1/05/2023

Brasões (Poesia), de B. Lopes


BRASÕES


À MINHA MÃE
A ESTRELADA MEMÓRIA DE MEU PAI



DOMUS AUREA
(PÓRTICO)

Espadim de Romeu feito em Verona,
Posto ao lado do cinto de áureas trenas,
Afivelado pelas mãos pequenas
De apaixonada e virginal madona;

Balcão, cheio de rosas e arabescos,
Onde um mavioso bandolim se ouvia
Lá pela noite langorosa e fria...
Versos tremidos e madrigalescos;

Torreões de opala, alcovas de escarlata
Abertas para o amor e para a neve,
Quando exalava o Cós, fervente e leve,
Nas abrifauces ânforas de prata;

Diáfanas, doces castelãs e mestas
Damas de honor, a espreita dos amantes.
Na gelosia verde dos mirantes,
Coroadas de pálidas giestas;

Dóceis faisões de venezianos paços,
E outras aves reais de adorno e fama
Pavoneando a pluma-íris e lhama,
Na balaustrada ebúrnea dos terraços;

Cetinosas espáduas, nucas de ouro,
Roçagantes veludos e alta seda,
Tudo incendiado pela labareda
Do ciumento olhar de um pajem loiro;

Globos, talhados em jasmim cheiroso,
Enchendo o ninho quente dos decotes
Cheios de beijos e de miosótis,
Num romântico eflúvio capitoso;

Modorrento luar de cacto branco
E camélias albentes esfolhadas,
Em cujo raio as almas namoradas
Iam subindo em suspiroso arranco...

Foi-se a vida dourada das varandas
Perfumadas a lírio e a violeta...
Só, do Passado, o amor de Julieta
Numa vaga efusão de essências brandas!

 

SUA ALTEZA

I
Afivelados — cinto e esporas de ouro,
Volve ele à imagem desolada e branca,
Que, então, contrita, as lágrimas estanca,
Desfeita a coifa do cabelo loiro:

Sê tu com Deus! E se os brasões do mouro
O meu selado brio não arranca
E eu não plantar a lança em Salamanca,
Não sobreviva o corpo a tal desdouro;

Ferro de meus avós, D. Florio o jura...
Eis que súbito um pranto de amargura
Pelos olhos de céu da esposa se abre!

E altivo, e nobre, o cavaleiro assiste
À dor dessa princesa amada e triste,
Com a mão em voto sobre a cruz do sabre!

II
Diáfana, esgalga, apiedando a gente,
Borboleta de extinta primavera,
Surge-me dentre madressilvas e hera,
Como gelada pérola dormente.

No lis murcho da tarde o olhar morrente,
No êxtase frio de estelar quimera,
Com o livro de Horas no regaço, espera
Vésper, a hóstia do Ângelus, no poente...

Açucena litúrgica de ermida;
Flui um frouxo crepúsculo de vida
Seu débil corpo, órgão—sonoro e etéreo,

Que, no anseio divino de outra plaga,
Como a mais leve das falenas, vaga
Balouçada nas asas do Mistério!

III
Essa, de luto e pálpebra magoada,
Branca, franzina e lirial condessa,
Vai viver sob o império da abadessa,
Num convento de Espanha enclausurada.

Ela, faustosa dama cortejada?
Tão às divinas práticas avessa,
Despe o diadema e os sonhos da cabeça
No pavor de uma cela amargurada!

Indiferente e rústica tesoura
Corta-lhe hoje a famosa trança loira,
Que era o encanto do rei. Sóror humilde,

Vai se engolfar em místicas tristezas
A mais galante e bela das princesas,
A muito amada e pálida Matilde!

IV
O alvo espectro de um lírio se levante
Ao mago luar de minha fantasia,
Que não me obumbra, d’alma doentia,
O dorido palor do seu semblante...

Palidez de camélia, no ermo instante
De alçar o cálix para a noite fria;
Palor banhado de melancolia
De um crepúsculo doce e agonizante,

Que é a luz desses olhos, repassados
Da violeta quaresmal do luto,
Do miserere amargo dos pesares;

Olhos piedosos para o céu voltados
E cujo pranto é tristemente enxuto
Na toalha de linho dos altares!

 



TURF

Domingo. O verde embaixo, o azul em cima.
E o cristal da manhã vibrando ao meio;
O sol parece um guizo de ouro, cheio
Da alegria sonora de uma rima.

Belo dia de luz para um torneio
De florete, que os músculos anima,
E o sangue, então, na intrepidez da esgrima
A espadanar-te em púrpuras no seio;

Ou para um tour de champ de meia légua
Num fáeton de asas, atrelado à égua,
Lustroso ao sol, como o verniz de um cromo;

Vendo-te a fina flor, da arquibancada,
Qual uma enorme e rútila granada
Flamejando na raia do hipódromo!

 

NA ESCÓCIA

O espiralado mármore transposto,
Perscruto, à entrada: singular tristeza
Vara o palácio heráldico da inglesa,
O requinte do luxo e do bom gosto.

Da cadeira de Córdoba no encosto
Fulge a cabeça de ouro da duquesa,
Ao fosco luar da serpentina acesa...
— Como, senhora, lágrimas no rosto?

E alçando, e abrindo a esguia mão de opala,
Para saudar-me, um suave cheiro voa,
Como se um lírio abrisse em plena sala!

Morrera à neve (ela o episódio traça
Com um “trêmulo” de voz que me magoa)
O dourado faisão de Sua Graça!

 

NAMORADOS

Nessas manhãs alegres, perfumadas,
De éter sadio e claro firmamento,
Acariciando o mesmo pensamento
Percorremos o parque, de mãos dadas.

Aves trinando em cima das ramadas,
Alvos patos e um cisne a nado lento
Sobre as águas do lago, num momento
Pela brasa do sol ensanguentadas...

Brilha o sereno trêmulo nas pontas
Do vistoso gramal, como se fosse
Solto rosário de opalinas contas...

Enquanto uns casos rústicos de aldeia
Eu vou narrando-lhe, em linguagem doce,
Escuto a queixa de seus pés na areia!

 

AO CHÁ

Conversávamos uma noite destas
Ao chá, e me falava a baronesa,
Meio inclinada ao ângulo da mesa,
De certas coisas suavemente honestas.

Tinha duas paixões: a Itália e as festas,
As ruidosas partidas da nobreza,
Em que afogava a lírica tristeza
Das fantasias e ambições funestas...

Isto dizia a titular senhora
A chávena mexendo... E o pranto agora
De seus olhos azuis o brilho empana...

Mas resistiu aos íntimos embates,
E foi levando aos lábios escarlates
A reluzente e clara porcelana.

 

MANHÃ DE SPORT

— Pronto, milady. E, improvisado pajem,
Mão sobre o freio refulgente de aço
E a outra espalma, em meia curva o braço,
Eu lhe rendia guapa vassalagem.

Senti-lhe o pé, numa pressão de aragem...
Puxando acima as dobras do regaço,
— Upa! E entre aromas aflorou no espaço
A sua esguia e cavaleira imagem.

De um salto ei-la no dorso da normanda,
Cujo pelo de seda reluzia
Sob o arabesco de ouro da varanda;

Dei-lhe as rédeas colhidas e o chicote;
Lépido, galgo a minha montaria,
E abrimos juntos num garboso trote!

 

DE VOLTA

Tudo me fala aqui, tudo o que vejo!
O sol do outono, o riso das crianças
Invadem-me o palácio das lembranças...
E o pomar, o jardim, a horta, o brejo

Deste pequeno e manso lugarejo,
Onde ficaram minhas esperanças
Amarradas ao fio de umas tranças,
Que ainda vê-las, sôfrego, desejo,

Reproduzem-me a tela colorida
Dos episódios bons de minha vida
Passada alegre nesta velha granja...

Entremos: ainda a mesma é a mobília...
Acho, porém, de mais entre a família
Um moço estranho e flores de laranja!

 

MAMELUCA

A que aí anda, esguia mameluca,
De olhos de amêndoa e tranças azeviche,
Tem uns ares fidalgos da Tijuca
E petulantes trajos a Niniche.

É justo, é natural que ela capriche
Em mostrar o cabelo, a espádua, a nuca
E essas pálpebras roxas de dervixe,
Como um goivo aromal que se machuca.

Abre às soalheiras, em sanguíneo estofo,
A escandalosa e original papoula
Do parasol clownesco, alacre e fofo;

E o lírio do alto, quando espia o glabro
Rosto oval da cabocla, abre a caçoula,
E a via-láctea acende em candelabro!

 

OUTONO

O outono! Abril fugindo e maio perto,
Engrinaldado de heliantos de ouro;
Esmeraldas no chão, feral tesouro
Em luxúria de pâmpanos aberto!

De asas ruflas e quentes e olho esperto
Andam aves nas frondes, em namoro;
Longe, sob um sol claro e agreste coro,
De flor e frutos meu pomar coberto!...

Condessa! é tempo de habitar a mata:
Se o dia esplende, a noite, em represália,
Abre nos ares o estendal de prata;

Toma as luvas e a umbrela; eia, formosa!
O chapéu largo de palhão da Itália,
E o vestido de chita cor de rosa...

 

DE VIAGEM

Íamos ambos, joviais e amigos,
Pelo caminho fora conversando
Coisas alegres; íamos lembrando
Uns episódios íntimos e antigos.

Longe de nós os lôbregos perigos
Que o imprevisto não diz como nem quando,
Pois surgia ao levante um clarão brando:
Pássaros, bosques e rurais abrigos

Pouco a pouco saíam do letargo
Pelas margens da estrada; a trote largo
Iam batendo os árdegos cavalos...

Incendiava-se a manhã tranquila!
Mas quando entramos, lépidos, na vila
Ainda ouvia-se o cantar dos galos...

 

REAL SENHORA

Mirante alegre e rústico do paço,
Rasgado ao poente de lilás; deserta
Varanda em flor, garridamente aberta
Para o mármore branco de um terraço.

De um bizarro mancebo pelo braço
Surge, toda de branco e a hora certa,
Formosa dama, que, a tremer, concerta
Os crisântemos de ouro do regaço...

Dizem ser ele o pajem da rainha;
E a dama, calam... Mas é crença minha
Ser ela própria em seus reais folguedos;

Tanto que o servo empoado e preferido
Traz, com graça e donaire, híspido, erguido,
De asas abertas, o falcão nos dedos...

 

OLHOS DE ESFINGE

Todo o travo da culpa e toda a mágoa,
Que te alucina e desalenta o peito,
Numa espiral de sonhos vão direito
Aos teus olhos felinos, cheios d’água.

Estes cismam à sombra de um parágua
Só de ametistas e saudades feito;
Lírios desertos que só têm por leito
Asperezas nostálgicas de frágua!

Dois violinos letais de corda frouxa
Plangendo nessas misteriosas casas,
Ou, no smorzando de uma tarde roxa,

De um marnel de ninfeias e águas pretas,
Abrindo lentas, solitárias asas,
Duas sinistras e amplas borboletas!...

 

DE FÁETON

Chapéu ramalhetado em trevo e jalde,
Vestido simples e madrigalesco,
Goza do ar fino, antes que a luz escalde,
Loira fidalga de perfil tudesco.

Constante aguardo que, cindindo o fresco,
Da galhardia a flâmula desfralde
Seu fáeton leve, claro e principesco,
Pelas ruas floridas do arrabalde.

Curiosa gente a espera da passagem
(Batendo o asfalto as patas do normando)
Da encantadora e rápida carruagem,

Concha de vime que, entre beijos roda
Numa aleluia aurorial, levando
Essa gloriosa pérola da Moda!

 

PRIMAVERIL

Vieram contigo, flor de primavera,
Na brilhante explosão de áureas falenas
E andorinhas gazis, abrindo as penas,
O sonho azul, a fúlgida quimera...

Entre os verdes lauréis de ramos de hera,
Mirtos floridos e úmidas verbenas,
Rindo, talvez, às doces cantilenas,
Abrem-se os ninhos, meigamente, a espera

Da asa primeira e do primeiro beijo...
E este aroma de rosas, este harpejo,
O sonho azul, a fúlgida quimera,

Ferindo a luz do amor, a luz querida,
Que est'alma aquece e me ilumina a vida,
Vieram contigo, flor de primavera!

 

ALELUIA, ALELUIA!

Freme em harpas a luz, o éter floresce,
Aleluias no espaço, ouro e o perfume,
Que eu sinto às vezes, morto de ciúme,
Quando a estrela dos Alpes aparece.

Auras do luxo agora chegam, e esse
Fluido de graça que ela em si resume;
O alvo poema da carne vem a lume.
Em prefácios de glória e de quermesse.

Qualquer coisa de estranho no ar da rua
Em que rútila e módula flutua
A asa do sonho, criadora e aberta...

Fanfarras da arte, águias do estilo, em bando,
E o clarim da beleza, alto, vibrando...
— Poetas, em fila! Madrigais, alerta!

 

MAGNÍFICA

Láctea, da lactescência das opalas,
Alta, radiosa, senhoril e guapa,
Das linhas firmes do seu vulto escapa
O aroma aristocrático das salas.

Flautas, violinos, harpas de ouro, em alas
Labaredas do olhar, batei-lhe em chapa!
— Vênus, que surge, roto o céu da capa,
Num delírio de sons, luzes e galas!

Simples coisa é mister, simples e pouca,
Para trazer a estrela enamorada
De homens e deuses a cabeça louca:

Quinze jardas de seda bem talhada,
Uma rosa ao decote, árias na boca,
E ela arrebata o sol de uma embaixada!

 


ITALIANO

A saída do clube, o conde, um dia,
No tom cavo das mágoas e revezes,
Concluindo a palestra, me dizia:
Nunca, amigo, por ela te embelezes;

Hão de amargar-te eternamente as fezes
Da taça loira, apetitosa e fria,
Que te ofereça, e a tentação desprezes
Do seu fino licor de Malvasia;

Filtros danados, tóxicos perversos
Andam, traindo o império da vontade
De parceria nesse vinho imersos...

Tempos depois eu soube, não sei onde,
Que essa flor da luxúria e da vaidade
Tinha, uma noite, envenenado o conde.

 

PARA-SOL

Um bijou de marfim, trama escocesa
E riquíssimas rendas trabalhadas
Pelas mãos brancas, finas, delicadas,
De uma reclusa e paciente inglesa.

Pálio branco da graça e da beleza,
O para-sol de nesgas esticadas;
— Bela tulipa das manhãs douradas,
Trá-lo sempre umbrelado, a baronesa.

No pedaço de dente de elefante
Cinzeladuras de chinês galante,
Coisas bizarras que ele, opiado, sonha:

N'água — das ninfas o alarmado feixe,
E uma, a mais bela, nua, como um peixe,
Trespassada no bico da cegonha!

 

LÁGRIMAS

I
Rosa na trança escura, rosa ainda
Nas faces, de uma lirial pureza,
Ia, estrelas na boca, enchendo a mesa
Com a sua essência pitoresca e linda.

Olhos — taças de vinho, a minha vinda
Brindando! A iluminar toda a largueza
Da varanda, hoje imersa na tristeza...
Talvez não! Talvez de uma graça infinda

Seja a su'alma, em sonho se desdobre,
Damasco enchendo, a rir, que a mesa cobre,
Com a flor do estilo, em delicados molhos...

Cenas, talvez idílios na janela,
E o beijo a esvoaçar por cima dela...
Vão-me caindo as lágrimas dos olhos!

II
A embaciar-me os dias e as estrelas
Cedo volveste, lágrima aflitiva;
Que ao ter-te agora às pálpebras cativa,
Claras e firmes não mais pude vê-las.

No mar cavo e pungente das procelas,
Que de ti, gota trêmula, deriva,
— Vulto sombrio de asa fugitiva,
O sonho atufa as desfraldadas velas...

Ais de agonia, gritos de desgraça,
Um coro torvo e tormentoso passa
Entre o abismo da terra e os céus nublados;

Tudo reveste uma expressão de mágoa
Através deste fútil pingo d’água
Que não me deixa os olhos sossegados!

 

DUELO EXCÊNTRICO

Perto, o castelo. Alva manhã de junho.
Na arena, sob entrelaçadas ramas,
Acham-se as duas ciumentas damas,
Aprumadas e loiras, de arma em punho.

Tem toda a cena da lascívia o cunho:
Espartilhos no chão, bordadas tramas
De camisa escorrendo-lhes das mamas,
De bicos róseos e à feição do abrunho.

Chocam-se os ferros. Um tinido de aço,
Um tremor de paixão em cada braço...
De um seio de hóstia púrpuro filete

Esguicha! Bamboleia uma cabeça...
E, recuando, a intrépida condessa
Leva um rubi na ponta do florete!

 

SHAKE HAND

Fluindo o aroma sutil de violeta,
É de minha bizarra fidalguia
Que esta paixão, dourada de alegria,
Nem te dê mágoas nem te comprometa,

Era quebrar a linha da etiqueta,
Em plena rua, pleno meio-dia,
Beijar-te a mão, que, açucenal, gemia
Encarcerada numa luva preta.

Desnecessário fora enleio tanto;
E sentirias, trêmula de espanto,
A intensa vida desta história louca,

Se à luz áurea do sol, que do alto vinha,
Quando pousaste a tua mão na minha
Os meus dedos febris tivessem boca!

 

SOBERANA

À frente — dois clarins alvissareiros,
O aroma e a luz, e, logo, o arauto e o pajem
Anunciam-lhe a glória da passagem
Num triunfal tropel de cavaleiros.

Guarda de honra de mínimos guerreiros,
Flecha e carcás luzindo, asa e roupagem
Flabelando nos flancos da equipagem,
Ladeado o palafrém de áureos arqueiros;

Dragões de ouro, leões de juba oureada
E cauda erguida, ao sol embandeirada,
Entre o esplendor das lanças e das setas;

E atrás, o ovante séquito fechando.
A lira ao braço, um raio à mão, salmeando,
A engrinaldada legião de poetas.

 

ROUXINOLANDO

Ainda um pé no degrau, outro ao tapete,
No planalto da larga escadaria,
Mãos na minha, eu já a sua voz ouvia
Retinindo por todo o palacete,

Como os cristais chocados de um banquete.
O que se dera, tudo o que sabia,
O rosário de pérolas do dia
Ali desfiava o trêmulo diabrete.

Pé no degrau, eu contemplava o encanto
(Ao intenso clarão do lustre aceso)
Do seu lábio gazil sonoro e parlo...

E mais trinava aquela voz, enquanto
Eu sonhava que tinha aos dedos preso
Um fino rouxinol de Monte Cario!

 

AMOR DE PERDIÇÃO

Não me conte que choras, não me diga
A tua boca trêmula e rosada,
Que te deixou perdida e desgraçada
A funesta paixão, que a ti me liga.

Vamos: vê que te estendo mão amiga
Nos dolorosos cardos da jornada;
Que, se eu te vejo em lágrimas banhada,
Também de angústias a chorar me obriga

O ermo fio de pérolas que desce,
Numa tremura e contrição de prece,
Por tua face triste e esmaecida;

Longe esse pranto de ideais pesares,
Para, convulsa e pálida, chorares
Quando em teus braços me fugir a vida!

 

DEZEMBRO

As andorinhas imigraram, vindo
Em giro curvo, lépido e sereno,
Do alto da serra para o campo ameno,
Às primeiras fanfarras do mês lindo.

Sob a copa das árvores, abrindo
A flor e o ninho ao colibri pequeno,
Entre olores balsâmicos de feno
Passa o farrancho de crianças, rindo

Na ociosidade trepida das férias;
E apontam já, no eflúvio dos luares,
Véus flutuantes e toilettes sérias

De pessoas da corte, e cavalgada
Da fidalguia banza, que anda aos ares
E vem sulcando os areais da estrada...

 

EXCELSIOR

De todas, esta é a mais formosa dama
E o mais fidalgo e níveo dos decotes,
Desabrochando em pérolas... Miosótis
Espumilhados em triunfal derrama...

A graça irrompe; o olhar de estrela inflama
Esculturais e femininos dotes;
Soberano esplendor dos camarotes
Nas primeiras da ópera e do drama!

Alma do prado; em seda fiava e renda
Jalde suntuosa, trêmula, estupenda,
Na corbelha do fáeton clara e aberta;

Sol das varandas, palpitante opala
Das embaixadas, em soirées de gala,
De um manto de ouro e madrigais coberta!

 

MAIO

Maio, que é todo azul e é todo claro,
Contemplativo, virginal, tranquilo;
Céus, que me lembram, quanto mais reparo,
O misticismo suave de Murilo;

Que é o encanto da vida, tudo aquilo
Sereno e manso que deporta o enfaro;
Papeios de ave procurando asilo,
Terra enflorada, ninhos em preparo;

Mês de Maria rebentando em flores,
Plumas e borboletas multicores,
Noites, manhãs e tardes vaporosas,

Sempre infiltradas da sonoridade
Do ermo e brando violino da saudade,
Maio te alastre o camarim de rosas!
 

AMORPHOPHALLUS

Nenúfar venenoso, ermo e visguento,
Aberto em concha ao turbilhão iriado
Dos insetos, que voam no ar parado
De um tenebroso lago pestilento;

Flor dominando um pântano folhento
De algas, musgos e lodo fermentado;
Flor, que tem na impureza escancarado
O seio branco para o firmamento;

Cheia do pólen rescendente e ativo.
Tão à falena e ao colibri nocivo,
E que é das vespas causa de outros males.

Pois que ao lótus amargo te assemelhas,
Eu terei de morrer, como as abelhas,
Intoxicado dentro de teu cálix.

 

SIR

Escandinavo e já senhor, tão breve,
De zagais e zagalas de um condado:
Olhos de lírio, um tipo loiro e ousado;
Sobre o lábio sanguíneo um buço leve.

Ao seu solar nenhum pastor se atreve
Subir, para atestar-lhe o celebrado
Culto da arte, do luxo e do Passado...
Dorme o rudo castelo sob a neve!

Com brilho e graça e pródigos recursos,
Em caçadas boreais de renas e ursos,
Faz honra à extirpe o príncipe Rodolfo:

Para levá-lo não se sabe aonde,
Tem, de flâmula solta e, armas de conde,
Um iate boiando sobre, o golfo.

 

ASAS ÚMIDAS

Melhor, muito melhor, anjo, te fora
Não roçares, brincando, as leves plumas
Das tuas asas, brancas como espumas,
Pela minha cabeça pecadora...

Não há em mim a seda protetora
Das rosas frescas, onde os pés perfumas,
Nem a macia flacidez das brumas
Em que poreja uma alvorada loira.

Arfa teu seio na delícia extrema,
Como o peito selvagem de Iracema
Naquele sonho olímpico da rede;

Vieste rompendo castas madrugadas,
Que ainda tens as penas salpicadas
De cristalino orvalho, e eu tenho sede!...

 

BACANTE

Não pode a fronte, que uma vide enrama,
Aureolar-se de mádida tristeza;
Que a alegria dos pâmpanos, marquesa,
Por tua boca e por teus olhos clama.

Feição, que é o linho, numa alcova acesa,
Com duas taças — para o amor e a fama,
Donde um mosto de treva se derrama,
E um cacho rubro dando graça à mesa...

Das tuas sedas e dos teus cabelos
Sobe o vapor dos vinhos, em novelos,
Como escaldando em ânfora faceta;

Olhos embebedantes e risonhos,
Que, até nadando em lágrimas, suponho-os
Dois orvalhados bagos de uva preta.

 

DIA DE SEUS ANOS

Resplende o sol em pleno céu bordado
De flocos níveos, leves, transparentes,
E asas, que voam da montanha rentes,
De alvas pombas em bando alvoroçado.

Dia alegre de um mês abençoado,
Mês da cigarra e flamboyants sanguentes;
Cantos de ave e perfumes diferentes,
Lírio aqui, ninho ali dependurado.

Criaturas risonhas, muita calma
Dentro da casa rústica e florida
Em que me esperas, noiva de minh'alma;

Mais uma bênção sobre ti caída,
Um ano, um riso, um beijo, uma outra palma,
Mais uma pomba no rosal da vida!

 

A CONDESSA

I
Ei-la defronte à lâmina espelhenta
De áureas molduras florejadas e onde
Toda a riqueza do salão do conde
Pontilhada de luzes se apresenta.

A tanto luxo ousado corresponde
Essa que surge, ao próprio corpo atenta,
Bela e soberba! E, como um astro, aumenta
Toda a riqueza do salão do conde!

Dá ao cabelo e ao talhe do corpete
O último toque; um último alfinete
Franze a cauda real da saia turca;

Põe quase aos ombros um buquê vermelho;
E, pronta já, de costas para o espelho,
Vai ensaiando um passo de mazurca...

II
Frisando o luxo do palácio em peso,
A tilintante e esplendorosa fila
De altos lustres artísticos fuzila
Pelas facetas do cristal aceso.

Desce um fluido de olímpico desprezo
De cada olhar, de cada irial pupila,
Que, cintilando férvida, aniquila
Mais de um fidalgo almiscarado e teso.

Há, porém, certo refranger de luzes,
Promíscuo brilho de olhos e grã-cruzes,
De quentes raios fulgurante chuva,

Quando, em auras de aroma conhecido,
Alva e radiosa, ao braço do marido
Entra a condessa, abotoando a luva!

III
Morria o som da última habanera
Saudoso e lento no metal da orquestra,
Quando esse arrojo da beleza, mestra
Dos floreios do baile, o carro espera.

Daquela boca salta a primavera
Bafejando-lhe o termo da palestra...
E já, sorrindo e meneando a dextra,
A mesura simbólica fizera.

Acompanhando-a como que suspira
A ronda alerta dos olhares... Sente
Tão fria a noite! E o donde, sem detê-la,

Naqueles ombros pálidos atira
A seda azul da capa rescendente,
— Um pedaço de céu sobre uma estrela!

IV
Transpondo a alcova conjugal, ornada
Da radiosa tulipa de uma placa,
Sobre o mármore verde colocada
De um lindo móvel de pão-rosa e laca,

Em frente à esposa lânguida, atirada
Numa larga poltrona, o conde estaca
— Braços cruzando, a fronte anuviada,
Ereto e firme dentro da casaca...

Censurava-lhe a corte dos rapazes:
Certo que todo o baile notaria
Tão jovial, mas frívola cabeça...

E, alarmando-se um cheiro de lilases,
Par sereno de lágrimas caia
No amargurado rosto da condessa!

 

HELIANTOS 
(A Luiz Gonzaga Duque Estrada)

 


CONCERTANTE

Trajo de baile; embriagadora cauda;
Pulcro e níveo decote, amplo e deserto
De joia ou flor, em frente ao piano aberto
Percorre a partitura lauda a lauda.

Senhorial e deslumbrante, ofusca
O salão cheio da mais fina gente...
Eis que vibra o teclado, de repente,
Como um trinado, numa escala brusca.

Preludiava. Um frêmito indeciso.
Na linha rósea das senhoras passa:
Não há quem tenha assim tão nobre graça,
Quem mais eleve e humilhe num sorriso.

A régios golpes de águia, a inveja e a inópia
O seu contralto límpido suplanta,
Ao saírem-lhe as notas da garganta,
Como estrelas de uma áurea cornucópia.

Um quê de etéreo, que se não define
imprime às vozes do rimance lindo;
Vai na espiral da música subindo
A alma branca e dolente de Bellini.

Dá doçura ao mais doce dos maestros,
Traduzindo-lhe as mágoas e as quimeras;
Cantam, soluçam duas primaveras,
Uma na boca outra em seus dedos dextros!

Bênçãos maternas, quando o filho parte
Ou para a vida ou para a cova; tudo
Desliza sobre um flácido veludo,
Numa vibrante contextura de arte.

Livres, enfim, das mundanais lisonjas,
No claustro, à morta luz do alampadário,
Osculando Jesus no breviário
Monges de cera e amarguradas monjas.

Ermidas brancas, catedrais em festa,
Brocado de aras e ogivais damascos;
Sol coroando palmas e penhascos
E, em lança, abrindo o seio da floresta,

De cuja entranha partem brumas e asas,
Vivas palhetas, e um gorjeio de ouro;
Pombas cortando a luz de um dia loiro,
Sobre uma aldeia branquejando em casas.

Noivas entrando as enfeitadas portas,
De braço aos noivos, satisfeitas quase...
E, na nuvem sutil dos véus de gaze,
A prónuba ascensão das noivas mortas.

Ângelus de azul pálido, hora viúva
Nos lilases do ocaso amortalhada;
Tristes meditações de amado e amada,
Quando à vidraça tamborila a chuva.

Rosas de maio, místicos misteres,
Fontes chorosas e ermas borboletas:
Rescendência de pálidas violetas
Sobre o colo moreno das mulheres.

Ventos bravios; garra crispa de ondas
Na harpa sinistra e rota dos cordames
Embala a não, a flor de dois estames;
E, após, risadas e a canção nas mondas.

Rute cantando alegre nas searas,
Coroada de lúridas espigas:
Festa de moços e de raparigas
Sob o véu outonal das manhãs claras.

A infância rindo e a viuvez chorando!
Trompas, marchas de guerra e a própria guerra,
Tudo na nuvem de harmonias erra
Em frouxo, em brumo, em mal distinto bando.

Voos de valsa nos salões do fausto...
Esta afogueada, como flor purpúrea,
E vai outra embalada na luxúria,
Segura ao coração do par exausto.

Tudo me diz a lânguida sonata,
E tudo exprime, e tudo idealiza;
Mas só me fala, nítida e concisa,
Dessa estranha mulher, que me arrebata!
____________

O piano, mudo. Alta impressão nas almas;
E outra vez ela dominando a sala,
De pé, sorrindo a maviosa opala,
Num temporal de bravos e de palmas!

 

PÁGINA DE CARTA

Minha pálida senhora:
Hoje, estremunhado e insone,
Quando do albor do cretone
Pus a cabeça de fora,

Para entregar-me ao martírio
De te escrever esta carta,
Eu me supus a lagarta
Que sai de dentro de um lírio.

Doce tortura, contudo:
A de um romano calouro
Dando pamponilha de ouro
Sobre os lavores do escudo,

Que há de florear no torneio
De um circo cheio de aroma,
Em cuja bancada assoma
A dama do nosso enleio;

Lançando o olhar de ciúme
Para um lutador da praça;
E traz o cabelo em massa,
Todo lavado em perfume!

Pois eu bem sei que estas linhas
Vão te passar pela mente,
Como num vermelho poente
Um pelotão de andorinhas

Que de alva prata faceta
O verde-mar, aos salpicos,
Com o fino cinzel dos bicos
E a ponta de asa, em lanceta;

Rabiscando à flor das ondas
Leve, tão leve, que eu mesmo,
Bordando esta carta a esmo,
Nem quero que ma respondas!

Quero, entretanto, que a leias,
Para que aspires com ânsia
A capitosa fragrância
De que as palavras vão cheias;

Pois eu repassei tudo isto
Do óleo, não mais hoje em voga,
Que a rosa da sinagoga
Punha às melenas de Cristo...

E — oh! loira de Lachapelle!
Devia este meu bosquejo
Ser traçado, beijo a beijo,
No cetim de tua pele,

Deixando um sulco violáceo
Pelo teu corpo alvo e lindo,
— Roxa epomeia subindo
Colunatas de um palácio,

A equilibrar sem esforço
De arte belezas eternas:
A pompa de duas pernas
Sustendo a glória de um torso.

Que eu fuja da frase tosca
E só procure a riqueza
Da filigrana chinesa,
Rendilhada em prata fosca,

Com que dou vida a esta folha
De papel, como a paisagem,
Em microscópica imagem
Dá cor e vida a uma bolha,

Deves achar coisa estranha
E ficas, trêmula vespa,
Corpo dourado e asa crespa,
Segura à teia de aranha.

Mas vendo num rubro cinto
O sol, que, enfim, tudo pode.
Sacode as asas, sacode,
E larga do labirinto!

 

INSOLÊNCIA DA CARNE

Da escura dor que esta paixão conquista
Uma alegria audaz salta e gargalha,
Tal como um Mefistófeles farsista
Rompendo, rindo, a renda da mortalha.

Todo o perigo deste amor afronto!
Que a tua carne lúbrica embebeda
E me faz dar, divinamente tonto,
Em teu regaço deliciosa queda.

Que tem um erro, flor? Aos mais que importa
Que eu do vinho dos beijos me socorra,
Desde que para a luz se me abre a porta
Nesta, de mágoas, infernal masmorra?!

Dizendo irei a todos, na áurea trompa
Do verso, o mal que no meu seio medra;
Limpo, quem seja, me condene e rompa
A hostilidade com a primeira pedra.

Mais vinho! Mais a essência capitosa
De teu cabelo e de teu colo; é pouca
A que me vem da tua face em rosa...
Põe tua boca sobre a minha boca!

Já não tem a razão leis que me imponha;
Puros e justos nada têm que eu peque;
E se alguém rir quiser desta vergonha,
Esconde o rosto na asa de teu leque.

O ébano quente, a perfumosa treva
Da cabeleira olímpica desnastra,
E sobre a impudicícia — oh! filha de Eva!
Da minha doida embriaguez alastra...

De teu olhar o fluido me eletrize
Em tão paradisíaco regalo;
E nessa extrema e voluptuosa crise
Salte o teu seio para eu só beijá-lo.

Do pecado e do crime a apoteose
Com toda pompa o nosso amor celebre;
Tem cheiro, este excitante, em alta dose
Que me desvaire e me alucine a febre.

Corpo cheiroso, oh! delicado aroma
De mulher nova muito amada e forte,
Dá-me a luxúria dos festins de Roma
E, entre as névoas do sonho, o gozo e a morte!

Nem vejo mais! Tudo ante mim vacila...
Só vejo a taça em que a loucura sorvo...
Já tua trança desatada oscila
Num revérbero azul de asa de corvo...

Mais eu me rio, mais me aqueço e estorço,
Quanto mais o teu vinho me embriaga;
Sobe-me um calafrio pelo dorso,
E todo o espasmo do prazer me alaga!...

Venha depois a farejante hiena
Do ódio implacável me seguindo os passos,
Que há de me achar, oh! doce Madalena!
Crucificado e flébil nos teus braços!

 

A UMA INFELIZ

Minha franzina e pálida senhora:
Tens no inclinado e rórido semblante
A expressão desolada e sofredora
Do quase morto lírio do Levante.

Tu, que vieste da melancolia
— Religioso e doce misticismo!
Do alvo e cheiroso seio de Maria,
Desces a rampa festival do abismo.

Nesse declive pérfido da vida,
Claro, alegre, mendaz e todo em áscua,
Não volta nunca o bálsamo à ferida,
Não volta mais ao coração a páscoa!

A ave, que o peito inflado dilacera,
Garganteando nos beirais da estrada,
Não canta o sol nem salva a primavera
Vive chorando a asa materna e amada!

Se tua alma geme, lacerada e aflita,
Nas inclementes garras do desgosto,
Deixa em silêncio a lágrima bendita
Banhar-te a extrema palidez do rosto;

Que há de arrancar-te, alfim, dessa tristeza,
Num aromado nimbo de saudade,
Para as alturas mansas da pureza
O claro beijo da maternidade!

 

FIDALGA

Fosse o meu verso um escopro,
Fosse um buril esta pena,
E emergiria, serena,
Como animada de um sopro,

Essa, que a alvura propala,
Tomando Vênus por norma,
Ter o conjunto da forma
Todo lavrado em opala!

Essa por quem eu padeço,
Essa por quem dera tudo
Para tocar o veludo
Dos seus vestidos de preço.

Senhora por quem eu morro,
Vendo-lhe a pluma de garça,
Como um punhal - que disfarça.
Vir espetado no gorro.

Rainha e dona suprema
De todas as flores, todas!
Que há de ter carícias doidas
E delicadeza extrema

Para os finos heliótrops,
Lírios, jasmins, malvaíscos,
Tombando em vasos mouriscos,
Murchando n'água dos copos.

Mesmo para o seu canário
Cor de jaldes de Friburgo,
Roubado a um feld em Hamburgo,
Trazido por um corsário,

Que (a indiscrição não me intrigue)
Era um rapaz de Corinto,
Pistola e punhal no cinto,
Dono de um cão e de um brigue.

Com as pombas, com qualquer coisa
Que tenha vestígios de arte,
Toda a sua alma reparte,
Dá-lhes cuidado de esposa.

Tenho-lhe amor tão intenso,
Que já do verso extravasa:
Foi a luz dentro de casa,
Foi um perfume... no lenço!

Paixão, que outra força doma,
Mas que se a vê toda crespa
Como, raivosa, uma vespa
Por dentro de uma redoma.

É o meu poema de queixas
Essa rival das Ofélias;
Alva, da cor das camélias,
Loira, da cor das ameixas!

Primor, que em versos arranjo,
Ela o possui, como escravo:
Tem toda a, pompa de um Cravo
E o misticismo de um anjo,

Essa orquídea dos caprichos,
Que em seu róseo gabinete
Afoga os pés num tapete
Feito de paina de bichos.

E algumas bocas dão curso
À novidade seguinte:
Tem no chão, como um requinte,
Rara e branca pele de urso,

Que a língua apresenta, a gorja
E a boca de ares sanhudos,
Aberta em dentes agudos,
Rubras, lembrando uma forja;

Cabeça de pelo hirsuto,
Olho vidrado, de fera;
Garras de tigre e pantera,
Toda a fereza de um bruto,

Deitado ao lado da mesa
Onde ela invoca as imagens,
— Belo charão de ramagens,
Trabalho de arte chinesa.

Nem sei como eu me aproximo,
Por certo prisma risonho,
Dessa mulher, que é um sonho,
Dessa mulher, que é um mimo;

Que no trajo preto leva
Toda uma luz espontânea,
Como o diamante de Urânia
No estofo negro da treva.

Que essa titular esbelta,
Essa franzina fidalga
Tem a elegância da galga
E todo o aprumo de um celta.

Traz um perfume, que alarma
Todo o lugar onde passa:
Como as duquesas de raça,
Como as violetas de Parma;

Beleza cheia de audácia,
Dona do encanto das Musas,
Como a flor das andaluzas
É dona, enfim, de “la gracia!”
Mas deste amor todo o fausto,
O luxo, o ruído que encerra,
É como o esplendor da guerra,
A festa de um holocausto.

Fosse o meu verso um escopro,
Fosse um buril esta pena,
E emergiria, serena;
Como animada de um sopro,

Essa, que a alvura propala,
Tomando Vênus por norma,
Ter o conjunto da forma
Todo lavrado em opala!

 

ESTRELÁRIO
(A Oscar Rosas)

I
Como, indolente e a custo,
Fantasiando o extravagante quiosque
Todo de seda e de marfim vetusto,
Onde a hera se enrosque,

Gasta o seu tempo o japonês malandro,
Assim, minha querida,
Eu vou dispondo um trabalhoso meandro,
Um dourado arabesco,
Pelos beirais da tua alegre vida,
— Lago atufado de astros e ninfeias...

E farei do reduto pitoresco
O estrelário da rima e das ideias.

II
Quando eu te vejo flor, vem-me à cabeça
Uma linda pastora arcadiana,
Feita de porcelana,
Que eu já vi no boudoir de uma condessa.

Olhos travessos e maçãs salientes,
Se te mostras sorrindo;
São teus lábios, arqueados sobre os dentes,
Como dois gonos de laranja-cravo.
Cantando o verso lindo,
Que eu nesta avena trêmula acompanho,

Acompanha-te, escravo,
Dos ideais o fúlgido rebanho.

III
Olha este mar de rosas
Da mocidade, filha, como é lindo!
A fantasia, de asas milagrosas,
Vai cantando e fugindo

Sobre a larga, planura; e como brilha
Este luar estranho,
Como um véu escumilha,
Perfumado nó sândalo de um banho!...
Vamos seguir a fantasia alada,
Que rompe o canto e o páramo brilhante,

Oh! peregrina amante,
Do meu amor na gondola dourada!

IV
Amorosa e tafula
Pomba da mata, ebúrnea e delicada,
Que, aos primeiros incêndios d’alvorada,
Salta do ninho, e pula

De bromélia em bromélia, galho a galho,
Pipilante e modesta,
Entre o rumor e a garganteada festa
Dos tenores, com pérolas de orvalho
Sobre o matiz das plumas,
Que andam, ruflando pelo bosque, à toa...

Rompe o segredo e as brumas,
Abre as asas na luz, e canta, e voa!...

V
Compõe a trança e vamos,
De braço dado, pela vida afora:
Tudo palpita agora,
Ninhos e flores, pássaros e ramos,

Nesta manhã de amor; asas e albores
Vão matizando o espaço;
De manso cairão no teu regaço
Pérolas d’água, um temporal de flores!
Vamos vagar na perfumada plaga,
Oh! flor das Julietas,

Como, entre lírios e amarantos, vaga
Um par de borboletas.

VI
Não te desperta a música longínqua
Da rainha lira, em trovadora festa,
Nem as zarzuelas desta
Luz ruflante, aurorial, que se apropinqua.

Hoje, de tudo zombas,
Lírio aljofrado e estivo;
Vão só de afeto imaculadas pombas
Em teus sonhos roçar, de quando em quando.
Que do teu seio alvíssimo rebente
O amor, gloriosamente,

Num turbilhão festivo
De anjos sorrindo e pássaros trinando!

VII
Deixa meus olhos pretos,
Buliçosa menina de olhos pardos,
Réus de mil crimes, ídolo dos bardos,
Em nicho de sonetos.

E são lindos por quê? E nada dizes,
Toda cheia de rúbido vexame;
Bem percebo: felizes
Espelhos d’alma, pois há quem os ame
Com infantil recato,
Pelo galante e singular motivo:

Reproduzem, ao vivo,
Microscópico e lindo o teu retrato.

VIII
Vês tu, pálida moça,
Leve, pequeno, rústico, macio,
Aquele ninho em flor que se balouça
Sobre a esteira do rio?

É, minha vida, o tálamo propício
De avarento casal de aves pequenas,
Feito de musgo e penas
Num afetivo e mutuo sacrifício:
De lindos beija-flores
O delicado e morno domicilio...

Tenho eu, para aninhar-te, ave de amores,
A rosa de um idílio.

IX
Vejo-te; e sempre nesse lábio — rubro
E apetitoso pomo,
Pousa inquieto o sorriso, alegre como
Dourado inseto numa flor de outubro.

Há sol e aroma em teu vergel de amores,
Papeios de aves, frêmitos de beijos...
O meu? Tristonho e frio como os brejos,
Com invernadas sem luz, hastes sem flores,
Ninhos desmantelados
E asas mortas boiando num riacho...

Frios, inanimados,
Lá vão meus sonhos, desengano abaixo!...

X
Pensei partir sozinho,
Como um boêmio feliz, desconhecido,
Sem dar ao menos, triste e comovido,
Um ai! pelo caminho.

E partiria alegre, se assim fosse!
— O coração deserto,
Mas o lábio entreaberto
Num sorriso pueril, festivo e doce,
Tendo a vista embebida
Na encantadora e florida paisagem...

Mas levo o olhar, o coração e a vida
Cheios de tua imagem!...

XI
Vem à janela: aos pares,
Pelo tapis da balsa,
Como noivas e noivos numa valsa,
As borboletas giram pelos ares,

Ao ritmo inspirado,
Maravilhoso e peregrino misto
De risos e habaneras,
Que, tendo os alvos lírios por cenário,
Solta alegre, dulcíssimo, trinado,
O flautim de um canário.

Tua cabeça é isto:
Um bailado de alígeras quimeras!

XII
Esta tristeza amarga,
Esta saudade túrbida e violenta,
Que dentro em mim rebenta,
Como flor venenosa inculta e larga,

Toda a grandeza de minh'alma invade
E infiltra-me na veia
Do estro a plangente morbideza, que há de
Tornar-me a estrofe lacrimosa e feia.
Como nuvem que lança
Espessa nuvem de atra tempestade,

Pela minh'alma avança
Esta violenta e túrbida saudade!


 

VARANDIM
(Ao meu amigo Orozimbo Muniz Barreto)

 


DÉLIA

Esse ar, severo e torvo, de tragédia
Bem não te fica; e muito mais agrada
A ficção vaporosa e iluminada
De um olímpico trecho de comédia:

Nua, a forma divina, a prumo e nédia,
Dentro da madrepérola raiada
Em concha, à onda azul partindo, ousada,
A um par de cisnes empunhando a rédea;

Pó dourado no espaço; ouro espumante
Nos teus cabelos, todo um flavo instante,
Cheio de asas de rútilos insetos;

Engrinaldada pelas rosas da arte
Vem tu, cantando e rindo, debruçar-te
Nesta estreitada curva de sonetos.

 

A CUBANA

Estranho aspeto o desta flor! Crioula
De uma ilha talvez, pátria ridente,
Em que a luz queime e tenha, diariamente,
O brilho seco de uma lantejoula.

País claro, em que a alvíssima caçoula
Dos lírios murche, quando o sol no oriente,
E os plainos glaucos, áspera, ensanguente
De rubras flores a vernal papoula.

O corpo untuoso de lascívia hebraica,
Esta mulher, cujo destino ignoro,
Tem, que da fama os ídolos derruba;

E a mim, que a beijo, o vinho da Jamaica
Dá-me do lábio e, para mim, que a adoro,
Trouxe, nas carnes o verão de Cuba.

 

MISS ALMA

Formoso ser angélico, que deixas
Na esfera azul o iluminado friso
Do ouro fulvo e luzente das madeixas
E a claridade mansa de um sorriso;

Graça, feita de pérola e granizo,
Que as estrias do sol nas mãos enfeixas...
E assim tu vais, alada flor do Texas,
Como um anjo escalando o paraíso.

Misteriosa pomba, intrépida e alta,
Dos minaretes, numa tarde em brasas,
Que mais da glória o resplendor exalta...

Larva assombrosa, aérea e multiforme,
Na apoteose brilhante de um par de asas,
Deixando a seda de um casulo enorme!

 

GRISETTE

Daqueles céus e clima de Marselha
Traz, na lisa epiderme acetinada,
Ainda a alvura da neve pendurada
Em estalactite nos beirais de telha.

E é toda um quê simpático de ovelha
Fresca, arminosa, ebúrnea, ensaboada...
Tem o ar fresco e sadio de alvorada
E um aspeto gentil de flor vermelha.

Loira, tão loira como a deusa Ceres!
Entumece-lhe a carne um sangue farto
De arrás de barco ou moço de fálua;

Escandaliza a todas as mulheres,
Quando, pela manhã, deixando o quarto,
Leva o canário da alegria à rua!

 

SANGRINA

Rubra; rubro o vestuário e rubra a seda
Da umbrela aberta, ao jeito das caçoulas;
Com o cabelo alastrado de papoulas
Rompe o casulo verde da alameda.

De Habana, e a malagueta das crioulas,
— Sangue na guelra, espaventosa e treda,
Toda granada e punch em labareda,
Pondo na praça as criaturas tolas...

Como pandeiros, pende em cada orelha
Um halo de ouro, na explosão vermelha
De um perigoso e lúbrico salero;

E tanto mais provoca e escandaliza,
Por se saber ter vindo, a que aqui pisa,
Na sanguinária súcia de um toureiro!

 


ESTELA

Nápoles ri-se e, bêbedo, cascalha,
— Guizos na roupa, buzinando um corno,
Gondola a dentro, iluminada a giorno,
Que de luzes de cor o golfo coalha —

No Cosmorama vivido e canalha
Do seu olhar apaixonado e morno,
Quando, à mesa do lunch, homens em torno,
Ela sorri de uma lição bandalha.

Desafio insolente a toda prova
Os seus dois seios, de lascivo traço,
Apertados demais em seda nova;

E toda vibra quando se levanta
Daquele meio báquico e devasso:
Como que o vinho nos seus lábios canta!

 

SOFIA

Todo o ardor andaluz vibra e sacode
Seu corpo loiro e pequenino de ave,
Que rufle as asas e na luz se lave,
Sobre a agulha dourada de um pagode;

Flor peregrina donde a força explode,
— Águia nervosa espedaçando o entrave
Do amor faceiro ou de prisão mais grave,
Mas toda a força muscular de um bode!

Escorre-lhe de cima um sol dourado,
Se do flavo cabelo o pente arranca,
E é todo o corpo de Xerez lavado!...

O salero espanhol nos olhos tranca,
E aí vem, de pandeiro enguizolado,
A estudantina, ao luar de Salamanca!

 

DIVA

Vocifera a plateia, pintalgada
De aloiradas cabeças de cocotes
De papoula ao chapéu, e uma encarnada
Rosa sangrando a espuma dos decotes.

Preparam-se as lunetas na cerrada
Linha ansiosa e gentil dos camarotes,
Predominando a mancha delicada
Dos fidalgos buquês de miosótis.

Chamam-te os partidários irrequietos;
Pronunciam teu nome os indiscretos,
De alma suspensa e coração de rastro...

Pisas o palco; o público endoidece,
Tonto, na luz, como se ali tivesse
O estilhaço flamívomo de um astro!

 

ACROBATA

Lantejoulada flor! Lantejoulados
O dorso, o peito, o ventre e o veludilho
Das bombachas de escamas e vidrilho,
Ela me surge aos olhos deslumbrados.

Levando à boca os dedos apinhados,
Solta as asas de um beijo, e um riso, filho
Da canalhice, deixa ver o brilho
De um rosário de dentes esmaltados.

Subindo à corda a luminosa argila,
Para um trabalho do ar, inda não visto,
Ganha o aparelho numa pirueta;

E quando, alto e na luz, o corpo oscila,
Penso, trêmulo e pálido, que assisto
À aparição bizarra de um cometa.

 

GAULESA

Forma divina em mármore lavrada.
Tu, flor da pátria, que ao Rei Sol, pertence;
E não há quem te veja, que não pense
No estelífero baile da embaixada.

E és rosa ainda; rosa fluminense
— Alva corola em púrpura afogada;
Quero-te assim em pompas de alvorada,
Embaixatriz do chic parisiense,

Calcando o boulevard às três da tarde,
Premida a carne, que em volúpias arde,
Na correção finíssima da cassa;

Parasol japonês que a altura excede
Das mãozinhas gritando em peau de Suède,
Toda aureolada no esplendor da graça!

 

ÉCUYÈRE

Surge; deslumbra a olímpica amazona,
Do amor, da graça no esplendente facho!
Freme; e em palmas parece vir abaixo
O claro, o alegre, o amplo funil de lona.

Empolga o circo; e, de improviso, é dona
Do high-life aceso e todo o populacho...
Ferve-me o sangue bravo de muchacho,
Quando sobre o ginete ela abandona

Do corpo excele o empurpurado lírio;
E não me arranca do infernal delírio
A surpresa que, doido, a todos causo...

É que eu a vejo, no meu sonho de arte,
Como um fraldejo rubro de estandarte
Arrebatado no tropel do aplauso!

 


OLGA

A carne em flor, carne insolente e herege,
Aflita ruge e, cúpida, blasfema
Contra o flagelo, contra a odiosa algema
Do elegante costume de barège.

Não há mesmo ninguém que a não inveje,
Quando ela traz, como sensual poema,
Numa arrogância bíblica e suprema,
A carne em flor, carne insolente e herege;

Transparecendo a luxuriosa verve
Do sangue experto e audaz, que explode e ferve
No mais airoso invólucro de fêmea,

Como um champagne efervescente e lindo
De romãs e papoulas, colorindo
Esguia taça de cristal da Boêmia.

 

CÁRMEN

Passa no grande tom, pisando o asfalto
Do amplo trotoir cheio e surpreso; e há tanta
Glória, que o dia sonoriza, e canta
A própria laje onde ela aplica o salto.

Do borzeguim francês, chic e pernalto,
Calcando pé, que, de pequeno, espanta;
E erguendo, e abrindo o excelso olhar, quebranta
A luz do sol espadanando do alto.

Mas há um quê de sonhos importunos
Na solidão dos seus dois olhos brunos,
Que a dor talvez de lágrimas borrife...

É a saudade, a lembrança inquieta e vaga
De uma longínqua e pequenina plaga:
A tristeza insular de Tenerife!

 

COMÉDIA ELEGANTE
(Ao Dr. Ferreira de Araújo)

Em plena fantasia
Aqui. Armemos a tenda,
Em que há de pousar a graça;
— Cinco ou seis nesgas de cassa,
Toda beirada de renda.

Tudo claro e tudo breve,
Quase translúcido e a esmo.
Que o ninho pareça mesmo
Um fino floco de neve.

Cheire a jasmins, a violeta
— O aroma esquisito e brando;
E ande-lhe em torno, flaflando,
A ronda de borboletas:

As mariposas do riso,
As róseas vespas da verve.
Quando, enfim, o sangue ferve
Loucura é ter-se juízo.

Pálio de sonhos, em suma,
Que, sob a luz radiosa,
Tenha o frescor de uma rosa,
Todo um ar leve de pluma;

Donde, olhando por um rombo,
Eu contemple a cada passo
A glória, que, no mormaço,
Deixa a plumagem de um pombo.

De andorinhelas a frota,
Asas e caudas em jogo;
E o sol, como águia de fogo,
Em região mais remota.

Asas! Tão belo que é vê-las,
Como um beijo aéreo e lindo,
Subindo sempre, subindo
O áureo redil das estrelas!...

Aqui, de amor e fragrância
Numa tênue e simples aura,
Hão de vir Beatriz e Laura
Sentar-se ao chá da elegância.

Tudo se adore e se note:
Uma quente flor purpúrea,
Ou, transpirando a luxúria,
O alvo esplendor de um decote.

E rubra, sobre a barraca,
Grite uma flâmula solta
De liberdade e revolta,
Como uma língua polaca.

Abrindo as penas por cima,
No sangue da madrugada,
Trine, faceta e dourada,
A ave travessa da rima.

Deixo que enflorem-me a tenda
Lauréis de acantos e parra...
— Cheia de sons de guitarra,
— Toda beirada de renda!

 

TIRO ÀS POMBAS

Vamos! Põe o sombrero na cabeça;
Vão comigo os caniços e a tarrafa,
Duas claras fatias de anho frio
E vinho, um vinho de âmbar, na garrafa
Para incitar a nossa gulodice.

Ao rio, pois, ao rio,
Minha bela condessa,
Para uma alegre e divertida pesca...

— Prefiro a caça, a tua boca disse,
Boca de rosa, perfumada e fresca!

Pois seja, eu concordava,
Abotoando as tuas luvas pardas;
Atirarei às pombas e às torcazes.
E, logo, pondo as nossas espingardas
A tiracolo, fomos indo, fomos
Como dois bons e joviais rapazes.

Não era mais a flor dos hipódromos
É dos bailes fidalgos
A linda flor, que junto a mim marchava
Festejando aos dois galgos,
Que, atrelados, seguiam-nos a estrada,
De coleiras de prata e orelhas rombas;
Era Diana, então transfigurada
Em mais galante e humana caçadora,
De corset verde, e gorro de veludo
Encarcerando a úmida trança loira.

Era no mês das pombas,
Asas em harpa, em bando,
E a mais clara manhã das manhãs claras,
Estrelada de flores de laranja,
O bom cheiro exalando;
E era rasgando os campos e as searas
A trilha que nós íamos seguindo.

Vinha rompendo a aurora:

A terra, o céu, se transformava tudo
Num panorama lindo!
Nas mais ridentes claves
Instrumentavam, pelo verde afora,
As festivais e pequeninas aves
O formoso libreto
Da luz, bordando de auri-rosa franja
O frescor matinal do azul celeste...

E era um concerto agreste!
Mas tão belo, tão límpido, tão doce,
Como se aquilo fosse
O farinado de rimas de um soneto.

Era no mês dás pombas!

Iam os galgos abanando a cauda,
A lamberem-te, alegres, a mão alva.
Hoje desse episódio e de mim zombas.
Pois foi a melhor lauda
Do meu livro de amor; dessas, que a gente
Marca, cheia de riso e de interesse,
Com uma folha de malva...

Nunca manhã tão próspera morresse!

Era no mês das pombas,
E era com febre que eu te dava um beijo.
Já não sei se fizemos, finalmente,
De mortas aves pródiga colheita...
Eu me lembro, porém, que dessa feita
Matamos o desejo!

 

NO BAILE

Ontem, no baile, quando todos viam,
Em apoteose franca,
Aquela flor de renda e de escumilha,
A mariposa branca,
Girar no tour de uma infernal quadrilha,
Eu lhe quebrei o leque perfumado.

E aqueles lábios róseos me sorriam
Depois desse fracasso,
Que eu cometi, por ter errado o passo.

Aquele belo mimo
Foi presente, talvez, de um namorado,
Ou dádiva de um primo,
Como lembrança de uma data... O moço
Com certeza lho deu depois — pudera!
De enlevados instantes,
Quando, na tarde de uma primavera,
Adorava-lhe a curva do pescoço...
— Como são doidos todos os amantes!
...........................................................................

Mas voltemos ao caso
Do meu célebre crime,
Em que vítima fui do meu desazo,
Cujo remorso pertinaz me oprime.

Aquela flor me odiará... Mas isto
É a maior desgraça,
Que, impiedosa, cabe-me em sentença
(Do coração no código, está visto)
Mas tudo diz-me que ela em mim não pensa.

E eu creio vê-la ainda.
Como uma nuvem diáfana de cassa,
Ligeira e leve, perfumosa e linda,
Adelgaçar-se no âmbito da sala...
Melodiava a orquestra. A contradança
Animava-se aos poucos;
Mas eu somente ouvia a sua fala,
Como quem ouve a voz de uma criança.
— Pobres poetas, como somos loucos!

Apresentei-lhe o braço
No segundo intervalo, e deu-se um giro!
Ela — flores no colo e no regaço,
(Creio que margaridas)
Disse-me, entre sorrisos e um suspiro,
Coisas tão boas, breves e queridas!...

Cedeu-me o leque para ter libertas
Suas duas mãozinhas enluvadas;
E assim me honrava a tentadora moça.
As pálpebras abertas
Eu tinha às suas graças adoradas,
Quando ela disse, despertando-me, ouça...

Tour de mains... chaîne, tá! foi-se a vareta!
Quebrei-lhe o leque! A examinar me animo
A asa infeliz daquela borboleta,
Que talvez fosse o talismã do primo...

Inclinei-me submisso:
Tinha o rosto escaldando e a alma viúva.
E quando eu desculpei-me, assustadiço,
Levou-me à boca a pérola da luva!

 

MADRIGAL DE UM DOIDO

I
Eu nada disse, nem pedi, nem quero;
E, certo, eu nada disse
Dos teus encantos, porque sou sineiro.
Tudo quanto esta boca,
Que tem beijado o turbilhão de atrizes,
Dissesse, além de pálida tolice,
Seria a expressão oca:
Só há perfume e cor no que tu dizes,
Amada flor da Espanha,
Rosa branca do sonho e da esperança,
Por quem — triunfo que ninguém alcança!
Andamos todos na floral campanha.
O teu destino olímpico preside
O amor, o amor semente;
E és para mim, senhora, um poeta e um crente,
A grande estrela do país do Cid!

II
Nada pedi, nem peço
À tua graça, ao teu ardor, à tua
Carne sedosa de mulher, mais alva
Do que um raio de lua;
E mais cheirosa, e de maior apreço
Do que uma folha sensual de malva!
Flor e vespa a um só tempo; borboleta,
Que áureas asas derrama
Por sobre a clara cena da opereta;
E dama igual à dama
De Pompadour; graciosa gentileza
Da corte Benoiton, que as honras faça
E o esplendor de uma sala,
Mais que uma estrela de maior grandeza,
Que um diamante sem jaça,
Branca, da cor de uma formosa opala!...
Ninon que se destaca
Pela correta linha do colete;
Olhos cheios de lume,
Como polidas lâminas de faca;
Mulher que se adivinha no perfume,
No tilintar febril do bracelete!

III
Nada quero, bem certo,
Além desta ventura de adorar-te,
Além do gozo de te ver de perto.
Tu, que és a orquídea d’arte,
Cheia de mimos, cheia de desvelos,
— Dedos, que de ti cuidam, perfumando,
Aclimatada dentro das estufas,
Deves ser desejada
Por fidalgos excêntricos e belos,
Os dândis da alta roda,
De vidro ao olho e, mão empelicada;
Duques do sport, e fino talhe à moda,
Lapela em flor, num apurado esmero,
Principalmente quando
Das cançonetas o pandeiro rufas...

— Castanholas na mão ...
Bravos!
Salero!

 



INVERNO

Por este inverno, que é de risos, e algo
Tem de estranha e sonhada primavera,
Na asa alegre e volúvel da quimera
Passeio o meu espírito fidalgo.

Levo um nome esquisito e um leve buço
De escandinavo príncipe janota;
E, disfarçadas no canhão da bota,
As frasqueiras de kirsch e kümmel russo;

Seguindo sempre — cavalheiro guapo,
Das filhas de Eva o luxuoso bando,
Jovial e altivo, como que levando
Cem condessas austríacas no papo!

O redondo monóculo de míope,
Para dar linha e ver melhor, aplica
A minha mão calçada de pelica
Da cor preta e lustrosa de um etíope.

Agasalhado, justo, em lã e pele
— Veston polaca e o gorro então de lontra,
Rompendo o dia quem quiser me encontra,
Antes que o groom o árabe ao carro atrele.

Pois logo que de púrpura se encharque
A umidade cortante do ar opaco,
Vou, de bengala e orquídea no casaco,
Dar um passeio higiênico no parque.

Opalinam-se as matutinas brumas
De encontro à luz... E é todo o céu coberto
Pelo maior, mais amplo leque aberto,
De muito brancas e flocadas plumas!

Esse giro de artísticos detalhes
É alto, é nobre, é parisiense, é chic!
E faz lembrar o soberano Henrique
Nas alemedas flóreas de Versailles.

Andam senhoras— tipos de romance,
Na quentura sensual dos water-proofs,
De quadris largos, à feição dos pufs,
Trocando, a jeito, olhares de relance,

Num disfarçado e interessante flirto,
Donde parte uma certa garridice,
Como um thiê, que, ao fresco albor, saísse
Das ramadas floríferas de um mirto.

E depois disto — um delicioso almoço,
Entre a glória de nove ou dez mulheres,
De dólmen, feito como o dos alferes,
E peliças, e arminhos no pescoço.

E já o sol, que de áureas lanças anda
Golpeando o espaço, como o herói manchego,
Põe quenturas e uns toques de aconchego
No rutilante quadro da varanda.

Inglesa, aquela; e aquela (não desvaires,
Oh! delicado espírito de raça!)
Patrícia; porém uma, a de mais graça,
Luxuriosa flor de Buenos Aires!

A alegoria esplêndida do estuque
— Vênus surgindo do elemento salso,
Contemplo; e as luvas devagar descalço,
Com a fidalguia natural de um duque.

Eu, que na extrema correção não peco,
Dou o braço a uma estrela italiana,
Que me oferece, nobre e soberana,
A belíssima rosa do jaleco.

De sua mão, branca e franzina, tomo
Tão alto mimo, exótico e bonito,
E nela um beijo, manso, deposito
Com toda a graça de um galant'uomo!

Vou docemente conduzindo à mesa...
Sentam-se todos num festim galhardo;
E eu, defronte, aparando o frio dardo
Do ciumento e garço olhar da inglesa.

Um distinto menu: lebre e perdizes
Em porcelana antiga de tons claros;
E no cristal dá copa — vinhos raros
De todo o gosto e todos os matizes...

Ramalhetes enfloram-se nas jarras
De bacarat, em cujo esmalte brinca
O mago olhar de uma alemã, que trinca
Corações pequeninos de alcaparras;

Dá começo ao epícuro massacre
Fino prato de espargo ou beterraba
Sauce piquante... E quando a miss acaba
Tem a boca inflamada e cor de lacre!

Hilariantes trincolejos e altos
Sons de metal e louça fina em choque;
Anda no ar o aticismo de um remoque
De afinados espíritos exaltos...

Quando ainda uma vez — a quarta ou quinta,
Do Tokai ou do Chipre esgoto a dose,
Numa esfuziante e trépida nevrose,
A prataria do dessert tilinta.

Frutos de cá, das mais variadas cascas,
Pintalegrando a alvura da toalha;
E a polpa de ouro, que o criado talha,
De um cheiroso melão, servido às lascas.

Que a amorável inglesa se constranja
Jamais permito, pelo simples fato
De, sem magoar-se e sem quebrar o prato,
Não poder debulhar uma laranja;

Eu, que me sinto agitadíssimo e arfo
Por agradar ao vis-à-vis travesso,
Vermelha, em cacto, a fruta lhe ofereço
Apunhalada nos pontais do garfo.

Que ela ao ato de um gentlemen se esquerde
Não se me dá, pois tenho encanto novo
Vendo-a tomar, em taça casca de ovo,
Dois delicados goles de chá verde.

Não fosse inglesa esta mulher, não fosse
Do alvo país dos olhos de esmeralda,
E, em vez de chá, preferiria a calda
Da compota real que o garçom trouxe.

Para que, enfim, a natureza integre
A áurea jovialidade que ali rola,
Sai das pautas iguais de uma gaiola
A nota aguda de um canário alegre.

O fim das horas de repasto é lindo!
Rumor de saias, qualquer coisa tomba...
Há o barulho fugaz de asas de pomba,
Nervosa e forte pelo espaço abrindo!...

O mulherio claro se despenca
Por toda a sala... E, enternecido, eu olho
A miss, que ajusta ao curvo peito um molho
De palmazinhas naturais de avenca;

E a rir, para que o busto desempene,
Levanta os braços e desaparece,
Arrepanhando ao alto a loira messe
Do cabelo a exalar fleur de la reine...

 

TÊTE-À-TÊTE

Sábado, ao pino! Sábado... excelente
Dia, de ouro e de azul, para a entrevista
De uma excêntrica flor, mundana e albente,
E este esquisito artista.

Ao meu encontro, doce amada, corre
Quando, alegre vibrada,
A sonora campânula sagrada
Tinir, trinando, trêmula, na torre...

Ou vem mais cedo, às onze...
— Já em minha mente o teu perfil perpassa!
Ah! se eu pudesse perpetuar-te a graça,
Como se perpetua um rosto em bronze!

Nem podem versos imortalizar-te
A figura travessa:
Há um sonho estelar de culpa e de arte
Na tua leve e original cabeça.

Mas, espera: vejamos
Onde o esconderijo dessas andorinhas.
Olha que estão frutificando as vinhas
E aves, noivando, cantam-lhe nos ramos.

E o verde ri!... Prende o cabelo ao grampo,
Afoga o corpo em lirial frescura
De talhe doce, e entrega-me a cintura
Que eu te conduzo ao campo.

Uma latada a jeito,
Ou... tu mesma dirás o que preferes;
Saibas, formosa, que sou pouco afeito
Ao convívio elegante das mulheres.

Nem o lilás do madrigal floreja
Na aura da graça, a espiritual moléstia;
Não penses que eu esteja
Desfolhando a violeta da modéstia.

Violetas, sim, mas em pequenos molhos
Nos teus seios arfantes...
Não, que para tontear-me eram bastantes
As violetas escuras de teus olhos.

Nem tanto o vinho: ele há de, cristalino,
Num ágape florido,
Rosar-me as faces e há de ser bebido
Por um só cálix, facetado e fino.

Cerejas?... pensa, louca,
Que me ofereces uma nos teus lábios;
Só tarde eu saberei, pelos ressábios,
Se mordo o fruto ou se te mordo a boca.

Linda, com um ar de súplica e vergonha!
Entre promessas e a perdiz trufada
Dizendo irá do amor e do Borgonha
Tua boca estrelada.

Entre nós se desfralde
O cor de rosa pavilhão do riso;
E fora, sobre o nosso paraíso;
Desdobre o sol a outra bandeira jalde!

 

DIAS ALEGRES

I
Foi uma tarde do diabo!
Ante a florista basbaque,
Pus na lapela do fraque
Um teso jasmim do Cabo;

Dei certo tic ao bigode,
Ao cabelo, à barba rala,
E fui, dançando a bengala,
Tomar o carro... Um pagode!

De veia e toilette nova
Chego ao termo; que travesso!
Ou eu um poema mereço,
Ou eu mereço... uma sova.

Dedo no tímpano — dlinde...
Tudo a surpresa, ao acaso;
Quem me vai vendo o desazo
De minudências prescinde.

Criada ao alto. Perfeito,
Diante de tanta elegância,
Tanto o meu ar de importância,
Como o meu jasmim no peito.

Então, maior que os califas,
No vestíbulo procuro
Abafar, cauto e seguro,
Meus passos nas alcatifas.

Ouço gemidos no quarto...
Sendo de moça a vivenda
Supus que... boas, entenda!
Ou se tratava de um parto.

Entro, fazendo um exame:
Sobre a mesa de pão preto
Dois canários — um dueto.
Fofos, no chalé de arame.

Un coup d’ceil ao gabinete:
— Luz velada, doce e morna;
O quadro do chão adorna
Vivo painel de um tapete.

O bric-à-brac de luxo
Do interior de uma artista
Exposto à lâmpada, à vista,
Coalha o dunkerke de buxo.

No padrão frio do estofo
Do cortinado da porta,
Estrelejando em cor morta
As Artemísia do mofo.

Da memória agora cai-me
Um gáudio para as esposas:
Havia entre tantas coisas
Um tomo azul do D. Jaime.

Mas o que a palheta doura
É o cabelo, a fulva lhama
Da pequena sobre a cama,
A flor da opereta, a loira!

Livre do pente e dos grampos,
Espalhado sobre a fronha...
Ouro de cor mais risonha
Que a da macega dos campos,

Gemendo — sorte do diabo!
Vítima, enfim, de um ataque...
Murcho, da casa do fraque
Caiu-me o jasmim do Cabo...

II
Salero, viva Ia gracia!
Pepita, alegre Pepita,
Lembras-me, fresca e bonita,
Um flóreo ramo de acácia.

Permite, filha, que eu ache
Bizarra a tua jaqueta,
Sobre curta saia preta
Toda bordada a sutache.

Risonho e flavo domingo!
O sol enchendo os espaços
Como enchia antigos paços
O áureo esplendor de um gardingo

Verão largo, verão pleno,
Que faz estuar o sangue
Na tua carne alva e langue,
Pondo-me o rosto moreno.

E cornetins, e fanfarras
— Agora nisto reparo,
Anda vibrando no claro
O pelotão das cigarras.

Vamos, oh! alma espanhola,
À solidão de uma quinta:
Meu braço na tua cinta,
Teus dedos na ventarola.

Vamos ver o céu e o campo...
Põe ao alto a trança ardente,
Apunhalada a serpente
Pelo florete de um grampo.

Belo atavio descubro
Para o penteado em novelo:
Na treva de teu cabelo
O sangue de um cravo rubro.

Não vamos lá como ricos;
Como noivos... que respondes?
Agora que estão as frondes
Cheias de flores e bicos!...

Contigo, flor de Coquimbo,
Irei a pé pelos ermos,
Buscando as rimas e os termos
Nas espirais do cachimbo.

Pelo matiz dos caminhos,
Vendo-te o chiste de guizos,
Há de se abrir em sorrisos
A boca ingênua dos ninhos.

Que não vá outro conosco,
Para adiar tanta coisa;
Contigo, a sós, quem não ousa
Sobre um divã de pão tosco?!

Sem testemunha e sem pompa,
Que eu tenho raiva do pasmo;
Nada esfrie o entusiasmo,
Nada o meu sonho interrompa,

Olhos de uva em fronte nívea...
— Nessas duas taças conto
Esvaziar tonto, tonto,
Todo o Xerez da lascívia.

Que me morda e me massacre,
Fibra a fibra, veia a veia,
Todo o enxame da colmeia
Da tua boca de lacre.

E um flamboyant largo e velho,
Cheio de hera e ditirambos,
Sobre o calor de nós ambos
Abra um parágua vermelho.

Aqui tens o teu toureiro
(Sem glórias e sem damasco)
Olha as guitarras e o frasco...
Salero, niña, salero!

 

IMPRESSIONISTAS
(A César de Lima Campos)

I
Morto solar, de velhas arcarias!
A arquitetura podre, derrocada;
Torres caídas, mármores de escada,
Grossas paredes úmidas e frias.

Pela extensão das câmaras vazias,
A nua ogiva, de hera pendurada;
Rotos painéis, a cúpula furada,
Larga sombra de vastas galerias!

Por toda a ruína um tumular sossego...
Só, por baixo das árvores daninhas,
Zunem rápidas asas de morcego...

No merencório corpo da capela,
Para aquecer as pobres andorinhas,
Entra um raio de sol pela janela!

II
Nos alcantis aspérrimos da ilhota,
Cheios de musgo e arbustos enfezados,
Vão repousar alcíones, chegados
De uma paragem úmida e remota.

Mas quando os pés nesses rochedos bota
Aquele par de estranhos namorados,
De binóculo em punho e braços dados,
Para mais longe os pássaros enxota:

Um mundo de asas pelo mar se espalha!
E, no rubro clarão de uma fornalha,
Escalda o poente, ensanguentando a frágoa.

Enquanto o par não volta, a onda geme
E o barco espera-o, de patrão ao leme,
— Mão no caniço e linha dentro d’água.

III
Dão para o golfo as duas janelinhas
Do seu chalé de banho, provisório,
Edificado sobre um promontório,
Todo cheio de garças e andorinhas.

A perspectiva e as virações marinhas
Melancolizam-lhe o viver simplório,
Naquele ninho esconso, roxo e flóreo,
Enramado de pâmpanos e vinhas,

Como gentil habitação da Holanda,
De gaiolas no teto da varanda,
Quadros de campo e rústica mobília...

Conchas, búzios, corais sobre o console,
E ela entre galgos, alquebrada e mole,.
Perto do mar e longe da família!

IV
Tem a sua cabana entre os abetos
E as verdejantes árvores do Minho,
Aquela aldeã, aquele diabinho
De lustrosos cabelos e olhos pretos.

Quando o sol nasce e a pomba sai do ninho,
E bicos de aves abrem-se em duetos,
Pés, que se ajustam num destes quartetos,
Mete-os, descalços, no íngreme caminho,

Arrebanhando as cabras e os novilhos,
Que pela ervagem úmida dos trilhos
Vão retouçando e mugem de alegria...

E vê-se a aldeia: aljôfares de neve
Estrelejando as messes; e de leve,
Cantam no eirado e resplandece o dia!

V
E tu não voltas, corça foragida
Do meu albergue rústico e tranquilo!
Onde vais tu achar um outro asilo,
Feliz e pobre, que te adoce a vida?!

Das trepadeiras vírides despida
Cai-me a choupana, onde aninhou-se o grilo;
Nem mais um trino, um trínulo pipilo
De andorinha, nas telhas escondida!

Teias de aranha e o musgo esverdeado
Cobrem o teto e as midas paredes
Do nosso quarto, mudo e abandonado;

Tristes e murchas as orquídeas; morta
A madressilva de olorosas redes,
Que era o alpendre florífero da porta!...

VI
Trago-te agora, em trêmulo debuxo,
Mal desenhado, o nosso ninho agreste,
Conforme o plano e explicações que deste,
— Claro, alegre, pequeno, mas sem luxo.

Vê — um lar amoroso e pequerrucho,
De fachada lirial para o nordeste;
E um gramado jardim, que talvez preste
Para fazer-se um lago com repuxo.

Reina o bom gosto, o nosso gosto, em tudo;
Saem das beiras do telhado agudo
Pombas criando e lambrequins chineses:

Cortinas brancas na janela, em cujo
Fundo aparece o rastozinho sujo
De um risonho fedelho de dez meses!

VII
Habita a inglesa um sítio de recreio,
Avarandado e de gradil na frente.
Em cima — as frondes do pomar virente,
O campo ao lado e o muro de permeio.

Sai da cascata um cristalino veio,
Que entre seixos escapa-se fremente;
Um flamboyant por fora do batente,
De borboletas e de flores cheio!

E sobre o lago do jardim florido,
De esquisita gramínea guarnecido,
Como a moldura de um redondo espelho,

No verde cru das folhas espalmadas,
Pelos raios do sol envernizadas,
Abre a corola um nenúfar vermelho.

VIII
Abrem duas janelas para a rua,
Com trepadeira em arcos de taquara;
A cortina de renda, larga e clara,
Alveja ao fundo da vidraça nua.

Em frente o mar, e sobre o mar a lua,
A estrelejar a onda que não para;
Afiara asas por cima e solta a vara,
N'água brilhante, o mestre da fálua.

Ecos noturnos e o rumor estranho
Da meninada trêfega no banho
Voam da praia ao chalezinho dela;

Move-se um corpo de mulher, no escuro;
Gira, após, o caixilho; e o luar puro
Ilumina-lhe o busto na janela!

IX
Setembro invade o azul de sol brilhante!
E em noites quietas o luar ensopa
De claridades lânguidas a copa
Da amendoeira larga e florejante.

A primavera, a deusa flutuante,
Nas borboletas céleres galopa...
Em cada flor uma ilusão se topa,
E um beijo, e um riso em cada lábio amante!

Carregando partículas de cisco,
Para fazer o ninho nos pomares
Chega da serra o passarinho arisco;

E é outro o amor, outra a canção nas mondas,
Vida nas praias, pombos d’água, aos pares,
Balanceados no ápice das ondas!...

X
Fim de tarde serena e violentada...
No céu — duas estrelas, e arrepios
Na safira do mar, toda coalhada
De emaranhados mastros, de navios.

Longe, entre névoas, traços fugidios.
De uma cidade branca derramada
— Casas, torreões e coruchéus esguios,
Por toda a clara fita da enseada...

Aqui bem perto, aqui, na argêntea praia,
Contra um rochedo nu, calcário e rudo,
Do poente a frouxa claridade estampa,

Balouçando-se n'água, uma catraia;
E, agasalhados no gibão felpudo,
Pescadores que vão subindo a rampa...

XI
Lembrei-me, há dias, de ir viver na roça,
Entre sombras de chácara verdoenga,
Numa casinha, a  imitação flamenga,
Ou mesmo dentro de uma pobre choça,

Sobre a montanha; um sítio de araponga,
Onde, se tu me acompanhar quiseres,
Acharás o preciso aos teus misteres,
Prevendo o caso de uma estada longa.

Mas que da nossa habitação tranquila
Aviste-se o caminho, a igreja, a vila,
O rio, a ponte, as terras de lavoura...

Pode ser que a mudança te aproveite
E eu veja ao colo, a te chupar o leite,
Um róseo anjinho de cabeça loira!

XII
Ensombra a porta e as rústicas janelas,
Que às borboletas brancas dão passagem,
Carramanchel de rosas amarelas,
Estrelando a verdura da ramagem.

Curva-se a rede embaixo das capelas...
— Pé, cabeleira, braços e roupagem,
Roçando o chão e o pelo das chinelas
Tudo transborda em confusão selvagem.

O morno sol, coado numa fresta,
Morde-lhe a boca, a pálpebra cerrada

E a mão, no seio, em posição honesta...
E naquela penumbra perfumada,
Como querendo arrebatá-la à sesta
Solta um canário trínula risada!

XIII
Um chalezinho tosco, um ninho a jeito,
Para um casal de alegres cotovias,
Entre um maciço de árvores sombrias,
Pequenino, romântico, bem feito;

Cortinas brancas no rendado leito
De uma câmara azul, e noites frias!
O sol vindo aloirar todos os dias
A madressilva sobre o parapeito;

Pombas nervosas e arrufados pombos
Em pelejas equívocas, aos tombos
Sobre o telhado; orquídeas nas paredes;

Cheiros que exalam quando rompe a aurora,
Canções, risadas, pássaros por fora,
Dentro do ninho, então — eu e Mercedes!

XIV
Guarda o mastim, como fiel amigo,
Na quentura do sol, deitado à porta,
O parreiral, as árvores, a horta
E o que pertence ao isolado abrigo.

Quatro casais de pombos no telhado,
Batendo as asas com ruidoso alento...
Além — nesgas azuis de firmamento,
Embaixo — o pasto e velho boi deitado.

Andam aragens matinais e frescas
Castanholando as palmas do coqueiro
Enredado de silvas pitorescas...

Resplende o sol! E, junto do moinho,
Entre os brancos florões do jasmineiro,
Um beija-flor dourado tece o ninho.

XV
Um ninho! um ninho preso estreitamente
Ao pender vicejante da colina;
O frontispício, às tardes, ilumina
A flama de ouro e púrpura do poente.

A hera trepa e invade toda à frente:
Tapa a caliça e o teto contamina,
Cai na janela, em forma de cortina,
É desce à porta, caprichosa e rente.

Rosas abertas, lúbricas, vermelhas,
— Éden da vista e pasto das abelhas,
Bordam o quadro da gentil morada;

Dentro, todo o requinte da elegância:
Quadros, estofos, música, fragrância...
E a fidalga senhora enfastiada!

 

VALE DE LÍRIOS
(A minha mulher)

Canção palomba
Há uns laivos riços de papoula
No ocaso, longe, além do outeiro,
Ocaso de ocre e lantejoula;
E anda uma só, tardia rola
A entristecer o bosque inteiro:
Cativeiro, cativeiro;

Mas, de arma ao ombro, o meu caminho
Eu vou seguindo aventureiro;
E vou pensando, então, sozinho,
Naquela voz de passarinho
Que enche de mágoa o caminheiro:
Cativeiro, cativeiro...

É quase noite, e vejo perto
A pobre casa de um roceiro;
Em derredor — tudo deserto!
Mas há de haver um rancho aberto,
Sem este dístico agoureiro:
Cativeiro, cativeiro...

Meditativo e extenuado,
Sentei-me no alto de um terreiro,
Ouvindo sempre do meu lado,
Onde alvacento e sossegado
Abre-se em flor um espinheiro:
Cativeiro, cativeiro...

Além, além, tenra lavoura
De um montanhês ou de um foreiro,
Da gente, enfim, trabalhadora...
E em chama rubra, em chama loira,
Queimadas vão subindo o aceiro.
Cativeiro, cativeiro...

Deste outro lado, estrada à riba,
A tropa e a trova de um tropeiro;
Fulvos listrões do Paraíba;
Rema, de covo e pindaíba,
Tristonhamente um canoeiro.
Cativeiro, cativeiro...

Descanso à porta da choupana
O polvarinho, a arma e o chumbeiro;
Tiro o chapéu, e uma serrana
Dá-me a beber, dá-me uma cana
Cortada ali no seu canteiro...
Cativeiro, cativeiro...

Arranco a faca da cintura...
(Sedento estou como um rafeiro)
Olha-me a ingênua criatura
Como quem diz: se mais fartura
Meu pai tivesse, ou então dinheiro...
Cativeiro, cativeiro...

A bendizer a minha vinda
Ela estudava um ar faceiro;
Eu olho-a sempre, eu olho-a ainda...
Mas esta moça, que é tão linda!
Mas este olhar, que é tão fagueiro!
Cativeiro, cativeiro...

Já no silêncio expira o dia,
Um dia quente de janeiro;
Dá muito longe — Ave Maria...
E uma cristã melancolia
Há no momento derradeiro.
Cativeiro, cativeiro...

Quando ao partir — é noite quase!
Quero ser grato e cavalheiro,
Ela retruca à minha frase:
— Pois com o senhor, moço, se case
Uma lindeza de dinheiro...
Cativeiro, cativeiro...

Agora amargo, ermo e tristonho
Era o seu doce olhar fagueiro;
Nem mais o lábio era risonho
Quando, sem luz, de pé me ponho,
Como um fantasma, no terreiro...
Cativeiro) cativeiro...

Descarregar minha espingarda
Eu quis, depois, sobre o espinheiro...
Ai! pomba rola, ai! rola tarda!
Hoje te aninha, hoje te guarda
Meu coração, de bandoleiro!
Cativeiro, cativeiro...

 

NOSSO PAI

— Bendito, santo, louvado seja...
Coro de glória, dentro da igreja,
Para a agonia do espaço vem;
O óleo da mágoa na tarde escorre,
Que é como um lírio: rescende e morre.
Belém!... Belém!...

Cabeças nuas e mãos no peito,
Joelhos quebrados; unção, respeito,
Mulheres e homens no rosto têm;
E agora o canto do excelso rito
É a melopeia de um só Bendito:
Belém!... Belém!...

A hora suprema no azul roxeia;
E os casais tristes da pobre aldeia,
Montes e vales — roxos também!
Paixão dorida por tudo e em tudo;
Na harpa calada do instante mudo...
Belém!... Belém!...

Sol do Calvário que, enfim, morreste!
Tanta saudade, tanto cipreste
No horto do Sonho — Jerusalém.
Pretorianos de lança em riste.
Que luz viúva, que moça triste!
Belém!... Belém!...

Pálio de seda levando o padre...
— Que o Cão Maldito nunca mais ladre
Contra a doçura do Extremo Bem;
Samarra negra, brancor de linho,
Como a pureza de um cordeirinho...
Belém!... Belém!...

Melancolia, goivo nas almas;
E um pombo branco, de asas espalmas,
Que a todos toca, não o vê ninguém.
Flores e frutos, plumagens de ave,
Tudo silente, de roxo e grave.
Belém!... Belém!...

Louvado seja, doce Maria,
O Sacramento da Eucaristia,
Bendito o fruto, Jesus. Amém.
— Que fim de tarde tão merencório!
Como o silêncio de um oratório.
Belém!... Belém!...

Pálio estendido, céu estrelado,
Com o padre simples, acompanhado
Da gente humilde, que segue além...
E abrem contrita, pungida tropa,
Irmãos piedosos, de círio e opa.
Belém!... Belém!...

Bronze sagrado, pequeno sino
De som plangente, mortuário e fino,
Vibrado sempre por mão de alguém;
Ah! como a tarde roxa esmaece,
Vivendo a sombra, morrendo a prece...
Belém!... Belém!

Alma exalante de um flébil goivo,
Jesus ferido seja teu noivo,
Votes à argila manso desdém;
Vida e doçura, esperança nossa,
Tua asa de anjo por tudo roça!
Belém!... Belém!...

Oh! Agnus branco do Amor nascido,
Ouço o teu brando, frouxo balido...
Imaculada, casta Cecém,
Hóstia de leite, Lua da torre,
Dê o teu trigo Pão a quem morre!
Belém!... Belém!...

 

MEIO DIA

I
Dantes, eu era pobre menino...
Como estas horas, como este sino,
Trazem-me langue recordação!
Silenciava... Conchego de asa
Por sobre as telhas de minha casa,
Com pombas brancas, que vêm e vão.
Blão!

II
Tão pobrezinho que eu dantes era!
Nem tudo é rosa nem primavera,
Céus estrelando, florindo o chão;
Porque assim enches, oh! minha infância,
De mais saudade, de mais fragrância
A ermida triste do coração?
Blão!

III
Luz modorrenta do meio dia,
Banhando as casas da freguesia,
Calmos instantes de lassidão...
Pássaros quietos, empoleirados;
De orelhas murchas e olhos fechados,
Deitado à porta meu velho cão.
Blão!

IV
— Cristo nascera — clarina o galo:
Meu pai mandando ver o cavalo,
Para a lavagem mais a ração.
As cordas de ouro da luz tinindo,
E um ar parado, calmoso e lindo,
Narcotizava toda a amplidão.
Blão!

V
Embora houvesse muita pobreza,
Toalha branca punha-se à mesa...
— Pão da merenda, materno pão!
Depois, voltados lá para a igreja,
Que sobre o outeiro verde branqueja,
Todos rezavam com devoção.
Blão!

VI
Hora solene do dia a prumo!
Daquele teto espirala o fumo,
Ringe a moenda, bate o pilão;
Como que em sonhos ora e repousa
A alma divina de cada coisa,
Da luz na quente fulguração.
Blão!

VII
Flores de bruço sobre os barrancos;
É agora o vale de lírios brancos
Capela, e noivas em confissão...
Nem canto alegre de voz humana!
Apenas o eco de Graça e Hosana
Vibrado largo na solidão:
Blão!

VIII
Nas poças de água, verdes e pretas,
Espiral branca de borboletas
Vejo subindo, numa oblação,
Mas tudo em doce recolhimento...
A terra, os ares, o firmamento
Serenos, graves, elíseos são.
Blão!

IX
A árvore fecha no espaço ardente,
E há um sossego morno e dormente
Na minha simples habitação;
Suspendo a ingênua, casta leitura,
Param os eitos, para a  costura,
Como que mesmo para a razão...
Blão!

X
Quatro janelas nesta varanda:
Daqui diviso numa locanda
Homens, que, exaustos, bebendo estão;
Creio que aquelas longínquas terras,
E aquelas pedras, e aquelas serras
Sejam as mesmas do meu torrão.
Blão!

XI
O sol cáustica depois das onze
E o pobre espera que o santo bronze
À paz e à sombra chame o cristão;
— Dependuradas às longas foices
Cumbucas d’água, laranjas doces,
Suspendem todos a ocupação.
Blão!

XII
Café de caldo pelas tigelas;
Lindas caboclas, nédias donzelas,
Numa caseira conversação...
— Dantes eu era pobre menino,
Que a estas horas tocava o sino,
Hoje de tanta recordação...
Blão!

 

HORA DO CHÁ

Horas mortiças, o chá na mesa,
Todos em roda para o cavaco...
Que hábitos lindos, de singeleza,
Os dessa austera família inglesa!
Tico, taco;
Tico, taco.

Um rumorzinho de pêndulo anda,
Dentre a conversa, medido e fraco,
Sobre a cabeça da loira Wanda,
Que enche de graça toda a varanda.
Tico, taco;
Tico, taco.

Da loira Wanda, que é já futura
De um rapaz forte como um cossaco;
Que, de olhos postos sobre a Escritura,
Vai lendo, a linda da criatura!
Tico, taco;
Tico, taco.

Da loira Wanda sentada em frente
Do rapaz forte, de olhar velhaco,
Que, gracejando continuamente,
É a alegria de toda a gente...
Tico, taco;
Tico, taco.

Olhos de lírio, trancas douradas
Rolando, frouxas, sobre o casaco;
Lembra uma doce flor de Bailadas
Daquele tempo de espanholadas!
Tico, taco;
Tico, taco.

Rafaelesco par de anjos rindo
De vovozinha cheirar tabaco,
— Trêmulos dedos a caixa abrindo,
De óculos grandes e reluzindo...
Tico, taco;
Tico, taco.

Nos bandós lisos do seu cabelo
Nem um só fio daqui destaco,
Que alvo não seja, da cor do gelo:
Toda ela é neve, doçura e zelo.
Tico, taco;
Tico, taco.

Ao lado a filha, de junto a um moço;
Se é pai dos anjos, eu nisto empaco.
Tem barbas loiras e rosto ensosso,
De fronte calva, de corpo grosso.
Tico, taco;
Tico, taco.

Deve a senhora ser sua esposa
(Mulher do de amplo paletó saco)
E o chá na mesa! Que linda coisa!
Toda a varanda brilha e repousa.
Tico, taco;
Tico, taco.

Porcelaneja sobre a toalha
Liso aparelho, brilhante e opaco;
E o bule, ao centro, que o aroma espalha,
Um guardanapo claro agasalha.
Tico, taco;
Tico, taco.

E do relógio sobre a parede
O rumorzinho medido e fraco.
Serve chá simples aos filhos, vede!
A de cabelo metido em rede...
Tico, taco;
Tico, taco.


Horas mortiças, o chá na mesa,
Todos em roda para o cavaco.
Que hábitos lindos, de singeleza,
Os dessa austera família inglesa!
Tico, taco;
Tico, taco.

 

NA POUSADA

Esposa ao canto, filhos à beira,
Tranquilo durmo na minha esteira
Forrada e larga, posta no chão.
Por alta noite calmo desperto
E, de olhos frouxos e ouvido aberto,
Ouço os latidos, longe, de um cão:
Cão, cão; cão, cão...

Pelo telhado da casa nua
Tristonhamente penetra a lua,
E eu fico todo banhado em luz,
Entre bocejos, abrindo os braços...
E dão-me os raios, frios e baços,
Como se dessem sobre uma cruz.

Atrás da caça, que ao faro escapa,
Descendo à furna, subindo à lapa,
— Alma perdida na solidão,
É a voz bravia, seca e roufenha,
Repercutindo de brenha em brenha,
Daquele exausto, misero cão:
Cão, cão; cão, cão...

Abro a janela; meu povo dorme.
Paz de charneca, silêncio enorme
E um ruflo de asas, fofo e sutil...
Eu só velando como um duende!
Úmido pausa, soturno esplende
O manto claro, flóreo de abril.

Encho-me de hirto, frio receio...
Virgem das Dores, em quem eu creio,
Dá-me tu forças e animação!
Que a estas horas, Virgem das Dores,
Andam nas matas os caçadores,
Dizem os ladros daquele cão:
Cão, cão; cão, cão...

A lua, a Santa Mãe do Socorro,
Piedosa estende por vale e morro,
Molhado em pranto, de alvo palor,
O lençol bento daquele Dia,
Quando em seu colo morto jazia,
Lívido e roxo, Nosso Senhor.

Todos repousam no lugarejo;
Muros e ruas banhados vejo
Do mesmo doce, mudo clarão;
É além do adro que sobe e desce
— Súplica estranha, faminta prece,
O acuo errante do triste cão:
Cão, cão; cão, cão...

Há nestes ermos, tardos luares
Cactos abertos e nenúfares,
Ruínas, ermidas, suspiros e ais!
Misericórdia, dó e martírios,
Toda a doçura de um vale de lírios,
Todas as flores dos laranjais!

Como que vejo no cemitério,
Cheio de rosas e de mistério,
A alma dorida de meu irmão...
E mais evoca, me apavorando,
De roça em roça, de quando em quando,
O grito rouco do pobre cão:
Cão, cão; cão, cão...

A capelinha caiada, ao flanco,
Lembra-me aquela de gesso branco,
Que eu dantes tinha para brincar;
Ao pé da torre de boca pasma,
Anda a Saudade, branco fantasma,
Sob o polvilho deste luar.

E, no silêncio das horas mortas,
Fechadas todas as sete portas
Da pequenina povoação;
Lá vai sumindo pela colina,
Dentro de um tênue véu de neblina,
O eco perdido da voz do cão:
Cão, cão; cão, cão...

Ao romper d’alva sigo viagem,
Mas não agora, na farinhagem
Desta assombrosa noite de Deus.
Que faço eu triste pelas estradas,
Cheias de vultos e almas penadas,
Quando em repouso ficam os meus?!

Lá, me contavam diversos casos
De fogo andando nos rios rasos,
De quem viaja pelo sertão...
Valha-te, gente, Nossa Senhora!
E vai dobrando por mato afora
O ermo latido do pobre cão:
Cão, cão; cão, cão...

 

MAURO
(Que Deus levou)

I
Envolto em faixas, dentro do berço...

Andava eu tonto, num gozo imerso,
— Gorro e chinelas,
E o meu caseiro terno de brim —
Forjando nomes, vendo a folhinha...
O sol, saindo, saudar-me vinha
Pelas janelas;
Trinava um sino dentro de mim:
Dlim di lim,
Dlim di lim,
Dlim!

II
De leite e rosa no seu toucado...
Sábado alegre de batizado!
Foi para a igreja,
Cheio de fitas, rendas também;
Via-se em todos um ar de festa.
Nós dois ficamos em casa, à testa
Da áurea bandeja,
Ouvindo o sino cantar além:
Dlém de lém,
Dlém de lém,
Dlém!

III
Amortalhado no caixãozinho...
Lá vai meu filho pelo caminho
Florido e claro,
Vibrando as asas de luz e som...
Leva este beijo, flor de minh'alma,
Além da tua capela e palma!
Choro e reparo
Que o sino agora mudou de tom:
Dlom do lom,
Dlom do lom,
Dlom!



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Iba Mendes Editor Digital
www.poeteiro.com
São Paulo, 2023.

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