CAMÕES E O AMOR
NO 304º ANIVERSÁRIO DA MORTE DO POETA
ESCUTA!
Hei de gastar os olhos só a olhar-te,
A alma hei de queimar no fogo ardente
Que vem dos olhos teus, continuamente,
E assim sucumbirei a abençoar-te.
Só tenho coração para adorar-te,
Lábios para dizer-te quanto sente
Quem feliz se julgara, eternamente,
Ficando, eternamente, a idolatrar-te.
No peito meu não cabe o sentimento,
Trasborda como as águas, alteradas
Pelas raivosas convulsões do vento.
Amado ou não, — as trovas magoadas
Do amor e coração e vida e alento
Eu aos teus pés deponho, — ei-las rojadas!
BÁRBARA, ESCRAVA
Ajoelhara a negra suspirando
Postas as mãos, os lábios contraídos,
Diziam as canções dos seus gemidos
Mais do que os prantos com que estava olhando.
Camões fitava o espaço, meditando,
Bem longe o coração, longe os sentidos;
E de seus olhos, para a dor nascidos,
As pérolas caíam, deslizando.
Um queixume da negra, compungente,
Acordara o poeta, que sonhava
Com a pátria querida e o amor ausente.
Ela com os olhos nele contemplava,
Ele com os olhos nela era indiferente,
Que todo aquele mal outra o causava.
NA VOLTA À PÁTRIA
(Salvação dos Lusíadas)
Cinzenta a cor do céu, a noite baça,
O vento chora nas enxárcias, rude
Como grito plangente de alaúde,
Vibrado pelos dedos da desgraça.
Além nenhuma estrela então perpassa,
É o horizonte um lúgubre ataúde,
Fervem as ondas altas como açude
Que as torrentes às águas embaraça.
Vem da China o baixel desarvorado,
Sulcou o mar com sôfrega vontade,
Até que o mar o fez despedaçado.
Sorrindo heroicamente à tempestade,
Paga o zelo maior do seu cuidado
Camões, salvando à pátria a eternidade.
UM VERSO DE CAMÕES
Não desço agora à fria sepultura,
Não roubo à morte os pávidos segredos,
Não quero desfolhar com estes dedos
Do gelo a flor de estranha formosura.
Não vou cingir na tua fronte pura,
Cheio de horror, — o lábio e os olhos quedos, —
Por entre a noite e os tristes arvoredos,
Duma fatal grinalda a eterna alvura.
Deixa que viva assim em treva absorto,
Cadáver, caminhando, tristemente,
Em demanda do meu perdido horto.
Já que ventura amor me não consente,
Que não recorde mais meu peito morto
Erros meus; má fortuna, amor ardente.
FLOR PERDIDA
Quando sorria a infância docemente
Aos olhos infantis da minha esperança,
Era-me o céu azul, azul bonança
Me enchia o alegre peito, ternamente.
Brilhante o espaço, a aurora transparente,
Brando o futuro se a ilusão avança!...
Assim jamais o coração se cansa,
Mostrando à névoa fria um sol ardente.
Pastam os olhos meigos pelos prados,
Os astros rompem sempre vigorosos
As campinas do céu, fortes arados.
E murcham sobre a campa luminosos
Os lírios! É que lembram, emigrados
Alegres campos, verdes, deleitosos.
OS TEUS OLHOS
I
Inveja a noite escura e tenebrosa
A negra cor do teu olhar vibrante,
Espelho d'alma triste e peito amante,
Imagem duma estrela radiosa.
O teu olhar de fogo!... É assombrosa
A luz que espalha ao de redor; distante
Se for um dia, caminheiro errante,
Que ele me enxugue a face lacrimosa.
Se além, na campa, os membros já cansados
Eu repousar ao pé dos tristes lírios
E dos funéreos goivos delicados.
Pago serei então de meus martírios,
Se, junto a mim, teus olhos magoados
Forem-me, ali, os derradeiros círios.
II
Os olhos que me deram na existência,
Com seu gentil fulgor de virgindade,
Umas vezes amor, outras saudade,
Renascendo-me a paz na consciência;
Olhos cheios de vida e de inocência,
Revivos de perfume e suavidade,
Olhos de tão formosa claridade
Que escurecem do céu a transparência;
Talvez sejam ainda os companheiros
Da melodia heroica de meu canto,
Meus amigos sinceros, verdadeiros.
Talvez!... Mas se puder a sorte tanto
Que os afaste de mim, que os derradeiros
Suspiros meus orvalhem com seu pranto.
CRUEL DESTINO!
Tudo se abraça neste mundo, creia!
O mundo é sonho passageiro, breve,
Se além a sorte a sina nos descreve,
Também o amor impele a nossa ideia.
Abraça o mar, bramindo, a branca areia,
O zéfiro que, à tarde, vai de leve
Pelo norte a voar, abraça a neve,
Abraça a chama um corpo que incendeia.
A hera abraça o tronco que, elevando
Os braços para o espaço, os entrelaça
No doce arfar da natureza, brando.
O raio abraça o cedro que estilhaça,
A lua abraça o mar, se está brilhando,
Só o meu peito, amor, a não abraça!
VITA NUOVA
Senhora de minh'alma, a suavidade
Dos teus lábios gentis tornou-me à vida;
Tinha a esperança morta e já perdida
E deu-lhe um beijo teu vitalidade.
Passou a dor mimosa da saudade,
Surgiu no oriente a aurora apetecida,
Brotou a flor, há muito emurchecida,
A bela flor de alegre mocidade.
Agora canto o sol, as filomelas,
O vasto mar, as lúcidas estrelas,
A noite escura e a branca luz da alva.
Lázaro ressurge da terra fria,
Abrindo o olhar já baço à luz do dia...
— É que um beijo, senhora, também salva.
AQUELA FLOR
É assim como o rosto de Paulina,
Cruelmente por Nero perseguida,
Aquela flor que estimo mais que a vida,
Flor gentil de face purpurina.
Nas suas folhas leio a minha sina;
Talvez cheia de amor, talvez florida
Renasça a fé, nesta alma, dolorida,
Daquela flor à nota sibilina.
Quando pousar de ausência o escuro manto
E se ouvir, nuns tímidos arpejos,
O meu remoto e solitário canto,
Ó brisas que passais por estes brejos,
Estou a ungi-la com saudoso pranto
E a reanimá-la com ardentes beijos.
AÍ, VEM!
Não sei se sabes quanto amor eu tenho,
Guardado dentro d'alma, com fervor,
Como um crente que estreita um Santo Lenho,
Junto do coração, cheio de ardor.
Em bem guardá-lo ponho grande empenho,
Intato como o Lenho do Senhor;
Hás de senti-lo que também convenho
Que arde em teu peito um semelhante amor.
Escuta, ao longe, escuta essa harmonia,
Cantam os rouxinóis, nos arvoredos,
Banhados pela lua que irradia.
Confiam, mutuamente, os seus segredos...
— Ai, vem também contar-me a melodia
Dos teus sonhos de amor, de amor tão ledos.
DÚVIDA
Tu tens no coração todo o perfume
Que me embriaga a alma, docemente,
Que me eleva voando, mansamente,
Por céu azul sem mancha, nem negrume.
Tu és, senhora, o alevantado cume
Da montanha do amor, onde vou, crente,
Curvar-me de joelhos, reverente,
Pelo poder que o teu olhar assume.
E sempre a adorar-te ficaria
Se soubesse que dentro do teu seio
Um afeto por mim rebentaria.
Assim, vivendo num cruel receio,
Topando a noite aonde espero o dia,
Talvez não ache da ventura um veio.
FELIZ SAUDADE
Hei de lembrar-me sempre, com saudade,
Daquela noite gélida de inverno,
Em que pousaste, amor, o lábio terno
Sobre o meu lábio frio. Na ansiedade
De enclausurar do amor a imensidade
Dentro do peito meu, o amor eterno,
Que ora nos salva e outrora dá o inferno
Aos sonhos bons da franca mocidade,
Sonhei coisas divinas, misteriosas...
No aroma sideral do beijo ardente
Sorvi o alento das sensíveis rosas.
Depois ouvi, ao longe, meigamente,
À tua voz, numas canções saudosas:
— Eu hei de amar-te muito e eternamente.
IMENSA DOR
Do teu olhar a doce claridade
Deu novo rumo à minha triste vida,
Abriu-me a alma à luz da imensidade,
Tornou-me a esperança há muito foragida.
E há de talvez, atroz perversidade!
Lançar de novo a alma redimida
Entre os fatais escombros da saudade
Essa que foi por mim compadecida?
Mostrar o sol a quem vive na treva
E lançá-lo, depois, à noite escura,
Fugir de Adão a delicada Eva...
Senhora minha, se é assim tão dura
A consciência que de amor me enleva,
Será eterna a minha desventura.
ÚLTIMA SÚPLICA
Eu tenho os olhos gastos por chorar-te,
Por tua ausência eu trago o peito ansiado,
Procuro-te no espaço ilimitado,
No mar, na terra, enfim em toda a parte.
Embora a mente julgue divisar-te
No seio duma estrela, iluminado
Ou duma flor no cálix perfumado,
Nem sei aonde vá para adorar-te.
Tudo me fala em ti!... Ninguém me escuta
Se busco em ti falar, visão perdida!
De dor assim o coração se enluta.
Imaculado amor, pomba fugida,
Da sombra aonde estás termina a luta
A quem por te não ver morre na vida.
CIÚME
Não sabe com certeza o que é ciúme,
O que é sentir no peito, em vida, gelo,
Pegar no coração e contorcê-lo,
Subir da raiva e do ódio ao negro cume.
Não sabe o que é do amor o ardente lume...
Sonhar um vasto céu e compreendê-lo,
Para ver, cruelmente, desfazê-lo,
Na sombra da ilusão, voraz negrume.
Não sabe, não, senhora!... ai! se o soubesse,
Se o pudesse antever, se o compreendesse,
Estrangulando a vida, à voz do amor...
Por mais cruel que fosse não daria
A uma alma, irmã da sua, essa agonia
Vendo-a morrer em convulsões de dor.
ETERNO AMOR
Se a morte me extinguir a mocidade,
Cortando o fio de penosa vida,
Julgar-me-ás uma ilusão perdida,
Haverá dentro em ti uma saudade?
Buscarás descobrir, na imensidade,
Quando a noite passar enegrecida,
Uma estrela serena e dolorida
Que te fale de mim, da eternidade?
Ou antes, esquecendo antigo enleio,
Extinguirás de vez, dentro em teu seio
A lava enorme dum passado amor?
Se for assim, em noite tenebrosa,
Tu hás de ouvir minh'alma lacrimosa,
Magoadamente a suspirar de dor.
SUPLÍCIO AMADO
Com ouro fino e pedras recamado,
Outrora um rei de Hungria deu o trono,
Para dormir um passageiro sono
De uma donzela no regaço amado.
Ao ver o rei assim apaixonado
Sorria a corte com sinistro entono!
Neto de heróis vencido... ao abandono...
— Ai, quem em tal houvera então pensado.
Se fora rei daria o trono, a glória,
A coroa, o manto, a fama, a pátria, a história,
O paço, as cortesãs e o cetro belo,
Não por dormir um sono de inocência
No teu regaço, em mórbida indolência,
Mas para me enforcar no teu cabelo.
SE ESCUTO...
Se escuto ao longe a tímida harmonia
Da tua voz vibrante, modulando
Um cântico de amor, ou suspirando
Em requebros profundos de agonia;
Bebe minh'alma, então, a melodia
Que o lábio teu, assim, vem destilando
E sabe Deus se, ali, sempre ficando
Minh'alma de beber se fartaria.
A tua voz serena é mais suave
Que o colo branco e puro duma ave
Que o seio mais gentil duma rainha.
Ai, viesses tu cantar, eternamente,
Sorrindo ou soluçando, docemente
Dentro do peito meu, ó alma minha!
DEPOIS DA MORTE
Se a crua morte te arrancar um dia
Dos braços meus, ó pomba estremecida!
Irá no teu caixão a minha vida,
Do meu amor a doce melodia.
Quando sentires colada a terra fria
Sobre o gelado peito e comprimida
A nívea face que a beijar convida
E que continuamente beijaria;
Hás de ouvir minh'alma, suspirando,
Muito de manso, como um tênue alento,
No canto triste do noturno bando.
Escuta, então, meu lúgubre lamento...
No céu, serena, a lua irá passando,
Por sobre a terra gemerá o vento.
DE TI AUSENTE
Quando longe de ti te vejo perto
E te abraço, nervoso a todo o instante,
Ó minha bela e carinhosa amante,
Não sei se sonho ou se estou desperto.
Por teu olhar de amor sempre coberto
Junto de ti quando de ti distante,
Ouço-te a voz gentil e sussurrante,
Ouço jurares-me o teu enorme afeto.
Em tudo que me cerca e me rodeia
Eu vejo a tua imagem carinhosa,
Ó minha doce e terna Dulcineia.
Fala-me em ti, a madressilva e a rosa
E tudo a quanto eu levo a minha ideia...
Vejo-me preso em teu amor, formosa!
PALAVRAS DE UM CÉTICO
I
Eu não escalo as rochas de granito,
Eu não transponho as vastidões do mar,
Nem vou rasgar o ventre do infinito,
Passo a existência, inerte e sem pensar.
Não sei se Deus existe, ou se é um mito,
Imposto à crença para atormentar
Da humanidade o largo peito aflito,
Em noites de negrume, sem luar.
Vivo numa ansiedade indefinida,
Cheio de Raiva, ensanguentado e vil,
Sem mesmo compreender o que é a vida,
Ai! talvez seja um lúgubre covil,
Uma passagem horrenda e dolorida
Dum mundo mau a um outro mais gentil.
II
Talvez seja uma ponte arremessada
Dum nada a outro nada incompreensível,
Talvez seja uma nota não tangível
Na harpa pelo Destino dedilhada.
A vida... talvez seja uma enseada,
Onde aporte, na fúria inconcebível
Dos elementos mil do Incognoscível,
Nossa alma, sem timão, desarvorada.
Deixai livre correr a fantasia,
Ó sábios que arrancais à terra fria
Os mistérios de toda a imensidade...
Que a morte, poderosa como o incêndio,
De vós rirá, com forte vilipendio,
Levando-vos talvez à Eternidade.
ADORAÇÃO
Ouço dizer, há muito, que a saudade
Aviva na alma os grandes sentimentos,
Engrupando num só os pensamentos
Que se reúnem, além, na imensidade.
Deixei-te um dia em triste soledade,
Parti, cheio de dor e de lamentos;
O pobre coração, entre tormentos
Lutando com raivosa ansiedade.
Voltei tempo depois: — O sol raiava,
Sorria a primavera, e ostentava
O agreste brejo a perfumada flor.
E ao ver-te, novamente, ó doce amante,
Disse a teus pés caído e murmurante:
— Bendita a natureza e o teu amor!
INSONDÁVEL
Eternamente fria, inamovível,
Matéria alevantada à luz da vida,
Não sei se me será doce guarida,
Se para mim será um impossível.
Ausculta-se, não pulsa. É insensível
Aos sonhos meus, à minha voz sentida,
Gelada, sempre fria, incompreendida
Do amor é uma nota não tangível.
E tem no olhar vibrante o eterno fogo
Que se propaga a alma e fere logo
Enlaçando num aro o coração.
— Ama? — Eu não o sei! Estranha amante!
lapidada assim como um brilhante,
Talvez da natureza aberração.
O TEU SEIO
O delicado aroma do teu seio
Enche-me o coração de afeto puro,
O peito me embriaga em doce enleio,
Brilha de luz e amor o céu escuro.
Ai, quanto mais o aspiro, mais anseio,
Quanto mais temo, mais estou seguro
De que há de ser o aroma de teu seio
Que há de raiar de sol o meu futuro.
Os óleos santos dos passados cultos,
De mirra, e nardo, e rosa, óleos sepultos
Na fria escuridão da antiguidade;
Não tinham mais perfume delicado
Que o seio teu gentil e perfumado,
Seio gentil de eterna suavidade.
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Iba Mendes Editor Digital
www.poeteiro.com
São Paulo, 2023.
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