A SOMBRA DO QUADRANTE
EPÍGRAFE
Murmúrio d’água na clepsidra gotejante.
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio d'areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre.
Homem, que fazes tu? Para que tanta lida.
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida.
Um som d’água ou de bronze e uma sombra que passa.
INSCRIÇÃO
(A Luís de Magalhães)
Arqueado sobre a límpida corrente,
Ria um fauno da própria carantonha,
Soprando folgazão em verde cálamo.
Quando, na oposta margem, de repente,
Viu a figura esbelta mas tristonha
D'Ênio, que abria uma inscrição num álamo.
Pôs-se o fauno a espreitar, quedo e matreiro,
E assim que o pastor grave se afastou
Como um espectro na bruma vespertina,
Galgou dum salto o murmuro ribeiro,
E alçando-se nas patas soletrou
No prateado tronco esta sextina:
Sequioso, hoje, ao curvar-me duns barrancos,
Para beber em cristalina fonte,
Que entre agriões canta e fulgura, a rir,
Vi que já tenho dois cabelos brancos!
Assim, longe de ti, na minha fronte
As saudades começam a florir...
PASSEIO NOTURNO
Levanta-te, Psiquê! Nem um só astro esplende
Na abobada tranquila...
São horas de partir. Toma o teu manto, e acende
A lâmpada d'argila.
Vamos correr de novo os saudosos caminhos,
Cemitérios d'esperanças,
Onde passamos rindo a colher flores e ninhos,
Como duas crianças...
Quero voltar à fonte onde em calmoso dia
Marta nos apareceu;
A roseira que lá com mil bocas sorria,
Já de certo morreu...
Quero ao cedro voltar, que imperava sombrio
Num monte áspero e bronco,
A ver se o tempo as duas letras já sumiu
Que eu lhe gravei no tronco...
Sentar-me-ei contigo, um instante, no musgoso
Cume da pedra brava
Donde vimos minguar ao longe o vulto airoso
D'Inês que nos deixava...
Do jardim de Leonor quero rever as dálias,
E as pervincas na balsa...
Mas que fazes, Psiquê? P'ra que atas as sandálias?
Vem mesmo assim, descalça!
Temes o abrolho, que escondido dilacera?
Dos cardos a rudez?
Está coberto de cinza o chão que nos espera:
Não magoarás teus pés...
TRISTÍSSIMA
No teu perfil de anjo mortificado
Puíra sempre uma nuvem de tristeza,
Que bem fundo me abala, pela incerteza
Pungente e viva, de eu a ter causado.
Talvez teu coração desconsolado,
Vendo o meu tão pobrinho de beleza,
Sinta a dolorosíssima surpresa
De quem desce dum sonho albirrosado.
Magoam-te, meu bem, velhos abrolhos?
Tens saudades de alguém que está ausente?
Ah! permita o Senhor, ó pura e doce,
Que essa tristeza venha de os teus olhos
Terem debalde olhado, longamente,
A estrada pela qual o Amor me trouxe!
SAUDADES
Cada uma das palavras que vais ler
Com olhos de divina claridade,
Leva-te, meu encanto, uma saudade
Mais triste do que as rolas a gemer.
Poucas, bem poucas são as que, a tremer,
Aqui te escrevo, ó toda suavidade,
Mas fossem mil, não foram nem metade
Das saudades que enturvam meu viver.
Se, arrancados, meus olhos lacrimosos
Pudessem ver os teus, tão misteriosos,
Que ao vê-los tudo em sonhos se converte,
De só por ti chorarem nunca fartos,
Arrancara-os eu já, para mandar-tos,
Feliz de me achar cego para ver-te!
HORA SUPREMA
Daria de bom grado
Trinta ou quarenta dias do futuro,
Se o pudesse fazer,
Para, moço outra vez, do meu passado,
Ingênuo, crente e puro,
Três horas, ires somente, reviver.
Na primeira das três,
Aquela revivera, azul, celeste,
Em que, rósea de pejo.
Com infantil, quebrada timidez,
Suavíssima me deste.
Sob as magnólias, o primeiro beijo.
Ao chegar da segunda,
Que ponto no passado evanescente
Tomara eu por mira?
Sentindo uma emoção doce e profunda,
Extasiadamente,
Da primeira as doçuras repetira.
Cavamente sonora.
Soaria a terceira: tudo em pó
Se desfaz, de fugida...
E eu sempre a reviver a mesma hora,
Que, sendo uma hora só.
Tem sido, é e será toda uma vida!
ROMPIMENTO
Mandas-me as prendas que te dei outrora;
Aí vão aquelas que me deste um dia...
Seja! acabe-se tudo... e que a alegria
Doire essa grácil cabecinha loura.
Aí vai o lenço onde, orvalhada aurora,
Choraste, uma manhã, quando eu partia,
E a mecha de cabelos, luzidia,
Dada em risonha, inolvidável hora.
Aí vão as rosas, onde a tua boca
Pousaste, afável, antes que m'as desses,
Certo dia em que eterno amor juramos...
Nada mais tenho teu; é finda a troca,
Se o desejo não tens (ah! se o tivesses...)
De destrocar os beijos que trocamos...
O ERMITÃO
(A meu irmão Luís de Castro e Almeida)
Joseph de Sá Pereira, Ermitão
que atualmente era da Capela
da Virgem Nossa Senhora de
Entre Águas.
(Certidão de óbito).
Esse Joseph de Sá, meu quinto avô,
Fidalgo altivo e caçador de fama,
Cumprindo o que jurara à sua Dama,
Fez-se humilde ermitão quando enviuvou.
Na ermida, entre águas, relembrava só
A que dormia em funerária cama;
Na memória, porém, inquieta e em chama,
O rosto dela aos poucos se apagou...
Mas a Virgem, sorrindo com deleite
Ao que tão bem, tão plácido, a servia,
As tardes, quando o ermitão cansado
Ia espertar a lâmpada de azeite,
Com as feições da defunta lhe aparecia,
Como ela as tinha ao tempo do noivado.
À VOLTA DA FONTE
(A João de Vilhena)
Volta da fonte a donzelinha airosa,
Ao musical esmorecer do dia,
Mas volta grave, lenta e lastimosa.
Com a urna vazia.
Secou a fonte! Nem um leve fio
Cai da limosa bica... De hoje em diante,
Para ter água, terá de ir ao rio
Que fica bem distante...
Não é isso porém o que de espinhos
Veste seu peito e a afoga em tristes ânsias
Os seus pés são ligeiros passarinhos
Sorriem das distâncias...
O que a fere e lhe aumenta a palidez
É que o seu moço e esbelto namorado
Faltou — ai dela! — pela primeira vez,
Ao encontro ajustado.
Vazia, agora a urna mais lhe pesa
Do que nas tardes em que vinha cheia;
Flores, nem uma traz... É a Tristeza
A arrastar-se pela areia...
Chama-a de longe o rio desejoso,
Mas ela que parou não sei porquê,
Sequiosa a boca e o coração sequioso.
Nem o ouve nem vê...
Detém-se um pouco e parte... De repente,
Ouve um arroio chilreando: taciturna,
Sem se curvar, prossegue, indiferente,
Sempre vazia a urna...
Nem viv'alma! Silêncio atroz, profundo.
Parece à triste, vendo-se tão só,
Que morreu toda a gente neste mundo,
Que só ela ficou...
Para a sede da boca, longe ou perto,
Há sempre água, nos campos, nas cavernas;
Até no adusto, no infernal deserto
Há oásis com cisternas.
Mas para a sede da alma, se algum dia
Seca a fonte d'amor, que lho concede.
Não há senão, após lenta agonia.
Senão morrer de sede...
Para a alma que extática se dobra
Ante a fonte escolhida em sítio ameno,
A água de outras fontes é salobra,
Quando não tem veneno...
O JAZIGO
(A Antônio Viana)
Assim fazia Santa Ida Duquesa
de Saxônia, que mandando
em vida lavrar de mármore o seu
jazigo, todos os dias o enchia de
diversas coisas de comer, e vestir,
e as distribuía pelos pobres.
Pe. Manuel Bernardes: Exercícios Espirituais.
Diz a Princesa loura, surpreendida
Pelos olhares de seu esposo, agrestes:
— “Que espanto, o vosso! Pois não me dissestes
Que era uma doida e dava sem medida?
Este jazigo então comprei, rendida
Aos severos conselhos que me destes,
E nele meço o pão, dinheiro e vestes,
Que aos tristes dou de miserável vida.
Alqueire de piedade, e caixa, um dia,
De cinzas funerais, tangem violas
Em torno dele serafins alados...
Vossas ordens cumpri como devia:
Seja medida agora das esmolas
O que breve o será de meus pecados.”
OLHANDO AS NUVENS
Ao comparar, Lucinda, o teu novo retrato
Com o outro que me deste há um mês, indo-te embora,
Em dúvidas cruéis me perco e me debato,
Pois ou um deles mente, ou tu és outra agora.
Não és a mesma, não! O teu sorriso tem
A mesma graça; a fronte e a boca voluptuosa,
O colo e as finas mãos são como eram... porém,
Tens a mais não sei quê, falta-te qualquer coisa.
O que é que te mudou, o pesar ou a doença?
Seriam da saudade as frechadas agudas?
Como foi que num mês fizeste assim diferença?
Como serás daqui a um ano, se assim mudas?
Ante os retratos, flor, meu peito mal suporta,
Cheio de confusão a mágoa que o trucida:
Aquele que eu já tinha é um retrato de morta,
E o que hoje recebi, duma desconhecida!
Enquanto assim padeço, ao céu os olhos ergo,
Ao céu, lagoa azul onde as velas são asas...
Vejo as nuvens correndo... e nas nuvens enxergo,
Inflamado pelo sol, um castelo de brasas.
O castelo rutila em faustoso lampejo,
Qual torre de cristal onde dorme um tesouro;
De súbito, porém, sem saber como, vejo
O castelo mudado em lucífero touro.
Mas no dorso do touro uma Deusa se deita,
Sob o fardo divino eis que o touro galopa,
E assim, no céu aonde a lua ansiosa espreita,
Parece-me ver Zeus arrebatando Europa!
Deusa e touro depois transformam-se em navio,
Buscar o Velo d'Ouro os Argonautas vão...
Desfaz-se a nau solene, e em nobre desvario
O amante de Medeia acutila o dragão!
Mas já a noite desce... E a nuvem destroçada.
Que foi castelo a arder, touro, mulher divina.
Nau, herói e dragão... ei-la enfim desdourada.
Triste e sombria como um fumo d'oficina...
Deste espírito enfermo os debates danados
Param: a nuvem alta aplacou-os, desfez-mos...
— Como a nuvem do céu, morremos aos bocados,
Como a nuvem do céu, nunca somos os mesmos...
Viver, agonizar... Cada instante é uma cova!
Um beijo é o falecer gostoso dum desejo...
E se te beijo a boca aromática e nova,
Não sou o mesmo já que te pedira um beijo!
Somos um para o outro, amor, qual fugidia
Sombra d'ave que passa em cristalina veia...
Ai de ti! ai de mim! Um olhar é uma agonia,
E a palavra é na boca o estertor duma ideia!
Quantas vezes cerrei os olhos, comovido,
A ouvir a tua voz de prata! e ao despertar,
Parecia-me, meu bem, que me tinhas fugido,
E que outra se sentara ali, no teu lugar!
Nunca encontrei nos lábios teus o mesmo gosto,
Fonte onde vão beber à tarde os meus revezes...
Mil rostos tenho visto em teu magoado rosto,
E lábios mil beijei, se te beijei mil vezes!
Sou o mesmo para ti! Veloz, o tempo flui,
E ai quantos homens já em mim agonizaram!
Afinal o que sou? A campa do que fui!
Mil vezes te beijei? Mil homens te beijaram!
Ai de mim! ai de ti, pérola! Foi traçado
Que os nossos corações, mal noivem, logo enviúvem
E ai! quanta, quanta vez temos enviuvado,
Ó nuvem para quem sou também uma nuvem!
Ó morta, ó viúva, ó noiva! ó beleza celeste,
Beleza que só és na inconstância constante!
Afagando-te agora, o remorso me veste,
Pois julgo atraiçoar a que eras há um instante!
Não mudes mais, por Deus! És o monte de neve
Que se transforma quando o sol o descongela:
Teu mavioso olhar é um relâmpago breve,
E eu quisera mudado o relâmpago em estrela!
Para! não mudes mais! Só tens de fixo o nome!
Lucinda, ao ver-te assim de hora em hora mudada,
De tal modo enlouqueço e a febre me consome,
Que te quisera ver aí petrificada!
Invejemos, Lucinda, as estátuas que a Arte
Ergueu, num repto audaz aos ventos do porvir!
Fora eu uma estátua, e pudesse beijar-te!
Foras tu uma estátua, e pudesses sorrir!
Se fôssemos de Jaspe! Eu, Sátiro amoroso,
E tu, Ninfa gentil, nos meus braços tremendo!
Mas o que peço eu? Delírio doloroso!
Resignemo-nos, flor, continuemos morrendo...
Quando a Morte aclarar os supremos mistérios,
Das nossas almas vendo o lamentável fundo,
Encontraremos lá dois grandes cemitérios.
Mais vastos que o maior cemitério do mundo;
Cemitérios aonde, em grupos esfumados,
Pisando um trilho só de saudades florido,
Os mil fantasmas errarão, desconsolados,
Dos mil amantes que até lá teremos sido!
O ELMO
(A Carlos Malheiro Dias)
O campo que aí vês, teatro duma guerra
Há muitos anos foi:
Cada passo dos teus nesta fecunda terra
Mede a campa dum herói!
Olha a seara d'ouro, olha os cachos dourados
Da vinha bela e forte!
Campos férteis não há como os que são lavrados
Pela charrua da Morte...
Onde o sangue correu e a traição virulenta
Rastejou na poeira,
Arrulham pombas na folhagem da cinzenta,
Pacífica oliveira...
Espelho oculto dos sons, o eco destes montes
Redisse ais e estertores;
Mas hoje só repete o chalrear das fontes
E o clamar dos pastores...
Aqui foi que, há um instante, à sombra densa e grata
D'alto chorão virente,
Entre ervas e calhaus, um elmo achei de prata.
Lavrado finamente;
Elmo estranho, que o vento ou que um baldão do acaso
De negra terra enchera,
E onde, como em bojudo e caprichoso vaso,
Pálida flor nascera.
Antigo protetor da fronte nobre e ousada
D'algum moço guerreiro,
Sentiu-a latejar, doidamente abrasada
Num sonho carniceiro:
Protegendo-a, sentiu dentro de si a voz
Da crueldade hirsuta,
Ímpetos de extermínio e de vingança atroz,
Estos de fera bruta!
Mas o herói baqueou: golpe certo e profundo
Prostrara-o num momento!
E o elmo ouviu então do moço moribundo
O último pensamento,
Que alçando-se no ar, como ave luminosa
Foi para longe a voar.
Até cair aos pés duma donzela ansiosa,
Que se pôs a chorar.
Sonhos de glória e vós, ódios que nos tornais
A vida em escuro inferno,
Sois uma cinza vã, sois cinza e nada mais:
Só o amor é eterno!
De quanto palpitou no elmo refulgente
Só não morreu o amor,
Que simples, virginal, balsâmico e inocente,
Revive nesta flor!
FLORES SECAS
Um livro que é um herbário! Ressequida?
Doce aroma suavíssimo exalando,
Folhas e flores estão assinalando
As passagens do texto preferidas.
Nestas páginas, horas esquecidas,
Que de sonhos andamos levantando!
Mas tu morreste, lírio puro e brando,
De olhos leais e mãos compadecidas!
Este feto recorda-me um domingo,
Nestas avencas teus dedinhos vejo,
Nestas algas, do mar ouço a canção...
Mas se olho estes jasmins, já não distingo
O que me deste com o primeiro beijo,
Daquele que tirei do teu caixão!
SOB OS OLHOS DE DEUS
(Aos meus amigos Conde de Arnoso e Conde de Sabugosa)
Esposos de irmãs, irmãos pela amizade,
Na honra e brio irmãos, quis o Senhor
Irmanar-vos ainda numa dor
Maior que a da viuvez e a da orfandade.
Um perde a filha em plena mocidade,
Da beleza e da graça em pleno alvor;
Perde o outro um filho, exemplo de valor,
Maravilha fatal da nossa idade!
Tristes pães sem ventura, que, abraçados,
Do cemitério percorreis os trilhos
Todos cheirosos a cipreste e a goivos,
Vossas frontes erguei aos céus dourados.
Onde agora talvez os vossos filhos.
Sob os olhos de Deus, caminhem, noivos!
CREPÚSCULO
(Ao Conde de Monsaraz)
O anjo esbelto que o sol dourava ainda há um instante
Na grimpa airosa e audaz da catedral sombria,
Anjo de ferro agora, imóvel, dominante,
É o anjo da Saudade e da Melancolia.
Tristes como quem vai caminho do desterro,
E silenciosas como a própria paciência,
Ajoelhadas aos pés daquele anjo de ferro,
As casas fazem seu exame de consciência...
Ódios, ânsias d'amor, revoltas com a desdita,
Glórias feitas em pó, sonhos cor das estrelas,
Quanto os seus corações palpitantes agita
Tudo se mostra nos seus olhos, as janelas.
Uma, aberta, vejo eu naquele prediozinho,
Que me enche de amargura e comiseração:
Ali dentro morreu ontem um meu vizinho
Que deixou a mulher e três filhos sem pão.
Como eu cálculo o quarto! As mesas atulhadas
De remédios; um Cristo; o espelho quedo, absorto
No chão pingos de cera e rosas desfolhadas,
E a um canto, num cabide, os casacos do morto.
E para além desse quarto adivinho uma sala
Onde a viúva abraçada aos órfãos sonolentos
Finge ouvir semitonta uma velha que fala.
Em suspirosa voz, nos seus padecimentos.
Adiante, um rés-do-chão. Vê-se pela vidraça
Uma alcova de pobre, arranjadinha e calma:
Lá dentro uma mulher, toda brandura e graça,
Despe, beijando-a muito, a filha da sua alma.
A menina boceja, ergue os braços ao ar.
Treme ao ver-se em camisa, e a boa mãe piedosa
Junta-lhe as mãos em prece, ensinando-a a rezar,
E aninha-a nos lençóis... Deus a faça ditosa!
Naquele esmadrigado e negro pardieiro
Sabeis quem mora? É a mulher de Pedro Sem
Ei-la à janela a olhar, a olhar no nevoeiro.
Pobre! que tanto teve, e agora nada tem!
E o que ela roga a Deus que faça a noite espessa,
Que oculte em nuvem densa a prateada lua.
Para que possa, sem que alguém a reconheça,
ir postar-se a pedir à esquina duma rua!
A seguir, um palácio. Ao retângulo ardente
Duma sacada surge a fronte esmaecida
D'alva donzela que olha a rua cegamente,
Como um pobre a buscar uma moeda perdida.
Ai da moça gentil que em cruéis agonias,
Erguendo os olhos só para os fixar no céu,
Inutilmente aguarda o noivo que há três dias
Abalou taciturno e não mais apareceu!
Passos andados, eis-me a fitar com tristeza
A silhueta febril dum homem desgrenhado,
Que em repetidas contorções de fera presa
Passa e torna a passar num estore iluminado.
Bem sei, bem sei quem és, trágico passeante,
Poeta ingênuo como os lírios da manhã;
Conheço a tua dor: fugiu-te a loira amante,
Ó desgraçado suicida d'amanhã!
Em lobrega mansarda alguém chora e soluça:
Uma esposa infeliz, em contorções de dor,
Toda se estende lá de cima e se debruça,
Esperando o marido que é — ai dela! um jogador!
E o seu chorar tem eco! Outro vulto franzino
Chora e soluça ali, numas águas-furtadas:
Aflita mãe aguarda o filho libertino,
Tremendo de o saber preso ou morto às facadas.
Mas mais triste que a viúva e que a noiva traída,
Que o amante abandonado e a receosa mãe,
É aquela mulher tão nova e envelhecida,
Que olha não sabe o quê, espera não sabe quem.
Bordadora ou rendeira (os seus dedos de flores
Revelam claramente um mister delicado),
Movendo a agulha d'ouro ou os bilros faladores,
É seu triste viver o de um rio parado.
Moça, mal começou seu peito a arredondar-se
Como onda de jasmins e delicadas rosas,
Logo um sonho d'amor pegou a desenhar-se
Na sua alma infantil, em cores maravilhosas.
A par iam crescendo em beleza e alegria
Seu corpo virginal e o sonho que a enlevava:
— “Será hoje, será?” cada manhã dizia,
E cada noite pelo outro dia suspirava...
Mas o Amado não vinha, e o tempo ia correndo
Com duros pés sobre seu peito solitário;
E ela sempre a esperar, sempre a esperar, não tendo
Outros amores senão um craveiro e um canário.
E o tempo a galopar! Seus olhos mal enxutos
Buscam doidos, em vão, outros com que sonhou...
Pobre árvore gentil de aromáticos frutos.
Nascida num deserto onde ninguém passou!
Ninguém a viu, ninguém a vê! Desgraça imensa!
Virgem branca, pela dor que a oprime é uma viúva,
E o seu sonho d'amor ante aquela indiferença
Bruxuleia, a morrer, como uma luz à chuva...
Noiva, com que ternura honesta e chilreante.
Do marido implorara os cândidos desejos!
Mãe, como ela beijara o louro filho! e amante.
Que embriagante mel não teriam seus beijos!
Porém, ninguém a vê! Em célere carreira,
Tomado o tempo vai de infrene desvario,
E hoje a triste, ao pentear a longa cabeleira.
Entre os cabelos d'ouro uns dois de prata viu!
É noite. Rompe o luar. Da gente que ali passa
Ninguém a vê, tão doce e pálida, ninguém!
E ela, colada a fronte alvíssima à vidraça.
Olha não sabe o quê, espera não sabe quem,
E no meio do seu angustioso sossego,
Pede, juntas as mãos, um sobressalto forte,
Venha ele, que importa? em tropeções de cego,
Pelo braço do Amor ou pela mão da Morte!
DIAMANTES E PÉROLAS
(A D. Júlio Nombela y Campos)
(Sobre uma passagem do Padre Manuel Bernardes alusiva à morte de Filipe II de Espanha)
O soberbo monarca, em vasto leito
D'ébano e d'ouro, jaz agonizante;
Seu filho, que soluça, traz brilhante
Roupa de seda e o Tosão d'Oiro ao peito.
Os cortesãos de conturbado aspecto
Ostentam finas drogas do Levante,
E no anel dum bispo roçagante
As gemas fulgem com discreto jeito.
Mas nisto, o moribundo, abrindo os olhos
Cheios de estranho, de inspirado brilho,
Arreda o lençol branco e transparente,
Mostra o seio coberto de piolhos,
E ao filho diz: — Vê no que deram filho,
Os diamantes e as pérolas do Oriente!
O QUADRANTE
Por que não entras tu no meu jardim um instante?
Nunca vi tarde assim, de tanta suavidade,
E na minh'alma chora uma sede abrasante
De amar com singeleza e com terna humildade.
Entra. Não tenhas medo. Hesitas? Fui, é certo,
Assomado, violento e surdo à tua dor.
Quando às pedras lancei, em fatal desacerto,
A âmbula de cristal que enchêramos d'amor.
Mas se tão duro fui, tu que tão meiga eras,
Por capricho infantil, vestiras-te de gelo,
E amando-me com a força invencível das heras,
Simulando desdéns, folgavas em escondê-lo.
Cobiça a criancinha uma boneca linda:
Dão-lha. Que amor lhe tem! Não há fruto nem joia
Que a tentem! Dura isto um dia, e um dia ainda...
Mas ao terceiro, enfim, num ímpeto, destrói-a!
Eu e tu, loira amiga, essa criança fomos,
Destruímos nosso amor, malfadada boneca!
Fugindo dum pomar onde eram d'ouro os pomos,
Rilhamos, por castigo, urzes duma charneca!
A Ventura passou, modesta e com sossego,
Junto de nós que não a vimos, sob os freixos,
Cegos, tão cegos como o pobrezinho cego.
Que pisasse dobrões, julgando pisar seixos!
Mas tudo isso se extingue em neblinas distantes,
E o bom tempo adoçou as mais amargas dores:
Perdoemo-nos, amor, e amigos como dantes,
Vamos neste jardim perder-nos entre as flores!
Íris, fúcsias, jasmins, o cacto e a clematite
Porfiam em prender os teus olhos românticos,
E açucenas às mil dizem-nos, Sulamita,
Que entoemos de novo o cântico dos cânticos!
Mas que silêncio é o teu? Não viste a comoção
Que me sacudiu quando há pouco te encontrei?
Não acreditarás na minha contrição,
Nem me perdoarás como eu te perdoei?
Esse silêncio é orgulho! Uma paixão imensa
Ateia-se em tua alma ardente e lastimosa:
Olham-me os olhos teus com fingida indiferença
Mas tua mão na minha estremece nervosa!
Beija-me! Assim, assim... Que lânguido alvoroço!
Milagre! Ouço florir meus tristes desenganos!
Beija-me! Aos beijos teus, estranho-me, remoço,
Julgo ter outra vez os meus vinte e dois anos!
Choras? De novo és minha!... Oriental tesouro
Se oferece ao rei sem trono, enfermo e mendicante!
Sossega, meu amor; limpa os teus olhos d'ouro,
Senta-te aqui um pouco, e olha aquele quadrante.
Ele te ensinará, meu encanto, a verdade,
Que todo o orgulho é vão, vãs todas as querelas,
Que o amor deve sempre ir pela mão da caridade,
Que as horas sombras são, e a vida a sombra delas...
Olha o quadrante bem: dum cinzel inspirado
Finos lavores expõe na tarja que o circunda,
Enquanto, lenta, sobre, o mármore rosado
Avança a sombra azul desta hora moribunda.
Entre fartos lauréis, entre frutos e flores,
Nessa tarja morriões e escudos acharás,
O alado caduceu, a tíbia dos pastores
Da Arcádia, e d'Eros louro o florido carcás.
Aos símbolos, porém, da guerreira loucura,
Da ambição, da poesia e do amor, sobranceira,
Remate singular de tão bela escultura,
No quadrante verás também uma caveira!
Guardadora feroz das Horas, que, singelas,
Mal nascem morrem logo, em cândidos delírios.
Qual madrasta as vigia, a ver se alguma delas
Se demora a apanhar borboletas ou lírios.
Não sentes um ar de morte a envolver-nos, querida?
A sombra azul prossegue em seu andar furtivo...
Tenho sede de amor, tenho fome de vida!
Digam-me os beijos teus que vives e que vivo!
Passa no meu cabelo as tuas mãos radiosas,
Chega bem para mim teu corpo e tuas vestes,
Enquanto além na sombra agonizam as rosas,
E a nossos pés se alonga a sombra dos ciprestes!
CARPE DIEM
Por que tão tristes e fechados vamos?
Negro crime fazemos!
É de rosas o mar onde singramos,
De ouro fino estes remos...
O Amor leva o timão; a Esperança rema,
Risonha e decidida...
E em volta cada vaga que se extrema
É uma sebe florida.
Ri o sol, canta o céu, cantam as águas
E canta a viração!
E nós a desfiar contas de mágoas
Com dedos de aflição...
Da Aliança, no azul cintila o Arco,
E nós, tristes, no meio
Desta alegria, somos neste barco
A Saudade e o Receio...
Gozemos! Canta e ri! O tempo foge,
Meu amor, minha irmã...
Mas se é tão lindo e claro o dia de hoje,
Que importa o de amanhã?
Acaso os noivos, dize, tu que me impeles
No futuro a pensar.
Vão de luto casar-se, por que um deles
Do outro há de enviuvar?
Por mais que aí cogites no futuro,
Muda e sombriamente,
Não lhe abrandas por certo o gesto duro...
Saboreia o presente!
Canta e ri, meu amor! E que eu contigo
Cante e ria também!
Se és minha amiga e eu sou tão teu amigo.
Que mais queres, meu bem?
Quando, de hoje a cem anos ou duzentos.
Branda vida aquecesse
O pó que então serás, brinco dos ventos,
E alguém te propusesse.
Ao dia de hoje regressar, a troco
De pungente agonia.
Tudo o teu espírito enlevado e louco
De pronto aceitaria!
Sim! Para ao dia de hoje regressares,
Tu que tão triste vais,
Sofrerias suplícios e pesares,
Sem queixas e sem ais;
Então darias desses lindos olhos
A vida, a claridade,
E andarias descalça em chão de abrolhos
Por toda a Eternidade!
HORTO FLORIDO
À terra, para dar frutos e flores,
Deve ser pelas enxadas revolvida;
Assim, pela a alma se mostrar florida
Deve cavada ser por bastas dores.
Por isso, não quis Deus, ó meus amores.
Que o vosso olhar me iluminasse a vida.
Sem que a minh'alma fosse bem ferida.
Do sofrimento pelos cavadores...
Chegastes, — meu campinho era lavrado.
Vede que lindo está, e com que viço
Cresce aquela seara de desejos!
Vede aquele rosal, que é um noivado,
E as abelhas ouvi, que no cortiço
Andam a fabricar o mel dos beijos...
OS MEUS FILHOS
(A meus pais)
I
VIOLANTE MARIA LUIZA
Acorda cedo como os passarinhos
E vem logo direita à minha cama;
Sacode-me com jeito, por mim chama
E abre-me os olhos com os seus dedinhos.
Estremunhado, zango-me. — “Beijinhos,
Não quer beijinhos?” com voz d'ouro exclama
Da minha ira empalidece a chama,
E acarinhando-a pago os seus carinhos.
Senhor! Que amor de filha tu me deste!
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
Dá-lhe a Virtude por amparo e guia;
E destina também, ó Pai celeste,
Que a mão com que ela agora me abre os olhos
Seja a que há de fechar-mos algum dia!
II
MARTIM
Nasceu: era um varão! Com febre ansiosa,
A riscar seu futuro eis que me ponho:
Grandezas a grandezas sobreponho,
E minh'alma não para, ambiciosa!
Gênio insigne, consciência luminosa,
Santo, poeta, herói! Manso e risonho,
Mal enche o berço... mas como eu o sonho
Enche de luz a vida tenebrosa!
Veio a morte e levou-mo! Altas montanhas,
Como invejei os musgos de veludo
Dos vossos cumes solitários, calmos!
Títulos, honras, glórias e façanhas,
Tudo quanto eu sonhara, coube tudo
Num caixãozinho branco de dois palmos!
III
LUÍS
Não peço para mim! Foram baldadas,
Foram vãs minhas súplicas, Senhor!
Eu que um trono sonhei, fiquei pastor
De gado triste em serras escalvadas!
Eu que cegara, moço, vendo ateadas
As chamas da ambição, de astral fulgor.
Contemplo agora, em frêmitos de dor,
Um montão só de cinzas apagadas!
Não me queixo, e a teus pés todo me humilho!
Mas se mereço um prêmio, porque esteja
Tão resignado e dócil como estou.
Compensa o pai humilde, erguendo o filho:
Dá-lhe o que me negaste, e que ele seja
Aquilo que eu quis ser e que não sou!
IV
CONSTANÇA
Dorme... Sobre o tapete eis que descansa
Dos sapatinhos dela o exíguo par:
Lembram as conchas que o bondoso mar,
Para brinco infantil, às praias lança.
Maior que qualquer deles, se balança
Pálida rosa além, filha do luar...
Tristes estão! afeitos só a andar.
Como que este repouso agora os cansa.
Vendo-os, sonho-a crescida, a linda flor!
E com as mãos humildes levantadas
Suplico ao Céu, em orações singelas,
Que nos caminhos por onde ela for
Sempre pura e gentil, suas passadas
Fiquem no chão brilhando como estrelas.
V
MAFALDA ERMELINDA
Mais uma estrela me alumia a casa!
Um novo rouxinol canta em meu ninho!
Vede se não é mesmo um passarinho,
Se uma estrela não é de luz que abrasa!
Que lindo o seu dormir, com jeito d'asa
Sob a fronte disposto o alvo bracinho!
Mas por vezes, se a vejo, se a acarinho,
Desta alma uma dor súbita extravasa.
É que, se, fiado em Deus, estou contando
Para os meus filhos com uma vida bela,
Feita de dias claros e serenos,
Comparando-a aos irmãos, fico pensando
Que, sendo ela a mais novinha, é ela
O filho com quem hei de viver menos...
EPÍLOGO
(À minha mulher)
A cem portas bati por noite agreste
Em que o vento mugia como um touro,
Antes de enfim parar à porta d'ouro
A cujo limiar me apareceste.
Nos versos que aí ficam, se é que os leste,
Talvez pela a nossa estima aches desdouro,
Sob o cipreste vendo, ou sob o louro.
Tantas amadas de perfil celeste.
Mas não! Ao pé de ti, sou outro. A vida,
Sopro de bênçãos, no meu horto flui...
E aquele que divaga nas alfombras
Deste livro, lunática avenida.
Não sou eu, é a sombra do que eu fui.
Uma sombra saudosa doutras sombras!
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