1/14/2023

A igreja profanada (Conto), de Pinheiro Chagas


 A IGREJA PROFANADA

Corre sossegada a noite, mas não brilha a lua no céu a espargir tristezas, escondendo um devaneio, um sonho de poeta em cada uma das pregas da sua cândida túnica; cintilam apenas as estrelas no véu escuro do firmamento.

Formosas são as noites estreladas, mas não têm a suave melancolia das noites de luar; enleva-se-nos o espírito ao contemplar essas miríades de orbes luminosos; porém os raios da lua têm uma linguagem misteriosa que nos fala ao coração.

Quando no véu noturno brilham sem rivais as estrelas, como que percebemos a majestosa melodia das esferas; mas, quando a lua ilumina a terra com a sua doce luz, ouvimos então no espaço vagos cânticos de saudade, suspiros de virgem enamorada, canto de pescador que se perde ao longe nas ondas, toada de Quando no véu noturno brilham sem rivais as estrelas, como que percebemos a majestosa melodia das esferas; mas, quando a lua ilumina a terra com a sua doce luz, ouvimos então no espaço vagos cânticos de saudade, suspiros de virgem enamorada, canto de pescador que se perde ao longe nas ondas, toada de pegureiro, que vem desfalecida expirar no nosso ouvido, intimas melodias, que nos dizem: "amor e tristeza." 

Porque as estrelas são desdenhosas rainhas d'outros céus, sóis de outros mundos, que nos enviam, como que por descuido, um sinal de sua grandeza, um tênue raio da sua imensa luz, enquanto a lua é a extremosa amante, que prendeu à nossa a sua existência, a companheira que nos segue incessantemente nessa viagem sem fim, que empreendemos pelo espaço.

As estrelas tornam mais profunda a solidão, e mais espessas as trevas. Os bosques, os vales, as montanhas conservam-se envoltos num véu sombrio, por mais que os raios dos sóis da noite se esforcem por penetrar na escuridade; as ondas balouçam com indiferença os seus reflexos, e não fazem caso das palhetas douradas que avivam aqui e ali a candidez da sua fimbria espumosa.

Mas, quando surge a lua, a natureza anima-se. Desperta a viração nos antros perfumados das florestas, que exalam vivíssimos aromas. As fadas vem pentear as suas loiras tranças no espelho das fontes, cuja cristalina superfície palpita de prazer. Jorram torrentes de prata pela falda dos montes, cintilam diamantes na folhagem das árvores. Erguem se as ondas em vago enleio de voluptuosidade, como seio de virgem que arfa pela vez primeira. Rescende o meigo perfume no turíbulo da violeta. Rescende a saudade no turíbulo do coração.

As estrelas são os anjos de Deus, que entoam lá ao longe, nas profundidades do Empíreo, o hino às glorias do Eterno; a lua é o arcanjo consolador que presta um ouvido compadecido aos lamentos da humanidade. 

As estrelas são os candelabros de ouro, que ardem constantemente diante do trono do Altíssimo; a lua é a urna argêntea onde se transformam as lágrimas dos que sofrem em perolas, que os anjos entornam no regaço do Onipotente.

As estrelas são o enlevo do filosofo, a lua é enlevo de poetas.

Porque as estrelas revelam o poder de Jeová, a lua a caridade do Redentor.

Mas vai a noite sossegada, e a luz dos fachos da abobada celeste cintila frouxamente na face adormecida do mar. As vagas erguem-se vagarosamente, enroscam-se a pouco e pouco, caminham em longa fileira para as praias, e alastram no areal o seu manto escuro.

Negra, bem negra está a superfície do Oceano; os raios das estrelas, náufragos luminosos, debatem-se com as ondas, que mal conseguem dourar. Do seio dessas trevas sai um gemido cavernoso. É a voz eterna do líquido leão, é o rugir tranquilo mas terrível do monarca da imensidade.

Não param as vibrações nas espumosas cordas da harpa dos abismos; ora plangente, ora formidável, o cântico incessante ressoa no espaço.

E que diversidade de vozes não há nesse concerto imenso! o majestoso ruído das ondas ao assoberbarem-se lá no mar alto, o grito que resulta do embate de dois desses colossos que se encontram, o uivo de raiva que soltam quando espadanam nos rochedos da praia, o suspiro amoroso que desprendem ao beijarem o areal, o murmúrio palreiro das gotinhas de água ao despedirem-se a custo das conchas das ribas, E que diversidade de vozes não há nesse concerto imenso! o majestoso ruído das ondas ao assoberbarem-se lá no mar alto, o grito que resulta do embate de dois desses colossos que se encontram, o uivo de raiva que soltam quando espadanam nos rochedos da praia, o suspiro amoroso que desprendem ao beijarem o areal, o murmúrio palreiro das gotinhas de água ao despedirem-se a custo das conchas das ribas, o lamento que exalam ao açoitá-las o vento, tudo isto se resume num hino sublime, intraduzível, como os poetas os sonham, mas não escrevem.

Ó mar! A opulenta imaginação da antiguidade grega povoou de sereias as tuas ondas, pousou no cimo destas o velho Glaucus, com as suas barbas limosas, com a sua voz aterradora, pousou no teu leito de espuma ora a rósea concha Acidália em cujo seio se abrigava a cândida Afrodite, ora a sedutora Lamia, ora as horríveis Greias, e nem assim conseguiu traduzir o indizível encanto com que nos atrais, e o vago terror que nos incutes, a suavidade da tua voz, e a selvagem energia dos teus hinos! Ó mar imenso, que lira enfeitiçada te deu o Senhor, de que misteriosa sedução impregnou as tuas solidões?

Assim perdido nas trevas como é majestoso o Oceano! Nem uma vela se distingue na imensidade solitária! Ainda naquele isolamento, não descontinua o fadário das ondas! Vão, vem, atropelam-se, espraiam-se, beijam se, desmaiam, agitam-se, revolvem-se, cantam, suspiram, e, lá ao longe talvez, algum cismador, encostado ao peitoril da sua janela, ao ouvir aquele ruído inefável, pensa na eternidade, e em Deus!

Contudo bem junto da praia, a pouca distância de uma casa cuja fachada branca mira silenciosa a eterna agitação do Oceano, que envia às vezes, de enamorado, uma das suas ondas a beijar-lhe os pés, balouça-se indolentemente uma barca, onde dorme um pescador, cujo sono é acalentado por esse murmúrio suave.

As ondas embalam tão docemente o bote, como carinhosa mãe pode embalar o berço do recém-nascido.

A uma das janelas que se rasgam na fachada branca da casa da praia, encosta-se um vulto de mulher. Embaixo está um outro vulto varonil e elegante. Ouve-se, por entre o concerto das vagas, o misterioso segredar de duas vozes.

Leandro e Hero, Rosina e Almaviva, Julieta e Romeu!

O bramir do mar abafa o manso ruído das vozes. Mas o rugido do Oceano, e o flébil sussurrar dos namorados chegam, em murmúrio igual, ao trono do Onipotente: porque são duas notas do hino imenso do Universo, que se resume numa palavra "Amor."

***

Tudo neste mundo acaba, inclusivamente as doces palestras enamoradas. Mais infeliz do que a desditosa heroína de Shakespeare, a donzela da casa da praia não pôde esperar que o grito matinal da cotovia saudasse o alvorecer. Ainda a noite não chegara ao meio do seu giro, e já era forçosa a separação.

Trocaram-se suaves promessas, mil vezes se afastou o nosso Romeu da fachada branca, mil vezes voltou a ela, como se as ondas, que lhe vinham quase banhar os pés, o arrastassem consigo nas incessantes ondulações do fluxo e do refluxo.

Afinal a palavra "Adeus" escoou-se, como um tímido murmúrio, pelos lábios dos dois namorados; o elegante moço afastou-se rapidamente, e, dando um pulo bem calculado, foi cair em pé dentro do barco, que as ondas balouçavam.

Ao choque inesperado acordou em sobressalto o barqueiro. Ergueu-se à pressa, e, depois de reconhecer seu amo, fitou os olhos com certa inquietação no céu estrelado, cronômetro infalível dos homens do mar.

― Ah! senhor, disse ele com a voz entrecortada, que tanto se demorou! É forçoso apressarmo-nos, e não sei ainda se chegaremos a tempo à praia.

― Que medo tens tu, homem? perguntou o que embarcara, sentando-se comodamente na popa do bote. Está o mar de leite, e nem a mais ligeira brisa lhe agita as ondas, nem uma nuvem ameaçadora assoma no horizonte! As tempestades repousam, amigo!

― Não temo a procela, tornou o barqueiro, abanando a cabeça; eu e o vendaval somos conhecidos velhos, e não me assusta a tormenta em noite escura, nem receio ser engolido pelas ondas! Assim como assim um homem há de morrer uma vez, e vale mais adormecer livremente envolto nesta mortalha de espuma, do que ser cozido num lençol branco, e metido em uma cova, onde o nosso pobre corpo nem uma vez só se poderá regalar com o cheiro da maresia! Mas ainda que a temesse, não é numa noite destas que um velho marujo receia a tempestade. Vossa senhoria tem razão: o mar está de leite, e o barco há de deslizar tão comodamente por sobre as suas águas como uma carruagem por cima da poeira da estrada real.

― Então o que te assusta, meu velho?

― Está quase a dar meia-noite, senhor.

― Percebo! Receias que o fuso da tua companheira não corra tão ligeiramente nas suas mãos enrugadas, de farta que esteja de te esperar. Sossega, homem! Irei eu mesmo acalmar as rabugices da Catarina, e prometer-lhe uma estriga de linho para os serões do inverno. Verás que a velhita há de ficar tão contente, que nem pensará em ralhar contigo por causa da desusada demorada.

― Não esteja com cuidado na Catarina, senhor, que ela bem sabe que me não demoro por culpa minha. Oh! se sabe. Antes de ser velha desdentada já foi moça e louçã, e há de se lembrar de como nós esquecíamos as horas, que passavam, ela sentada à porta da choupana a concertar as redes de seu pai, eu assentado no areal a falar-lhe falas de namoro, que lhe punham o rosto mais vermelho do que uma rosa de maio. Ainda não é isso, meu amo.

― Então o que é, finalmente? perguntou o seu interlocutor, já um tanto enfadado.

― É que não resulta bem algum às almas de dois cristãos de estarem assim no mar por estes sítios ao bater da meia-noite.

― Por quê?

O barqueiro olhou com inquietação em torno de si, e depois murmurou em voz baixa que mal se ouvia:

― É por causa da igreja profanada!

O esbelto moço olhou espantado para ele.

Durante a conversação, o pescador desamarrara o barco, e, lançando mão dos remos, dera-lhe um impulso vigoroso. Já estavam longe da praia, as ondas vinham bater no costado do bote com um murmúrio queixoso, que acompanhava o som compassado do bater dos remos na água.

O pescador tornou a fitar o céu com inquietação, e, sem responder a uma nova pergunta do seu passageiro, curvando-se para diante, meteu os remos nas ondas, e, entesando depois os músculos vigorosos, fez, erguendo-os de novo, espadanar uma cascata de espuma de cada lado do ligeiro bote.

Este, como um corcel generoso, que ao sentir enterrarem-se-lhe nos ilhais as esporas do cavaleiro, se empina primeiro, depois, sacudindo as crinas, desata em vertiginoso galope, e, saltando de um pulo uma onda, que vinha orgulhosa para ele, deslizou por sobre as águas com incrível rapidez.


Ainda o passageiro não tivera tempo de repetir a pergunta, quando vibrou o espaço com as lentas pancadas da meia-noite, que soava lá muito ao longe, no sino de uma igreja situada à beira mar.

Produzia um efeito sinistro aquele som distante. Cada uma das vibrações vinha, em intervalos iguais, expirar no ouvido dos dois navegantes, e casar-se melancolicamente ao rugir contínuo das vagas.

O barqueiro deixou cair os remos, e bradou: "Jesus, meu Deus!" O mesmo seu amo não se pôde eximir a um inexplicável receio.

Ambos silenciosos, o barqueiro com os cabelos em pé, o nosso enamorado com vaga curiosidade, e um tal ou qual terror, contaram as lentas pancadas do bronze sagrado.

Parece que aquelas vibrações não eram produzidas pelo simples sino de uma igreja, mas que fora o anjo das vinganças do Senhor quem fizera vibrar o bronze, e quem lhe dera aquela voz sobrenatural e pavorosa.

Contaram uma... duas... três... doze. A última vibração assemelhava-se a um gemido terno, ao uivo lamentoso do gênio da meia-noite, que, abrindo as suas negras asas, anunciasse aos fantasmas o começo do seu império. 

O barqueiro, que se levantara, caiu de novo no meio do barco e escondeu o rosto entre as mãos; seu amo soltou uma exclamação de espanto.

Um clarão avermelhado tingira subitamente as ondas, como se um incêndio começasse a lavrar no fundo do Oceano. As vagas soltaram um gemido plangente, como crianças açoitadas.

E um concerto horrível, formado por muitas vozes, erguera-se do fundo dos mares; e essas vozes cantavam os salmos da penitência.

Mas as palavras, cheias de unção, e impregnadas de tristeza das sublimes poesias do rei profeta, tomavam uma acentuação irônica, como se passassem pelos lábios requeimados dos anjos malditos.

No meio dessas vozes roucas fez-se ouvir de repente uma voz suave e argentina de mulher, doce como o gemer da brisa nas solidões do Oceano, feiticeira como a voz das sedutoras sereias.

Mas aquela mesma doçura tinha um não sei quê de medonho, e nessas melodias celestiais reverberava-se o fogo do inferno.

No meio das notas mais ternas, vibrava subitamente uma outra áspera e dissonante, que produzia o efeito que produziria no meio das harmonias da harpa o som do estalar de uma corda.

E essa voz tinha ao mesmo tempo uma profunda tristeza, uma plangente entonação, uma pungente ironia e um não sei quê d'atraente e sedutor que fazia pensar na fatalidade.

Os olhos do moço passageiro encheram-se involunta Os olhos do moço passageiro encheram-se involuntariamente de lágrimas, e com os braços estendidos, perdido num vago êxtase, parecia querer voar nas asas da melodia para o antro sub-marinho, onde se aninhava a enfeitiçada sereia.

E a voz cantava:

Com a vossa santa cólera,
raio que fere e brilha,
ao ímpio que se humilha
não fulmineis, Senhor!

Neste meu seio embebe-se
a vossa frecha ardente,
e a mão onipotente
me oprime em seu furor.

Da vossa ira o hálito
secou-me membro a membro,
e ai! se então me lembro
do meu longo pecar,
de como olvidei, réprobo,
santos ditames vossos,
oh! sinto até meus ossos
um frêmito agitar!

O fardo imenso e hórrido
da minha iniquidade,
à voz da Divindade,
a fronte me curvou.
Da minha carne as ulceras
corrompe-as a lembrança
da ímpia atroz folgança,
que a Deus me arrebatou.

Era triste, profundamente triste a voz, que assim cantava nos abismos do Oceano as primeiras palavras do primeiro salmo da penitência. Ia enfraquecendo pouco a pouco até desfalecer quase de todo no último verso, mas então a voz vibrava de novo com aspereza. Era triste, profundamente triste a voz, que assim cantava nos abismos do Oceano as primeiras palavras do primeiro salmo da penitência. Ia enfraquecendo pouco a pouco até desfalecer quase de todo no último verso, mas então a voz vibrava de novo com aspereza, e era quase uma gargalhada infernal, de desafio ao Eterno, do grito irônico com que voltava a cantar os seguintes versos:

Com a vossa santa cólera,
raio que fere e brilha,
ao ímpio que se humilha
não fulmineis, Senhor!

Neste momento rasgaram-se as ondas, como se um novo Moisés lhes tocasse com a varinha mágica. Entremostraram-se aos olhos do espantado moço as profundidades do mar. Foi isso rápido como um relâmpago, mas deu-lhe tempo suficiente para ver o interior de uma igreja gótica esplendidamente iluminada com uma imensa profusão de círios. Uma longa fileira de guerreiros da idade média cercava os altares, mas no meio da nave campeava, coisa estranha! a mesa de uma orgia, e as taças de ouro, cheias de vinho espumoso, ostentavam-se em cima da toalha. Uma mulher formosa como os anjos, mas tendo na fronte pálida não sei que inexprimível selo da maldição divina, ergueu-se, como se fosse sustentada por asas invisíveis, até à superfície dos mares. Cerrou-se de novo o abismo, e as ondas purpureadas pelo reflexo dos círios estenderam por cima dessa misteriosa igreja o seu líquido dossel.

E o vulto feminino, com as vestes alvejantes ondeando por cima das vagas, e roçando a fimbria na orla da espuma, que o clarão vermelho fazia espuma de sangue, com a coroa da orgia ainda na fronte, encaminhou-se lentamente para o sítio onde o barco parara, porque o pescador ainda não ousara nem sequer levantar-se. 

O fantasma deslizava por cima das ondas, como se invisível mão o impelisse; já estava próximo do bote, e os seus olhos negros, onde cintilava uma chama infernal, exerciam uma incrível fascinação no nosso herói. Afinal parou, e os seus braços estenderam-se vagarosamente para ele, a fronte pálida tombou-lhe para o ombro, como lírio pendido pelo tufão. Ignota languidez suavizou-lhe o fogo do olhar. As tranças negras desprenderam-se-lhe e flutuaram-lhe nas espáduas. Os lábios descerraram-se, e a sua voz doce e melodiosa suspirou, como um triste queixume os versos:

Neste meu seio embebe-se
a vossa frecha ardente,
e a mão onipotente
me oprime em seu furor.

Cego, louco, fascinado, o juvenil passageiro do bote nem forças teve para resistir à sedução. Inclinou meio corpo para fora do barco, estendeu as mãos, e ia precipitar-se nas ondas.

― Jesus! bradou o barqueiro.

O fantasma soltou um bramido de desesperação, as ondas rasgaram-se de novo, e quando o moço abriu os olhos, que fechara de deslumbrado pela chama que faiscara nas pupilas negras da gentil desconhecida, já o vulto feminino desaparecera.

Mas as ondas continuavam a conservar a sua cor escarlate, e o canto dos salmos vibrava ainda na imensidade.

***

O terror tirara as forças ao barqueiro, o terror lhas deu de novo. Lançou mão dos remos, e o bote afastou-se rapidamente daquele terrível sítio. 

― Sabes a história do que estamos vendo? perguntou o companheiro do pescador, com voz ainda agitada.

― Oh! se sei, senhor, é uma história terrível. Mas não é neste sítio nem a esta hora que eu a hei de contar.

― Conta, tornou o interrogador imperiosamente, já estamos longe do ponto fatal, e a voz dos réprobos vai-se perdendo no horizonte.

O barqueiro hesitou um instante, depois principiou em voz tão baixa que mal se percebia, e sem deixar de impelir vigorosamente o bote, a seguinte narração:

"Havia aqui dantes, há um bom par de anos, e junto daquele castelo, cujas ruínas ainda pode divisar penduradas como ninho de águias em cima das fragas, uma igreja que fora mandada construir por um devoto fidalgo daquele solar, fidalgo que morreu em cheiro de santidade. A igreja era tida em conta de milagrosa, e ali concorriam imensos fiéis atraídos pela fama do templo, e pelas virtudes do capelão, homem de vida austera, afetuoso para com os humildes e nada servil com os grandes, a quem dizia as verdades por mais amargas que fossem, quando entendia que assim o exigiam os deveres do seu ministério.

"Vivia então no castelo um fidalgo devasso, filho do fundador da igreja, o qual, se lhe herdara as riquezas, não lhe herdara as virtudes, porque os tesouros da terra na terra ficam, mas os tesouros do céu esses voltam com o seu possuidor para o seio do Onipotente.

"Tinha esse fidalgo uma irmã. Linda era ela. Gentil a mais não poder ser. Dizem que o rosto é o espelho da alma, e se assim fosse, ninguém possuía mais formosa índole nem mais cândido espírito do que a irmã de Guilherme, a filha do virtuoso Pelaio. Mas não era assim. A natureza esmerara-se tanto em lhe aprimorar a beleza física, que se esquecera de certo de cuidar com igual desvelo na formosura moral. É assim que dizem que Satanás tem uma beleza sedutora, e que seria um guapo arcanjo, se o pé caprino não revelasse a quem se deixa fascinar pela etérea gentileza do anjo maldito, que está a contas com o pai da mentira. Infelizmente Inês não tinha esse sinal que a distinguisse dos anjos de que parecia irmã, e, se algum cauteloso enamorado, para tranquilidade de consciência, lançasse uma vista de olhos para o pezinho encantador da formosa filha de Pelaio, não fazia mais do que completar a fascinação, e, em vez da água benta, com que tencionava aspergi-lo, era natural que o cobrisse de beijos, tão airoso era ele e tão pequenino, tão pequenino que parecia que a natureza, ao esquecer-se de lhe formar a alma, se esquecera também de lhe formar o pé.

"Quando ela passeava a cavalo por essas férteis várzeas, montada elegantemente num lindo cavalo preto, todos se ficavam enlevados a contemplá-la, e não havia donzela nem rico homem que não sacrificasse de boa vontade a vida para fazer brotar um raio d'amor na pupila negra da gentil Inês. Mas ninguém o conseguia, e o mármore daquele rosto adorado nunca se purpureara com o rubor da paixão. Engano-me. Paixão sentia ela, veemente, incestuosa, horrenda, e que lhe devia incendiar o rosto não no vivo escarlate do pejo de donzela enamorada, mas sim no rubor da vergonha e do remorso. A réproba amava seu irmão! 

"E não imagine que ela ocultasse essa paixão criminosa. Pelo contrario gloriava-se dela impudentemente. E o espetáculo, que davam aqueles dois ímpios, era um escândalo contínuo para os bons cristãos dos arredores.

"Não se faz ideia das orgias frenéticas e loucas, a que no castelo se entregavam aqueles dois abandonados de Deus. Quem passasse à meia-noite pelo caminho que serpeia na montanha, e onde estava situado o solar defrontando com a igreja, havia de parar cheio de religioso terror ao ver de um lado o imenso clarão das luzes incendiando as vidraças da sala da orgia, ouvindo os cantares ébrios, os risos descompassados, as blasfêmias, as musicas voluptuosas, e dando com a vista do outro lado na casa do Senhor, muda, deserta, sepultada em trevas, como um terrível arcanjo que contemplasse com olhar severo os folgares dos malditos, e que esperasse silencioso que soasse a hora da punição.

"O mar batia de continuo nos rochedos, e aquele ruído incessante, se o ouvissem nas salas, havia de lhes soar lugubremente como a voz justamente irritada do Deus vingador.

"A igreja e o mar! Diante do templo erigido pela piedade dos homens, diante do templo imenso em que mais se revela a imagem da Providência, como poderia haver quem esquecesse por tal forma os preceitos da lei divina?

"Pois havia! e à noite, quando na misteriosa soledade da nave, se erguiam os mortos do seu leito de pedra para se ajoelharem diante do altar, quando o vasto Oceano desprendia dos seus lábios de espuma o hino religioso com que celebra a onipotência de Deus, acendiam-se as luzes no salão do castelo, sentavam-se à mesa da orgia Guilherme e Inês e alguns cortesões das suas devassidões, porque os seus iguais todos se haviam desviado daquela Gomorra amaldiçoada, sobre a qual cedo ou tarde cairia o fogo do céu; e a irmã do castelão, no fim do banquete, cingia a fronte com uma grinalda de rosas, empunhava a harpa, e cantava canções báquicas com essa voz melodiosa, pura e vibrante, que os anjos lhe invejavam, para descantar os seus hinos de louvor ao Eterno.

"Um dia o velho capelão, que fora o primeiro padre que dissera missa na igreja cujo fundador fora o pai dos dois devassos, dirigiu-se ao castelo, tencionando chamar para o redil da igreja aquelas duas ovelhas desgarradas por atalhos de maldição.

"Nada conseguiu senão excitar o ódio de Inês, que ouviu furiosa as repreensões do padre, e que foi imediatamente queixar-se a Guilherme da insolência do sacerdote, e pedir-lhe, como premio de amor, a cabeça do digno homem, como outrora Herodias pedia a Antipas a cabeça de São João Batista.

"Não ousou conceder-lha Guilherme. Conservava ainda, no meio dos seus vícios, um respeito supersticioso por seu pai, e não ousava tocar na pessoa inviolável daquele a quem Pelaio confiara o templo que fundara.

"Não insistiu Inês; mas projetos de vingança atroz calaram imediatamente naquele espírito pervertido.

"Uma noite, noite de Natal, a chuva caía em torrentes, açoitando igualmente as vidraças do castelo, iluminadas com o clarão do festim, e os vidros de cor da igreja através dos quais coava a religiosa luz dos tocheiros acesos para se celebrar a tocante solenidade da missa da meia-noite.

"O mar rugia de encontro aos rochedos, e soltava ora gemidos pavorosos, ora lamentosos queixumes.

"O vendaval corria infrene por sobre as ondas.

"De mais folias ainda do que de costume era testemunha o salão do castelo. Os gritos dos ébrios ouviam-se cá fora distintamente, e faziam com que todos os que se dirigiam à missa se persignassem com horror.

"Sentada numa cadeira de espaldar, junto de seu irmão, Inês, com os cabelos em desordem, soltos pelas espáduas nuas, com a lascívia no olhar e na atitude, desferia a harpa de ouro e descantava as mais alegres canções.

"O vento e o mar soltavam cá fora os seus tristes e lúgubres lamentos.

"De repente soou meia-noite na torre da igreja. Os repiques da sineta anunciaram imediatamente que ia principiar a missa.

"Cessaram os risos e os cantares no castelo de Guilherme. Só Inês com o seu diabólico sorriso a pairar-lhe nos róseos lábios, exclamou:

"― De que vos temeis, nobres cavaleiros? Tão desjeitosa estou já no dedilhar da harpa, que lhe prefiram o agudo cantar da sineta? Tão enfraquecida está a minha voz, que cessem de a escutar para ouvirem o bronze de um campanário?

"Neste mesmo instante um raio fuzilou no espaço, inundando a sala com a sua luz fosfórica, e o vendaval, redobrando de força, fez em estilhas uma das vidraças. 

"Todos sentiram um convulso tremor percorrer-lhes as veias, e o próprio Guilherme limpou o suor frio que lhe escorria na testa. Inês continuou:

― Receais a tormenta? Quereis um conselho? Deixemos esta sala que o vento vai tornar inabitável, e que a chuva vai inundar, e vamos procurar um abrigo na igreja. Ali, sim, que é sala cômoda. Utilizemo-la. Um último copo de vinho, meus senhores, e façamos a transferência.

"Todos obedeceram às ordens da formosa Inês. Beberam um copo de vinho, e ergueram-se bradando resolutamente: "Para a igreja."

"O ministro de Deus subira nesse instante ao altar revestido dos seus sagrados paramentos. Tornavam-no respeitável o seu caráter augusto de imaculado sacrificador, e ainda mais o seu diadema de cabelos brancos, e a invisível aureola de virtudes que lhe circundavam a fronte.

"A multidão ajoelhada sentia como que o espírito de Deus baixar ao templo, evocado pelo santo sacerdote. O órgão começava a gemer os seus doces cantares. A tempestade parecia respeitar aquele sacro asilo, suspirando plangente nas frestas ogivais, e não rugindo pavorosa, como quando sacudia as suas negras asas em torno do castelo.

"Tudo era sossego e serenidade naquela divina estância.

"Súbito irrompeu pelo portal da igreja a turba dos ébrios, em descompostos cantares. Ficou gelada de terror a devota multidão. Perturbado quando erguia a Deus o imaculado espírito, o sacerdote voltou-se e deu com os olhos na bela Inês, que vinha na frente encostando-se com insolente descaro ao braço de seu irmão.

"Inflamado em santa cólera, o velho ministro do Senhor desceu os degraus do altar, e, dirigindo-se aos recém-chegados, bradou com voz sonora, em que vibrava o eco das iras de Deus:

"― Parai, não profaneis o templo, e não obrigueis a fulminar-vos o raio de excomunhão, que vos está impendente.

"Era venerando o vulto apostólico do santo varão. O povo caiu de joelhos, e a tempestade suspendeu os seus bramidos, como que respeitosa e trêmula.

"Ouviam os elementos desvairados a voz do ministro do Onipotente. Só ficavam cerrados os ouvidos dos ímpios.

"Era porque chegara a hora fatal, e a taça das iniquidades trasbordara enfim.

"Inês sorriu-se meigamente para seu irmão. Que doce, que angélico sorriso! Quem diria que esse sorriso, que rescendia amores, era apenas um incitamento ao assassino?

"Pois foi. Guilherme alucinado arrancou do punhal, e feriu o velho sacerdote.

"O sangue espadanou da ferida, e salpicou, tingindo de escarlate o cândido vestido de Inês.

"A multidão fugira horrorizada, os criados, ímpios como seus amos, haviam trazido nesse instante a mesa da orgia.

"Mas assim que baqueou o sacerdote, a tempestade, suspensa por um momento, soltou-se com novo furor. Rugiu o vento nas frestas da igreja, fuzilaram os raios, bramiu, quebrando-se nos "Mas assim que baqueou o sacerdote, a tempestade, suspensa por um momento, soltou-se com novo furor. Rugiu o vento nas frestas da igreja, fuzilaram os raios, bramiu, quebrando-se nos rochedos, o Oceano enfurecido, e os túmulos de pedra da igreja estalaram como se fossem de vidro.

"E do túmulo de mais primoroso lavor, surgiu, envolto na mortalha, o espectro de Pelaio, o fundador da igreja. Ondeavam-lhe ainda as barbas nevadas sobre o fúnebre escapulário, e das orbitas cavadas, coisa horrível! brotavam lágrimas ardentes.

"Ergueu-se, ergueu-se; já não tocava com os pés no chão marmóreo da igreja. O vento engolfando-se pelo portal do templo, agitava-lhe as pregas da mortalha. Com as mãos unidas, em atitude de oração, o velho finado, subindo lentamente nos ares, parecia um desses profetas que o Senhor Deus arrebatava para as alturas do Empírio.

"Quando chegou ao teto, o teto abriu-se como por encanto e o venerando finado continuou a sua majestosa ascensão na atmosfera que se esclarecia em torno dele, como se aquele cadáver irradiasse luz.

"Os ímpios haviam ficado imóveis e atônitos de terror. Mas, apenas o velho Pelaio se sumiu ao longe na região das nuvens, ressoou em toda a igreja um terrível estampido. O órgão vibrou, sem que mão humana o tocasse, e o tremendo Dies irai jorrou em torrentes de severa melodia pela nave do templo. Vacilaram os colunelos, nos frisos e laçarias gemeu o vento em cânticos sinistros, e, como se o vendaval a tivesse arrancado pela base, aquela mole imensa levantou-se do chão, oscilou nos ares como impelida por invisível fundibulário, e arrojou-se ao Oceano, levando no seu seio os profanadores, que soltaram um último rugido de desespero.

"Abriu-se o mar para tragar a preza enorme que se lhe oferecia, depois a liquida superfície uniu-se de novo, e essa mortalha imensa, cujas pregas são as ondas, desenrolou-se para encobrir esse cadáver de pedra.

"Desde então todas as noites, ao bater da meia-noite, acendem-se os círios na igreja sepultada, e, no fundo do mar, os réprobos entoam os salmos da penitência.

"A voz de Inês sobreleva a todas, e exerce ainda, do fundo do Oceano, a sua irresistível sedução.

"Às vezes ergue-se o fantasma da formosa até ao cimo das ondas, e arrasta para os abismos os incautos que cedem ao mágico poder dos seus feitiços..

"Proteja-nos o Senhor contra estas tentações. Eis-nos chegados à praia.

***

O barqueiro amarrou o bote, e saltou em terra. O moço passageiro ficou largo tempo a contemplar o Oceano.

As ondas conservavam ainda ao longe o seu reflexo escarlate, e a voz dos precitos, enfraquecida pela distância, vinha expirar na praia em melancólica toada.


Aos primeiros clarões da aurora tudo se dissipou; apagou-se a pouco e pouco a luz vermelha, ao passo que se ia aclarando mais o horizonte, e que as ondas se iam branqueando com o tênue fulgor do alvorecer.

O canto dos malditos foi também esmorecendo a pouco e pouco, até que a última nota vibrou solitária no espaço; e esse silêncio singular que precede o romper do dia foi apenas quebrado pelo hino eterno do marulhar das ondas. 

***

Houve um momento de silêncio, quando o doutor Macedo acabou a leitura do romance. Naquele grupo havia de certo nesse instante um coração que esse silêncio fazia bater com desusada violência. Afinal Lúcio Valença quebrou o encanto, dizendo:

― Decididamente, caro doutor, o nosso desconhecido colega deu um golpe de mestre, escolhendo o para leitor de uma lenda. A sua voz deu-me arrepios, as suas inflexões ressuscitaram a meia-noite. Com a breca! houve um momento, em que me não atrevi a olhar para a janela, com medo de ver encostado aos vidros o espectro fascinador de Inês.

― Ah! de certo, disse ou antes balbuciou Leonor, nem assim se pode avaliar o mérito da lenda. O doutor é como um destes atores, que transformam sempre em magníficos papéis as mais insignificantes banalidades.

O doutor sorriu-se para ela maliciosamente, mas ao mesmo tempo um concerto de elogios protestava contra a frase dúbia de Leonor. O mais ardente no aplauso era Henrique Osório.

― Bem! chegou o momento solene! disse Macedo, o publico chama pelo autor, e eu, como no teatro francês e espanhol, depois dos três cumprimentos do estilo, vou arrojar o nome do poeta à plateia entusiasmada. Se me dispensam dos cumprimentos, substituo-os por uns certos efeitos oratórios.

― Vá! vá! diga, doutor! bradaram todos em coro.

― Um! exclamou o doutor Macedo, batendo as palmas; o autor é uma senhora linda, elegante e espirituosa.

― Isso é abusar, doutor! bradaram os circunstantes indignados.

― Dois! tornou Macedo. Acha-se presente a referida senhora.

― Estrangulam-lo? propôs Lúcio Valença.

― Um voto de censura na ata! bradou o visconde da Fragosa, sempre parlamentar.

― Dependuramo-lo da janela até ele dizer o nome! exclamou Henrique Osório.

― Já o tinha dito, se vocês me não interrompessem, exclamou placidamente o doutor Macedo enquanto a viscondessa da Fragosa, Leonor e Isaura riam a bom rir da alegre cena.

― Então fala, ventre-saint-gris! bradou Roberto Soares.

Ventre-saint-gris não é da idade média, Sr. Roberto Soares, disse o doutor Macedo que já erguera as mãos para bater as palmas pela terceira vez, e que tirou tranquilamente um charuto da algibeira.

― Uma corda! bradou Henrique Osório.

― E um algoz de boa vontade! exclamou Lúcio Valença.

― Á ordem! acudiu logo o visconde da Fragosa.

Então, o doutor Macedo, com o charuto ainda não aceso nos dentes, bateu as palmas, e disse:

― Três!

Estabeleceu-se um profundo silêncio.

― A lenda que tive a honra de submeter à apreciação de vossas excelências, concluiu o doutor, foi escrita pela excelentíssima senhora D. Leonor de Matos e Vasconcelos, filha do nosso excelente amigo, visconde da Fragosa.

― Tu, Leonor! exclamou Henrique Osório estupefato.

― Tu, filha! disse a viscondessa com os olhos rasos de água.

― Eu logo vi que tinha sido ela, exclamava o pai todo ufano.

Confusa no meio de todos os cumprimentos, com que em todas as famílias se festejam as mais insignificantes estreias literárias do filho mimoso da casa, Leonor nem ousava erguer os olhos para Henrique. Este contemplava-a pasmado, depois mirava a furto Isaura, um pouco fria, um pouco descontente com a ovação da sua amiga, e evidentemente de si para si lamentava que não fosse a pálida menina a sonhadora das fantasias da Igreja profanada.

Mas também, quando tornava a mirar Leonor, e a via modesta, perturbada, evidentemente envergonhada de ser o alvo de todas as atenções, agora mil vezes mais afável com Isaura do que até aí, como que pedindo-lhe perdão do seu involuntário triunfo, Henrique não podia deixar de dizer de si para si que havia um abismo entre a pretensiosa frivolidade de Isaura e a desafetada simplicidade de Leonor, que bem se via que não dava ao seu conto maior valor do que ele merecia, e que, escrevendo-o, parecia ter querido mostrar apenas que não era estranha às altas preocupações do espírito, e que a sua fantasia também tinha asas para se arrojar ao mundo do ideal.

E, enquanto a conversação volteava alegremente em torno do conto de Leonor, enquanto uns narravam os calafrios que tinham sentido, e outros felicitavam o leitor e a autora, Osório, encostando a fronte na mão, ficou profundamente pensativo.

Instantes depois, dispersava-se a companhia, e Leonor, passando junto de Henrique para se retirar para o seu quarto, sentia pousar na sua mão, para a demorar, a mão tremente do seu companheiro de infância.

Ela estremeceu toda, como se se tivesse posto em contacto com uma garrafa de Leide.

― Sabes, disse-lhe ele, que achei encantador o teu conto?

― Sabes que te não acredito? respondeu ela, rindo, e já senhora de si.

― Oh! eu não faço a crítica literária do romance.  É provável que tenha inúmeros defeitos. Digo-te apenas que me impressionou. Quando o escreveste?

― Hoje!

― Hoje? acudiu ele cravando em Leonor um olhar profundo.

― Sim, tornou ela com o coração a bater-lhe violentamente, corada até à raiz dos cabelos, mas resoluta, quis-te mostrar que já passou para mim o tempo das bonecas, e que o que me preocupa o coração e o espírito não são já as puerilidades dos nossos brinquedos de outrora, mas os afetos e as paixões da mulher.

Henrique apertou-lhe docemente a mão.

― Foi por minha causa, pois, que espertaste a fantasia, para escreveres essa lenda? Tive eu a ventura suprema de preocupar deveras o teu espírito inteligente? de fazer pulsar com mais força o teu ingênuo e nobre coração?

― Henrique! murmurou ela.

― És um anjo, Leonor! disse ele em voz baixa.

O doutor Macedo encaminhava-se para onde estavam os dois. Leonor despediu se, e toda palpitante de comoção e... di-lo-emos... também!... de alegria, dirigiu-se para o seu quarto.

O doutor Macedo sorriu-se para Henrique, e murmurou maliciosamente:

Si je vous le disais pourtant que je vous aime,
Qui sait, brune aux yeux bleus, ce que vous en diriez?


― O que! era esta, doutor? exclamou Henrique.

― Pois quem, meu criançola? É necessário ter a miopia amorosa dos vinte anos para o não perceber há imenso tempo.

― Que quer você, Macedo! tornou Henrique, Leonor foi minha companheira de infância. Havia entre nós, em crianças, uma certa desproporção de idades. Entre dois pequenitos uma diferença de cinco anos abre um abismo! Na mocidade é um curtíssimo intervalo. Costumei-me a ver sempre em Leonor uma criança. A mulher feita revelou-se me agora, ao ouvir ler o conto que ela escrevera. Então contemplei-a, e li nos seus formosos olhos a bondade da sua alma, e a virgindade do seu afeto. Só agora percebi o tremor da sua voz nas palavras que me dirigia! E eu passava junto dela quase sem a conhecer!

― Meu amigo, tornou Macedo, isso é uma história vulgar. Tem a gente ao pé da porta um lago tranquilo, risonho, corado pelo esplendor do sol, nunca se lembra de mergulhar nessas águas límpidas para colher a perola que lá brilha no fundo, vai procurá-la então ao mar das tempestades, mergulha, e encontra ostras. Boa noite, meu amigo.

E dirigiu-se para o seu quarto. Henrique imitou-o, mas nessa noite não dormiu. A imagem que flutuava diante dos seus olhos semi-cerrados, não era, não, a pálida imagem de Isaura. 

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