A lenda da Meia-Noite
Num dos sítios mais pitorescos da Beira-Baixa,
nessa montanha vestida de verdura, onde se recosta Alpedrinha, e que domina o
verdejante vale do Fundão, ergue-se uma casa ampla e antiga, de cuja varanda,
extensa varanda de madeira, em cujos beirais vem as andorinhas fazer os seus
ninhos, se descortina a extensa paisagem, onde alvejam Val de Prazeres e outras
vilas e aldeias que matizam, com as suas casas brancas, o verde do arvoredo, e
que tem como pano de fundo a imponente massa da serra da Estrela, coroada com
as suas neves eternas.
A casa não tem formosuras arquitetônicas, nem
aspecto de palácio; é apenas um edifício vasto, cercado de dependências
rústicas, tendo defronte do portão as cavalariças, casas de habitação dos
criados, etc., que, desenrolando se em semicírculo, fecham um terreiro que dá
ao edifício campestre uma espécie de pátio de entrada. A parte mais
característica da residência é a extensa varanda de madeira, tão usada na
província, onde nas tardes de estio se respira a viração da serra, onde nas
manhãs de inverno se toma alegremente a réstia do sol.
Fica isolada a habitação que a largos traços descrevemos. Pegada com a fachada
principal está o muro, onde se abre o portão da quinta. Esta é assombreada pelo
magnífico arvoredo, que viça, com incrível vigor, nesse torrão privilegiado
conhecido na província pelo nome de cova da Beira. Para um lado a pouca
distância fica Alpedrinha, a pitoresca vila com as suas casas penduradas entre
verduras da encosta da montanha, para outro lado a estrada desce até ao Fundão.
Por toda a parte verdura, árvores, águas, o ar puríssimo das serras, os rumores
misteriosos das solidões. É encantadora a situação daquele formoso eremitério.
No outono e no inverno a paisagem toma uns tons mais carregados e lúgubres. A
montanha assume um certo ar de grandeza. Nos soutos espessos dos castanheiros
passa o furacão silvando com fúria; a trovoada vai-se repercutindo de eco em
eco pelas concavidades dos vales, e os relâmpagos iluminam, com a sua luz
sinistra, o arvoredo que se estorce nos braços doidos do vendaval. Nos amplos
salões desses edifícios isolados ouvem-se rumores sinistros, e sons
misteriosos, e o vento, fazendo ranger os pilares da varanda, entoa a musica
triste das lendas populares.
É exatamente no outono que nós conduzimos o leitor
à casa da Fragosa, como por lá se chama ao sítio em que ela fica. Os viscondes
da Fragosa, que ali moram, tinham convidado alguns amigos seus para
irem caçar nas suas terras, de forma que estavam reunidas bastantes pessoas
no grande salão da residência, junto da braseira, no momento em que convidamos
o leitor para entrar também e aproveitar o calor benéfico do lume.
É já noite; a tarde estivera sobre-maneira ventosa
e fria, de forma que os convidados, reunidos na varanda, para assistirem a um
desses esplêndidos ocasos do sol, que são tão frequentes no outono, tiveram que
retirar e fechar-se em casa, deixando o vento gemer lá fora, estorcendo os
ramos do arvoredo. Acendeu-se a braseira, e, esquecendo-se o frio e o vento, entrou-se
numa palestra tão animada, como se se estivesse numa sala de Lisboa, a dois
passos do Teatro Italiano, e sentindo-se, a rodarem nas ruas, as carruagens da
cidade.
O salão era vasto e simples, mobiliado à antiga. Nas paredes alguns velhos
quadros sombrios; pesadas cadeiras, de pés torneados, forradas de couro
lavrado, dispostas em círculo, em torno de uma mesa de pau santo, ornava apenas
um canto da sala imensa. Nesse canto, onde se agrupavam a família e os
convidados, havia uma profusa iluminação. O resto da sala ficava perdido na
sombra. De vez em quando surgiam desse fundo escuro os criados que vinham fazer
algum serviço. O toque da campainha não parecia que os chamava, parecia que os
evocava. Saíam de súbito da penumbra, como se surgissem do chão. O aspecto da
casa era, portanto, o mais legendário que podia imaginar-se.
A conversação prolongara-se ainda depois do chá! Um
médico, que residia em Alpedrinha, para onde viera, não exercer a clínica, mas
tratar da sua própria saúde, arruinada, em proveito da saúde dos outros,
homem de espírito fino e amável, fora quem sustentara principalmente a palestra, ajudado por um Sr. Lúcio Valença, escritor de certa
aura, e caçador intrépido, e por uma filha dos viscondes, gentil menina,
simpática, alegre e desembaraçada, que, apesar de ter vivido sempre em Castelo
Branco, e de ter ido apenas uma ou duas vezes a Lisboa, não tinha nenhum dos
acanhamentos tradicionais das provincianas de romance.
A pouco e pouco, porém, esmorecera a conversação:
pausas cada vez mais amiudadas cortavam a palestra, e o médico já tirara o
relógio para ver se não iam sendo horas de retirada. Mas o visconde da Fragosa
estava agarrado, com o comendador Madureira, e alguns vizinhos de campo, a um
impertinente boston, e em vista disso ninguém ousava ser o primeiro
a tocar a recolher.
Nestes silêncios ouvia-se distintamente o rugir do
vento na serra, e os seus gemidos e silvos nos corredores da casa.
― Meu Deus! que tristeza de noite! disse de súbito
uma jovem senhora, de notável formosura, extraordináriamente pálida, mas com
umas opulentas tranças negras, e uns olhos negros também, grandes, rasgados,
que lhe iluminavam com estranho fulgor o rosto de alabastro. O vento geme com
uns sons tão lúgubres, que nos parece ouvir as queixas dos fantasmas. É uma
noite de lenda alemã!
― Para isso, acudiu o doutor Macedo, falta a chuva, a trovoada, a neve e muitos
outros acessórios germânicos. O vento só não basta.
― Vossa excelência gosta de lendas, Sra. D. Isaura? perguntou
inclinando-se para ela um elegante moço do Fundão,em quem pareciam ter
produzido uma impressão profunda os olhos negros e a romântica palidez da filha
do comendador Madureira.
― Se gosto de lendas! respondeu a pálida menina.
Ah! decerto, adoro-as, mas gosto de as ler em Lisboa, no meu gabinete e à luz
do sol.
― Sem mise-en-scene não prestam, observou com toda a gravidade
o doutor Macedo.
― A que chama mise-en-scene, doutor? perguntou Isaura.
― O Lúcio que lho explique, minha senhora; não quero invadir os seus domínios.
― Oh! meu Deus, acudiu o escritor, não é difícil de adivinhar. O doutor entende
que as lendas devem ser lidas e apreciadas à noite, no meio do silêncio geral,
quando se está sozinho, num velho castelo de Ana Radclife, cheio de alçapões e
de subterrâneos, quando o vento geme lugubremente nos corredores, e faz oscilar
a luz da vela que ilumina a nossa solitária vigília. Creio que o doutor, acudiu
Lúcio voltando-se rindo para ele, dispensa que a vela esteja num crânio, em vez
de estar num castiçal, e que haja um cemitério por baixo da janela.
― Dispenso... dispenso... acudiu o doutor com a mesma imperturbável gravidade,
quero dizer... não julgo indispensáveis esses acessórios, mas não posso negar
que aumentavam de um modo notabilíssimo o efeito fantástico da narrativa
legendaria.
― Meu Deus! exclamou a pálida Isaura. Fazem-me morrer de susto com essas
histórias pavorosas. Hoje com toda a certeza não durmo. Que ideia! É necessário
que não tenham a mínima dose de sensibilidade para assim estarem
zombeteando a respeito de coisas, que me produziriam uma impressão tamanha, que
os meus nervos de certo não resistiriam. Estou já toda trêmula!
― Mas, minha senhora, exclamou o doutor Macedo, as
lendas são como os ananases. Há os nascidos ao ar livre, na sua terra própria,
e há-os desabrochados artificialmente com o calor da estufa. Num velho solar
provinciano, ao som lúgubre do vento nos corredores, numa noite de inverno
sulcada de relâmpagos, nasce a lenda tão naturalmente como o ananás no Brasil.
Numa sala de Lisboa, forrada de espelhos, ornada de macios sofás, entre os
rumores meridianos da rua, a luz clara e alegre do sol, a lenda não pode ter
mais sabor do que um ananás de estufa.
― Jesus, meu Deus, exclamou D. Isaura, percebo isso
perfeitamente, e bem sei que o fantástico só pode produzir toda a impressão de
que é susceptível no cenário que o doutor descreve: mas é que levado a esse
ponto, o fantástico produziria no meu espírito um funesto efeito. Matava-me ou
enlouquecia-me! Ah! tornou ela, eu adoro o ideal, mas o ideal pode também
partir as cordas da minha alma.
― Tomo o partido de Isaura, disse não sem alguma ironia a filha dos viscondes
de Fragosa, linda menina de cabelos castanhos claros e olhos azuis, de um azul
tão vivo que produziam às vezes a sensação de olhos negros, como se fossem
aqueles reflexos azulados da asa negra do corvo; tomo o partido de Isaura. Os
senhores estão falando aí como criaturas vulgares incapazes de sentirem
profundamente as grandes comoções. Para as almas privilegiadas os grandes
prazeres da imaginação muitas vezes são também o martírio. São as Ofélias,
as Marias de Noronha, as criaturas ideais cujos corpos são apenas, como o da
irmã do bispo Miriel nos Miserables, de Victor Hugo, pretextos para
conservarem no mundo almas de anjos.
― E cuidas que não há na terra esses entes, cujas
expressões mais sublimes foram encontradas por três grandes poetas que acabas
de citar, Garret, Shakespeare e Victor Hugo? acudiu vivamente o entusiasta de
Isaura, que sentira o leve epigrama, que o seu ídolo não compreendera.
― Não cuido tal, Henrique. A prova de que os há é
que Isaura é um desses entes.
― Por quem és, Leonor... acudiu Isaura com uns
certos ares de modéstia, que ainda mais desesperaram o seu apaixonado.
― É assim, tornou Leonor. Tu, Isaura, sentes que se partiriam as cordas da tua
alma, se quisesses ler à noite num quarto de uma velha casa provinciana uma
história de fantasmas. Morrias se te achasses sozinha à noite numa sala de
lúgubre aspecto. Por quê? Porque tens a imaginação exaltada, a sensibilidade
nervosa das Ofélias e das Marias de Noronha!
― E não admirava, acudiu Henrique Osório que assim
se chamava o moço do Fundão, não admirava, Sra. D. Isaura, que vossa excelência
tivesse medo de estar sozinha num castelo de Ana Radclife. Nem todas podem ter
a imaginação calma, o prosaico bom senso, a fria intrepidez de Leonor. A
marquesa da Lusácia, de que fala Victor Hugo num dos seus poemas, preferia
perder a soberania do seu marquesado a ir passar a noite sozinha, como o
ordenava o costume tradicional, no castelo de seus avós...
― Logo encontrou quem a acompanhasse, interrompeu
Leonor ironicamente.
― E não seria só ela.
― Isaura, ouviste? acudiu Leonor rindo com tal ou
qual amargura, se quiseres passar alguma noite num castelo legendário, como a
marquesa da Lusácia, já tens trovador que te acompanhe, ao bater da meia-noite,
e que te cante:
Si tu veux, faisons un rêve,
Montons sur deux palefrois,
Tu m'emmènes, je t'enlève.
L'oiseau chante dans les bois.
Isaura sorriu-se sem compreender bem a luta que em torno dela se travava; Henrique
Osório calou-se. Leonor, um pouco arrependida de ter mostrado um tal ou qual
azedume, voltou-se para sua mãe que ressonava recostada na sua poltrona, e,
chamando-a, disse-lhe algumas palavras em voz baixa, convidando-a a que
lembrasse a seu pai que eram horas de por um termo ao boston. O
doutor levara a mão aos lábios para comprimir um bocejo, e Lúcio Valença,
sorrindo-se, contemplava a esplêndida formosura de Isaura, e esses olhos que
Deus fizera tão formosos, e que não refletiam contudo senão as preocupações
pueris da mulher da moda, e da lisbonense frívola.
No meio deste silêncio ouviu-se o vento bramir com mais força, para depois
gemer com mais tristeza, parecendo que se estabelecia um dialogo entre os
espíritos atmosféricos, e que aos rugidos ameaçadores de um demônio respondiam
as queixas plangentes de um ente fraco e débil.
De súbito ouviu-se ao longe, ao longe, vibrar uma
badalada no sino de S. Martinho de Alpedrinha.
O vento soprava daquele lado, e trazia nas suas
asas as lúgubres vibrações do bronze.
Ouviu-se em profundo silêncio uma, duas, três...
doze badaladas.
― Meia-noite! disse naturalmente o doutor,
quebrando o silêncio em que todos estavam, porque todos tinham estado contando
as horas.
Mas a voz do doutor também tomara involuntariamente como que uma sinistra
entoação.
D. Isaura soltou um grito.
― Jesus! disse ela.
― Que tem, minha senhora? perguntou Henrique
solicito e aflito.
― Meu Deus! exclamou Isaura, é que me aterraram com
as suas loucas histórias, é que me puseram num estado incrível de
sobre-excitação nervosa. Meia-noite! vê? Meia-noite é a hora dos fantasmas, é a
hora das aparições! E esta sala é tão lúgubre, e este silêncio é tão agoureiro!
― Minha senhora, exclamou o doutor Macedo alegremente, vossa excelência supõe
por acaso que nós sejamos fantasmas, e que estejamos quase a dissipar-nos em
fumo como quaisquer entes malcriados do mundo sobrenatural? Vossa excelência
está no meio dum batalhão de gente viva capaz de afrontar dois subterrâneos de
Ana Radclife, três conventos de Lewis, reforçados ainda pelos mil e um
fantasmas de Alexandre Dumas.
― Oh! tornou Isaura toda trêmula, mas é que a
meia-noite soou de um modo tão lúgubre... E nós a esta hora ainda a p ― Oh!
tornou Isaura toda trêmula, mas é que a meia-noite soou de um modo tão
lúgubre... E nós a esta hora ainda a pé...
― Vossa excelência deita-se mais cedo em Lisboa?
perguntou o doutor.
― Não, mas...
― Mas é que a meia-noite só aterra os que lhe dão
importância. É uma hora covarde e manhosa, que, se vê a alegria do baile, as
salas iluminadas, as danças caprichosas e revoluteadoras, entra pacatamente
como outra hora qualquer, até com mais risos e mais alegrias, acendendo mais o
fogo das valsas, cumprimentando para
todos os lados amavelmente. Se vê o estudioso debruçado sobre os livros,
indiferente e sereno, entra timidamente, nos bicos dos pés, e abafa até as suas
próprias vibrações; se encontra num serão de família a conversação alegre, o
bule de chá em cima da mesa, as cartas do boston para um lado, um
livro para outro, bate à porta discretamente, e anuncia que é tempo de se
recolher cada qual para o seu leito. Ora agora, se encontra gente que espera
com susto, que está pronta a desmaiar apenas ouvir a primeira badalada que a
anuncia, então ei-la que toma uns ares pavorosos, engrossa a voz, faz entrada
solene, espalha em torno de si o terror e o assombro. Fora com semelhante
fanfarrão! É necessário darmos-lhe uma lição mestra! Peço a palavra para um
requerimento.
― Hein? disse lá da mesa do jogo o visconde da
Fragosa, que aspirava à deputação.
― Está concedida, visconde? disse o doutor, rindo.
― Mas que diz você? tornou o visconde muito
espantado dos risos com que os interlocutores do Macedo acolhiam a sua ideia.
― Bem! Passo adiante. Requeiro que para todos os
efeitos seja abolida a meia-noite.
― Aprovado por unanimidade e mais um que é o
visconde, tornou, rindo, Lúcio Valença. Agora queira o Sr. deputado apresentar
uma proposta indicando o modo pratico de se levar a efeito essa medida
importante.
― Proponho, tornou o doutor com gravidade cômica, que de amanhã em diante
afrontemos a meia-noite rosto a rosto, e lhe torçamos o pescoço.
― Mas o meio? o meio? o meio pratico? bradaram
Lúcio e Leonor.
― O meio é o seguinte: O mau tempo ameaça
prolongar-se, e nós ou não podemos caçar, ou não podemos prolongar a caça por
todo o dia, sob pena de estourarmos aí de frio por essa serra. Portanto à noite
estamos frescos e descansados, e podemos protrair o serão. Proponho que
organizemos um Decameron para zombarmos da meia-noite, como os
narradores de Bocaccio zombaram da peste de Florença. Cada um de nós, que se
sentir para isso com forças, se compromete a compor uma história fantástica,
uma lenda, um conto maravilhoso que será lido aqui ao bater da meia-noite.
Dessa forma afrontamos face a face a terrível inimiga do repouso da Sra. D.
Isaura, e, se ela ainda ousar fazer uso dos seus sortilégios, conosco se há de
haver!
― Apoiado! apoiado! bradaram todos menos D. Isaura, que soltou um grito,
exclamando:
― Isso é horrível!
― Não, minha senhora, é uma receita, é um remédio
heroico, é um banho russo. Vou-lhe combater os seus nervos.
― Mate-me, doutor!
― Qual história, minha senhora! Mato a
meia-noite! Verá como depressa a moda aceita a minha ideia. Daqui a pouco
tempo não se fala em Lisboa noutra coisa, e a lenda da meia-noite será
o anti-espasmodico mais empregado.
A ideia de que efetivamente em Lisboa daí a pouco
tempo se não falaria noutra coisa foi o que decidiu D. Isaura. Ao mesmo tempo
terminara a partida do voltarete, e um dos jogadores, homem já de cabelos
grisalhos, vivo, espirituoso, ilustrado, que no tempo do romantismo cometera
alguns pecados literários, exclamou alegremente:
― Aceitam-me para companheiro! Eu ainda sirvo para uma montaria aos lobos,
vamos a ver se também presto para uma montaria à meia-noite.
― É aceito com mil vontades, Sr. Roberto Soares. Eu
já o conheço como robusto campeão, e assento-lhe praça com entusiasmo. Agora
cabe-me designar o serviço. Henrique Osório, você é quem rompe o fogo.
Henrique inclinou-se em silêncio relanceando um ardente olhar à pálida Isaura.
― Meia-noite e meia-hora! disse o doutor tirando o
relógio. Saudemos, meus senhores, a ultima meia-noite que passa, e vamo-nos
deitar. Todos se riram, e um burburinho alegre encheu daí a pouco os corredores
da habitação. Ainda por algum tempo se sentiu o rumor de portas que se abriam e
fechavam, de passos que se perdiam ao longe, de vozes que se despediam. Depois
caiu tudo em silêncio, e só se pôde ouvir o vento que continuou toda a noite a
gemer lugubremente as suas monótonas queixas.
***
A previsão do doutor realizou-se. O tempo continuou
mau, e agravou-se ainda com a chuva que principiava a cair em torrentes. A
noite seguinte passou-se alegremente. Quando, porém, um relógio de parede, que
fora posto na sala, indicou onze e meia, Isaura fez-se ainda mais pálida do que
era, e houve no auditório uns tais ou quais sinais de comoção.
― A postos, meus senhores! exclamou o doutor
alegremente. Firmeza, companheiros! Do alto daquele relógio trinta minutos vos
contemplam.
Houve de novo entrain, risos e entusiasmo. Nisto o sino de S.
Martinho deu a primeira badalada da meia-noite. Soava ainda mais lugubremente
do que na véspera. Solta no meio dos loucos rumores do vendaval, a vibração do
bronze parecia uma nota perdida de agonia e de desespero.
― Henrique! disse o doutor. Vamos! Estás um pouco
pálido? É a comoção do autor e não a da meia-noite, juro-o aos deuses imortais.
Vá! inflexão lúgubre, voz cavernosa, gesto sombrio!
Henrique desenrolou um manuscrito, e, no meio da atenção geral, leu o
seguinte:
JULIETA
CONTO FANTÁSTICO
CAPÍTULO 1
Eram onze horas da noite, e estava-se tomando chá em casa do meu amigo
Frederico B***, em Benfica. Havia uma roda de íntimos; a conversa estava
animada e o meu amigo, a quem a alegria e o entrain dos convidados
deixavam mais liberdade no cumprimento dos seus deveres de dono da casa,
aproveitava-se disso para contemplar extasiado sua linda mulher, com quem
casara havia pouco tempo, e que do seu lado lhe sorria também com a meiguice e
ternura da mulher que ama deveras.
A conversa animara-se tanto, que se ia
transformando em algazarra.
Discutia-se acaloradamente a questão da existência
das almas do outro mundo, com grande desprazer dum jornalista que por força
queria conduzir ao bom caminho aqueles discutidores extraviados, propondo
que se tratasse da bondade do ministério, deixando de parte essas tolices, que
não serviam para nada. Mas ninguém lhe prestava atenção, o que fez com que ele
desesperado fosse ler pela centésima vez um artigo seu publicado num jornal que
estava em cima de uma das mesas da sala. Essa produção do seu engenho, que o
jornalista relia com tanto entusiasmo merecia indubitavelmente tão paterna
solicitude, porque ele e o revisor da imprensa tinham sido os seus únicos
leitores. Mas o autor tantas vezes o tinha lido, e tal admiração professava
pelo seu próprio talento, que pudera dizer, sem receio de ser taxado de
mentiroso ― que o seu artigo tinha feito tal impressão, que lhe constava ter
havido uma pessoa que o relia a miúdo, e sempre com entusiasmo crescente, honra
de que se podiam gabar poucos artigos políticos da imprensa portuguesa.
― Concluamos, bradava entretanto um médico
materialista por dever de profissão, onde colocam os senhores esse agente
misterioso a que dão o nome de espírito, teimando em apelidar assim
pomposamente o mecanismo material, que a morte paralisa? Quando esse relojoeiro
sombrio, que se chama tempo, quebra com mão despiedosa as rodas complicadas do
nosso sistema vital, onde se refugia esse ente inútil, esse ser impalpável a
que os senhores espiritualistas querem dar as rédeas do governo deste barro
quebradiço, que constitui o homem? E durante a vida quais são os laços
invisíveis, que prendem o escravo ao senhor, o corpo material e frágil à alma
etérea e imortal? Tremendo absurdo, utopia talvez respeitável, sublime tolice
pela qual se tem sacrificado inúmeras gerações! Ah! mas sobretudo, é doido
deveras quem imagina que essa invenção impossível, resultado das aspirações da
humanidade para a existência eterna, possa vir aos cemitérios animar os restos
putrefatos dos reis da criação; quem tal supõe, não sentiu nunca debaixo do escalpelo
anatômico o cadáver inerte e desprezível, nem pode avaliar com a vista
infalível da ciência o nada imenso das vaidades humanas!
― Fora com o materialista, bradou um rapaz
entusiasta; sabes tu, meu caro doutor, que a primeira vaidade humana cujo nada
imenso tu devias avaliar, é a vaidade da ciência? Que sabes tu, presunçoso
Hipocrates, que tens de recuar vencido perante o primeiro obstaculozinho, que a
natureza caprichosa queira opor à vista infalível, como tu dizes, do saber dos
homens? E és tu que andas perdido no meio da confusão dos sistemas médicos a
procurar no labirinto científico o fio condutor que te está sempre a escapar
das mãos, és tu que pretendes entrar com passo firme no insondável labirinto da
eternidade?... Espera, continuou ele vendo entrar um mancebo muito pálido, que
foi apertar a mão de Frederico, e cumprimentar a dona da casa, queres-te
convencer? Pois aí tens tu um homem vivo, que teve relações diretas com um
fantasma.
― Roberto, assenta-te aí, e conta-nos imediatamente
a história do teu espectro, se vossas excelências não se opõem a isso ainda
assim, continuou ele, voltando-se para as senhoras presentes, que tinham
escutado a discussão metafísica, com ligeiros sinais de aborrecimento.
Propor a senhoras uma história de fantasmas é despertar-lhes a atenção, é
fazer-lhes passar nas veias o estremecimento do entusiasmo. Não sei porque,
esses entes frágeis, pálidos ou rosados, de olhos negros ou azuis, alegres ou
melancólicos, esses entes femininos encantadores e tímidos adoram tudo o que os
faz tremer, e recreiam-se sobre tudo com essas histórias terríveis, em que o
leitor estupefato encontra um punhal ao voltar de cada página, um ladrão à
esquina de cada período, um fantasma pelo menos em cada capítulo.
Por isso a parte feminina da assembleia acolheu a proposta com entusiasmo: e a
mim e aos outros homens, que estavam presentes, não desagradou a ideia de ouvir
uma história terrível, em petit comité, no pino da meia noite,
tendo de voltar depois para casa por aqueles caminhos desertos dos arredores de
Lisboa; a mim sobretudo, que tinha de passar pelas casas arruinadas de
Campolide, sorria a ideia de ir com a imaginação povoada de fantasmas, que
poderia distribuir à vontade pelos recantos dessa paisagem tão majestosa,
quando a lua envolve os paredões solitários na branca mortalha da sua luz, enquanto ao longe se desenha sobranceiro entre os campos verdejantes o perfil
grandioso do aqueduto sombrio.
Roberto, devemos dizê-lo para honra sua, não se fez
rogado, cumprimentou silenciosamente a assembleia, e começou pouco mais ou
menos nestes termo Roberto, devemos dizê-lo para honra sua, não se fez rogado,
cumprimentou silenciosamente a assembleia, e começou pouco mais ou menos nestes
termos:
CAPÍTULO 2
"Cantava-se em Lisboa pela segunda ou terceira
vez o Baile de mascaras. Era uma noite de delírio no teatro de São
Carlos. Franchini, o cantor sublime, fazia tremer de entusiasmo a plateia
inteira, e a voz portentosa de madame Lotti despenhava sobre o publico
palpitante torrentes de melodia e de sentimento. O personagem de Amélia,
interpretado como então o foi, deixava de ser um tipo criado pela imaginação do
poeta para se transformar, animado pelo Prometeu do gênio, num ente real, cujos
sentimentos traduzidos em suspiros de harmonia, iam arrancar os soluços dos
peitos dos espectadores.
Era o poema da paixão, com todas as suas
peripécias, mas da paixão verdadeira, da paixão que geme e rasga os seios da
alma, da paixão que verte lágrimas, de cujas feridas brota o sangue, e não
dessa paixão fictícia, cuja expressão convencional anima só a mascara, que a
artista desafivela apenas desce o pano.
Eu, perdido num canto da plateia, escutava, como
escuto sempre quando vou ao teatro lírico. Nisso devo confessar-lhes que tenho
ideias um pouco originais. O pano, que sobe lentamente no princípio da opera,
descerra para os outros espectadores meia dúzia de taboas rodeadas por
bastidores de lona, onde uns poucos de artistas vão cantar umas poucas de árias
para divertimento do publico. Para mim é como que uma janela encantada que se
abre por onde eu me arrojo para os espaços azuis do ideal. Os outros analisam
com toda a paciência a instrumentação e o canto, investigam se
foram executadas as leis do contraponto, e depois de satisfeitos aplaudem
compassadamente para não rasgarem as luvas, voltam-se bocejando, e cumprimentam
a senhora condessa de***, ou a senhora baronesa de***, cuja crônica escandalosa
vão contar imediatamente ao seu vizinho da esquerda.
Mas eu não. A minha alma, que ilumina o fogo do
entusiasmo, não pode ficar na terra, quando sente passar no espaço o sopro da
harmonia, da casta filha do céu. Desaparece o teatro, desaparecem os
espectadores, desaparece a ficção. Arrastada no manto de fogo do ideal, a minha
alma sente, enleva-se, palpita, geme, pranteia, soluça com Macbeth o grito do
remorso, suspira com Desdêmona a canção da saudade, gorjeia com Helena o hino
da desposada, escuta com Rosina a meiga serenata, solta com Lucrecia o rugido
da envenenadora, e volta depois à terra, deixando-me ficar pálido, extasiado,
porque entrevi em sonhos a deslumbrante claridade de um mundo desconhecido.
Tinha começado o segundo ato, e eu seguia cheia de
um vago terror a cena lúgubre do princípio. As notas da ária de Amélia
soavam-me aos ouvidos como dobres de finados, e quando a Lotti soltou aquele
grito de pavor, que vibrava sonoro e plangente pelo teatro, fazendo estremecer
os espectadores, eu levantei-me pálido, convulso, e senti correr-me pela raiz
dos cabelos o hálito de fogo de uma misteriosa comoção.
O meu vizinho olhou para mim espantado; sentei-me, deixei cair a cabeça entre
as mãos, e cismei.
― Ó ideal, dizia eu, quando poderei finalmente
sorver a longos tragos o teu néctar precioso na cinzelada taça da
fantasia?
Ó virgem dos meus sonhos, ó anjo das asas de ouro, quando poderá a minha alma,
abraçando-se contigo nas regiões celestes, aspirar a plenos pulmões a balsâmica
aragem da poesia?... O que és tu, ente misterioso, que assim bafejas o espírito dos grandes poetas, e lhes vais murmurar, em noites de inspiração,
os segredos sublimes que o vulgo profano admira, mas não compreende?
Oh! quais serão as visões destes homens
portentosos, e nas suas noites de febre, de delírio e de insônia, em que místicos
amores te enlaças tu com eles, ó ideal sublime, ó ideal inspirador? E entanto
nós, os deserdados, bebemos com um riso alvar a água insípida e lodosa dos
prazeres do mundo, e caminhamos nesta planície monótona da vida, olhando com
terror para o Sinai chamejante, onde campeiam, cercados da divina aureola, os
harmoniosos profetas, os validos da inspiração!
Não posso; falta-me o ar no recinto estreito da
vida social; a prosa deste mundo oprime-me o coração. A minha alma está
sequiosa de amor, e este aparece-me sempre escoltado pelas conveniencias,
trazendo sobre o rosto formoso a mascara ridicula dos interesses materiaes, ou
a mascara odiosa do capricho sensual. Amor! amor! mas um amor como o teu, ó
casta e pura Amélia, como o teu, ó Julieta, ó noiva gentil de Romeu e da
sepultura, quero um desses amores sublimes, e, se ele não se encontra na terra,
surge dos túmulos, ó pálida virgem por quem eu anelo, e mostra-me ao menos num
relâmpago as misteriosas alegrias da eternidade!"
Nisto levantei a cabeça, e os meus olhos
involuntariamente fixaram-se num camarote, que ficava pouco distante do
lugar que eu ocupava na plateia. Uma senhora de beleza maravilhosa estava
sozinha nesse camarote, e encarava-me com uma atenção extraordinária. Não sei
porque gelou-se-me o sangue nas veias, e fiquei extático a contemplar aquela
esplêndida formosura.
Raras vezes tenho encontrado um rosto assim! A correção das linhas, a pureza
dos contornos, a majestade do perfil deixavam na sombra os mais perfeitos
modelos da antiga estátuaria. Praxíteles quebraria desesperado as estátuas e o
cinzel, se lhe fosse dado contemplar as inflexões suaves, a perfeição das
formas daquela viva escultura.
Se algum defeito se lhe poderia notar, era a rigidez marmórea da fisionomia.
Via-se que nem tristezas nem alegrias seriam capazes de alterar a regularidade
do semblante, que só parecia ter vida nos olhos, que eram lindos a mais não
ser, e donde emanavam raios magnéticos e deslumbrantes, que enlouqueciam quem
se atrevesse a encará-los. Aquele rosto assemelhava-se a uma urna de mármore,
em cima da qual se tivesse colocado uma lâmpada de luz fascinadora. Era um
fragmento de gelo dourado levemente pelos reflexos de um vulcão, mas essa
fisionomia tinha um não sei que de misterioso e sombrio, que me impressionou
profundamente.
Olhei para o relógio. Os ponteiros marcavam no
mostrador meia-noite em ponto.
No teatro os conjurados cantavam o coro das
gargalhadas, e repetiam rindo o estribilho:
Ah! chè baccano-sul caso strano
Andrà dimani per la città!
CAPÍTULO 3
Sem poder explicar a mim mesmo a fascinação
irresistível, que me impelia tão imperiosamente à contemplação daquele formoso
semblante, nunca mais desviei a vista do camarote. E ela, oh! ela olhava-me com
uma meiguice de enlouquecer.
Estava toda vestida de negro, e isso ainda mais
contribuía para fazer realçar a alvura da sua tez. Trajava elegantissimamente,
mas com uma singeleza, que me encantou, a mim, que procuro quase sempre o bom
gosto na simplicidade.
Só ela ocupava o camarote! Sozinha! Quem poderia
ser? Tão nova, tão formosa, e só! Oh! meu Deus! seria ela uma dessas mulheres
sem pudor, que arrastam por toda a parte o manto de seda da ignomínia, que
foram apanhar da lama, onde deixaram em troca o cândido véu da inocência?
Impossível! O seu porte modesto, a simplicidade do seu trajo eram um protesto
vivo contra o descaro, e orgulhoso cinismo dessas Messalinas venais.
Mas só! Quem sabe? Talvez a pessoa que a
acompanhava, estivesse escondida na sombra do camarote; talvez tivesse saído.
Tudo podia ser, mas a suspeita é que não podia manchar nem por momentos a luz
serena daquele rosto angelical.
E eu olhava-a deslumbrado; e uma transformação
estranha se operava em mim. Parecia-me que as luzes do teatro iam esmorecendo a
pouco e pouco até se reduzirem à claridade sinistra das lâmpadas
sepulcrais, o palco e a plateia confundiam-se num vasto cemitério, onde o
vento da noite fazia ondular a copa dos ciprestes, por entre cujos ramos
passavam os raios da lua, da pálida cismadora, da solitária amiga das sepulturas.
E ela, ela, a formosa desconhecida, vinha dizer-me
com o seu olhar tão triste:
― Queres o meu amor, ó pobre escravo dum corpo
material, ó doido, que aspiras ao infinito sem pensares que tens os pés
embaraçados na imunda vasa desse oceano de desespero, que se chama a vida? Oh!
não queiras conhecer os segredos dos túmulos, porque tu, meu louro poeta,
voltavas ao mundo de cabelos brancos, se tocasses um só minuto com os lábios na
taça inebriante dos amores da eternidade!
― Oh! que me importa a vida, respondia eu na alucinação febril, se em troca
desses dias de prosa me posso arrojar um instante só aos espaços infinitos das
sublimes comoções! A minha alma é como a águia, que se arroja às regiões das
nuvens, afrontando a tempestade, e cai depois na terra fulminada pelo raio, que
altiva foi provocar. Que me importa a mim a morte, a condenação eterna, se
poder sorver nos teus lábios voluptuosidades desconhecidas, e ler nos teus
olhos o poema sublime do amor, que eu fantasio?
A visão desaparecia; mas no palco a voz sedutora
d'Oscar, o elegante pajem, vinha murmurar-me aos ouvidos:
Pieno d'amor
Mi balza il cor;
Ma pur discreto
Serba il segreto.
E no olhar da minha formosa desconhecida lia-se em letras de fogo a mesma
confissão inebriante:
Pieno d'amor
Mi balza il cor.
CAPÍTULO 4
Tinha acabado a opera. Levantei-me e saí.
Fiz um esforço sobre mim, não querendo olhar para o
camarote fatal. A pessoa que o ocupara durante a noite produzira em mim uma
impressão tal que cheguei a ter medo... medo da influencia pasmosa que ela ia
tomando sobre o meu pobre coração.
Oh! fatalidade! Quando cheguei ao corredor, o
primeiro vulto, que passou por diante de mim, foi o vulto elegante e nobre da
gentil desconhecida. Ia só!
Tive como que uma vertigem, quando ela, ao passar,
me lançou um desses olhares que endoidecem o homem de razão mais fria, que
lançam no inferno o mais virtuoso santo do paraíso.
Não tive forças para lutar contra a fascinação
irresistível desse olhar. Se ele tinha sobre mim a influencia magnética do
olhar de José Balsamo sobre a pobre Lorenza ideada por Alexandre Dumas! Debalde
a pobre italiana se torcia desesperada debaixo daquele jugo opressor, debalde
opunha toda a força da sua vontade e do seu ódio à tenacidade diabólica do
terrível magnetizador, debalde resistia com todo o ardor da sua devoção, com
todo o vigor da sua alma virginal àquele poder incompreensível, mas
horrendamente verdadeiro; tinha de recuar diante desse olhar, como diante
duma espada chamejante, até cair opressa e desesperada aos pés de José Balsamo.
Então esse corpo quebrado pela resistência, reclinava-se nos braços da
voluptuosidade, e a voz que ia terrível a bradar: "Odeio-te",
terminava suplicante a balbuciar: "Adoro-te".
Ao vê-la, disse eu comigo mesmo: "Não quero, não quero ceder a esse
império inexplicável." E minutos depois, surpreendia-me a segui-la
apressadamente pelas ruas de Lisboa.
Há ocasiões em que nos vemos obrigados a acreditar
em forças sobrenaturais que nos atraem e nos repelem, é quando a nossa vontade
se aniquila, e quando as leis da nossa organização são violentamente revogadas
por um despotismo estranho.
Submeto esta reflexão à consideração dos ilustres
materialistas que me escutam!
CAPÍTULO V
A desculpa que eu dei a mim mesmo, quando apesar de
todos os meus protestos me surpreendi a seguir a senhora de negro, foi a
desculpa da curiosidade.
Com efeito, dizia eu comigo, tirando
filosoficamente baforadas de fumo do charuto que acabara de acender no momento
em que passou por diante de mim a formosa desconhecida; o que há mais natural?
Encontro uma linda mulher em S. Carlos, linda como poucas, e original a mais
não poder ser. Vejo-a no camarote sozinha, e torno a vê-la, saindo a pé, e
ainda só. Não tenho nada que fazer, e por conseguinte sigo-a. É
naturalismo.
E a voz da consciência murmurava-me ao ouvido:
― É o brilho da chama tentadora, ó doida borboleta,
é o olhar fascinador da serpente, ó ave descuidosa.
― Ora adeus, respondia a voz da minha aparente
filosofia, prejuízo, superstição, fanatismo, como dizia o tenente Boutraix de
um dos romances de Carlos Nodier. Vou oferecer-lhe o meu braço.
A senhora que eu seguia caminhava lentamente a quinze passos adiante de mim,
quando muito. Passava ela então defronte da igreja dos Mártires. Pus o chapéu
ao lado com modos conquistadores, coloquei o charuto ao canto da boca, e
acelerei o passo.
Apesar disso, e apesar da minha bela não alterar
por forma alguma o seu andamento, não diminuía, pelo menos sensivelmente, a
distância que nos separava. O vulto elegante da senhora de negro, ao passar por
diante dos candeeiros de gás, revelava-se em toda a sua riqueza de formas, em
toda a majestade do seu porte airoso. Havia uma suprema distinção no seu modo
de andar, mas apesar disso havia um não sei quê de misterioso naquele mover de
estátua, lento e inteiriçado, que fazia uma impressão pouco agradável.
Chegamos assim à rua Nova do Carmo; ela voltou para
baixo; eu segui-a.
A distância conservava-se a mesma. Mas, como ia diminuindo o numero das pessoas
que caminhavam para aqueles sítios, saindo, como nós, de S. Carlos, eu tomei
uma resolução definitiva, e comecei a dar grandes passadas para apanhar
finalmente aquela mulher que me 2fugia incessantemente como esse caçador
das lendas do norte, que foge sempre, sem perder um palmo de terreno, mas sem
poder também desaparecer, à sua matilha infernal.
Nem assim pude diminuir a distância que me separava
desse vulto extraordinário.
E o vulto parecia escorregar majestoso e sombrio, sem que a bulha dos seus
passos acordasse um só eco nas ruas solitárias.
Chegamos ao Rocio. Eu começava a estar suado.
Despi, sem afrouxar o passo, o paletó que me incomodava, e pu-lo aos ombros.
Depois dei a andar com dobrada rapidez.
A senhora de negro caminhou pelo Rocio na direção
do Passeio.
Chegamos ao largo de Camões.
Nem uma polegada diminuíra a distância que mediava
entre nós.
E o vulto parecia escorregar majestoso e sombrio,
sem que a bulha dos seus passos acordasse um só eco nas ruas solitárias.
Eu apertava as mãos na cabeça, porque sentia uma
torrente de fogo a inundar-me o cérebro, e a razão a abandonar-me.
A noite era sombria, e no estado em que estava pareceu-me sinistro deveras o
aspecto dessa massa do Passeio Publico, envolto num manto de trevas.
A quinze passos adiante de mim caminhava sempre
elegante e distinto o vulto negro da minha gentil desconhecida.
Perdi a cabeça e deitei a correr, literalmente a
correr, atrás dela. A bulha da corrida produzia um som3lúgubre, e fazia-me
estremecer de vez em quando. O suor escorria-me em fio pela cara abaixo.
Saímos da rua Oriental do Passeio, entramos na
calçada do Salitre, chegamos à esquina da travessa do Moreira, e eu não
conquistara um palmo de terreno.
E o vulto parecia escorregar majestoso e sombrio,
sem que a bulha dos seus passos acordasse um só eco nas ruas solitárias.
Quando ali chegamos, a desconhecida entrou
resolutamente na travessa, e eu parei. Sentia o coração palpitar-me com
violência, e... tive medo, confesso o.
Era tão extraordinário o que me estava sucedendo,
que este sentimento, devem confessá-lo, era um pouco desculpável.
Contudo venci a timidez passageira, e entrei
resolutamente nessa rua tão deserta.
Quando a minha desconhecida chegou ao pé de uma
casa isolada no meio da travessa, parou, voltou-se para mim, e bradou com uma
voz melodiosíssima:
― Amanhã à meia-noite, debaixo desta janela.
Eu estaquei atônito de surpresa.
CAPÍTULO 6
Descrever-lhes a luta que se travou no meu
espírito, quando voltando para casa me fui sentar à mesa de trabalho, e comecei
a refletir fria e pausadamente na aventura noturna, seria contar-lhes a
história longa e fastidiosa do combate da razão com as minhas tendências para o
sobrenatural.
Dir-lhes-ei, resumindo, que sem atender a
outra coisa que não fosse a sedução inexplicável, que me atraía para esse
ente incompreensível, fui no dia seguinte à meia-noite ao rendez-vous aprazado.
Soava não sei em que relógio a ultima badalada da meia-noite, quando se abriu a
janela, e apareceu ante os meus olhos deslumbrados o formoso rosto da gentil
desconhecida.
Balbuciei frases sem sentido, mas a língua pegou-se-me
ao céu da boca, e não pude dizer uma palavra que se entendesse.
― Por que me seguiu ontem? perguntou ela com uma
voz melodiosa e triste, como o gemer da brisa nos ciprestes.
― Porque a amo.
― Sabe quem eu sou?
― Que me importa! Quem vai perguntar ao anjo que
nos afaga em sonho o nome com que o distinguem nas falanges celestiais?
― E ama-me?
― Mais do que a vida!
― Só?!
Que poder incrível tinha aquela mulher sobre mim?
Não sei; sei que lhe respondi com o olhar inflamado:
― Mais do que Deus!
― Não estranha o mistério em que me envolvo?
― Não sei. Este amor é uma paixão fatal. Virgem ou
devassa, cândida ou profanada, anjo ou demônio, amo-a cegamente, sem me
importar com o passado nem com o futuro, desejando só ter o presente meu, só
meu. Este amor é para mim um vinho que embriaga, e se no fundo da taça
encontrar veneno, que importa? morrerei abençoando as horas da embriaguez. Isto
é uma loucura, bem sei, mas se pudesse conhecer a atonia moral em que o
meu espírito tem existido! Se soubesse como eu anelo por estas comoções
extraordinárias, que devoram num minuto a existência de um homem! Já vê quão
pouco exigente eu sou; não me negue um raio dessa aureola d'amor que lhe
circunda a fronte. Essa luz tenuíssima transformá-la-ei em chama esplêndida,
que há de iluminar as trevas do meu viver prosaico.
― Aceito o seu amor, se essas palavras não o exageram. Não queira penetrar no mistério que me envolve. Quando for necessário,
eu mesma o rasgarei, e confie em mim, há de encontrar-me digna do seu amor.
Entretanto creia e espere. Adeus.
― Já?
― Não me posso demorar nem um minuto.
― Oh! mas diga-me uma palavra consoladora. Este
amor imenso não encontrou eco no seu coração?
― Amo-o.
― Mas com um amor semelhante ao meu, inebriante,
imenso?
― Imenso... como a eternidade.
E fechou a janela, deixando-me ficar extático e
cada vez mais espantado da estranheza dos seus modos.
CAPÍTULO 7
Assim continuou todas as noites aquele amor
excêntrico. Todas as noites eu tomava a firme resolução de não tornar lá, e
sempre as badaladas da meia-noite me surpreendiam na travessa do Moreira,
por baixo da janela fatal.
No tempo em que me sucedeu esta aventura, tratavam
meus pais do meu casamento com uma menina rica, que não desgostava de mim, e
por quem eu, não sentindo amor, não sentia também antipatia.
Era ela uma menina capaz de inspirar uma afeição
fraternal, mas nunca uma paixão a um espírito arrebatado como este meu.
Era bonita, mas um tipo vulgar, horrivelmente
vulgar. A pobre menina não tinha culpa disso. Demais a mais era o que se podia
chamar um acerto: dote sofrível, excelentes qualidades de mulher e de dona de
casa.
Creio que juntava a isso tudo o fazer marmelada
perfeitamente. Não sendo muito guloso, não era eu o mais próprio para poder
apreciar dignamente esta prenda, que a distinguia.
Nunca mais apareci em casa dela, desde a noite de
São Carlos. Um dia passei ocasionalmente por lá, e vi-a com os olhos vermelhos de chorar. Comprimentei-a, ela correspondeu me tristemente, e
retirou-se da janela.
― Ora adeus, disse eu comigo mesmo, foi deitar
açúcar nos marmelos. Talvez ali esteja um coração! acrescentei eu no monologo
mental. Não creio, continuei, o coração desarranja as caçarolas, e incomoda-a
no varrer da casa.
Foram estas ideias falsas que me perderam, meus
senhores; ideias dum espírito extravagante que procurou sempre em regiões
inacessíveis a felicidade, que nunca pude encontrar, e que talvez caminhasse ao
meu lado sem eu dar por isso.
O meu espírito talvez fosse como o Rouvière de uma comédia
de Feuilet, que, depois de ter percorrido o mundo em todos os sentidos, fica
espantado de encontrar a felicidade sentada ao canto da lareira de uma família
burguesa numa aldeola do seu país natal.
CAPÍTULO 8
Chamava-se Julieta a heroína do meu romance de
amor. Até o nome era de fazer enlouquecer um entusiasta como eu.
Essa aureola de poesia e de encanto com que
Shakespeare circundou a fronte da pálida italiana, parecia através das idades
vir dourar com um reflexo luminoso a fronte gentil da Julieta, que eu adorava.
Foi a única informação a seu respeito que dela obtive. Tudo o mais ficava para
mim envolvido num mistério que eu não tentava penetrar.
Uma noite a nossa conversação foi tomando a pouco e pouco um caráter mais
ardente e languido. Palavras de amor entrecortadas, suspiros involuntários
vindo interromper o dialogo, longos silêncios durante os quais eu sentia o
palpitar apressado do meu coração, enquanto via a imagem sedutora de Julieta
desenhar-se na janela iluminada caprichosamente pelo fulgor da lua, tudo isto
despertava em mim uma voluptuosidade deliciosa, mas que me magoava.
Uma vez, enquanto ela ficava perdida nessa vaga
contemplação da lua e da noite perfumada, eu involuntariamente aproximei-me da
parede da casa, e ajudando-me com as grades da janela do pavimento das
lojas, pude trepar até ao parapeito da janela, e de repente, sem que ela
parecesse reparar na ousadia do meu procedimento, imprimi-lhe nos lábios um
beijo de fogo.
Os lábios dela estavam frios como os de uma
estátua.
Olhou para mim com olhar meigo e recuou.
Entrei no quarto e caí-lhe aos pés, balbuciando:
― Julieta, amo-te!
E cobri-lhe as mãos de beijos devoradores.
Ela olhava para mim com uma expressão indefinível.
Não podia dizer se era ternura, se ardor, se frieza, o que esse olhar continha;
sei somente que quanto mais ela me encarava, mais eu me sentia enlouquecer.
― Vem, meu amante, murmurou Julieta passando-me o braço à roda do pescoço, e
arrastando-me com meiguice para uma porta entreaberta, vem! sobre o lilás
florido do meu jardim embalsamado descanta o rouxinol as suas trovas de amores!
é tudo mistério nesta hora encantadora! Vem!
Abriu-se a porta e nós entramos num jardim
esplêndido.
CAPÍTULO 9
Era na hora misteriosa em que das urnas das flores
se expandem na atmosfera tesouros de aroma e de languidez, e em que o homem
absorto julga escutar vagamente na esplêndida imensidade a longínqua harmonia
das esferas.
Na hora em que o rouxinol espalha sobre a terra as
perolas do seu canto, e em que a natureza escuta embevecida o hino mavioso do
seu interprete sublime.
Porque nessa hora dormem as paixões terrenas, e o
mundo parece envolver-se por momentos no manto da sua virgindade, afim que Deus
possa reconhecer a sua feitura, desfigurada pelo agitar convulso do verme
pretensioso que se chama o homem.
E o Onipotente imóvel no trono da sua grandeza,
revê-se silencioso no espelho da Criação.
Oh! como a lua desenrola graciosamente o seu manto
luminoso sobre as alamedas desertas do esplêndido jardim! Como os seus raios se
balouçam molemente no berço flutuante da folhagem! Como se miram descuidosos no
cristal das fontes!
E as estátuas primorosas dos deuses do paganismo,
parecem espreitar complacentes os mistérios da voluptuosidade que se vão
abrigar nos caramanchões floridos! E entanto as acácias que lhes assombreiam os
vultos imóveis, inundam com a chuva perfumada das flores vermelhas as pregas
ondeantes da sua roupagem marmórea!
E eu e Julieta caminhávamos silenciosos por entre os alegretes, e a voz do
rouxinol da balseira despertava no meu coração um rouxinol desconhecido que me
falava de amor e de ternura.
Inclinei-me para ela e beijei-a! E parecia-me que
sentia ao tocar-lhe nos lábios as asas brancas do anjo da pureza que davam
àquela fronte límpida um resplendor celestial.
Por um sentimento involuntário troquei o meu anel
pelo anel de Julieta.
Julguei que Deus santificava o nosso amor, e nos contemplava com indulgencia!
CAPÍTULO 10
Mas quando ergui os olhos, erriçaram-se-me os
cabelos de terror, e correu-me pelas veias um calafrio. Fugiu-me a luz dos
olhos, e o sangue refluiu ao coração.
Desapareceram os floridos canteiros, emudeceu o
rouxinol suave, sumiram-se as estátuas, fugiram as acácias.
Estendem-se a perder de vista as ruas sombrias de
um cemitério, de um lado e de outro avultam as pedras brancas das sepulturas.
O vento da noite faz ondear os ciprestes funerários,
e o pálido clarão da lua vem beijar melancólico as cruzes tumulares.
O grito sinistro do mocho só de vez em quando
perturba a paz dos mortos; por entre a relva dos sepulcros fulgura a lúgubre
fosforescência dos cemitérios.
É tudo silêncio em roda, mas ao longe começa a
sentir-se um vago rumor, que parece o longínquo ruído de um exercito marchando.
E uma aragem de terror parece esvoaçar por entre os
túmulos, dando vida às lousas e voz ao ciprestal.
Lúgubres clarões abraçam as cruzes das campas, e as
figuras de pedra que guardam, sentinelas inanimadas, o sono dos finados,
agitam-se convulsamente ao sopro de fogo daquela procela desconhecida.
A sineta da ermida vibrou no meio do silêncio; três vezes ecoou na imensidade
aquele som terrível.
E eu senti os cabelos erriçarem-se-me, e um suor
gelado me inundava a testa.
Então um coro de vozes cavas e profundas entoou
lugubremente o Dies irae, o hino da cólera de Deus.
E logo uma longa procissão de fantasmas brancos
começou a desfilar por diante de mim num silêncio aterrador.
Depois deram-se as mãos e formaram em torno de mim
uma dança de espectros.
E eu sentia os cabelos erriçarem-se-me, e um suor
gelado me inundava a testa.
Depois um dos vultos brancos destacou-se do grupo e
avançou para mim.
E eu quis recuar, mas os pés estavam pregados no terreno, e uma força
invencível me domava.
O passo do fantasma não produzia ruído algum, mas
eu sentia-o vibrar no fundo do coração.
Vinha envolto no longo manto sepulcral, e
ornava-lhe a fronte a grinalda virginal das rosas brancas.
Reconheci as pálidas feições de Julieta, da minha
noiva de há pouco.
― Vai consumar-se o lúgubre noivado, disse-me ela
sorrindo; vem, meu pálido amante, vem inebriar-te com as místicas
voluptuosidades das sepulturas.
O mocho cantará o nosso epitalâmio, e no cruzeiro
do cemitério serão as danças dos finados o nosso baile nupcial.
Olha para a misteriosa alcova, como nos sorri de
dentro da lousa entreaberta a alva mortalha do nosso leito de noivado!
E eu olhei e vi abrir-se a garganta pavorosa de um sepulcro, e senti que a mão
de Julieta me arrastava invencivelmente.
Ecoavam nas lúgubres alamedas as gargalhadas
dos finados, o mocho soltava o seu grito fúnebre, e a lua entornava sobre
as campas a sua luz tão pálida.
E eu senti os cabelos erriçarem-se-me de terror, e
um suor gelado me inundava a testa.
Não pude resistir, passou-me uma nuvem de sangue
por diante dos olhos e caí desmaiado!
CAPÍTULO 11
Roberto parou um momento como se se sentisse
oprimir pela recordação terrível dessa noite.
― Pouco mais lhes posso dizer, meus senhores, sei
apenas que no dia seguinte acordei no meu leito, e que estive seriamente
doente. Apenas me restabeleci corri à travessa do Moreira.
Da casa de Julieta nem sinais! Tudo desaparecera.
Julguei que fora vítima de uma alucinação, mas
ainda hoje se me representam tanto ao vivo as cenas, a que assisti, que não
posso admitir a possibilidade dessa hipótese.
Daí por diante nunca mais tive felicidade! Em pouco
tempo gozei e padeci muito. As fibras da minha alma sujeitas a uma fortíssima
tensão quebraram-se, e hoje vivo numa incrível atonia.
A senhora, com quem minha família me queria ver
casado, desposou um homem menos imaginoso do que eu, que a estremece, e a quem
ela estima. Tem dois filhos, que são a alegria da casa e o enlevo dos pais.
A minha imaginação desregrada deixou-me isolado no
mundo.
Roberto calou-se. Todos nós ficamos silenciosos,
impressionados por essa lúgubre história. Mas Frederico abraçando sua mulher, e
dando-lhe um beijo na testa, disse para Roberto:
― As aspirações da alma têm um limite, que não
podem ultrapassar. No céu da felicidade há esferas inacessíveis onde a natureza
humana desmaia, prostrada pela vertigem. Na família, meu amigo, resume-se a
suprema ventura. É prosaica unicamente para os que a não compreendem. Nesses
amores ideais chega o homem a pontos, em que para me servir das frases do
cético Musset:
Où le vertige prend, où l'air devient le feu,
Et l'homme doit mourir où commence le Dieu.
***
Quando Henrique Osório acabou de ler o seu
improvisado romance, aplaudiram-no fervorosamente os seus indulgentes ouvintes.
Só Isaura bocejava de um modo notável.
Henrique mordeu os lábios um pouco raivoso, e,
inclinando-se para ela, disse-lhe ironicamente:
― A nossa ideia foi soberba, minha senhora; se não
cura dos terrores, que sentem as pessoas nervosas, ao menos concilia-lhes o
sono que afugenta os fantasmas.
― Ah! não, Sr. Henrique Osório, respondeu Isaura; a
sua ideia acho-a cada vez pior. Vejam se é admissível falar-se aqui em
cemitérios à uma hora da noite. Eu, se estou assim mais tranquila é porque a
Leonor me prometeu que dormia no meu quarto.
― É contra os regulamentos, bradou o doutor Macedo.
A Sra. D. Isaura está iludindo a receita.
― Meu Deus, doutor! exclamou Leonor alegremente. Os
regulamentos cumprem-se assim de um modo feroz. Não vê que eu vou passar a
noite com uma mulher pálida? Depois de ouvir o romance de Henrique, deve
confessar que é necessário ser-se heroína!
― É verdade, exclamou Isaura, o Sr. Osório tratou bem as pálidas! No seu
entender mulher pálida só pode ser mulher desenterrada. Muito agradecida.
― Mas, minha senhora... balbuciou Henrique.
― Aquilo são reminiscências de Lisboa, Isaura,
exclamou Leonor, rindo. Quis-se vingar de alguma pálida que o magoou.
― És maldosa, Leonor, murmurou Henrique ao ouvido
da sua amiga de infância.
― É para te ensinar a fazer declarações mais
hábeis, disse-lhe Leonor também ao ouvido. Isaura levantara-se para ir ter com
seu pai.
― Então o meu romance é uma declaração? tornou Henrique.
― O teu romance é uma loucura. Estás engraçado com
as tuas idealizações constantes. Queres mulheres sobrenaturais, entes
fantásticos, damas brancas de Avenel! Se achas que é lisonjeiro para uma mulher
perder a sua realidade para agradar ao homem que diz amá-la, morrer primeiro
para ser depois desposada por ele em forma espectral, como no Noivado
do Sepulcro, de Soares de Passos...
E a maliciosa rapariga recitou, zombeteando:
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro sepulcral mistério
Foi celebrado de infeliz amor!
― Então, menina! exclamou Isaura, lá de longe. Olha
que eu não vou sozinha para o quarto.
― Aí vou, querida, aí vou!
E Leonor, deitando a Henrique um olhar malicioso,
foi ter com a sua amiga.
― Então, Sr. Roberto Soares, disse o doutor Macedo enquanto pegava no castiçal
para se dirigir para o seu quarto, porque, nessa noite de temporal, nem os
vizinhos tinham podido recolher a suas casas; então, Sr. Roberto Soares, a sua
composição caminha? Olhe que é amanhã a sua vez.
― Que lhe hei de eu fazer? Cá me vou apressando,
tanto quanto posso. Meti-me em boa, não há duvida. Já não estou para estas
folias. O viver da província enferruja. Amanhã os rapazes vão rir-se de mim.
― Veremos isso! redarguiu Henrique Osório, sorrindo
amigavelmente. Eu preparo uma pateada.
Roberto Soares afastou-se, rindo, e o doutor
Macedo, acendendo um charuto, disse para Henrique Osório:
― Sabe o que lhe digo, Henrique? Você é uma
criança. Anda todo enlevado na palidez e nos terrores nervosos de Isaura, que é
uma tola com bonitos olhos, e não repara que há por estas serranias uma
rapariga, uma perola, que se fina por você.
― Por mim?! Quem me faz essa honra? exclamou
Henrique, fazendo se corado.
― Quem tem olhos para ver, veja; quem tem ouvidos
para ouvir, ouça; e quem tem sono para dormir, durma; respondeu gravemente o
doutor Macedo. Boas noites.
E partiu, deixando ficar Henrique pasmado. Este
demorou-se por alguns instantes a ouvir o temporal que rugia com violência, e a
contemplar com tristeza o sítio onde estivera sentada Isaura. Depois, soltando
um suspiro, saiu da sala.
***
Devo dizer que no dia seguinte as impressões foram muito menos profundas que na véspera. A noite estava mais sossegada; caçara-se pela manhã. Estivera bonito o dia, cortado apenas por alguns chuveiros. Contudo, quando deu a meia-noite, correu um frêmito por todos os ouvintes. Estabeleceu-se um profundo silêncio, mas a figura amável de Roberto Soares não era para inspirar terrores legendários, e foi no meio de uma atenção tranquila, até um pouco risonha, que o jornalista aposentado começou a sua leitura.
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