato do seu corpo a minha raiva explodiu com mais furor:
— Vá, sua canalha!
— gritei-lhe alucinada —, vá chamar gente para ler as cartas que me traz!
Estava cega, como
um touro de boa pinta longamente encurralado, quando lhe abrem a porta do curro
e entra na praça louco de fúria, correndo para um e outro lado, fazendo saltar
para a trincheira, como bonecos, os toureiros que de longe o irritam agitando
as capas vermelhas.
A pequena
agarrou-se a mim, aos gritos, mas rolou para o meio do chão com uma bofetada; e
a porta da cozinha aberta, com um pontapé, que fez cair um vidro que se
estilhaçou no chão, enfiei por ela, sem bem saber o que fazer, e achei-me no
jardim.
Dum pulo saltei a
sebe florida que separava o nosso jardinzinho, agora abandonado, do da D.
Emília, e entrei-lhe como doida pela casa dentro.
Então caí-lhe nos
braços, soluçando perdidamente todo o meu desespero desfeito em lágrimas.
À noite o meu tio
veio buscar-me. Deu-me conselhos, tratou-me com muita bondade, desculpou a
mulher, pediu, ordenou… Nada conseguiu. Agarrei-me à mãe da Mariquinhas, e de
tal maneira me impus ao seu pobre coração de mãe tão dolorosamente
experimentado que ela pediu a meu tio que não insistisse. Eu ficaria com ela enquanto
os meus pais não resolvessem o incidente.
O meu tio
concordou, vencido pela palavra persuasiva e doce da minha protetora, e ao sair
bateu-me na cabeça e disse-me com ternura magoada: — Ah, cabecinha, cabecinha
louca, que herdaste, por teu mal, todo o sangue rebelde da nossa família!
E saiu,
desculpando-me no seu íntimo, ele o rebelde doutro tempo, vencido agora pela
doença e dominado, contra vontade, sabendo muito bem que o era, só para não
desencadear a tempestade caseira e não aturar o gênio furibundo da mulher.
Pobre e querido tio! Ninguém reconheceria nesse velho alquebrado, mas ainda de
soberbo e distinto porte, o herói de tanta façanha que deixara nome entre os
rapazes da escola, como mais tarde entre os colegas do exército e companheiros
de trabalhos e perigos. Era o nosso sangue, na verdade, que o fazia sorrir,
quase indulgente, quando me admoestava por tanta loucura; o nosso sangue que o
fizera, quando rapaz, desafiar, sozinho, uma companhia de pequenos colegiais
como ele, e que o fizera, mais tarde, responder sempre com soberba quando se
julgava desrespeitado, mesmo por um superior hierárquico…
Pobre tio! Com
quanta saudade recordo hoje o seu bom sorriso quando, longe da companheira, nos
contava anedotas e aventuras que nos perdiam de riso. Como teria sido adorável,
sem essa servidão dum casamento abominável, a que não soube nem pôde fugir!…
Foi então que
escrevi aos meus pais contando-lhes o longo martírio daqueles quatro anos em
que me tinham afastado do seu carinho.
Disse-lhes o meu
desespero, o meu horror à tia e aos seus métodos educativos, e recordei com
pungente saudade a feliz infância que me tinham feito a contrastar com aquele
inferno de todos os dias e de todas as horas.
E como os meus
nervos sobre-excitados faziam a pena galopar pelo papel desabaladamente, estou
certa que nada deixei por contar.
A D. Emília e a
mãe do Chico cumpriram o que tinham prometido; escreveram comigo para
desmanchar qualquer má impressão que o meu procedimento pudesse despertar no
espírito dos meus pais.
Que doces dias de
serena paz eu passei ali enquanto não veio a resposta à minha carta — que foram
os meus próprios pais que em pessoa me quiseram vir buscar.
Uma tarde o Chico
entrou — vinha despedir-se. Eu trabalhava junto da janela, num bordado que a D.
Emília me dera para fazer, porque entendia que sempre as mãos deviam estar
ocupadas e o espírito preso a qualquer trabalho manual que, por insignificante
que parecesse, era muito na disciplina moral do nosso ser. Era a esse constante
labor das suas habilíssimas mãos, que a boa senhora atribuía o resistir ainda à
sua dor.
Estava só; a D.
Emília fora dentro chamada pelo marido, quase sempre de cama desde que se dera
o grande desastre para o seu coração de pai que na única filha pusera todo o
seu afeto e esperança.
— Que
trabalhadeira estás! — disse-me o Chico, sorrindo, porque ao entrar eu nem
sequer erguera os olhos, que dantes o fitavam confiantes e fraternais.
É que as palavras
impudicas da estrangeira acudiam-me à memória e tinham maculado para sempre a
inocência do meu afeto por ele.
Sorri à sua graça,
mas com um sorriso tão magoado, que o Chico, vibrátil e bondoso como é, logo
percebeu que não estava bem. E, muito carinhoso, quis saber se estava doente,
se me doía alguma coisa. — Não, não — respondi nervosa e sacudida —, doença não
tinha… mas lembrava-me o que tinham dito de ambos, e isso incomodava-me
fortemente.
E ele quis saber o
que me dissera a tia, o que dera causa à grande cena, de que ainda ria, só em
pensar nela.
Cuidava que era
ainda a pequena e ingênua Raquel que ele e a Mariquinhas quase amavam como
filha, e que o meu ato revoltoso fora apenas um capricho de criança
endemoninhada e voluntariosa. Mal supunha que uma alma de mulher, de súbito
despertada, sofria e palpitava dentro em mim.
Subitamente as
lágrimas vieram-me aos olhos e começaram a correr, sem que eu as pudesse
estancar no lenço encharcado, que mordia em desespero.
Passara, sem
transição, da insensibilidade quase completa de quatro anos à mais disparatada
pieguice.
Por nada as
lágrimas me vinham aos olhos e corriam sem cessar. Desesperava-me contra mim
mesma; queria vencer-me, e não podia!
O Chico, muito
comovido, abraçava-me e beijava-me para me sossegar, como fazia sempre, com a
simplicidade carinhosa dum irmão mais velho, sem suspeitar a confusão em que eu
me debatia.
Aproveitando um
momento de mais calma para os meus nervos, disse-lhe para mudar de conversa:
— O Chico vai-se
amanhã embora e nunca mais se lembrará de mim; eu também vou para tão longe!
— Que tolice, nem
que em Portugal haja longes!… — respondeu a rir, enquanto eu me afastava um
pouco, porque as suas carícias me sobressaltavam e faziam mal.
— Pois sim,
Coimbra não é muito longe, mas os estudantes que lá andam não pensam a sério em
coisa nenhuma e tudo esquecem quando lá chegam.
— Quem te disse
tal?
— As raparigas da
minha aldeia, quando cantavam:
Quando isto é o
amor, o que fará a amizade!?
As lágrimas
tinham-se transformado em riso — ria agora convulsamente.
— Isso são
cantigas! Não penses isso de mim, Raquel. Há rapazes loucos, mas também os há
sérios, como eu…
— Não acredito! O
Chico vai esquecer-se de mim, e quando for para a aldeia nunca mais o verei nem
saberei de si! Antes queria morrer!… — tornava a chorar, visionando-me só, sem
vontade nem gosto para viver.
— Ó Raquelzinha,
não diga isso, não a esquecerei nunca — que tolice! Os amigos de infância nunca
se esquecem, creia. Nem tão pouco esquecerei a Mariquinhas.
— A essa —
solucei, num sentimento de mágoa mortificado com uma pontinha de inconsciente
ciúme —, a essa não a esquecerá o Chico, não!…
— Mas porque menos
a ela do que a si?
— Então o Chico
não era namorado da Mariquinhas?! — perguntei numa ansiedade de dúvida que se
deseja não ver confirmar.
— Ó Raquel, não
diga isso! Quem lhe meteu na cabeça uma loucura dessas?! — perguntou indignado.
— Então não éramos como três irmãos, três companheiros de brincadeira?!…
— Ninguém me disse
nada. Eu hoje é que pensei, depois do que ouvi lá em casa, que podia ser que o
que se lembravam comigo fosse com ela… Às vezes a Mariquinhas parecia que me
tinha raiva, e por fim já não queria que brincássemos juntos… lembra-se?
— Sim, é verdade.
Não tinha pensado nisso. Até pediu para a não visitar quando estivesse a
Raquel, porque a sua alegria a incomodava…
Pobre Mariquinhas!
A sua figura esbelta e linda levantava-se a nosso lado reclamando a sua parte
de afeto, mas o seu rosto pacificado pela morte já não exprimia o vago ciúme
com que tanto nos mortificara. A sua recordação unia-nos numa afetuosidade e
numa saudade igual.
— Mas então —
disse o Chico, surpreso — a Mariquinhas supunha que nós éramos namorados?!
Pobre amiga! Uma criança como a Raquel era…
— Eu não percebi
nada — respondi ingênua — nem supunha que era tão sua amiga… Nem que esta
amizade era diferente… Ontem é que compreendi tudo!…
— Mas ontem,
porquê? Disseram-lhe mal de mim?!… — perguntou assomado, numa daquelas fogosas
cóleras que ensombram rapidamente o rosto do meu amigo.
— De si, não!… Foi
de mim. A estrangeira… disse-me coisas, coisas… que só
pensar nelas me faz mal!
Corei e baixei os
olhos numa confusão, vendo-o sorrir, já desanuviado.
Curvando-se para
mim, perguntou-me baixinho, numa carícia que estava toda na doçura da voz:
— Disse-lhe que
era minha namorada, não foi?…
Abaixei ainda mais
a cabeça sobre o bordado, não querendo responder uma afirmativa que me
confundia.
— E não o quer
ser, de verdade, Raquel?… Será a minha noiva enquanto andar a estudar, e a
minha mulher, a minha companheira, quando eu já ganhar dinheiro para os dois…
Sorria embevecida,
olhava-o cheia de desejo de lhe dizer que sim e saltar-lhe ao pescoço, numa
alegria louca; mas ficava-me calada, perturbada, sem saber verdadeiramente
distinguir até onde me seria permitido mostrar o meu entusiasmo segundo as
praxes que a tia, dizia, eu há muito tinha desprezado
impudentemente.
O Chico
compreendeu; e, não precisando ouvir mais, pegou-me docemente na mão que
conservou entre as suas enquanto conversávamos a meia voz, sorrindo enlevados,
contando coisas, recordando fatos, que reconhecemos nesse momento serem
significativos daquele desenlace.
Há muito tempo que
eu era a sua mulherzinha — recordou o Chico sorrindo — nas brincadeiras em que
a Mariquinhas, já mais consciente, reservava para si sempre os papéis de rainha
ou fada, que iam tão bem à sua gentil figurinha de estatueta.
Foi nessa tarde
deliciosa de fim de Inverno, com o testemunho das camélias brancas, que a
Mariquinhas adorava, e na véspera de ele ir para Coimbra e eu recolher à velha
casa paterna, que nós ligamos para sempre as nossas existências, que dissemos
essas mil palavras banais que nada dizem para os outros e são, num momento
único da vida humana, as verdadeiras palavras sacramentais que ligam duas almas
numa comum e deliciosa aspiração.
Foi nessa tarde,
que remiu para o meu coração anos de sofrimento, que traçamos a azul e ouro o
futuro ridente que hoje estamos desfrutando.
Com a vinda de
meus pais, trocadas explicações e desculpas entre eles e os tios, sem que eu
fosse obrigada a ver mais a minha façanhuda inimiga, a tranquilidade e a
alegria voltaram de novo ao meu espírito, que em breve se refez e normalizou na
serenidade da vida aldeã.
O Miguel, que já
então era um estudante muito cuidadoso, tornou-se em breve o amigo inseparável
do Chico, que teve sempre meio de repartir as férias entre a antiga família,
que o adorava, e a nova, onde não era menos querido.
Até o padre Zé
discutia com ele pontos graves de história romana e ficava boquiaberto com a
sabedoria dos rapazes de hoje… e da qual nos ríamos a valer, indo depois às
escondidas folhear o Larousse onde procurávamos citações e fatos para confundir
o santo velho.
A Maria Augusta,
essa só pedia a Deus que a deixasse viver até ver na capela da casa, abençoado
por Deus e pelos homens, um par que era tanto do seu agrado.
E agora, realizado
esse ideal — que reuniu à mesma mesa duas famílias que ficaram sendo só uma,
naquele grande jantar de núpcias a que assistiu toda a parentela dos arredores
—, ela espera ansiosa por que lhe seja permitido apresentar ao padre Zé, de
capa de asperges e estola rica, um menino que há de vir breve de Paris numa
condessinha de flores, e para o enxoval do qual trabalhamos dia e noite com a
mais rútila e alvoroçada alegria.
— Com o vestido de
antiga seda cor-de-rosa e grandes ramos prateados, coberto com o véu de tule
bordado, que a mamã guarda na grande arca dos enxovais, eu verei como irá
lindo!… — É o que me assegura a Maria Augusta, que recorda outros batizados
célebres na família, e o meu principalmente, que, crescidinha já, por doença do
padrinho, me desesperei iconoclastamente com o sal da
sapiência e arranhei a cara ao padre!
Não se esqueceu de
recomendar ao Chico, uma vez que ele foi a Lisboa, que deixasse feita a encomenda
dos bolos para a festa e de confeitos para a rapaziada, que assim encherá de
bênçãos o batizado…
Isto enquanto a
boa mamã dá volta ao bragal, desmancha lençóis e finas bretanhas, e manda ao
sótão buscar o lindo bercinho em que nos criou a todos, e que já espera,
forrado e engomado de fresco, pelo pequenino dono… — ou dona?!…
E, seja o que for,
bem-vindo será ao nosso lar e… já o juramos: só nós o educaremos e guiaremos
nos seus estudos, porque, saindo, como poderá ser, à mãe, não será fácil meter-lhe
grandes sabedorias na cabeça.
Esquecia-me dizer
que o meu pobre tio está enfim descansado, livre da mulher que tão amarga lhe
fez a existência, bem encafuado num mausoléu de mármore, onde ela o vai ver
amiúde, naturalmente para lhe dar conselhos ou reprimendas. Dizem-me que na sua
opinião eu sou o mais execrável dos animais ferozes, e ainda treme de raiva só
em pensar na minha negra ingratidão. A filha prepara-se para casar
confeccionando o enxoval e aprendendo a ser uma admirável dona de casa, capaz até
de ser professora numa escola de mênagères, mas os
noivos é que, como sempre assustados com o merecimento da mulher, já lhe vão
tardando um pouco.
O pai da
Mariquinhas morreu, e a D. Emília resigna-se a viver para chorar todas as
lágrimas da sua bela alma pelo marido e pelos filhos, sempre vivos na sua
lembrança.
Sente por nós um doce carinho, que nos enche de reconhecimento, e todos nos juntamos na saudade da querida morta, a linda Mariquinhas, que tão íntimos e indissolúveis tornou os nossos afetos.
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