BLUESIA
para xenia antunes
– musa do cerrado
para os zés andrade & duayer
– artistas de tempos felizes
para ferreira gullar
– poeta todo
para omar, patrícia e priscila
– que me aturam pai
para waldir (i.m.)
– sonhador de sonhos
velhos bluzeiros canibais vegetais amam
algas nuvens em serenatas ameixas
velhos bluzeiros dançam grudados lábios
roxos de batom sépia os sons que foram
velhos bluzeiros almoçam pétalas
iridescentes nas estrelas e renascem cor
velhos bluzeiros sussurram uivos
ancestrais sem medo de morrer
Refrão: vejam o que o blues fez de nós
comedores de brócolis fluorescentes
1:X-BLUES
OCASO PROFANO
O sol explode cientificamente,
inflama, se expande e seduz,
tudo o sol traz obliquamente,
mas não a obnubilação serena
da luminosidade do teu corpo.
Teu olhar negro vivo e ardente,
o corpo brônzeo, maçãs ácidas
os seios, risos, cerrados dentes,
expressão taciturna fazendo crer
nos sussurros da voz profunda.
A praia descolorada pelas tintas
do pôr do sol descobre-se e nua
cintilas na areia, não, não mintas,
não é o vento, ouve, é um canto
de sereia este retrato em sépia.
O atônito silêncio e apaixonadas
músicas estouram bruscamente
nas brancas nuvens cinzeladas,
o cigarro, copo com gelo e gim,
fevereiro – lembra? – Carnaval.
Trevos de quatro folhas se fecham.
Fim da tarde. Quase, quase noite.
Daqui a minutos, entanto, beberei
dois copos altos de absinto verde,
– de que diabo terei medo afinal?
Dança comigo a dança profana...
Protege-nos insanidade permitida.
Raros vestígios de volúpia cigana,
amor opressivo, reversa máscara,
eis bem aqui o anti-inferno sagrado
O sol explode cientificamente,
inflama, expande-se e seduz.
Tudo o sol traz obliquamente,
mas não a obnubilação serena
da luminosidade do teu corpo.
CANTILENA DO VELHO
Oi gente, que nem parece,
coisa que nunca se esquece:
andei de bonde outra vez,
amei, fumei charuto e bebi.
Quando nasci disseram: – Ai!
Parti pelas vidas zoneando,
trupicando perna em botequim,
qu’esqueci do boníssimo Pai.
Voltei para ver o que perdi:
rede carunchada na varanda,
uns traços à Salvador Dalí
desenha os seios de Amanda.
Amigos vão pouco reclamar,
pois vão me achar leve, leve.
Quem passa a vida de triscado,
eis onde Deus não pode tocar.
Boiando em águas claras bebi,
largando o lombo ao castigo,
apanhando quiném cão danado:
cago solenemente ao inimigo.
E se deixar o peso tal-e-qual
as almas sem pecados mantêm,
levando de carona as putinhas,
levíssimo dou à porta celestial.
Chora. Outros filhos hão de vir,
muitos perecerão nas guerras,
entretanto morrerão nas camas,
os filhos que as mães vão parir.
Digo aos padres e médicos tais,
salvadores de corpos e almas:
Fodam-se, fodam-se, fodam-se!
Não fiz morada em hospitais.
Vou todo o peso aqui deixar,
amores inválidos por amar...
Quem muitos filhos perderá,
mil outras cruzes herdarão.
Delitos jamais confessados:
cem mil retratos amarelados.
Plantei gozos e desenganos
na estrada dos setent’anos.
Nenhum prazer dei a esmo,
talqualmente a safra do milho,
só trambolho ao meu mesmo,
Deus chora a perda do filho.
Se não contabilizo inimigo,
também dei trabalho a amigos.
Toneladas de erros e pecados
morrem na memória grudados.
MURO
Assim vamos destruindo
algum paredão vulgar:
tijolos são de silêncio.
– Ontem eram de berros...
Em vão semear desertos,
gritos ventos uivos:
gafanhotos, ruídos, grilos...
– Onde colhemos astros...
Por que vou destruindo
esta vida de dois nós:
desatando desatados...
– O ocaso aos burros...
Teatro entre paredes,
quatro cantos enjeitados:
cânticos de guerra...
– Os gritos nas derrotas...
O vinho que bebemos,
praia de vento e areia:
látego este sudoeste...
– Ostentamos beijos...
Por que vivo cerrando
portas se estão sós:
pedaços de ontem...
– Outrora eis o que vi...
CHORO CAMONIANO
Até que aqui,
teu seguro porto,
aqui repouso
o doce conforto.
Ó côncavo vale
sei que podes
detonar beleza
e nada perdes.
Porvir: descansar
nos tétios braços,
ilha de entornos,
vastos espaços.
Para quem tem
contenda peregrina:
alma destruidora,
pérfida e malina.
Lá longe junto
donde nasce dia
gente como nós,
cor da alvorada.
Apois salso mar,
de vários usos,
a terra é banhar
veios difusos.
Grande estima
esta cansada já
velhice minha,
de amar-me há?
A verdade conto
nua, clara e pura,
vão-se demandas
às águas escuras.
CANTIGA DOS LENÇÓIS
Dentro da praia deserta
Dentro do ventre do mundo
Não durou nem um segundo
Estar nos braços de Rita
Foi num dia de domingo
Um dia não uma noite
A ventania bailava o açoite
Na cabeleira de Rita
De longe divisei o Farol
Que me guiou para a praia
Nos braços de uma sereia
Que tinha o cheiro de Rita
A estrela que me guiou
E me livrou do tormento
Embaçou por um momento
As coxas negras de Rita
E ali mesmo me salvei
Foi um momento divino
Quis o sereno destino
Atracar no porto de Rita
E fui navegando a esmo
Nas dunas alvas dos Lençóis
Ao som das ondas bemóis
Bailava o sorriso de Rita
Sem documento ou celular
Sem passado nem futuro
Vou vivendo a cor do ouro
Na identidade de Rita
Por avenida tenho o deserto
Minha casa eterno oásis
A alma carregada de paz
Respiro o hálito de Rita
Ei meninada corre cá
Me diz quem é tua mãe
Não precisa nem dizer
É tudo escritinho a Rita!
PORQUE SONHOU
Hoje passei pelo bar onde grupos de sonhadores se reuniam
E as fumaças dos cigarros se cruzavam com o olhar da amada.
Está tudo mudado: trocaram as cadeiras e mesas de pés de ferro
E as pedras de mármore manchadas de sangue estão polidas.
Os ideais eram sonhos calcados na floresta semivirgem dos índios
E nas areias ressacadas de Copacabana que invadiam os jardins.
O sonho, a bebida, o garçom serão os mesmos? Vodca nacional
E no cinema não passa mais filmes de Buñuel, Godard, Bergman.
Empregados lavavam a calçada, os sonhos escaldavam as almas
E sequer nos passava pela cabeça franca e nua a cor do pesadelo.
Nem imaginamos que a dor da tortura iria foder sonhos amados
E antes de puxar o gatilho se aperceber que tudo era apenas sonho.
Hoje passamos pelo bar onde os perdedores se reuniam – bem ali –
E quase chorei ao lembrar dos que se foram por causa dos sonhos.
Chope no Alcazar, Gláuber, Sganzerla, Paissandu, tudo dominado
E o cinema de quatro salinhas sem filmes de Resnais, Bressane, etc.
QUERIA
Debruçar-me sobre teu corpo devasso
Mas não dá...
Deleitarem-me os teus seios alumínios
Mas não dá...
Aquinhoar teu sexo fatigado com ácido
Mas não dá...
Deduzir todas as lições mal aprendidas
Mas não dá...
Pedir: não vá sem provar a língua aorta
Mas não dá...
Deixar-me líquido derreter-te aceso
Mas não dá...
Eleger fiorde pacífico e esta nau pirata
Mas não dá...
Matar a sede dentro do teu corpo lasso
Mas não dá...
CRISE
Entre dois horizontes,
entre o céu e esta terra.
Entre quatro paredes,
entre o teto e o chão.
Entre os oito caminhos,
entre o muro e a estrada.
Entre os doze oceanos,
entre a margem e o vão.
Entre quatorze destinos,
entre mim e o amor dela.
Entre dezoito infinitos,
entre a nascente e o mar.
Entre vinte tormentos,
entre o começo e o fim.
AINDA ELA
Chovia da última vez que falei com o vento.
Ela estava em pé emoldurada pelas lágrimas.
Pássaros catavam insetos na grama, lentos.
Ela não disse nem adeus nem vai com Deus.
Ela chorava por causa da minha partida seca:
não havia sequer um ombro amigo por perto.
O cheiro álacre da maresia arava as narinas.
Caminhei a passos rápidos no pátio deserto.
Ela soluçava como se jamais me fosse ver.
Este quadro passado acetinado em molde,
me perseguiu parceiro pelo resto da vida.
Soavam as primeiras músicas do Carnaval.
Ela no meio de mim, o amor não queria ver.
Foi esta a última vez que falei com o vento.
NOITE
Nesta noite quem me despertará aos gritos
Implorando de joelhos alguma ajuda contra
O gênio demoníaco que persegue os anjos?
Quem arrancará nesta noite fria as unhas
Acetinadas, os dedos recobertos de sangue,
Encravados na pele ressecada pelo vento?
Esta noite quem silenciará o canto inumano
Que desgarra da minha garganta dolorida
Enquanto lá fora o mundo sofre de amor?
Quem desdobrará meus ossos alquebrados
Para que meu coração realimentado retome
O pulsar rítmico que antecipa o silêncio?
ERA AGOSTO
Estava no Chile, senti a dor
sofrida dos anos da ditadura,
o palácio La Moneda morto,
bombardeado e destroçado.
Vivi tanques fazendo ronda,
prédios furados de balas,
olhos tristes das pessoas
guardando luto nas ruas.
O guardador de automóveis,
triste diante da cena onde
Allende foi eleito e fuzilado
veio contar a história toda.
Havia um orgulho imortal
nos seus olhos enrugados,
amor pelas ruas interditadas,
mas nenhuma esperança...
Das palavras não se ouviu
nenhum traço soberbo, vão,
nem o pseudo-orgulho vazio,
que envaidece o comum.
Nos gestos a perseverança
de quem conhece a história,
presença assídua de enterros,
de heróis, santos, ditadores.
ORGULHO IMORTAL
Ela chegou depois de passar uma semana fora,
reclamando da gordura que cobria o fogão,
das pegadas de água que bailavam no chão,
do cheiro de charuto daqueles que fumo agora,
que não é um Cohiba, mas tem um amargo bom.
Nem reparou que a cama continuava arrumada
e a minha barba está retinta de branco e preto,
que o gato dela silenciou empalado num espeto
e sobrevivo ilho, com esta cara ilesa amarrada,
onde o silêncio reina como o mais dinâmico som.
Nem bem chegou após passar duas semanas fora,
ela nem sentiu que a cama continuava esfriada
e a gata dela finou em espeto, belamente empalada,
odor mal cheiroso de charuto dos que fumo agora,
– não é um Cohiba, mas tem fumo amargoso. Só.
RAÍZES
Quando voltei à minha terra adotiva,
já curtidos trinta anos de ausência,
fui matar saudade na minha tia Regina,
que beirava noventa anos de quibes.
Ao chegar à rua avistei a casa dela,
ali corri no quintal, andei menino,
quando saía da escola ao meio-dia,
sempre esperado com farto lanche.
Sanduíche e refresco de cajazinho,
água de bilha, fresca como a sombra,
histórias pra alimentar qualquer alma,
bagas de ingá pra chupar no caminho.
Mas naquele momento havia também
intenso alvoroço na rua. O que era?
Era junho, os Bois começam a dançar.
Ah meu deus! Ai Jesus! Ah socorro!
Minha tia me desculpe, mas vou atrás
desse Boi que canta a Maioba e fui:
fui moleque no batuque do pandeiro,
fui menino na pancada da matraca.
Depois vim suado, sujo de poeira,
aromatizado de cheiros estranhos,
hálito de cachaça, tonto de cerveja,
mais perfume mulher no pescoço.
Contei a proeza à minha tia Regina:
era o menino de catorze anos
e não o homem de barba grisalha
que tinha dançado o Boi da Maioba.
Tia Regina viu tudo, trouxe refresco,
cachorro-quente, muito cheirinho,
sentimento, sorrisos, a festa foi tanta
que nem sei se chorava era de tanto rir.
PROFISSÃO
Nem um dia sem linha,
Nem um dia sem palavra,
Nem um dia sem fraseio.
Quem vê quase não nota,
Desmoronou-se a lorota,
Era tremenda estultícia.
Assim se constrói a rota,
Assim se destrói a fonte,
Assim se corrói o vício.
Virgem santa maravilha!
Chama de tio, linda filha,
Não me sinto desonrado.
Nem só trilhar a trilha,
Nem só lavrar a palavra,
Nem frasear o fraseado.
O poeta amou uma zinha,
Que ia quando ele vinha,
À vista devassados seios.
ANJOS DEMOS
Uma família é uma casa desarrumada,
carro sem gasolina, problemas a resolver,
dias e dias completamente atarefados.
Neste caso o pesadelo é estar em busca
do tão sonhado emprego e da quitação
de todas as dívidas da mente e do corpo.
Sempre no limite do cansaço, sempre,
(se todos os problemas fossem esses,
não seríamos capazes de resolvê-los?)
Nos dias de hoje, tomados pelo medo,
medo que não deixa seguir em frente,
muitos momentos perdemos em vão...
Esquecemos os hábitos obrigatórios e,
por causa da violência, cresce no mundo
as mini-prisões que nos tornam reféns.
Anjo de crueldade, Anjo nascido do ódio,
fonte eterna de ambição, Anjo da infâmia,
Anjo de crueldade, Anjo de crueldade...
DANO
O que faz na floresta
um lobo solitário?
Suicida-se de tédio
dentro de um armário.
O que faz na cidade
um lobo solitário?
Morre de medo
sentado no ônibus.
O que faz no bairro
um lobo solitário?
Afoga-se de tédio
dentro da banheira.
O que faz na Avenida
um lobo solitário?
Morre de sede e fome
debaixo da marquise.
CANÇONETA
Fica do lado de fora do meu coração,
o amor não escolhe hora de dizer não.
Sinto-me animado de forma tamanha
para poder realizar a grande façanha.
Se o homem é um gigante ou um anão,
sabe-se no dia em que tem de dizer não.
Agora podem dizer que sou o homem
que teve a coragem de viver só e sem.
CARNAVAL DOS BICHOS
Os bichos não existem, ilusionárias animações,
foram inventados por nossas mentes doentias.
São projeções do demônio, legados da maldição.
Lobos, serpentes, lagartos antidiluvianos, sapos,
carcaças de sáurios, hipopótamos, rinocerontes.
Almas de nossas almas, espíritos do mal, do mal
transcendental, os cavalos das cargas penitentes.
As árvores não existem. São uma mentira e esta
paisagem cinemascópica que serve apenas para a
gente se sentar sob a copa sombrosa ao lado dela.
Paraíso fantasioso da ilusão que vive noite e dia.
As tempestades não existem, são vagas explosões
mentais, feitas para acolher os dias mais soturnos.
Anjos bons que nos absolvem a cada crime e dor.
O horizonte não existe, é na verdade a revelação
de um negativo tecnicolor, cinema natural do ar.
Ilusão ótica. Tudo que a gente vê não existe. Vê.
É a projeção de nossa mente poderosa e serve-nos
para servir de cenário à vida mentirosa, mentirosa.
AMIGOS, EX-AMIGOS
Sabe o que me dói nos amigos,
digo, naqueles antigos que se
tornaram ex-amigos? É que não
podem mais ouvir comigo uma
ópera de Rossini. Não podem
dividir comigo os humores e as
alegrias nem beber cerveja nos
botecos. Não mais, não mais.
Nem podem traçar confidências
sobre mulheres, principalmente
as mulheres dos outros. As piores,
desbragadas confluências imorais,
satíricas, depravadas que faziam rir,
como atribulações da vagina que
só faltava falar, de um cu solitário
demi-virgem. Amigos sacanas que
se foram ou deixaram ir-se mesmo
sabendo que havia alguma vida
pela frente. O que dói nos amigos
se tornarem ex-amigos só porque
não tiveram paciência de esperar
a espada de Deus. Não podem mais
ouvir Winton Marsalis comigo nem
dançar flamenco nem beber sob o
tremor culpado de quadris fervidos,
mulatas sambando definitivamente
perdidas ao som do pagode de
botequim. Foram-se como meu LP
de João Nogueira, foram-se como
as noitadas do Zicartola, da Lapa,
chateia deveras, ex-amigos, porque
não estão mais aqui para dividir
as despesas (ou pagá-las sozinhos
nos dias de grande dureza), não,
não estão mais aqui para ouvir os
lamentos, os dias chatos da ditadura.
Não podem, vagas almas errantes,
me encher o saco com telefonemas,
o chororô sobre a vida, traições
das mulheres, me obrigam a ficar
aqui sozinho, escrevendo sobre o
que dói nos amigos, digo, naqueles
amigos que se tornaram ex-amigos...
AGORA...
Hum, este passado que jamais passa,
elegias e contemplações se nos atracam
grudadas, gosmentas, insalubres, sem.
O terror dos terrores, tremores, dores,
o passadiço, ontem, não passa, não dá
o supermoderno, a necessária pá de cal.
Criança. Retorne à visionária criança,
e encontre o segredo na figura traçada
por meninos enquanto o pai caçava.
A quem dói, no que dói, em quem dói,
a mesma música, a mesma paisagem
de séculos passados como uma pedra?
Sementes largadas em terreno alheio
antes estéril, arado puxado por bois,
bicho nos pés descalços do lavrador.
Eis os poetas contemporâneos, varam
além da lama romântica, antiga, vã,
mais, mais além do conforto medieval.
A pedra filosofal está bem ali mesmo,
na vista dos inocentes olhos meninos:
nas figuras desenhadas nas cavernas.
FELIZ
Feliz. Senão agora sou nunca serei?
É este o momento, sabe? – Então, nada.
Amanhã estarei de novo na fila da
vida – esta intensa e clara insanidade.
É este o momento ou jamais. Jamais.
Feliz, serei agora – ou nunca serei?
Desvendando o caminho da jornada:
charada, metáfora, milagre, caminho.
A cada dia inicia a linda caminhada.
É triste, mas que fazer? Largar tudo?
Langor, metáfora, milagre, quase tudo.
Estou em Copacabana, puro sal e sol.
Sinto-me a oliva na pedra do lagar.
Abandonar, andar, caminho, jornada?
Sento-me ao lado de um ser estranho.
É Carlos Drummond de Andrade mudo.
DONS DIVINOS
O primeiro dom que ganhei foi o olfato: cheiro
para não me perder entre os seios de mamãe.
Depois senti o tato, o prazer da carícia de viver
a lógica, a aventura entre frinchas e arredores.
Após os odores abri os olhos, a visão faz bem:
luas de carne vívidas, mergulhos na claridade.
A percepção do redor, das coisas amadas, sim,
um sentimento maior que a aspereza da língua.
Odeio o dom da profecia que me foi legado, eis
o ver, que saber, o sentir, desde sempre amado.
Acolchoado no âmago dessas criaturas, ex-ser,
vilipendiado, fodido, guerrear a quem, pro quê?
Entre a imaginação, o saber, às feições amadas
um ser pequenino chega, DNA meu que ousa.
Eternidade: pensar como santo, chagas torcidas,
milagres passageiros, apenas o poder das mãos.
ESQUEMA
Quem acha que se pode viver
só pelo prazer dos dias,
merece a solidão.
O que não se divide é a dor,
o inferno descrito nos astros,
porque é finito.
O sol e a praia cheia de gente,
o dia de risos, o que nasce,
a fome e a sede...
Divide-se o céu com os amigos,
o inferno não precisa de habitante
que é deserto inimigo.
O trigo não produz espinho,
o ouro do chope, o tinto do vinho,
dividimos com amigos.
O inferno se goza solitário, só,
masturbação mal sucedida
porque se perdeu.
Coração sorriso, o futebol,
a escola de samba, o pagode, tudo
com o amigo é divisível.
Não se divide a dor lacrimosa,
este inferno descrito nos astros,
que é finito: amanhã passa.
QUANDO JUNHO CHEGAR...
Ô som que dá os pandeiros, magia de mandar recados à amada, ô som querido!
É só ouvir o ronco dos pandeiros e matracas arrasando a madrugada de Axixá,
que é só chegar o mês de junho e vou enrabichar no boi dançando rua abaixo.
Eu vou lembrar das cantigas que cantava o velho Coxinho sorrindo e rindo
e assistir aos ensaios que esquentavam os couros nas chamas da imbaúba verde
ou ver o sonho dos brincantes novatos brotar, realizado nos olhos de miçangas!
É só se ligar no som dos pandeiros e descer o Beco do Giz escorregando no limo,
ouvir a voz de Neguinho chamando a rapaziada para o destino final na Madredeus.
Sabe, é dia de desmaiar a alma num gole de cachaça, energizar o espírito fraco,
que o ombro da amada não aguenta só o som das matracas de peroba da Maioba!
Ô choro do tambor-onça que parece um louvor aos brincantes que ficaram ontem
nas pontas das matracas que deixavam calo nos dedos, mas alegravam os anjos.
Das rodas que invadiam as casas dos senhores de madrugada pedindo licença
para cantar a noite toda e varar o dia até o suor se derramar no boi de Pindaré,
todas as lágrimas da alegria que matava a tristeza dos amores, ô som! Ô som!
Ô lamento das ronqueiras que parece lágrima de estrelinha de Julho passado!
Quando chegar mês de junho, despenco ladeira abaixo dançando o boi que passar
para cantar a madrugada toda e varar o dia no soar dos metais do Boi de Rosário.
Ô som, ô pandeiro cuja magia é trazer recado da amada, ô som do tempo querido!
O SONO ACORDADO.
O acento da noite traz nostalgia, acerto de contas, perdão de erros,
cura de próstatas inflamadas e pulmões deflagrados em tuberculose.
Ou, quem sabe, a desnecessária promessa do recomeço, sem confissão,
sem pecados, sem purgatórios, sem viagens, sem aventuras, sem céus.
O sonho não é mais sonho, a realidade é conto de fadas, urros de
velhos feiticeiros fundindo sortilégios na panela de barro e breu.
São as mentiras que vieram iluminar o coração dos homens bons,
aterrorizando a terra imaginária, o reino de paz e magia sem fim?
Aqui pagamos os pecados, prestamos conta do que não fizemos,
nem sonhamos que tudo é realidade, mesmo ao idiotíssimo apelo.
O dia, a claridade, quando tudo acerta o alvo olho, a lágrima,
luz que percorre a selva de cimento, o espírito de sobrevivência.
Nesse momento o instinto de sobrevivência é quem canta, a cor sai,
vara as pupilas, a dor do sol atropela a íris, a fome, a fé insaciável.
DIAS SANTOS
Sexta-feira santa, missa de corpo presente, réquiem,
Cristo crucificado, condenado pelos judeus, morto.
Sábado de aleluia, beija mão (no íntimo decepado),
sovamos Judas, o vizinho, o político mau, o padre.
Domingo de páscoa passou, é ressurreição, é festa,
trocamos presentes, vivas a Jesus que transfigurou.
O carnaval também foi dia santificado, máscaras,
bebidas, bailes, amor – e virou festejo do diabo.
A Quarta-feira de cinzas é de cinzas, jejum, fogo,
água reza, para todo o corpo e para todas as almas...
Dia de finados e todos os mortos são lembrados:
quantos deles voltam e permanecerão entre nós?
MÁGICA
Braços abertos, correndo contra o vento.
Por que de repente veio essa lembrança?
Só se foi o retrato de um dia da infância,
brincando na areia dura de Olho d'água.
Chorar a vida, se de tudo um pouco eu ri?
Esquecer pequenos amores que não tive?
São sonhos, terra para a lavratura, medos,
plantei-os tais sementes que jamais brotam.
Mas havia o demônio, indômito hóspede,
insaciável, Agnus Dei, libera-me Dominé.
Sobrevivendo à morte e à transfiguração,
arma teleguiada: um coração que explode.
A alegria me alegrou, de tristeza entristeci,
enquanto o tempo disfarça perigosamente.
Enquanto não metamorfosear em calendário,
uma data de nascimento, transporte e destino.
A data na lápide, a citação na enciclopédia,
verbete de biblioteca, livro que ninguém lê.
LEMBRETE
Salvamos os amigos do afogamento,
libertamos do pesadelo,
porque são amigos.
Com os amigos não se divide derrota,
só os louros da vitória,
as coroas de ouro.
Os amigos não são mensageiros
de notícias ruins,
porque são amigos.
Com amigos não se reparte infelicidade,
lembramos os áureos tempos,
vencidos e vindouros.
MARÉ
Sábado, trinta de outubro,
a lua imensamente enorme,
muito maior do que o sol,
acachapante, humilhando
o pouco que restou de nós.
Boa noite antiguíssima lua,
pode entrar, o coração é seu,
aplaca as vagas, tem dó:
mete de entremeio o amor,
enleva-te com esta palavra.
Não há sentimento nem maré,
nem provocação no céu vasto,
boa noite amiga lua, lua dela,
pode entrar, aplaca as vagas,
o coração seu, ama-o sem dó.
Digo que é sábado de outubro,
de lua imensa (a mente dorme),
ó sol noturno, de joelhos, casto,
indulgente, demasiado humano,
ama um pouco a sombra de nós.
PAUSA MORTIS
Os anos de danças passaram rapidamente,
em fogo – como devem ser os anos de graça.
– Conseguirei enfim a merecida paisagem?
Já se aproxima o tempo da rede na varanda,
tempo de aturar a tremenda lentidão dos dias.
– Alcançarei a visão da névoa coleando o monte?
Devo recordar-me que foram lindos e belos,
flores de carne, olhos de sorrisos e mais risos.
– Sentirei a maresia, odor salitre que a brisa traz?
Os sons de baile e bebida se foram velozmente,
vem chegando o tempo da cadeira de balanço...
– Terei por fim o meu exclusivo horizonte verde?
Os óculos de leitura sobre o livro esquecido,
alguém que grita meu nome em vão: durmo.
– Deitarei acalantado pelo cicio da onda na praia?
Hei de lembrar dos amores devastadores, infiéis,
nichos de carne, lábios fumegantes, olhar de paz.
– Pedirei ao amor que não venha porque é tarde?
E contentar-me com a surpresa daquilo que vier,
agradecer ao mar, amar o sonho que me foi dado.
– Verei no ocaso da vida um pôr de sol púrpuro?...
SOLSTÍCIO
Agora que não me suicidei,
brinquei todos os carnavais,
do cordão ao trio elétrico,
por que não viver em paz
com os anos que advirão?
– Como? Nada se sabe?...
BALADA DA ALMA BOA
Agora já sei compreender
as tantas almas atribuladas
que oferecem tempos idos
em troca de quase nada.
Não sou Átis filho da Lua
sem o Sol para me salvar
sem a liberdade de partir
e postumamente retornar.
Só agora posso entender
que vender um par de anos
em troca de poucos dias
é para matar desenganos.
Estou aqui predisposto
a comprar 10.900 dias:
preciso recompor o sal
deletar minhas agonias.
E então – por que não?
Só preciso algum tempo
para saldar umas dívidas
para salgar umas feridas.
Então sim Dr. Fausto
eis minha alma inteira
abre o portal sem luxo
– imensurável fronteira.
RETORNO
Eis na areia meus restos
daquela longa viagem:
troços, destroços, traços,
almas fraturadas, lodos.
Todas por fim aqui só,
um fiasco de respiro,
e silencia esta oração:
se for puro voo, vou.
Enquanto recomponho
tolas as vãs aparências
louçãs, tristonhas, sãs,
transfiguram sorrisos.
Maçãs, mangas, peras,
o celular cantador, dor,
algum som imaginário:
a voz dela na voz dela.
SAZONAL
Não espera sete dias Hilda, o trem não passa aqui. Trilhos.
Contaste as dúzias de rosas mandaram no teu aniversário?
Estavam vermelhas – rubras rosas regadas a álcool e lágrima.
Parece que ontem à noite tomaste banho nu na fonte. Nua.
Não espera sete dias Hilda, ônibus desabam velozes na estrada.
Ainda ouço em som alto os rocks e blues de todos os tempos...
Teu corpo parecia o mar bravio: arte expelida na dança do ventre.
A lágrima, bem vívida, era realmente lágrima de amor. Ou não?
Não espera sete dias Hilda, aviões que pousam, partem em vão.
A praia semi-deserta serve de música aos pescadores. Amém!
Viu como debaixo das estrelas as águas brilhavam atômicas?
Um reggae fugiu do rádio rasteando vastas ondas nas praias.
Não espera sete dias Hilda, o transatlântico ancora ao largo.
Cabeleiras de palmeiras arrastadas pelo vento, largo vento...
Encostada na porta o que viste? Apenas mais uma despedida?
Um homem que caminhava, ida e volta a lugar nenhum, só.
Não espera sete dias Hilda ou vais perder a clara lua cheia hoje.
Astros circulam, vão e vêm pelo Universo em doidice cartesiana.
Viva o caos organizado que entremeia, coração, a cabeça calma.
O que chamamos esperança não é apenas sonho vão. Será quê?
ESCALA
Estou no aeroporto, ligo para ela: – Chove.
Chove, estou retido por uma escala inesperada.
Ela me ouve em silêncio. Puta que pariu!
No fundo alguma música ressoa sinfônica.
– Cimarosa? Pergunto. – Não. Cimarosa foi
quando cravei as unhas sangrentas nas tuas costas.
Sonho com a virilha. Sal. Chupo ali. Não é real?
Lembra algum som como sinfonia no deserto.
– Nada há o que nos unirá. Não é Beethoven?
– Nunca! Beethoven jamais nos surpreendeu
enquanto chocalham cubos de gelo no uísque
no silencioso momento que antecede a fumaça.
A Ave Maria de Schubert ressoa em todo o salão
do aeroporto deserto. São seis horas e anoitece.
– Ouves? É Schubert, que também não acompanhou
as lágrimas que enfeitaram as trezentas despedidas.
– Não ouço nada, só a chuva batendo no telhado
dizendo que nada acontecerá no planalto solteiro.
A chuva não traz somente a solidão dos ausentes,
nem regato de lágrima ou mero prelúdio de Chopin:
há a lembrança do cheiro de suor nas axilas úmidas,
o som oblíquo da respiração em decúbito dorsal,
alguns corpos nus envoltos em gaze, névoa, sangue,
pensamentos soltos na estrada ou entre nuvens.
AREIAS
Uma casa à beira da ria
sorri pro mar da janela.
No barco verde à deriva
pescadores tarrafeando.
Um sol na quase manhã
é o véu pro corpo dela.
Guará goteja o mangue
vermelho içado de verde.
Os catadores de sururus
um caranguejo vermelho.
Um corpo nu desmaiado
na alvura do lençol azul.
Maria, sim é Maria, é ela
que ri pro mar da janela.
BAÍA DE SÃO MARCOS
Por aqui começa o mar noutro mar,
a mais fértil terra dos pescadores
– eu penso em ti, em mais ninguém.
Renasce na praia o campo de areia,
ali aonde o mar existe e não existe,
– mais louco que nunca para te ver.
O pescador é o camponês do mar,
ameia os peixes de colheita insossa,
– posso jurar ao vento que te amo.
Roçado de sal o pescador recolhe,
siri, caranguejo, flor de manguezal,
– é um mar em forma de sedução.
ROMANCE
Qualquer amor vale uma vida
E as lembranças feitas de dor
Colorida.
Não tem perfume a saudade
O que provoca a lágrima?
Amizade.
Ardem amores recém-chegados
Nos corações cheios de vida
Alados.
Desconhece a forma das cores
O coração virgem dos jovens
Ardores.
PLUMA
Que vidas esperam – Leve? Brava?
A música que aos poucos emociona.
Que pesos carregam – Brita? Seixo?
Página plantada cheia de palavras.
Que sementes são – Seiva? Brisa?
Um estado de latente hibernação.
Que presságios fizeram – Beijo? Teso?
O silêncio dos sons em vice-versa.
Que palavras repetem – Arma? Breve?
A impunidade que se torna imortal.
Que corpos querem – Santo? Belo?
Não haverá mais crime sem amor.
Que destinos amam – Bruto? Morto?
Hospitais campos de concentração.
RITO DE PASSAGEM
Mandei quebrar as calçadas, os muros
e as paredes do quarto de empregada,
já vendi todos os meus discos long-play,
alguns de 78 rpm que vovó me deixou.
O mesmo muro era pintado todo de azul,
é hora de arrancar pulsos, pregos de aço,
derramar na pia as garrafas de cachaça,
menos o licor de jenipapo no falso cristal.
Rasguei todas as cartas que recebi dela,
joguei fora o título de eleitor e o CIC,
desmontei as molduras, as fotografias,
as estantes da sala, cômodas do quarto.
Mandei vender cadeiras, banquinhos,
formatei o HD onde descrevi provectas
emoções: só o prompt DOS sobreviveu,
ah meus livros, raros e meus, foram-se.
Arrumei as garrafas de cerveja vazias
para devolver ao botequim do Manuel,
outro alguém terá livros e os quadros,
destrambelhados em suicídio coletivo...
Agora tudo vai ser caiado sobre o azul,
falta pouco, pouco tempo, falta pouco,
para retirar as fotografias, as molduras,
beber o licor de jenipapo do falso cristal.
VISITA
Ela chegou sem avisar, foi mal recebida,
voltou acabrunhada, sem me levar. Azar!
O vinho e o uísque, o rum e a cachaça, a
vodca e o licor, a acquavita ardente tê-los.
As palavras acumuladas podem se excluir,
a história que esqueci contar, já vai, já foi.
Presunto, carne, aves, peixes, pão e queijo,
este sangue, esta carne, do que será? Será.
Essa vizinha de baixo, a tempo para vê-la,
a cerveja, que se fez bonitinha, para beber.
Acerola, caju, manga, caqui, banana, cajá,
comê-las, comê-los, comê-las, comê-los...
Quem a mandou? O tempo amigo espera
lá mais uns dez anos. Posso sorrir a vinho.
MEL
Quando a encontrei era só açúcar,
prazer dança, doce de goiaba e mel.
Um mar de sal e sol para temperar,
vinho branco e, ou, cerveja gelada.
Criação boa à receita de felicidade:
e assim foi o tempo das maresias,
ondas rasteiras, espaços espectrais,
pores de sol. É verdade: o sol se põe?
Sei que estão pensando que vou falar:
Agora tudo é fel (para rimar com mel),
mas que nada, só a distância atrapalha
a convulsão mansa de nossa pele úmida.
Se possível, continua doce, mel e mel,
bacuri em calda, condimentos picantes,
sorvete de juçara... Já falei dos lábios?
Ara que boca! Ânsia devoradora! Ora...
SIM
Quero dizer que te amo
E outras coisas frugais
Meu essa boca aquecida
Ora vaga pelo espaço
Sabe que o amor é teia.
Quero dizer que te amo
E mais histórias banais
Que lembrem o abismo
Somente para separar
O joio, o trigo, esta veia.
Quero dizer que te amo
Como às formas fractais
Tipo paixão desarvorada
Que vaga começa termina
Pode ser que não queira.
Quero dizer que te amo
E outras coisinhas mais
Falar da unha encravada
De como parei de fumar
Chegando-me de esgueira.
Quero dizer que te amo
Amo teus artigos iguais
Cara consigo ler de porre
Durmo sem tomar banho
Calçado sapato e meia.
Quero dizer que te amo.
(01/09/2004)
ESPERA
Apaga esse cigarro
Traz a taça de vinho
Não, não goza ainda,
Para um bocadinho
Até acabar este verso.
Amanhã é domingo?
Ando perdido há dias
Não, não goza ainda,
Enxuga o corpo suado
Talvez não volte mais.
Não estou com pressa
O voo só sai amanhã
Não, não goza ainda,
Deixa acabar o filme
Afinal é do Glauber.
No planalto a manhã
Tem um matiz torto
Não, não goza ainda,
Levo com a fotografia
Esta vaga lembrança.
Algo me diz: é só hoje
Mas levo uma marca
Não, não goza ainda,
Nem faz promessas
Nem diz que me ama.
Ainda vou ao escritório
Encarar o trânsito ruim
Não, não goza ainda,
Somente o aeroporto
Impede de ficar contigo...
(18/08/2004)
DONT STOP
A vida é moto-perpétuo,
não carece de paradeiro,
dá-se um primeiro passo,
vai direto ao derradeiro.
Para o viver bem vivido
agarre alguma paisagem,
viaje no banco do sonho,
a vida é moto-perpétuo.
De entremeio ganhe um
trem de aço que flutua
(a vida é moto-perpétuo),
bebendo água e milagre.
A vida é o oásis perene
que vigora nos desertos,
a vida é moto-perpétuo
na trilha da imaginação.
Não tem começo e fim,
a vida é moto-perpétuo,
às vezes nasce do amor,
é também necessidade.
Desesperadamente sim,
como vácuo do cosmos,
beijo de lábios úmidos,
a vida é moto-perpétuo.
A vida é moto contínuo,
maravilhosa, respirável,
onde há luz vida haverá,
enquanto um peito arfar.
A vida é moto contínuo,
A vida é moto-perpétuo...
DOM SUPREMO
Ó vaso contrátil dorsal, ó músculo oco, chato,
ó queijo esquerdo e direito, gêmeo, injusto,
o que serás?
Quando os músculos se retesam e retêm
o abraço na concavidade das veias mortas,
o que será?
Talvez a comoção que perpassou de leve
pela veia cava superior sem pena de fazer-se
direita e direta.
Quando o sonho se transforma em pesadelo
menor, sem guardar segredos coronários,
o que serás?
Já ouvi dizer que a vida é o dom supremo,
mas e se a noite chega sem aviso nem tempo,
o que será?
Talvez os tremores do medo, trespassados ramos,
veias, artéria pulmonar, em gesto infame,
sem cor, sem dor.
Ó química, ó físico, ó válvula tricúspide sem fé,
ó átrios esquerdos, vasos, aortas, silêncios,
o que serás?
Já ouvi que a vida é o dom supremo, bem sei,
mas quando a noite chega e o dormir é dor,
o que será?
Talvez este medo sem temor, frio sem frio,
veia obstruída, crateras lunares, objeto disforme,
dor incolor.
ACORDADO
O acento da noite traz nostalgia, acerto de contas, perdão de erros,
cura de próstatas inflamadas e pulmões deflagrados em tuberculose.
Ou, quem sabe, a desnecessária promessa do recomeço, sem confissão,
sem pecados, sem purgatórios, sem viagens, sem aventuras, sem céus.
O sonho não é mais sonho, a realidade é conto de fadas, urros de
velhos feiticeiros fundindo sortilégios na panela de barro e breu.
São as mentiras que vieram iluminar o coração dos homens bons,
aterrorizando a terra imaginária, o reino de paz e magia sem fim?
Aqui pagamos os pecados, prestamos conta do que não fizemos,
nem sonhamos que tudo é realidade, mesmo à idiotismo apelo.
O dia, a claridade, quando tudo acerta o alvo olho, a lágrima,
luz que percorre a selva de cimento, o espírito de sobrevivência.
Nesse momento o instinto de sobrevivência é quem canta, a cor sai,
vara as pupilas, a dor do sol atropela a íris, a fome, a fé insaciável.
SONHO DE VERÃO
Ainda bem que posso ler poesia
dias de dor de cabeça, e outras:
a poesia, sorvida como aspirina,
cura qualquer porra sem dor.
Homem, mulher, bestas, todos
deveriam ser livres para fazer
a seara dos sonhos que quiser
e colher a safra do imaginário.
Para isso são múltiplos, mãos,
somos santo, diabo, anjo, Deus.
Calado o espanto plantado, a fé
de todas as sementes recatar-se.
Mortiça claridade de tudo, sim,
sim, cada um deveria ser livre
para buscar o verde dos sonhos
realizados um a um, mais um.
Ao fim compor a própria gesta,
a canção vocativa dos amores,
precisos, fogosos, arrebatados,
forte paixão de herói lendário.
Como o símbolo da sabedoria,
ser capaz de fazer e ler poesia,
em dias de dor e solidariedade,
é até covardia pedir paz, não é?
SUSPIROS
Com a voz de Emilinha Borba,
do locutor da Rádio Nacional,
vovó me acordava bem cedo,
disque era para ver o sol nascer.
Tudo dormia, já lá vinha vovô,
cantando a ópera que só ele sabe,
para coar café, coser macaxeira,
batata doce, milho, essas coisas.
A casa dorme quieta, redes vazias,
menos os passarinhos, as pipiras
que frequentavam as mangueiras,
cajueiros e goiabeiras do quintal.
Residiam atrevidos nas cadeiras,
na mesa, invadindo a varanda,
bicando farelos de pão, xerém,
biscoito, farofa caída no chão.
Para esperar o café eu e vovó
víamos os tropeiros passando,
rumo à feira em canto e conto,
falando aos bois e jumentos.
Sempre sobrava manga rosa,
os cajus sumarentos da vovó,
molhe de verdura fresquinha,
aipim e vovô cantando alegre...
Uns paravam para tomar café,
reforçado, farinha e rapadura,
enquanto se atualizava o tempo,
a notícia botava a vida em dia.
Ao sair, agradecimentos vários,
Deus dê o dobro e proteja amém!
Que vovó respondia e assentava:
Deus ajuda quem cedo madruga!
Vovô torrava o pão, trazia tudo
para a mesa, a manteiga derretia
sobre toras de macaxeira, espiga
de milho, batata doce fumegante.
O leite às vezes derramava sobre
a chapa do fogão: vovó reclamava
do cozinheiro desastrado, vovô ria,
redobrando o vozeirão operístico...
Paisagem inexistente, hábito morto,
bem enterrado com vovô e vovó,
lá bem detrás onde não lembra bem,
no morro do Cemitério do Aldeão.
Da minha janela vejo o sol nascer
já desmaiado, moído, mortinho,
em outro morro, de árvore-barraco,
no país estranho chamado favela.
MAU-TEMPO
Eu e os maus elementos:
tantos pulmões poluídos,
– por que não fumar,
– por que dá cancro?
Vesículas exploradas,
dedos ameaçando detonar
humores de câncer:
por todas as próstatas.
CONSTRUÇÃO
Há o tijolo, que pode ser pura pedra preciosa,
a erigir paredes, muros, sonhos – quem sabe?
Nenhuma construção se faz sem abalar a fé,
se finalmente é necessário dar o primeiro passo.
Telhados de jade irradiam o sonho para dentro:
muitas e muitas casas levantadas sobre nuvens.
MATA VIRGEM
Na reportagem da TV o velho casal de camponeses suados,
no afã de reflorestar a terra quase morta à margem do rio,
cujas barrancas de pó já desmoronavam ao longo dos anos.
Lembravam, com voz de saudade, a mata que havia ali,
as árvores com nomes, desmontadas para fazer casas,
móveis, bancos, berços de filhos, lenha para a noite fria.
Ao fim da tarde sentavam na varanda embalando os netos,
vendo o sol vermelho lustroso, o vapor subindo da água,
enquanto os filhos ferviam leite de vaca para fazer queijo.
Agora, construída a noite, outra luz traz e renova a imagem
de uma mata com nome, cheia de pássaros, micos, ruidosa,
os bisnetos percorrendo as mesmas árvores anos à frente.
QUASE NOITE
Parece que foi ontem,
no entanto, acreditem,
o capim está amarelo,
aves de aço pululam,
as cabeças tremem.
A nuvem de calor e pó
permanece suspensa,
de súbito ajoelhados
neste confessionário
clamamos por perdão.
Bem vindo Ano Bom!
Os mísseis afundam
casas, calçadas e ruas,
fedem todas as oliveiras,
as parreiras queimam.
Não há perdão nem dó:
aquilo que foi deságua
em fervura, estilhaços,
almas se perdem frias,
a chuva ministra o pó.
Não tem mais outrora,
não teremos mais lavra,
o peito é mero pavio,
a boca ressecada reza,
o campo renasce deserto.
DOMINUS
Agora sim, chegado está o outono:
de nuvem baixa, vento sul, chuva.
Geleiras se deslocam da Antártida,
corpos explodem em Jerusalém.
Outono quase branco, argentino,
alma redobrada em diagonal, lisa,
dores e leituras, sons e silêncios,
este ruído que só o tímpano ouve.
Aquele corpo, vasto deserto, só,
dunas de areia entre mar e água,
repentinas orações imperfeitas
– ali não haverá outono qualquer.
A maré virá alta apenas a estação
se perca em folhas de calendário.
Ventres em decúbito, plúmbeo alvo,
descolam sorrisos levianos, nus.
Sim, chegou o outono mais breve:
almas baixas, suspiros, lágrimas,
os icebergs descolam dos olhos,
corpos explodem sem desespero.
As flores do cacto estão murchas:
tudo tem fim, até a graça de Deus.
O DIA SEM PAZ
A noite chama atenção: perfilam as silhuetas dos morros em volta.
De longe as luzes das casas poderiam lembrar corpos estelares, mas...
Há silêncio nas casas, mantém todos as armas engatilhadas. Revolta.
E de repente tudo pode mudar: desliga-se a TV, cala-se a música.
É hora, evoé Momo! é hora do carnaval macabro, demônio grotesco.
As balas púrpuras sibilam, riscam os céus, buscando um corpo perdido.
Por que tudo isso lembra Chechênia, Bósnia, Palestina, Afeganistão?
Não para os políticos isolados no Paraíso Planalto Central. Momesco.
Há um cheiro de pólvora no ar, enquanto mil cadáveres são sepultados.
Esta é a minha terra: monte sem rios, floresta sem mata, mar sem chão.
ELA, ELA...
Ó mulher ouriçada, reserva pelo menos esta noite
virginal para o silencioso despertar de uma oração.
Guarda, senhora, dos laivos do teu mísero açoite
quem te beija das mãos às fímbrias alvuras do cu.
Livra, mulher, estas pobres nádegas desprotegidas
do rasgo estimulante que promove tua unha vadia.
Perdoa, dona, o triste caralho das paupérrimas idas
e vindas, não tão vigorosas quanto o foram um dia...
Ó mulher leviana, resguarda ao menos a noite pura
para o silencioso dormitar de um devastado coração.
(01/08/2004)
ESCALA
Estou no aeroporto, ligo para ela: – Chove.
Chove, estou retido por uma escala inesperada.
Ela me ouve em silêncio. Puta que pariu!
No fundo alguma música ressoa sinfônica.
– Cimarosa? Pergunto. – Não, Cimarosa foi
quando cravei as unhas sangrentas nas tuas costas.
Sonho com a virilha. Sal. Chupo ali. Não é real?
Lembra algum som como sinfonia no deserto.
– Nada há o que nos unirá. Não é Beethoven?
Nunca! Beethoven jamais nos surpreendeu
enquanto chocalham cubos de gelo no uísque
no silencioso momento que antecede a fumaça.
A Ave Maria de Schubert ressoa em todo o salão
do aeroporto deserto. São seis horas e anoitece.
– Ouves? É Schubert, que também não acompanhou
as lágrimas que enfeitaram as trezentas despedidas.
– Não ouço nada, só a chuva batendo no telhado
dizendo que nada acontecerá no planalto solteiro.
A chuva não traz somente a solidão dos ausentes,
nem regato de lágrima ou mero prelúdio de Chopin:
há a lembrança do cheiro de suor nas axilas úmidas,
o som oblíquo da respiração em decúbito dorsal,
alguns corpos nus envoltos em gaze, névoa, sangue,
pensamentos soltos na estrada ou entre nuvens.
PIPIRAS
As pipiras estão na varanda
a ouvir Chopin junto comigo
respondem à música erudita
com trinados compassados
mais vaidoso que estrelas:
tem o céu como palco delas.
Deixa o canto correr sozinho
as pipiras cantam as árvores
falam com as águas dos rios
revoam se exibindo vaidosas
enquanto a música se esvai
na tarde tudo arde tudo cai.
O AMOR
O amor é lindo e eterno
quando se mora num cantão suíço
à beira de um lago suíço
recebendo dividendo do banco suíço.
O amor é lindo e eterno
quando se tem carro na garagem
um motorista no armário
e dinheiro para pagar as contas.
O amor é lindo e eterno
quando se é empregado em Brasília
e rezamos na mesma cartilha
de todos os governos que passam.
O amor é lindo e eterno
quando se é amigo do Rei
e temos as mulheres na cama
sem ir embora pra Passárgada.
O amor é lindo e eterno
quando os amores terminam
e se vê sem cometer suicídio
a ex-amada com outro (ou com outra).
O amor é lindo e eterno
quando se tem a geladeira cheia
de tudo quanto é porcaria importada
e se satisfaz com queijo coalho.
O amor é lindo e eterno
quando a mulher vai ver se a mãe está boa
e deixa a gente com a empregada boa
que acaba na cama virando patroa.
O amor é lindo e eterno
Quando, etc. etc.
(agora é a sua vez, leitor...)
IR MAIS
Não posso parar nos sonhos
Não é por aí que é o caminho
Tenho de manter despertado
O centro dessa vida agonia
Caminhar e apenas se deter
Para ver a paisagem passar
Igual um vagão supratômico
A girar por ela a terra a girar
Saber que é não é pesadelo
Que a via Láctea é um poço
O oco do peito transrevelado
Manter os olhos semiabertos
Não posso pensar nos sonhos
Sem saber despertar amanhã
Junto com a alvorada do sol
Receber um outro Bom dia!
O canto do pássaro em fá
Para sujar a página de letras
Inventar os novos inventares
Não posso calar os sonhos.
RETRATOS
No meu bairro suburbano
escorre a vida desmaiada
dosada em gotículas alvas
– quase nada.
Na feira frutas e verduras
explodem no óleo fervente
tubérculos maduros fritos
– muita gente.
Na piscina azul do vizinho
o verão sangrento semeia
calçada coalhada de oitis
– pó sem teia.
No bar a cerveja gelada,
queijos, salame e pernil,
desafogam antigo ritual
– pleno abril.
Na casa humilde recende
de uma panela no fogão
odor de peixe, galinha, siri
– mais feijão.
Ao lado do forró rasgado
Billie Holiday ressuscita
doces, salgados e blues
– o som excita.
A melancia na geladeira,
a pera, a goiaba, o caju,
animam a mesma salada
– o corpo nu.
Amanhã é dia de trabalho
dia de retornar ao estudo
rever a cotidiana memória
– quase tudo.
VISAGEM
Quando sentir sua mão sobre meus ombros
E conhecer as palavras que tem no coração
Lerei as poesias escritas à máquina elétrica
E romances falsos embora minha costela doa
Gurus dormem sobre pregos e ratos mortos
Mas não posso esquecer esta lua que chora
Ao som das amenas serestas a doze vozes.
Ouvirei o homem santo pela primeira vez
Em mim terei o milagre do seu olhar verde
Ditarei as palavras que falou aos peixes
Cantarei a música que encantou as pedras
Mesmo assim jamais estarei preparado
Para entender o sinal dos velhos tempos
Para me alegrar com o vento do deserto.
Podem parecer falsos gestos românticos
Mas quando vejo rir tua pele nevada brilhar
Mais olhar galante, tipo que viro manteiga,
Sou trigal do pão bebendo a alvura do leite
Esse espírito moleque vivia te molestando
Contando contos de amor para levar a paz
Apesar do pecado, amar o mau rapazinho.
Receberei energia de suas mãos calejadas
Conhecerei afinal o dom maior de Deus
Oposto do que realmente somos e fomos
Comerei as sete pragas, gafanhotos, peste,
Ouves? Soam sermões na cúpula da igreja
Enquanto é domingo e a cidade amanhece
Mas não me encontro conectado com a paz.
A mim que estou só sem canção para cantar
Não interessam senões, fronteiras proibidas,
O jardim abandonado, as coisas mal faladas,
Quero viver este colo uns minutos somente,
Campear os sonhos reais e o doido instante:
Simples mensagem de amor que dói e late
A ferir pobres corações sem matar a criatura.
DIVINA
Dona morte faz a ronda
Primeiro foi um vizinho
Depois um passarinho
Levou o rei e a rainha
Eu não estou nem aí...
Vou regando as plantas
Deitando no corpo dela
Confessando pecados
Sem medo de purgatório
Nem de cair na esparrela.
Dona morte faz a ronda
Anda por cá bem pertinho
Mas não tenho medo dela
Levou o mendigo da praia
Eu me divertindo por aí...
Bebo uns copos de vinho
Jogo xadrez pingue-pongue
Fodo a mulher do vizinho
Brinco de amor com Xênia
Vou escrevendo poesia...
Dona morte faz a ronda
Eu não estou nem aí...
O ENFORCADO
Eis a gravata, o nó, a corda, o laço da forca,
Eis a casa, eis a árvore do enforcado verde.
Quero nascer esta noite no desterro marrom
De dentro das folhas agudas da maternidade.
Sei das volúpias que acendem névoas alvas
São os teus olhos e essa vagina entesourada.
Dá-me a gravata com o nó do enforcado azul,
De outrora bem dentro dos dias de revoadas.
Estou aqui depositado entre os galhos tesos
É um túmulo, é um barco, a nau avermelhada.
A sombra não segue quantas cópulas arderão,
Quanto à esperança que vem em vagas claras.
O meu dedo tremula sobre a pele peçonhenta
A saber, se arde a língua entre as coxas fulvas.
Puxa o sentimento que tarda o pôr do sol roxo
Há meses a corda pende na nuca do enforcado.
Ouço tossir a garganta fervente em malagueta
Entre o gosto do sangue e o gozo encarnado.
Enquanto amanhã o sol arderá verde-amarelo
E se não me deixas vou morrendo aos poucos.
OFF ROAD
Toda hora é a hora de pegar o trem
Largar meras coisas nesta paisagem
Ir atropelando alguns dos horizontes
Imaginar qual será o rosto do amanhã.
Toda hora é a hora de cruzar estrada
Contar cabeça de boi, bode, carneiro,
Deliciar-se na água fresca do chuveiro
Sorrir o sorriso das morenas na janela.
Toda hora é hora de botar o pé na rua
Sem querer olhar a notícia dos jornais
Ver o tempo se lascar pela janela afora
Amar o dia como noite e a noite aurora.
Toda hora é hora de acordar amanhã
Sem repensar algo ontem para depois
Saciar a sede com esta chuva matinal
Desejar manga, caju, banana e maçã.
Toda hora é hora de passar a cidade
Formar a paisagem em mero postal
A cidade que se pensou um dia viver
Ver para trás a chegada, o ponto final.
– Toda hora é hora de cair na estrada...
XOTE
As absurdas asas do silêncio
flutuam como folhas na água
sussurram ventos no imenso
esqueleto de árvores torcidas.
Paisagem das ilhas sem rios
circunda folhas secas o lar
poderia ser o ninho de bilros
as teias rendadas de alvura.
Eis o teu retrato neste álbum
duas faces em preto e branco
teu sorriso triste de saudade
a voz de falar nenhum senso.
Novamente as águas cantam
traduzem este som estropiado
as dunas de areia que penso
movem-se em danças tristes.
Deveria sentir a ilha e o amor
porém hoje nada mais haverá
que dificulte outro sentimento
naquele coração assoberbado.
Ao olhar teu cabelo namorado
os seios levíssimos dormidos
teu ventre indócil marchetado
relembra algo da virgem Maria.
É o fogo que destrói a mata...
DEUM
Preciso de um Deus que ouça minhas orações.
Um Deus que se adapte a meus pecados e erros.
Preciso urgentemente de um Deus que me absolva.
Um Deus que me condene a infinitas ablações.
Preciso de um Deus que jamais me dê penitência.
Um Deus todo poderoso que me ajude desencarnar.
Que Deus me batize com alquimia sem perversões.
Um Deus que viva comigo no conchego do coração.
Preciso meu Deus mais intenso e menos humano.
Um Deus me introduza a belezas, excelências novas.
Um Deus juiz, perdão, demência, ódio e vingança?
VALE?
...a vida não vale o cigarro apagado
não vale um amasso mal dado
uma rosa partida
...a vida não vale o casamento desfeito
não vale um tostão furado
um carro batido
...a vida não vale o baralho sem naipes
não vale um adeus breve
uma cerveja gelada
...a vida não vale o filho morto ou torto
não vale uma primavera sem cor
um abraço apertado
...a vida não vale a reza fervorosa, a fé,
não vale um socorro em vão
uma cocaína cheirada
...a vida não vale o desfecho sem final
não vale uma novela de amor
um programa de TV
...a vida não vale o pai surdo-mudo
não vale um amor sem beijo
uma mãe entubada
...a vida não vale a praia sem mar
não vale um luar pálido
um calor desértico
...a vida não vale a amada distante
não vale um irmão longe e só
uma guerra declarada
...a vida não vale o concerto sinfônico
não vale um coreto sem banda
um poema calado
...a vida não vale o banho de luares
não vale um câncer no seio
uma canção sem palavras
... a vida não vale os sonhos de valsas
não vale um cheiro verde
um forró rasgado
...a vida não vale a sinfonia em dó
não vale uma feijoada sem chispe
uma noite estrelada
...a vida não vale o deserto sem oásis
não vale um enredo sem prosa
um copo d'água gelado
...a vida não vale o skank transgênico
não vale um porre sem álcool
uma missa de 7º dia
...a vida não vale a mulher desamada
não vale uma noite suicida
um amor traído
...a vida não vale o amor sempiterno
não vale um revólver armado
uma bala perdida
...a vida não vale o — The End — infeliz
não vale uma noite enluarada
um coração partido
(E aí? Faça sua lista!)
XÊNIA
És tu a minha amiga que não esquece a existência da luz,
que enfrenta o brilho com a garra suicida das mariposas.
Estamos juntos nesta distância agarrados pelos versos
em que outros poetas descrevem o mundo de eterna paz.
Tristes poetas de cujas almas a palavra tenebrosa foge,
que se alimentam das explosões transgênicas da guerra.
A eles não perpassa a batalha que as vísceras impõem
para que as noites e os dias sejam tão curtos e alegres.
Na tua mesa posta serves palavras, versos, cores e brilho:
como uma mãe leoa, proteges os amigos dos dias turvos.
Será hora de marcar passagem? tempo de reencontros?
A sereia esqueceu os rituais feiticeiros de Copacabana?
És tu a minha amiga que desdenha o viés de alguma cruz,
no entanto, parece que foi ontem, éramos difíceis e sós.
Ainda bem que teremos tempo para um mergulho duplo
no Rio Preguiça qualquer dia desses numa noite de verão.
ABLAÇÃO
Toda vez que tento beijar teu
coração
esbarro no teu seio esquerdo.
Lesmo escorregadio vou às
axilas
úmidas de suor desodorante.
Ricocheteio até teu maternal
colo
esqueço os seios de mamãe.
Após um salto mortal voo à
nuca
cheirada, fungada, arrepiada.
Da escalada revolteio na tua
orelha
mariposeio a língua quente...
Escorrego desmaiado ao teu
ombro:
pra que esses olhos virados?
Faleço neste ritual num outro
seio
devorado pela mastectomia.
RITO DE PASSAGEM
Mandei quebrar as calçadas, os muros
e as paredes do quarto de empregada,
já vendi todos os meus discos long-play,
alguns de 78 rpm que vovó me deixou.
O mesmo muro era pintado todo de azul,
é hora de arrancar pulsos, pregos de aço,
derramar na pia as garrafas de cachaça,
menos o licor de jenipapo no falso cristal.
Rasguei todas as cartas que recebi dela,
joguei fora o título de eleitor e o CIC,
desmontei as molduras, as fotografias,
as estantes da sala, cômodas do quarto.
Mandei vender cadeiras, banquinhos,
formatei o HD onde descrevi provectas
emoções: só o prompt DOS sobreviveu,
ah meus livros, raros e meus, foram-se.
Arrumei as garrafas de cerveja vazias
para devolver ao botequim do Manuel,
outro alguém terá livros e os quadros,
destrambelhados em suicídio coletivo...
Agora tudo vai ser caiado sobre o azul,
falta pouco, pouco tempo, falta pouco,
para retirar as fotografias, as molduras,
beber o licor de jenipapo do falso cristal.
PRESSÁGIO
Tenho de ir um instante ao menos,
acenar para alguém que passou.
Nem todos têm tanta desventura,
mãe, por que agora crucificada?
É esta maré, a praia, o preamar,
jusante que se aproxima, a vida.
Somos teus filhos que amastes
os teus mais cruéis carcereiros?
Decerto é minha mãe que sorriu
já com o corpo próximo da pedra.
É possível degenerar em horror
o que foi algum dia esperança?
Eis no canto dos olhos úmidos,
é sim uma lágrima que reclama.
Algo há a ser feito, crime e crime,
o que pode ser dinheiro é vida?
Não deixa tanta dor às crianças
pois mais é certo que não tenho fé.
Em quantos labirintos percorres
para não mais ouvir esta valsa?
Desculpe, mãe, por ter tirado a luz
do sol, da árvore, da água, da flor.
Furtei-te o canto das pipiras azuis,
a voz musical das crianças no mar?...
VISITA
Ela chegou sem avisar, foi mal recebida,
voltou acabrunhada, sem me levar. Azar!
O vinho e o uísque, o rum e a cachaça, a
vodca e o licor, a acquavita ardente tê-los.
As palavras acumuladas podem se excluir,
a história que esqueci contar, já vai, já foi.
Presunto, carne, aves, peixes, pão e queijo,
este sangue, esta carne, do que será? Será.
Essa vizinha de baixo, a tempo para vê-la,
a cerveja, que se fez bonitinha, para beber.
Acerola, caju, manga, caqui, banana, cajá,
comê-las, comê-los, comê-las, comê-los...
Quem a mandou? O tempo amigo espera
lá mais uns dez anos. Posso sorrir a vinho.
CONVITE
Vem, tenho no peito
um aconchego amigo,
com o que costumo
receber as mulheres.
Vem, é verdade, gozo,
ainda sonho contigo
– e enquanto durmo
desejo só coisas boas.
SAQUE
O porquê:
Sabe este mundo à pressa
em que o tempo é a curva
e não se ouve um segundo?
Por isso surgem as letras
seguidas de vastos gestos
para chegar aos mínimos.
O quando:
Pode ser naquela esquina
numa escala em Brasília
amando voos atrasados.
Onde cruzarmos abraços
será meu céu sem limites
uma fronteira na orelha.
O motivo:
Que era bom ter o sorriso
na proximidade dos poros
ou em gestual purificação
massagear-lhe o pé cigano.
E vê-la tão profundamente
até nossas íris se amarem.
A cena:
É a palavra que vai e vem
enquanto o blues tentacular
elimina os últimos vestígios
da lágrima que corre a face.
As linhas dos lábios densos
são marcas de um desatino.
O encontro:
Calça jeans e blusa branca
cabelos castanhos rebeldes
eis como a mim encontrará.
Não falou de unhas pintadas
ou dos braços bem abertos
com que me recepcionou.
O milagre:
Dês que me dês os desejos
praia e dunas de epiderme
o olhar nu tocando o olho
a visão mínima das réstias
beberei só o odor da vasa
e cheiro de esperma no ar.
O adeus:
Não sei se foi uma lágrima
água dos cabelos molhados
mas vi soçobrar um sorriso
na desesperança de voltar:
nem o silêncio traz notícia
nem e-mail na caixa postal.
Finis:
Amor é igualzinho à palavra
Paz – são palavras fumaça
desfaz-se ao primeiro tiro:
o amor termina no próximo
no desejo de outros amores
de outra paixão desvairada...
(8/06/2004)
ESPERA
Apaga esse cigarro
Traz a taça de vinho
Não, não goza ainda,
Para um bocadinho
Até acabar este verso.
Amanhã é domingo?
Ando perdido há dias
Não, não goza ainda,
Enxuga o corpo suado
Talvez não volte mais.
Não estou com pressa
O voo só sai amanhã
Não, não goza ainda,
Deixa acabar o filme
Afinal é do Glauber.
No planalto a manhã
Tem um matiz torto
Não, não goza ainda,
Levo com a fotografia
Esta vaga lembrança.
Algo me diz: é só hoje
Mas levo uma marca
Não, não goza ainda,
Nem faz promessas
Nem diz que me ama.
Ainda vou ao escritório
Encarar o trânsito ruim
Não, não goza ainda,
Somente o aeroporto
Impede de ficar contigo...
(18/08/2004)
EM DESUSO
Agora o corpo deslustra,
perde tesão, perde viço,
vivo filosofia e Zaratustra
e tudo em volta é feitiço.
Instou-me a largar a vida,
meu estar música e poesia
Ela não sabe que a vida
é amor, futebol, cantoria?
Que eu deixe de vez o chope,
e passe todo o verão a orar...
Mas – veja bem – é o chope
que o meu verão vem regar.
Que abandone o reggae
para me dedicar a Jesus:
como explicar que o reggae
é tudo o que me seduz?
Implorou para não beber
a amaldiçoada cachacinha,
diz quando estou a beber
perco a razão, perco a linha.
Segue a maior lengalenga,
rezando a mesma cartilha.
E só não faz tal cantilena
quando meu corpo partilha.
MENOS
Amor, não diga que me ama,
o que eu preciso é tão pouco:
algumas sementes de romã
e umas lascas de gengibre
para esta garganta que arde.
Um travesseiro de pedras
que detone mil pesadelos
e provoque taquicardias
– o que preciso é tão pouco:
somente diga que me ama.
Não mande as fotografias
das luas e montes de Marte,
que é preciso muito pouco:
só algumas juras de amor,
nos arredores de Cachambi.
Não, não diga que me ama,
apenas recosta a cabeça,
canta a canção desafinada,
sorri esse riso desajeitado
– quem disse que é muito?
Assim posso ir e vir sempre
que a saudade doer lá dentro,
lembrar da torta de camarão,
amanhã despertar a teu lado,
é o que preciso – tão pouco.
PESADELO
Não é maromba urdida
que minha vista abala
nem é verdade boato
ou uma mentira crida,
o que vejo é paisagem,
verdadeiro panorama,
sol no ocaso vermelho
ou será seu nascimento,
a Alvorada do Homem?
umas colinas campinas,
uma árvore só solitária,
umas ovelhas bastardas,
bodes caprinos caprinas,
cavalos éguas e crinas
vela enfunada ao vento,
e sorvendo tudo a TV...
Fica louco quem me lê?
Assim fora eu santo, eu
penso irmão com o vento,
viajar leve a leve passarola
levar a vida tecida enredo,
estar das melhores a medo,
a fim do homem espanto,
o que inverte me invento
rede a pescar outra rede,
paisagem d'outra paisagem,
assim fosse o centro santo,
assim fora eu santo credo
sub cercado de paisagem,
sonho ilusório panorama,
sol se pôr acaso vermelho,
será teu nascimento sim,
a Alvorada do Homem.
SIMPLES
Despenteou os cabelos,
tomou banho na cozinha,
se bronzeou na varanda,
deitou nuazinha na rede,
simplesmente aconteceu:
no domingo ela apareceu.
Minha cama desmanchou,
deitou, mijou, rolou, gozou,
usou o xampu de mamãe,
jantou assistindo novela,
secou as calcinhas na área,
tomou aspirina com uísque.
Foi leve e desesperada,
uma se
as raízes do verde que traz
Este corpo já me pertenceu.
Não sorri, nem lê, nem ouve,
Pertence agora ao reino natural.
Até mesmo a receita não aviada,
A coca semiaberta na geladeira,
O toco de cigarro no cinzeiro,
São partes da mesma fotografia.
É algo tão intransponível o ir-se,
Tão leve – e por fim tão querido,
Exclusivo como a marca digital,
Que o corpo festeja uma prece.
Vivente astro em algum tempo,
A morte faz aparecer no corpo
A dimensão do existenciário:
Está na vida o perene mistério.
DUNAS
As crianças correm pelas dunas de areia fina
desviando os galhos verdes dos pés de murici.
O vento estabanado, cabelos lisos em caudal,
esticando os lábios em sorrisos quilométricos.
Corre menino de areia
Corre direto pro mar,
Corre que o mundo é teia
Pra quem não sabe nadar...
Era domingo sempre, mas o sol não via que era:
crianças livres corriam pelas dunas alvacentas.
A descida é escorregadia, patinam sobre grãos,
imitam anjos de algodão que vive nas nuvens.
Corre menino de areia
Corre direto pro mar,
Corre que o mundo é teia
Pra quem não sabe nadar...
Gritos se transformavam em cantoria musical
arrastados coloridos longe lá onde o som voa.
Antes que as pegadas dos pés miúdos sumam
levada pelo uivo irado do vento, estava o mar.
Corre menino de areia
Corre direto pro mar,
Corre que o mundo é teia
Pra quem não sabe nadar...
Braços abertos são pássaros, marinhas crianças,
enfrentam o desafio mais importante da sua vida.
Para atender o chamado vital do mar, as narinas
dilatadas, correm igual tartarugas recém-nascidas.
Corre menino de areia
Corre direto pro mar,
Corre que o mundo é teia
Pra quem não sabe nadar...
(24/01/2005)
2: BÍLISBLUES
I
Os seres chegados
dos céus se fundem
e quando nada mais
interrompe o voo
o amor que destinam
aos seus é pra sempre.
Agora sim
tenho meu norte
agora tenho a rota
a paisagem retilínea
o contorno e o destino
a vida sem medo.
Sem temer a sorte
a alegria de ser
agora sim
tenho meu norte:
hoje o destino é você.
II
O anjo de prata cintila no alto.
Quem será seu passageiro?
Quem será seu convidado?
O aço da mortalha rebrilha.
Eu o conheço já muito bem.
Faz tempo que ele me segue.
Mereço o seu olhar instigante.
É íntimo como a bala perdida.
Hoje cintila lá no alto o aço.
Como se convidasse a algo.
Ó anjo de prata: vôte! vai-te!
Sei que a folha está secando...
Não ainda sou o teu passageiro.
Nem ainda sou teu convidado.
III
Não vejo mais
a carne
a mulher
o vazio que hoje
reveste o passado.
Vejo o que quer
meu olho ver
sinto que fui
algo despedaçado.
Tal uma coisa
inaudito saber
um sabor
nada mais
lado a lado.
Sei não – quero não
ninguém quer:
quem semeará
o solo bastardo?
IV
Sim, o ocaso... O sol cai no poente...
Um orgulho tolo minh’alma sente.
Viver com arma encostada à cabeça
É algo que vem sem que se peça.
Trespassa a nuca o ardor da dor
Sem forma e sem cheiro e sem cor.
A visão só consegue o vulto baço
Enquanto a carne sente o frio aço.
O gozo desrespeita até o torturado
A dor o transforma em objeto alado.
Unha é lança que perfura o olho
Sangue sobre a carne pão e molho.
É como foder uma alma estrelada
Que faz amor de forma desesperada.
V
Senta aqui.
Como? Estamos
no alto do morro
a apascentar
rebanhos.
Vê? Não há colina
nem rebanho.
O que olhamos
é sempre novo.
Sou guardador
de um rebanho
de livros. Acredita?
O livro salva vidas.
Pra ler o livro,
se embalar na rede.
Fumar um charuto
não precisa luz elétrica.
Senta aqui ao lado.
Somos pastores
guiados pelo vento,
pelo sol, pela chuva.
E pela noite apenas.
É o que deve ficar
na alma, o que se vê
à frente, o que se sente.
Sem olhar pra trás
o rebanho invisível.
O que apascentar?
Se pensamentos,
alegres e contentes,
felizes e alegres,
vêm ficar na alma.
Senta a meu lado.
Pensar não incomoda.
Deixa o vento correr.
Deixa a chuva crescer.
Finge e compreende
além do que se vê.
VI
Dia de limpar
o keyboard
pode ser mais
que trabalho...
Dia de achar
coisas e lousas,
achados e perdidos,
entre as letras
do teclado:
digitais, medos,
unhas roídas,
fiapos, fio dental,
suores, cutículas,
gozos, sangue,
uis de prazer,
fios de cabelo,
perfume,
pedaços de linha,
impressões,
frases de dor,
pegadas,
ais de amor,
a lágrima perdida...
VII
Natureza morta:
eis o que vejo
daqui da janela.
Mamãe pata
passeia com
os patinhos
no quintal.
Que cena bela.
Só dá pena
antevê-los
orfãozinhos.
E a mamãe
fervendo
na panela.
VIII
Amar é fácil.
O que é o amor?
Não odiar já é amar...
Desperta o amor
que nasce dentro
de nós como o vício.
Habilite-se a amar
as diversas faces
e facetas do amor.
Profissão de fé,
irreprimível fé,
nada se opõe a ele.
Fé e amor, crença:
acredite nele, etc.
Nasce quando se nasce
e não morre quando
se morre – sobrevive.
Germinada semente,
para uns, incômoda.
Amar é fatalidade,
mistério da vida
ondas compatíveis.
IX
À noite nos compreendemos.
De dia nos desentendemos.
Desarmonia que cala à noite
quando os corpos se estendem
e a pele aquece o ambiente.
À noite nos compreendemos.
De dia nos desentendemos.
São as palavras criminosas
que nos fazem odiar o dia
e o silêncio da fala assassina.
À noite nos compreendemos.
De dia nos desentendemos.
A desarmonia nos persegue
latindo um isolamento causal
como a visitantes da caverna.
X
Ser poeta é também
ler poesia, muita poesia,
saber o que outros poetas
têm a dizer aqui e alhures,
porque a lavra é uma salada
de palavras e expressões,
é música, som, cor, dor,
o sentimento de cada um
que traslada o sentimento
de todos, de todos, de um.
XI
Bom dia amigo Sol,
pode entrar – a casa é sua!
(Da minha cadeira de rodas
vejo o Sol brilhar na rua.
Vejo a vizinha na janela
falar direto com Deus.
Virada para o nascente
o Sol ilumina seus olhos.
Todo o corpo dela é fogo,
tudo ao seu redor reluz.
Quisera ser a alma dela
que discute com Jesus.
Abre os braços devotos
e o Sol alude-lhe o peito...
Ela então fala com Deus:
– Bom dia, amigo Sol!
Sob o sol fulge na Terra
o doloroso fragor da luz!)
– Bom dia, amigo Sol,
pode entrar – a casa é sua!
3:BLUEBLUES
I
Quem está pronto para viver se a distância
é maior que todos os arquivos da memória?
História – é hora de repassar toda a história,
todos os conflitos e as barbáries da infância.
Antes de pegar a reta do cemitério de elefantes,
toda a glória fica morta no tempo da juventude.
Faz-se mister logo assassinar a viva decrepitude
antes de galgar a rota do cemitério de elefantes.
Quem está pronto para viver se ainda moços
enterramos juntos sonhos e amores colegiais?
Conjuntos e bandas de rock não vingam mais:
pecado, infidelidade, fodas, erros e tropeços.
Antes de curtir a rota do cemitério de elefantes,
trôpegos, cansados, bêbados, como paquidermes,
lembraremos amigos, mulheres, corpos inermes,
antes de correr a rota do cemitério de elefantes.
Quem está pronto? Viver gasta tempo e dinheiro
para comer ruas desenganadas, passado e futuro,
acender no corpo liso da donzela o sentido puro:
ócio, desespero, viagem, inimigos, companheiros!
Antes de carpir a tristeza do cemitério de elefantes
e pousar ali tudo – alma e ossos – esquecer o pesar,
a lembrança da praia, terra, profundeza de mares,
bem antes de ler o roteiro do cemitério de elefantes.
Sem esperar resposta, sem medo de ganhar, perder,
saber da vida o paradigma do instante, aqui, agora,
viver o dobro, espelho e reflexo, fazer sem demora,
só então é o momento – estamos prontos para viver.
II
Primeiro conheci Maria,
que imaginei de cor negra,
mas não era: era azul.
Cor. O que a cor ensina?
Ensina que a cor é uma sina.
Essa Maria que encontrei
minha vida transtornou,
abriu-me novas visões:
– O que era mar, era mar?
Instigou-me a perguntar...
Depois imitava o vermelho,
mas não era: era azul.
(ela nem sabe que é azul).
Sabe o que a cor nos ensina?
Que nossa cor é nossa sina.
Pegou-me assim, rebanho,
sem pastor pra apascentar,
– o retrato bíblico – que fez.
De alguma maneira também,
renascer um outro alguém.
Embrião de nós gerado?
Essa coisa de perguntar
não teve vez entre nós.
Por querer ver-nos além,
logo nasceu outro quem
conectou com nossa voz.
Sem teste sentimental,
era o desejo imaginado.
Nada assim científico:
sentar, ver a paisagem,
como deserto e miragem.
Foi assim, assim sem mais
nem menos: – Sonhamos...
Que o mundo era grande
e qual a maneira também
de replantar outro. Quem?
Maria adotou a cor branca
para receber algo esperto,
preencher o deserto em nós.
Sonhamos mitos pequenos,
foi assim que nós nascemos.
IV
Sonhei que sou Macunaíma
que volto pro meu Uraricuera
nos braços de minha amada
chegado da aventura da vida
retorno ao meu rio amado.
Aqui sou rei – na barra do rio
por entre o coqueiral plantei
a casa sonhada (ao poente)
onde o sol se esvai exangue
sempre descarrega na gente.
Em torno da casa a varanda
e quintal e galinhas e cães
os moleques jogando bola
rede de tucum roupa no varal
e um louro que fala palavrão.
Água de coco abre a matina
peixada e pimenta de cheiro
– Ai que preguiça é sonhar!
isso é que Maria me condena
mas de sonhar não tenho pena.
Linguiça pra enterrar o prazer
caldinho de sururu no entremeio
cachacinha pra apurar o sangue
– E sobremesa? Tem meu sinhô –
doce-de-coco, creme de bacuri.
É sonho de aroma a gosto feito
pra servir o amor e mais tudo
pra ser mais que simples rainha
mulher morena – ouro moreno
de bronze-praia se chama Maria!
Vige Maria! Mulher? Alegoria?
Tem música aqui mais sonora?
Som tão afinado veio de sinfonia?
Violão cavaquinho cordas metais?
Jeito melhor de começar todo dia?
Feito cantar canoro da passarada!
Palavra bonita pro louro repetir!
Pimenta pra temperar o ar do dia!
Repito com potência o chamado:
Maria! Vem armar a rede Maria!
Amar no rio! Amar na rede vem.
O calor a persegue do amanhecer
até findar a luz do dia – Ei! Maria
olha o sol olha o céu em rebeldia
ouve o trovão e tanta chuva Maria.
Maria vem na lua espelho do rio
enfeitar a beleza pagã de Maria
na noite criança das duas luas
Maria sereia na noite remanso
lua azul beleza na Maria bonita.
Ela sem medo no peito se aninha
o jeito marrom pra fechar o dia...
agora brincar de rir um pro outro
a rede canta o coqueiro baila vento
Maria vem brincar e fazer neném.
V
Per omnia secula séculorum Maria
de entranhas permanentes intactas,
finalmente hoje estás a meu lado,
acabamos de fazer amor de rosas,
orem, todos os erros são perdoados.
A pele negra transpira escrava,
pura sensualidade de muito beijar,
recém bem vinda dos pelourinhos
sagrados e ensolarados ó Maria,
mas hoje estamos juntos em casa.
Espíritos da Grécia e do Egito
diferem das almas de Alcântara,
Galícia, de Santiago ou Toledo
a raiz da alma vaga sob o capim
– Maria, sai de mim, sai de mim.
Leva o corpo compungido meu,
livra minh’alma da vida eterna,
horizonte mau, vertente do olhar,
domingo de Ramos, festa, palmas,
horizonte do sal, horto das almas.
Verga, mastro, vela mor, cordame,
nave das almas, espírito oscilante,
sequestra deuses pra garantir vaga
na base de mármore do altar mor,
sangue de sacrifício, alvo, sem cor.
Maria não machuca, não me morde,
tira a boca de sobre a minha glande,
deixa-me suspirar, deixa-me aspirar,
sol do meu sol, luz da minha luz,
magia da magia, carta negra e cruz.
Calmo espírito das almas benditas,
Maria per omnia secula séculorum,
Maria mãe de mim, mãe das almas,
arruína as almas que sobreviveram
à própria ruína e dita a oração viva.
Se alma fosse pedra sem lágrima,
sem fosso, tesouro oculto, ideologia,
derreteria alma criança em voo cego,
garça vermelha no céu azul plúmbeo,
onde a beleza mata a luz que carrego.
Passarinhos pipilam, pombos brancos,
gatos ariscos, cães que não ladram,
ó mãe das mães, ó alma das almas!
padres não rezam missas matinais,
adolescentes ditam amor entre ruínas.
Vê o nobre semblante das negras,
a estatura das Caixeiras do Divino,
o olhar milenar pousado na criatura
vem de longe despertar a tradição,
livre sem medo, livre da escravidão.
Ame a leveza hercúlea, o corpo ágil,
alma nobre que recusa se arruinar,
assusta a ladeira, pedra escorregadia,
debatem garças no clamor do vento,
recusa de moradia o limo do tempo.
Não às almas ruínas, moleques nus
correm descalços, mergulham no rio,
saltam, pulam, cantam gritos alegres,
não há alma em ruína, lavra a criança
uma colheita sem pompa e esperança.
VI
Caros colegas poetas sua atenção,
tenho uma pergunta a fazer.
Eruditos, inquietos, modernos,
digam-me: – A Poesia o que é?
Sim porque em plenos 2000
os filmes falam dos sentimentos,
falam de problemas ecológicos
os filmes falam do amor de nós,
da Terra, berço, nossa estrebaria.
– E a poesia, o que é?
Leio os livros e vejo que os livros
falam das relações interpessoas,
os livros falam dos sentimentos,
os livros falam da liberdade
e da liberdade de expressão,
se importam com o homem,
o seu destino, com seu habitat,
falam a linguagem que entendo.
– Mas, a poesia, o que é?
Ouço as músicas e as músicas
cantam elementos piegas, a dor.
As músicas falam da injustiça,
as músicas cantam a liberdade
a prisão, os problemas sociais.
Critica a sociedade global,
matança, animais, vegetais, física,
as músicas falam das execuções,
de morticínios, violência do poder,
dos grupos étnicos, das minorias,
a música fala a língua que entendo.
– Mas, sim, e a poesia? O que é?
Vejo jornais, revistas semanais,
leio seções culturais e crônicas,
o tema é sempre o sentimento,
a vida do homem e da mulher,
a dor e os sentimentos da criança,
a fome, a sede de viver, o mundo,
a fome e a sede de liberdade,
a crítica ao controle de nós,
fala o idioma, o tempo presente.
– Mas, sim, o que é? A poesia, o que é?
Mil câmeras estão nos vigiando,
a cada esquina da cidade,
alta definição, alta tecnologia,
espiam a íntimidade e pecadinhos.
Satélites impõem cada vez mais
o mundo sobre nós, nos condenam
e sabem a hora em que mijamos,
fazemos as necessidades básicas,
como cagar, comer, foder, violará
o segredo da masturbação antiga
que exigia discrição absoluta.
– Sim, mas e a poesia? O que é?
Até a tal TV, criminosa de nós,
até mesmo na TV andam fazendo
novelas e séries falando de amor,
das relações interpessoais,
do progresso entre os homens,
da violência contra as periferias...
Entre um desenho de Tom&Jerry
e uma propaganda de lingerie,
entre um truquezinho e outro,
cada qual mais escabroso,
a TV fala a língua que entendo.
– Mas a poesia? Sim, poesia, o que és?
Até a TV! Imaginem! A TV!
A TV, criminosa de todos,
deve minutos de preocupação
com o paupérrimo ser humano
que precisa de mais algumas
vidas para ser feliz, mas a poesia...
Sim, socorro senhores magos,
cultos colegas poetas e poetisas,
letrados, professores, profissionais
da alma humana, respondam-me:
– A Poesia, o que é? O que é a Poesia?
VII
A vida é um blues negro.
Se já foi azul um dia
quando será azul de novo?
Os dias são noites vazias,
os prazeres são açoites.
Quando voltará a alegria?
Quem reza é o robô branco.
Será que já foi povo um dia?
Quando será o dia novo?
A vida é um blues negro.
Se já foi azul um dia
quando será azul de novo?
A alma viverá armada?
Em grades, celas, redis,
só guardaremos fuzis?
Viver, errar, sobreviver?
O homem quer habitar
o espaço do homem novo.
A vida é um blues negro.
Se já foi azul um dia
quando será azul de novo?
Os passos são os rastilhos
sem fé, dor e consolação.
Quem puxará o gatilho?
É ser do bicho o sorriso.
Quando o corpo sorrirá?
Quando o rosto sorrirá?
A vida é um blues negro.
Se já foi azul um dia
quando será azul de novo?
VIII
Sim. Bem sei quem tu és.
És o meu Anjo da Guarda.
Que não me deixa morrer
afogado no mar de felicidade.
O que me livra do mal,
mal de viver de amor.
Aquele que me protege
da presença da amada.
És quem não me deixa viver
a vida como um turbilhão.
Que me mantém prisioneiro
para não gozar a liberdade.
O que me tira o peso da fé,
que me inculta a bondade.
Aquele que me protege
da vida eterna e juventude.
O Anjo que guarda o fígado
contra o mocotó e a cachaça.
És quem segura o gatilho
e mantém os olhos abertos.
Aquele que me dá asas
quando não quero voar.
Que me mantém cativo
dos prazeres da emoção.
O que plantou o cérebro
no centro do coração.
Se és meu Anjo da Guarda
– por que te odeio tanto?
IX
Feche o sol
apague a lua.
Temos o quê?
O homem nu
despido de cor
e eternidade.
Temos o cu
a fome, o ódio.
– Então diga
o que gritar?
---
Iba Mendes Editor Digital
www.poeteiro.com
São Paulo, 2023.
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