A IGREJA PROFANADA
Corre sossegada a noite, mas não brilha a lua no céu
a espargir tristezas, escondendo um devaneio, um sonho de poeta em cada uma das
pregas da sua cândida túnica; cintilam apenas as estrelas no véu escuro do
firmamento.
Formosas são as noites estreladas, mas não têm a
suave melancolia das noites de luar; enleva-se-nos o espírito ao contemplar
essas miríades de orbes luminosos; porém os raios da lua têm uma linguagem misteriosa
que nos fala ao coração.
Quando no véu noturno brilham sem rivais as estrelas,
como que percebemos a majestosa melodia das esferas; mas, quando a lua ilumina
a terra com a sua doce luz, ouvimos então no espaço vagos cânticos de saudade,
suspiros de virgem enamorada, canto de pescador que se perde ao longe nas
ondas, toada de Quando no véu noturno brilham sem rivais as estrelas, como que
percebemos a majestosa melodia das esferas; mas, quando a lua ilumina a terra
com a sua doce luz, ouvimos então no espaço vagos cânticos de saudade, suspiros
de virgem enamorada, canto de pescador que se perde ao longe nas ondas, toada
de pegureiro, que vem desfalecida expirar no nosso ouvido, intimas
melodias, que nos dizem: "amor e tristeza."
Porque as estrelas são desdenhosas rainhas d'outros céus, sóis de outros
mundos, que nos enviam, como que por descuido, um sinal de sua grandeza, um tênue
raio da sua imensa luz, enquanto a lua é a extremosa amante, que prendeu à nossa
a sua existência, a companheira que nos segue incessantemente nessa viagem sem
fim, que empreendemos pelo espaço.
As estrelas tornam mais profunda a solidão, e mais
espessas as trevas. Os bosques, os vales, as montanhas conservam-se envoltos num
véu sombrio, por mais que os raios dos sóis da noite se esforcem por penetrar
na escuridade; as ondas balouçam com indiferença os seus reflexos, e não fazem
caso das palhetas douradas que avivam aqui e ali a candidez da sua fimbria
espumosa.
Mas, quando surge a lua, a natureza anima-se.
Desperta a viração nos antros perfumados das florestas, que exalam vivíssimos
aromas. As fadas vem pentear as suas loiras tranças no espelho das fontes, cuja
cristalina superfície palpita de prazer. Jorram torrentes de prata pela falda
dos montes, cintilam diamantes na folhagem das árvores. Erguem se as ondas em
vago enleio de voluptuosidade, como seio de virgem que arfa pela vez primeira.
Rescende o meigo perfume no turíbulo da violeta. Rescende a saudade no turíbulo
do coração.
As estrelas são os anjos de Deus, que entoam lá ao
longe, nas profundidades do Empíreo, o hino às glorias do Eterno; a lua é o arcanjo
consolador que presta um ouvido compadecido aos lamentos da humanidade.
As estrelas são os candelabros de ouro, que ardem
constantemente diante do trono do Altíssimo; a lua é a urna argêntea onde se
transformam as lágrimas dos que sofrem em perolas, que os anjos entornam no
regaço do Onipotente.
As estrelas são o enlevo do filosofo, a lua é
enlevo de poetas.
Porque as estrelas revelam o poder de Jeová, a lua
a caridade do Redentor.
Mas vai a noite sossegada, e a luz dos fachos da abobada celeste cintila
frouxamente na face adormecida do mar. As vagas erguem-se vagarosamente,
enroscam-se a pouco e pouco, caminham em longa fileira para as praias, e
alastram no areal o seu manto escuro.
Negra, bem negra está a superfície do Oceano; os
raios das estrelas, náufragos luminosos, debatem-se com as ondas, que mal
conseguem dourar. Do seio dessas trevas sai um gemido cavernoso. É a voz eterna
do líquido leão, é o rugir tranquilo mas terrível do monarca da imensidade.
Não param as vibrações nas espumosas cordas da
harpa dos abismos; ora plangente, ora formidável, o cântico incessante ressoa
no espaço.
E que diversidade de vozes não há nesse concerto imenso!
o majestoso ruído das ondas ao assoberbarem-se lá no mar alto, o grito que
resulta do embate de dois desses colossos que se encontram, o uivo de raiva que
soltam quando espadanam nos rochedos da praia, o suspiro amoroso que desprendem
ao beijarem o areal, o murmúrio palreiro das gotinhas de água ao despedirem-se
a custo das conchas das ribas, E que diversidade de vozes não há nesse concerto
imenso! o majestoso ruído das ondas ao assoberbarem-se lá no mar alto, o grito
que resulta do embate de dois desses colossos que se encontram, o uivo de raiva
que soltam quando espadanam nos rochedos da praia, o suspiro amoroso que
desprendem ao beijarem o areal, o murmúrio palreiro das gotinhas de água ao
despedirem-se a custo das conchas das ribas, o lamento que exalam ao açoitá-las
o vento, tudo isto se resume num hino sublime, intraduzível, como os
poetas os sonham, mas não escrevem.
Ó mar! A opulenta imaginação da antiguidade grega povoou de sereias as tuas
ondas, pousou no cimo destas o velho Glaucus, com as suas barbas limosas, com a
sua voz aterradora, pousou no teu leito de espuma ora a rósea concha Acidália
em cujo seio se abrigava a cândida Afrodite, ora a sedutora Lamia, ora as horríveis
Greias, e nem assim conseguiu traduzir o indizível encanto com que nos atrais,
e o vago terror que nos incutes, a suavidade da tua voz, e a selvagem energia
dos teus hinos! Ó mar imenso, que lira enfeitiçada te deu o Senhor, de que misteriosa
sedução impregnou as tuas solidões?
Assim perdido nas trevas como é majestoso o Oceano! Nem uma vela se distingue
na imensidade solitária! Ainda naquele isolamento, não descontinua o fadário
das ondas! Vão, vem, atropelam-se, espraiam-se, beijam se, desmaiam, agitam-se,
revolvem-se, cantam, suspiram, e, lá ao longe talvez, algum cismador, encostado
ao peitoril da sua janela, ao ouvir aquele ruído inefável, pensa na eternidade,
e em Deus!
Contudo bem junto da praia, a pouca distância de
uma casa cuja fachada branca mira silenciosa a eterna agitação do Oceano, que
envia às vezes, de enamorado, uma das suas ondas a beijar-lhe os pés, balouça-se
indolentemente uma barca, onde dorme um pescador, cujo sono é acalentado por
esse murmúrio suave.
As ondas embalam tão docemente o bote, como
carinhosa mãe pode embalar o berço do recém-nascido.
A uma das janelas que se rasgam na fachada branca
da casa da praia, encosta-se um vulto de mulher. Embaixo está um outro vulto
varonil e elegante. Ouve-se, por entre o concerto das vagas, o misterioso
segredar de duas vozes.
Leandro e Hero, Rosina e Almaviva, Julieta e Romeu!
O bramir do mar abafa o manso ruído das vozes. Mas
o rugido do Oceano, e o flébil sussurrar dos namorados chegam, em murmúrio igual,
ao trono do Onipotente: porque são duas notas do hino imenso do Universo, que
se resume numa palavra "Amor."
***
Tudo neste mundo acaba, inclusivamente as doces palestras
enamoradas. Mais infeliz do que a desditosa heroína de Shakespeare, a donzela
da casa da praia não pôde esperar que o grito matinal da cotovia saudasse o
alvorecer. Ainda a noite não chegara ao meio do seu giro, e já era forçosa a
separação.
Trocaram-se suaves promessas, mil vezes se afastou
o nosso Romeu da fachada branca, mil vezes voltou a ela, como se as ondas, que
lhe vinham quase banhar os pés, o arrastassem consigo nas incessantes
ondulações do fluxo e do refluxo.
Afinal a palavra "Adeus" escoou-se, como
um tímido murmúrio, pelos lábios dos dois namorados; o elegante moço afastou-se
rapidamente, e, dando um pulo bem calculado, foi cair em pé dentro do barco,
que as ondas balouçavam.
Ao choque inesperado acordou em sobressalto o
barqueiro. Ergueu-se à pressa, e, depois de reconhecer seu amo, fitou os
olhos com certa inquietação no céu estrelado, cronômetro infalível dos homens
do mar.
― Ah! senhor, disse ele com a voz entrecortada, que
tanto se demorou! É forçoso apressarmo-nos, e não sei ainda se chegaremos a
tempo à praia.
― Que medo tens tu, homem? perguntou o que embarcara,
sentando-se comodamente na popa do bote. Está o mar de leite, e nem a mais
ligeira brisa lhe agita as ondas, nem uma nuvem ameaçadora assoma no horizonte!
As tempestades repousam, amigo!
― Não temo a procela, tornou o barqueiro, abanando a cabeça; eu e o vendaval
somos conhecidos velhos, e não me assusta a tormenta em noite escura, nem
receio ser engolido pelas ondas! Assim como assim um homem há de morrer uma
vez, e vale mais adormecer livremente envolto nesta mortalha de espuma, do que
ser cozido num lençol branco, e metido em uma cova, onde o nosso pobre corpo
nem uma vez só se poderá regalar com o cheiro da maresia! Mas ainda que a
temesse, não é numa noite destas que um velho marujo receia a tempestade. Vossa
senhoria tem razão: o mar está de leite, e o barco há de deslizar tão comodamente
por sobre as suas águas como uma carruagem por cima da poeira da estrada real.
― Então o que te assusta, meu velho?
― Está quase a dar meia-noite, senhor.
― Percebo! Receias que o fuso da tua companheira
não corra tão ligeiramente nas suas mãos enrugadas, de farta que esteja de te
esperar. Sossega, homem! Irei eu mesmo acalmar as rabugices da Catarina, e
prometer-lhe uma estriga de linho para os serões do inverno. Verás que a
velhita há de ficar tão contente, que nem pensará em ralhar contigo por causa
da desusada demorada.
― Não esteja com cuidado na Catarina, senhor, que ela
bem sabe que me não demoro por culpa minha. Oh! se sabe. Antes de ser velha
desdentada já foi moça e louçã, e há de se lembrar de como nós esquecíamos as
horas, que passavam, ela sentada à porta da choupana a concertar as redes de
seu pai, eu assentado no areal a falar-lhe falas de namoro, que lhe punham o
rosto mais vermelho do que uma rosa de maio. Ainda não é isso, meu amo.
― Então o que é, finalmente? perguntou o seu
interlocutor, já um tanto enfadado.
― É que não resulta bem algum às almas de dois cristãos
de estarem assim no mar por estes sítios ao bater da meia-noite.
― Por quê?
O barqueiro olhou com inquietação em torno de si, e
depois murmurou em voz baixa que mal se ouvia:
― É por causa da igreja profanada!
O esbelto moço olhou espantado para ele.
Durante a conversação, o pescador desamarrara o
barco, e, lançando mão dos remos, dera-lhe um impulso vigoroso. Já estavam longe
da praia, as ondas vinham bater no costado do bote com um murmúrio queixoso,
que acompanhava o som compassado do bater dos remos na água.
O pescador tornou a fitar o céu com inquietação, e,
sem responder a uma nova pergunta do seu passageiro, curvando-se para diante,
meteu os remos nas ondas, e, entesando depois os músculos vigorosos, fez,
erguendo-os de novo, espadanar uma cascata de espuma de cada lado do
ligeiro bote.
Este, como um corcel generoso, que ao sentir
enterrarem-se-lhe nos ilhais as esporas do cavaleiro, se empina primeiro,
depois, sacudindo as crinas, desata em vertiginoso galope, e, saltando de um
pulo uma onda, que vinha orgulhosa para ele, deslizou por sobre as águas com incrível
rapidez.
Ainda o passageiro não tivera tempo de repetir a pergunta, quando vibrou o
espaço com as lentas pancadas da meia-noite, que soava lá muito ao longe, no
sino de uma igreja situada à beira mar.
Produzia um efeito sinistro aquele som distante.
Cada uma das vibrações vinha, em intervalos iguais, expirar no ouvido dos dois
navegantes, e casar-se melancolicamente ao rugir contínuo das vagas.
O barqueiro deixou cair os remos, e bradou: "Jesus, meu Deus!" O
mesmo seu amo não se pôde eximir a um inexplicável receio.
Ambos silenciosos, o barqueiro com os cabelos em
pé, o nosso enamorado com vaga curiosidade, e um tal ou qual terror, contaram
as lentas pancadas do bronze sagrado.
Parece que aquelas vibrações não eram produzidas
pelo simples sino de uma igreja, mas que fora o anjo das vinganças do Senhor
quem fizera vibrar o bronze, e quem lhe dera aquela voz sobrenatural e
pavorosa.
Contaram uma... duas... três... doze. A última vibração
assemelhava-se a um gemido terno, ao uivo lamentoso do gênio da meia-noite,
que, abrindo as suas negras asas, anunciasse aos fantasmas o começo do seu
império.
O barqueiro, que se levantara, caiu de novo no meio
do barco e escondeu o rosto entre as mãos; seu amo soltou uma exclamação de
espanto.
Um clarão avermelhado tingira subitamente as ondas, como se um incêndio
começasse a lavrar no fundo do Oceano. As vagas soltaram um gemido plangente,
como crianças açoitadas.
E um concerto horrível, formado por muitas vozes,
erguera-se do fundo dos mares; e essas vozes cantavam os salmos da penitência.
Mas as palavras, cheias de unção, e impregnadas de
tristeza das sublimes poesias do rei profeta, tomavam uma acentuação irônica,
como se passassem pelos lábios requeimados dos anjos malditos.
No meio dessas vozes roucas fez-se ouvir de repente
uma voz suave e argentina de mulher, doce como o gemer da brisa nas solidões do
Oceano, feiticeira como a voz das sedutoras sereias.
Mas aquela mesma doçura tinha um não sei quê de
medonho, e nessas melodias celestiais reverberava-se o fogo do inferno.
No meio das notas mais ternas, vibrava subitamente uma
outra áspera e dissonante, que produzia o efeito que produziria no meio das
harmonias da harpa o som do estalar de uma corda.
E essa voz tinha ao mesmo tempo uma profunda
tristeza, uma plangente entonação, uma pungente ironia e um não sei quê d'atraente
e sedutor que fazia pensar na fatalidade.
Os olhos do moço passageiro encheram-se involunta
Os olhos do moço passageiro encheram-se involuntariamente de lágrimas, e com os
braços estendidos, perdido num vago êxtase, parecia querer voar nas asas
da melodia para o antro sub-marinho, onde se aninhava a enfeitiçada
sereia.
E a voz cantava:
Com a vossa santa cólera,
raio que fere e brilha,
ao ímpio que se humilha
não fulmineis, Senhor!
Neste meu seio embebe-se
a vossa frecha ardente,
e a mão onipotente
me oprime em seu furor.
Da vossa ira o hálito
secou-me membro a membro,
e ai! se então me lembro
do meu longo pecar,
de como olvidei, réprobo,
santos ditames vossos,
oh! sinto até meus ossos
um frêmito agitar!
O fardo imenso e hórrido
da minha iniquidade,
à voz da Divindade,
a fronte me curvou.
Da minha carne as ulceras
corrompe-as a lembrança
da ímpia atroz folgança,
que a Deus me arrebatou.
Era triste, profundamente triste a voz, que assim
cantava nos abismos do Oceano as primeiras palavras do primeiro salmo da penitência.
Ia enfraquecendo pouco a pouco até desfalecer quase de todo no último verso,
mas então a voz vibrava de novo com aspereza. Era triste, profundamente triste
a voz, que assim cantava nos abismos do Oceano as primeiras palavras do
primeiro salmo da penitência. Ia enfraquecendo pouco a pouco até desfalecer quase
de todo no último verso, mas então a voz vibrava de novo com aspereza, e era quase
uma gargalhada infernal, de desafio ao Eterno, do grito irônico com que
voltava a cantar os seguintes versos:
Com a vossa santa cólera,
raio que fere e brilha,
ao ímpio que se humilha
não fulmineis, Senhor!
Neste momento rasgaram-se as ondas, como se um novo
Moisés lhes tocasse com a varinha mágica. Entremostraram-se aos olhos do
espantado moço as profundidades do mar. Foi isso rápido como um relâmpago, mas
deu-lhe tempo suficiente para ver o interior de uma igreja gótica esplendidamente
iluminada com uma imensa profusão de círios. Uma longa fileira de guerreiros da
idade média cercava os altares, mas no meio da nave campeava, coisa estranha! a
mesa de uma orgia, e as taças de ouro, cheias de vinho espumoso, ostentavam-se
em cima da toalha. Uma mulher formosa como os anjos, mas tendo na fronte pálida
não sei que inexprimível selo da maldição divina, ergueu-se, como se fosse
sustentada por asas invisíveis, até à superfície dos mares. Cerrou-se de novo o
abismo, e as ondas purpureadas pelo reflexo dos círios estenderam por cima dessa
misteriosa igreja o seu líquido dossel.
E o vulto feminino, com as vestes alvejantes
ondeando por cima das vagas, e roçando a fimbria na orla da espuma, que o
clarão vermelho fazia espuma de sangue, com a coroa da orgia ainda na fronte,
encaminhou-se lentamente para o sítio onde o barco parara, porque o pescador
ainda não ousara nem sequer levantar-se.
O fantasma deslizava por cima das ondas, como se invisível
mão o impelisse; já estava próximo do bote, e os seus olhos negros, onde cintilava
uma chama infernal, exerciam uma incrível fascinação no nosso herói.
Afinal parou, e os seus braços estenderam-se vagarosamente para ele, a fronte pálida
tombou-lhe para o ombro, como lírio pendido pelo tufão. Ignota languidez
suavizou-lhe o fogo do olhar. As tranças negras desprenderam-se-lhe e flutuaram-lhe
nas espáduas. Os lábios descerraram-se, e a sua voz doce e melodiosa suspirou,
como um triste queixume os versos:
Neste meu seio embebe-se
a vossa frecha ardente,
e a mão onipotente
me oprime em seu furor.
Cego, louco, fascinado, o juvenil passageiro do
bote nem forças teve para resistir à sedução. Inclinou meio corpo para fora do
barco, estendeu as mãos, e ia precipitar-se nas ondas.
― Jesus! bradou o barqueiro.
O fantasma soltou um bramido de desesperação, as
ondas rasgaram-se de novo, e quando o moço abriu os olhos, que fechara de
deslumbrado pela chama que faiscara nas pupilas negras da gentil desconhecida,
já o vulto feminino desaparecera.
Mas as ondas continuavam a conservar a sua cor
escarlate, e o canto dos salmos vibrava ainda na imensidade.
***
O terror tirara as forças ao barqueiro, o terror lhas
deu de novo. Lançou mão dos remos, e o bote afastou-se rapidamente daquele terrível
sítio.
― Sabes a história do que estamos vendo? perguntou
o companheiro do pescador, com voz ainda agitada.
― Oh! se sei, senhor, é uma história terrível. Mas
não é neste sítio nem a esta hora que eu a hei de contar.
― Conta, tornou o interrogador imperiosamente, já
estamos longe do ponto fatal, e a voz dos réprobos vai-se perdendo no horizonte.
O barqueiro hesitou um instante, depois principiou
em voz tão baixa que mal se percebia, e sem deixar de impelir vigorosamente o
bote, a seguinte narração:
"Havia aqui dantes, há um bom par de anos, e
junto daquele castelo, cujas ruínas ainda pode divisar penduradas como ninho de
águias em cima das fragas, uma igreja que fora mandada construir por um devoto
fidalgo daquele solar, fidalgo que morreu em cheiro de santidade. A igreja era
tida em conta de milagrosa, e ali concorriam imensos fiéis atraídos pela fama
do templo, e pelas virtudes do capelão, homem de vida austera, afetuoso para
com os humildes e nada servil com os grandes, a quem dizia as verdades por mais
amargas que fossem, quando entendia que assim o exigiam os deveres do seu ministério.
"Vivia então no castelo um fidalgo devasso,
filho do fundador da igreja, o qual, se lhe herdara as riquezas, não lhe herdara
as virtudes, porque os tesouros da terra na terra ficam, mas os tesouros do céu
esses voltam com o seu possuidor para o seio do Onipotente.
"Tinha esse fidalgo uma irmã. Linda era ela.
Gentil a mais não poder ser. Dizem que o rosto é o espelho da alma, e se assim
fosse, ninguém possuía mais formosa índole nem mais cândido espírito do
que a irmã de Guilherme, a filha do virtuoso Pelaio. Mas não era assim. A
natureza esmerara-se tanto em lhe aprimorar a beleza física, que se esquecera
de certo de cuidar com igual desvelo na formosura moral. É assim que dizem que Satanás
tem uma beleza sedutora, e que seria um guapo arcanjo, se o pé caprino não
revelasse a quem se deixa fascinar pela etérea gentileza do anjo maldito, que
está a contas com o pai da mentira. Infelizmente Inês não tinha esse sinal que
a distinguisse dos anjos de que parecia irmã, e, se algum cauteloso enamorado,
para tranquilidade de consciência, lançasse uma vista de olhos para o pezinho encantador da formosa filha de Pelaio, não fazia
mais do que completar a fascinação, e, em vez da água benta, com que tencionava
aspergi-lo, era natural que o cobrisse de beijos, tão airoso era ele e tão
pequenino, tão pequenino que parecia que a natureza, ao esquecer-se de lhe
formar a alma, se esquecera também de lhe formar o pé.
"Quando ela passeava a cavalo por essas férteis várzeas, montada
elegantemente num lindo cavalo preto, todos se ficavam enlevados a contemplá-la,
e não havia donzela nem rico homem que não sacrificasse de boa vontade a vida para
fazer brotar um raio d'amor na pupila negra da gentil Inês. Mas ninguém o
conseguia, e o mármore daquele rosto adorado nunca se purpureara com o rubor da
paixão. Engano-me. Paixão sentia ela, veemente, incestuosa, horrenda, e que lhe
devia incendiar o rosto não no vivo escarlate do pejo de donzela enamorada, mas
sim no rubor da vergonha e do remorso. A réproba amava seu irmão!
"E não imagine que ela ocultasse essa paixão
criminosa. Pelo contrario gloriava-se dela impudentemente. E o espetáculo, que
davam aqueles dois ímpios, era um escândalo contínuo para os bons cristãos dos
arredores.
"Não se faz ideia das orgias frenéticas e
loucas, a que no castelo se entregavam aqueles dois abandonados de Deus. Quem
passasse à meia-noite pelo caminho que serpeia na montanha, e onde estava
situado o solar defrontando com a igreja, havia de parar cheio de religioso
terror ao ver de um lado o imenso clarão das luzes incendiando as vidraças da
sala da orgia, ouvindo os cantares ébrios, os risos descompassados, as blasfêmias,
as musicas voluptuosas, e dando com a vista do outro lado na casa do Senhor,
muda, deserta, sepultada em trevas, como um terrível arcanjo que contemplasse
com olhar severo os folgares dos malditos, e que esperasse silencioso que
soasse a hora da punição.
"O mar batia de continuo nos rochedos, e aquele
ruído incessante, se o ouvissem nas salas, havia de lhes soar lugubremente como
a voz justamente irritada do Deus vingador.
"A igreja e o mar! Diante do templo erigido
pela piedade dos homens, diante do templo imenso em que mais se revela a imagem
da Providência, como poderia haver quem esquecesse por tal forma os preceitos
da lei divina?
"Pois havia! e à noite, quando na misteriosa
soledade da nave, se erguiam os mortos do seu leito de pedra para se ajoelharem
diante do altar, quando o vasto Oceano desprendia dos seus lábios de espuma o hino religioso
com que celebra a onipotência de Deus, acendiam-se as luzes no salão do castelo,
sentavam-se à mesa da orgia Guilherme e Inês e alguns cortesões das suas devassidões,
porque os seus iguais todos se haviam desviado daquela Gomorra amaldiçoada,
sobre a qual cedo ou tarde cairia o fogo do céu; e a irmã do castelão, no fim
do banquete, cingia a fronte com uma grinalda de rosas, empunhava a harpa, e
cantava canções báquicas com essa voz melodiosa, pura e vibrante, que os anjos
lhe invejavam, para descantar os seus hinos de louvor ao Eterno.
"Um dia o velho capelão, que fora o primeiro
padre que dissera missa na igreja cujo fundador fora o pai dos dois devassos,
dirigiu-se ao castelo, tencionando chamar para o redil da igreja aquelas duas
ovelhas desgarradas por atalhos de maldição.
"Nada conseguiu senão excitar o ódio de Inês,
que ouviu furiosa as repreensões do padre, e que foi imediatamente queixar-se a
Guilherme da insolência do sacerdote, e pedir-lhe, como premio de amor, a
cabeça do digno homem, como outrora Herodias pedia a Antipas a cabeça de São
João Batista.
"Não ousou conceder-lha Guilherme. Conservava
ainda, no meio dos seus vícios, um respeito supersticioso por seu pai, e não
ousava tocar na pessoa inviolável daquele a quem Pelaio confiara o templo que
fundara.
"Não insistiu Inês; mas projetos de vingança
atroz calaram imediatamente naquele espírito pervertido.
"Uma noite, noite de Natal, a chuva caía em torrentes,
açoitando igualmente as vidraças do castelo, iluminadas com o clarão do festim,
e os vidros de cor da igreja através dos quais coava a religiosa luz dos
tocheiros acesos para se celebrar a tocante solenidade da missa da meia-noite.
"O mar rugia de encontro aos rochedos, e
soltava ora gemidos pavorosos, ora lamentosos queixumes.
"O vendaval corria infrene por sobre as ondas.
"De mais folias ainda do que de costume era
testemunha o salão do castelo. Os gritos dos ébrios ouviam-se cá fora distintamente,
e faziam com que todos os que se dirigiam à missa se persignassem com horror.
"Sentada numa cadeira de espaldar, junto de
seu irmão, Inês, com os cabelos em desordem, soltos pelas espáduas nuas, com a lascívia
no olhar e na atitude, desferia a harpa de ouro e descantava as mais alegres
canções.
"O vento e o mar soltavam cá fora os seus
tristes e lúgubres lamentos.
"De repente soou meia-noite na torre da igreja. Os repiques da sineta anunciaram
imediatamente que ia principiar a missa.
"Cessaram os risos e os cantares no castelo de
Guilherme. Só Inês com o seu diabólico sorriso a pairar-lhe nos róseos lábios,
exclamou:
"― De que vos temeis, nobres cavaleiros? Tão
desjeitosa estou já no dedilhar da harpa, que lhe prefiram o agudo cantar da
sineta? Tão enfraquecida está a minha voz, que cessem de a escutar para ouvirem
o bronze de um campanário?
"Neste mesmo instante um raio fuzilou no
espaço, inundando a sala com a sua luz fosfórica, e o vendaval, redobrando de
força, fez em estilhas uma das vidraças.
"Todos sentiram um convulso tremor
percorrer-lhes as veias, e o próprio Guilherme limpou o suor frio que lhe
escorria na testa. Inês continuou:
― Receais a tormenta? Quereis um conselho? Deixemos esta sala que o vento vai tornar
inabitável, e que a chuva vai inundar, e vamos procurar um abrigo na igreja. Ali,
sim, que é sala cômoda. Utilizemo-la. Um último copo de vinho, meus senhores, e
façamos a transferência.
"Todos obedeceram às ordens da formosa Inês. Beberam um copo de vinho, e
ergueram-se bradando resolutamente: "Para a igreja."
"O ministro de Deus subira nesse instante ao
altar revestido dos seus sagrados paramentos. Tornavam-no respeitável o seu caráter
augusto de imaculado sacrificador, e ainda mais o seu diadema de cabelos
brancos, e a invisível aureola de virtudes que lhe circundavam a fronte.
"A multidão ajoelhada sentia como que o espírito
de Deus baixar ao templo, evocado pelo santo sacerdote. O órgão começava a
gemer os seus doces cantares. A tempestade parecia respeitar aquele sacro asilo,
suspirando plangente nas frestas ogivais, e não rugindo pavorosa, como quando
sacudia as suas negras asas em torno do castelo.
"Tudo era sossego e serenidade naquela divina estância.
"Súbito irrompeu pelo portal da igreja a turba
dos ébrios, em descompostos cantares. Ficou gelada de terror a devota multidão.
Perturbado quando erguia a Deus o imaculado espírito, o sacerdote voltou-se e
deu com os olhos na bela Inês, que vinha na frente encostando-se com
insolente descaro ao braço de seu irmão.
"Inflamado em santa cólera, o velho ministro do Senhor desceu os degraus
do altar, e, dirigindo-se aos recém-chegados, bradou com voz sonora, em que
vibrava o eco das iras de Deus:
"― Parai, não profaneis o templo, e não
obrigueis a fulminar-vos o raio de excomunhão, que vos está impendente.
"Era venerando o vulto apostólico do santo
varão. O povo caiu de joelhos, e a tempestade suspendeu os seus bramidos, como
que respeitosa e trêmula.
"Ouviam os elementos desvairados a voz do
ministro do Onipotente. Só ficavam cerrados os ouvidos dos ímpios.
"Era porque chegara a hora fatal, e a taça das
iniquidades trasbordara enfim.
"Inês sorriu-se meigamente para seu irmão. Que
doce, que angélico sorriso! Quem diria que esse sorriso, que rescendia amores,
era apenas um incitamento ao assassino?
"Pois foi. Guilherme alucinado arrancou do
punhal, e feriu o velho sacerdote.
"O sangue espadanou da ferida, e salpicou,
tingindo de escarlate o cândido vestido de Inês.
"A multidão fugira horrorizada, os criados, ímpios
como seus amos, haviam trazido nesse instante a mesa da orgia.
"Mas assim que baqueou o sacerdote, a
tempestade, suspensa por um momento, soltou-se com novo furor. Rugiu o vento
nas frestas da igreja, fuzilaram os raios, bramiu, quebrando-se nos "Mas
assim que baqueou o sacerdote, a tempestade, suspensa por um momento, soltou-se
com novo furor. Rugiu o vento nas frestas da igreja, fuzilaram os raios,
bramiu, quebrando-se nos rochedos, o Oceano enfurecido, e os túmulos de
pedra da igreja estalaram como se fossem de vidro.
"E do túmulo de mais primoroso lavor, surgiu,
envolto na mortalha, o espectro de Pelaio, o fundador da igreja. Ondeavam-lhe
ainda as barbas nevadas sobre o fúnebre escapulário, e das orbitas cavadas,
coisa horrível! brotavam lágrimas ardentes.
"Ergueu-se, ergueu-se; já não tocava com os
pés no chão marmóreo da igreja. O vento engolfando-se pelo portal do templo,
agitava-lhe as pregas da mortalha. Com as mãos unidas, em atitude de oração, o
velho finado, subindo lentamente nos ares, parecia um desses profetas que o
Senhor Deus arrebatava para as alturas do Empírio.
"Quando chegou ao teto, o teto abriu-se como por encanto e o venerando
finado continuou a sua majestosa ascensão na atmosfera que se esclarecia em
torno dele, como se aquele cadáver irradiasse luz.
"Os ímpios haviam ficado imóveis e atônitos de terror. Mas, apenas o velho
Pelaio se sumiu ao longe na região das nuvens, ressoou em toda a igreja um terrível
estampido. O órgão vibrou, sem que mão humana o tocasse, e o tremendo Dies
irai jorrou em torrentes de severa melodia pela nave do templo. Vacilaram
os colunelos, nos frisos e laçarias gemeu o vento em cânticos sinistros, e,
como se o vendaval a tivesse arrancado pela base, aquela mole imensa
levantou-se do chão, oscilou nos ares como impelida por invisível fundibulário,
e arrojou-se ao Oceano, levando no seu seio os profanadores, que soltaram um último
rugido de desespero.
"Abriu-se o mar para tragar a preza enorme que
se lhe oferecia, depois a liquida superfície uniu-se de novo, e essa
mortalha imensa, cujas pregas são as ondas, desenrolou-se para encobrir esse cadáver
de pedra.
"Desde então todas as noites, ao bater da
meia-noite, acendem-se os círios na igreja sepultada, e, no fundo do mar, os
réprobos entoam os salmos da penitência.
"A voz de Inês sobreleva a todas, e exerce
ainda, do fundo do Oceano, a sua irresistível sedução.
"Às vezes ergue-se o fantasma da formosa até
ao cimo das ondas, e arrasta para os abismos os incautos que cedem ao mágico
poder dos seus feitiços..
"Proteja-nos o Senhor contra estas tentações.
Eis-nos chegados à praia.
***
O barqueiro amarrou o bote, e saltou em terra. O
moço passageiro ficou largo tempo a contemplar o Oceano.
As ondas conservavam ainda ao longe o seu reflexo
escarlate, e a voz dos precitos, enfraquecida pela distância, vinha expirar na
praia em melancólica toada.
Aos primeiros clarões da aurora tudo se dissipou; apagou-se a pouco e pouco a
luz vermelha, ao passo que se ia aclarando mais o horizonte, e que as ondas se
iam branqueando com o tênue fulgor do alvorecer.
O canto dos malditos foi também esmorecendo a pouco
e pouco, até que a última nota vibrou solitária no espaço; e esse silêncio
singular que precede o romper do dia foi apenas quebrado pelo hino eterno
do marulhar das ondas.
***
Houve um momento de silêncio, quando o doutor
Macedo acabou a leitura do romance. Naquele grupo havia de certo nesse instante
um coração que esse silêncio fazia bater com desusada violência. Afinal Lúcio
Valença quebrou o encanto, dizendo:
― Decididamente, caro doutor, o nosso desconhecido
colega deu um golpe de mestre, escolhendo o para leitor de uma lenda. A sua voz
deu-me arrepios, as suas inflexões ressuscitaram a meia-noite. Com a breca!
houve um momento, em que me não atrevi a olhar para a janela, com medo de
ver encostado aos vidros o espectro fascinador de Inês.
― Ah! de certo, disse ou antes balbuciou Leonor,
nem assim se pode avaliar o mérito da lenda. O doutor é como um destes atores,
que transformam sempre em magníficos papéis as mais insignificantes
banalidades.
O doutor sorriu-se para ela maliciosamente, mas ao mesmo tempo um concerto de
elogios protestava contra a frase dúbia de Leonor. O mais ardente no aplauso
era Henrique Osório.
― Bem! chegou o momento solene! disse Macedo, o
publico chama pelo autor, e eu, como no teatro francês e espanhol, depois dos
três cumprimentos do estilo, vou arrojar o nome do poeta à plateia entusiasmada.
Se me dispensam dos cumprimentos, substituo-os por uns certos efeitos oratórios.
― Vá! vá! diga, doutor! bradaram todos em coro.
― Um! exclamou o doutor Macedo, batendo as palmas;
o autor é uma senhora linda, elegante e espirituosa.
― Isso é abusar, doutor! bradaram os circunstantes
indignados.
― Dois! tornou Macedo. Acha-se presente a referida
senhora.
― Estrangulam-lo? propôs Lúcio Valença.
― Um voto de censura na ata! bradou o visconde da
Fragosa, sempre parlamentar.
― Dependuramo-lo da janela até ele dizer o nome! exclamou Henrique Osório.
― Já o tinha dito, se vocês me não interrompessem,
exclamou placidamente o doutor Macedo enquanto a viscondessa da Fragosa,
Leonor e Isaura riam a bom rir da alegre cena.
― Então fala, ventre-saint-gris! bradou Roberto Soares.
― Ventre-saint-gris não é da idade
média, Sr. Roberto Soares, disse o doutor Macedo que já erguera as mãos para
bater as palmas pela terceira vez, e que tirou tranquilamente um charuto da
algibeira.
― Uma corda! bradou Henrique Osório.
― E um algoz de boa vontade! exclamou Lúcio
Valença.
― Á ordem! acudiu logo o visconde da Fragosa.
Então, o doutor Macedo, com o charuto ainda não aceso
nos dentes, bateu as palmas, e disse:
― Três!
Estabeleceu-se um profundo silêncio.
― A lenda que tive a honra de submeter à apreciação
de vossas excelências, concluiu o doutor, foi escrita pela excelentíssima senhora
D. Leonor de Matos e Vasconcelos, filha do nosso excelente amigo, visconde da
Fragosa.
― Tu, Leonor! exclamou Henrique Osório estupefato.
― Tu, filha! disse a viscondessa com os olhos rasos
de água.
― Eu logo vi que tinha sido ela, exclamava o pai todo
ufano.
Confusa no meio de todos os cumprimentos, com que
em todas as famílias se festejam as mais insignificantes estreias literárias do
filho mimoso da casa, Leonor nem ousava erguer os olhos para Henrique. Este
contemplava-a pasmado, depois mirava a furto Isaura, um pouco fria, um pouco
descontente com a ovação da sua amiga, e evidentemente de si para
si lamentava que não fosse a pálida menina a sonhadora das fantasias da Igreja
profanada.
Mas também, quando tornava a mirar Leonor, e a via
modesta, perturbada, evidentemente envergonhada de ser o alvo de todas as atenções,
agora mil vezes mais afável com Isaura do que até aí, como que pedindo-lhe
perdão do seu involuntário triunfo, Henrique não podia deixar de dizer de si
para si que havia um abismo entre a pretensiosa frivolidade de Isaura e a desafetada
simplicidade de Leonor, que bem se via que não dava ao seu conto maior valor do
que ele merecia, e que, escrevendo-o, parecia ter querido mostrar apenas que
não era estranha às altas preocupações do espírito, e que a sua fantasia também
tinha asas para se arrojar ao mundo do ideal.
E, enquanto a conversação volteava alegremente em torno do conto de Leonor, enquanto
uns narravam os calafrios que tinham sentido, e outros felicitavam o leitor e a
autora, Osório, encostando a fronte na mão, ficou profundamente pensativo.
Instantes depois, dispersava-se a companhia, e
Leonor, passando junto de Henrique para se retirar para o seu quarto, sentia pousar
na sua mão, para a demorar, a mão tremente do seu companheiro de infância.
Ela estremeceu toda, como se se tivesse posto em contacto com uma garrafa de Leide.
― Sabes, disse-lhe ele, que achei encantador o teu
conto?
― Sabes que te não acredito? respondeu ela, rindo,
e já senhora de si.
― Oh! eu não faço a crítica literária do romance. É provável que tenha inúmeros
defeitos. Digo-te apenas que me impressionou. Quando o escreveste?
― Hoje!
― Hoje? acudiu ele cravando em Leonor um olhar
profundo.
― Sim, tornou ela com o coração a bater-lhe
violentamente, corada até à raiz dos cabelos, mas resoluta, quis-te mostrar que
já passou para mim o tempo das bonecas, e que o que me preocupa o coração e o espírito
não são já as puerilidades dos nossos brinquedos de outrora, mas os afetos e as
paixões da mulher.
Henrique apertou-lhe docemente a mão.
― Foi por minha causa, pois, que espertaste a fantasia,
para escreveres essa lenda? Tive eu a ventura suprema de preocupar deveras o
teu espírito inteligente? de fazer pulsar com mais força o teu ingênuo e nobre
coração?
― Henrique! murmurou ela.
― És um anjo, Leonor! disse ele em voz baixa.
O doutor Macedo encaminhava-se para onde estavam os
dois. Leonor despediu se, e toda palpitante de comoção e... di-lo-emos... também!...
de alegria, dirigiu-se para o seu quarto.
O doutor Macedo sorriu-se para Henrique, e murmurou
maliciosamente:
Si je vous le disais pourtant que je vous aime,
Qui sait, brune aux yeux bleus, ce que vous en diriez?
― O que! era esta, doutor? exclamou Henrique.
― Pois quem, meu criançola? É necessário ter
a miopia amorosa dos vinte anos para o não perceber há imenso tempo.
― Que quer você, Macedo! tornou Henrique, Leonor
foi minha companheira de infância. Havia entre nós, em crianças, uma certa
desproporção de idades. Entre dois pequenitos uma diferença de cinco anos abre
um abismo! Na mocidade é um curtíssimo intervalo. Costumei-me a ver sempre em
Leonor uma criança. A mulher feita revelou-se me agora, ao ouvir ler o conto
que ela escrevera. Então contemplei-a, e li nos seus formosos olhos a bondade
da sua alma, e a virgindade do seu afeto. Só agora percebi o tremor da sua voz
nas palavras que me dirigia! E eu passava junto dela quase sem a conhecer!
― Meu amigo, tornou Macedo, isso é uma história vulgar. Tem a gente ao pé da
porta um lago tranquilo, risonho, corado pelo esplendor do sol, nunca se lembra
de mergulhar nessas águas límpidas para colher a perola que lá brilha no fundo,
vai procurá-la então ao mar das tempestades, mergulha, e encontra ostras. Boa
noite, meu amigo.
E dirigiu-se para o seu quarto. Henrique imitou-o,
mas nessa noite não dormiu. A imagem que flutuava diante dos seus olhos
semi-cerrados, não era, não, a pálida imagem de Isaura.
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