A VOZ DO SINO
À suave memória de
AFONSO ARINOS
I
Tarde triste e silenciosa
De vila de beira-mar:
Uma tarde cor-de-rosa
Que vai morrendo em luar...
Ao longe, a várzea cintila
De uns restos de sol poente:
Mas, por sobre toda a vila
— Do morro a que fica rente
Desce uma sombra tranquila —
E anoitece lentamente.
Não aparece viv’alma.
Nem rumor da natureza,
Nem eco de voz humana
Perturba a infinita calma,
A solitária tristeza
Da pobre vila praiana.
Nem se ouve o mar, longe, e manso.
A tudo, em redor, invade
Um ar de mole descanso...
Silêncio... Imobilidade...
Como que, interrompida,
A correnteza da vida
Fez neste ponto um remanso.
De súbito, rumoreja
Violentamente o ar:
Na torrezinha da igreja
Rompe o sino a badalar.
Ponho-me atento, a escutá-lo:
Que diz, alto e repentino,
Esse bater de um badalo
Num sino?
Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Aves, já nenhuma voa:
Dormem: e vais acordá-las
À toa...
Vais espantar quanta moça
Aí pelos arredores
Depois de um dia de roça,
De enxada e de soalheira,
Dedica a tarde ligeira
A tarefas bem melhores;
Pelas discretas beiradas
De alguma fonte; fiadas
Na proteção pitoresca
De ramagens, folhas, flores;
Que fazem elas? Coitadas,
Bebem, nas mãos, água fresca...
Lavam as caras tostadas...
Ou cuidam dos seus amores...
Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Olha que vais espantá-las
À toa...
Badalas... E eu que te falo
Não sei e nem imagino
Que pretendes tu, badalo,
A bater, bater no sino.
Talvez convoques à ceia
Pescadores que, lidando,
Nem viram que entardeceu;
Algum se estendeu na areia
A descansar; senão quando,
De cansado adormeceu...
Badala-me assim, badala:
Esperta este dorminhoco;
Que ou ele, acordando, abala,
Ou fica dormindo — e em troco
Da sua madraçaria,
Chegando à casa atrasado
Acha no fogo apagado
A caldeirada já fria.
Badalo que assim badalas
No sino que assim atroa,
Porque é que tão alto falas
À toa?
A andar com menos demora
Talvez tua voz compila
Certo rei dos mandriões
Encarregado em má hora
De, nas três ruas da vila,
Acender os lampiões...
Chamas, talvez, ao seu posto...
Quem? algum camaroeiro
Retardado e mal disposto
A seguir para o pesqueiro?
Badala-lhe que é sol posto,
Que a luz cheia está fora,
Que, com pequena demora,
Vai a maré a vazar:
Para chegar à costeira
Tem ele uma légua inteira
De caminho a caminhar,
Vencendo-a de combro em combro,
De atoleiro em atoleiro,
Com o remo e o puçá no ombro
E, na mão, o candeeiro...
Ruidoso sino da vila!
E é por coisas tão vulgares
Que atroas assim os ares
De uma tarde tão tranquila?
II
Badalo que assim badalas...
Que voz de repente soa
Acompanhando-te as falas
À toa?
É voz de gente que canta...
De gente... E parece tanta.
Da humilde igreja irradia
E para o céu se alevanta
A reza da Ave, Maria.
As vozes e as badaladas
Confundem-se... Misturadas
No fervor da mesma prece,
Sobem juntas para o ar
Onde a lua resplandece
E a noite, imensa, parece
Feita do alvor do luar...
Sobre a soleira da porta
Da casa pegada à minha,
Vejo sentada a vizinha:
Moça, e bonita... Que importa?
Tem nos braços o filhinho;
Fala-lhe, toda carinho;
Ele ouve; sorri, depois,
Responde-lhe, balbucia...
E, de mãos postas, os dois
Murmuram a Ave, Maria.
Ante meus olhos perpassa
Uma visão: imagino
Maria, cheia de graça,
Jesus, loiro e pequenino.
Uma tarde cor-de-rosa...
Uma vila assim modesta,
Assim tristonha como esta...
De pescadores, também...
Sobre a planície arenosa
Por onde o Jordão deriva
Pousa a sombra evocativa
Das montanhas de Siquém...
À porta de humilde choça,
Uma mulher... Quem é ela?
É pobre... é jovem... é bela...
E é Mãe: comovida, a espaços
O seu sorriso se adoça,
O seu olhar se ilumina
Para a figura divina
Do filho que tem nos braços.
Mostra-lhe, à noite que estrela
O céu e que a terra ensombra,
Como a terra é toda sombra
Como o céu é todo luz...
E o filho, enlevado nela,
Em êxtase balbucia...
A primeira Ave, Maria
Quem a rezou foi Jesus.
Sigo o meu sonho... imagino
Que, por todas essas roças
Aonde chega a voz do sino,
A sombra triste das choças
Frouxamente se alumia
Da vela de cera acesa
Ante uma Virgem Maria
Tendo nos braços Jesus.
É a hora augusta da reza...
Mães, pobres mães andrajosas
De filhinhos seminus,
No chão de terra ajoelhadas,
Dizem coisas misteriosas,
Palavras entrecortadas
De mágoa que se lastima,
De súplica, e de esperança
A essa outra Mãe que, lá em cima,
Na glória do céu, descansa
Do que passou neste mundo.
Ela que, com o mesmo eterno
Requinte do amor materno,
Sorriu a Jesus criança,
Chorou Jesus moribundo,
Lá, do alto céu infinito,
Olha com olhos de Santa
E de Mãe que já sofreu
Tanto coração aflito
Que se volta para o seu.
Na roça a miséria é tanta...
Quanta pobre gente, quanta,
Expia o ser mal nascida
Cumprindo a pena da vida
Como pregada a uma cruz;
E, na angústia que a quebranta,
Somente espera e antegoza
A proteção milagrosa
Da virgem Mãe de Jesus!...
Na roça a miséria é tanta...
E cada choça sombria
Para o claro céu levanta
A reza da Ave, Maria.
Não, tu não falas à toa;
Errei, confesso-o... Perdoa,
Ó sino humilde da vila,
Que assim badalas, badalas,
Na paz da tarde tranquila;
Ó sino, que também rezas,
Ó sino, que tanto falas
À terra, toda asperezas,
Como ao céu, todo luar,
Chamando, com o mesmo zelo,
Cada infeliz — a rezar,
Nossa Senhora — a atendê-lo.
Consolador de tristezas!
Semeador de esperanças!
Aqui nestas redondezas
Não há vida tão bonanças
Nem casebre tão remoto
Onde quanto o sino diz
Não abençoe um devoto,
Não console um infeliz...
Por essas várzeas tão ermas
Onde, perdidas e sós,
Há tantas almas enfermas
De desesperos sem voz,
Onde tanto desdenhado
De Deus, que decerto o olvida,
Vive, até morrer, vergado
Ao peso da própria vida,
Vais chamar, em altos gritos
— Como se fosse a um dever —
Desamparados e aflitos
— Para o consolo de crer.
E de casebre em casebre
Onde gente, a vida inteira,
Vive de trabalho e febre,
Morre de fome e canseira,
Afirmas à angústia surda
Do mísero tabaréu
Que o brejo em que ele chafurda
— É um caminho para o céu.
A cada pobre praiano
Que, na sua dura lida
De afrontar o largo oceano,
Vive de arriscar a vida.
Tu, consoladoramente,
Falas para lhe lembrar
Que há quem reze por a gente
— E há céu por cima do mar...
Da mesma igreja alvadia
Evolam-se as badaladas
E a reza da Ave, Maria.
Evolam-se...Misturadas,
Sobem juntas para o ar
Onde, pálida e sozinha
Tão alva, que resplandece,
Tão só, que vai a sonhar,
Caminha a lua, caminha,
E o céu, imenso, parece
Feito de sonho e luar...
Humilde sino da vila,
Que assim badalas, badalas,
Na paz da tarde tranquila;
Não, tu não falas à toa
Não, tu não falas à toa:
Percebo o que a quem falas,
Perdoa!
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