12/11/2022

O fim do mundo (Conto), de Graciliano Ramos

 O FIM DO MUNDO

A existência ordinária, entregue a negócios terrestres e caseiros, durava duas, três semanas, até o correio trazer o fornecimento mensal de literatura religiosa. Surgiam as beatas estigmatizadas, D. Bosco, diálogos singelos, casos edificantes, delícias vagas do céu e torturas minuciosas do inferno. Purificando-se nessa boa fonte, minha mãe às vezes necessitava expansão: transmitia-me arroubos e sustos. Uma tarde, reunindo sílabas penosamente, na gemedeira habitual, teve um sobressalto, chegou o rosto ao papel. Releu a passagem — e os beiços finos contraíram-se, os olhos abotoados cravaram-se no espelho de cristal. Certamente se inteirava de um sucesso mau e recusava aceitá-lo. Antes de mergulhar no pesadelo, segurava-se aos trastes mesquinhos — o espelho, o relógio, as cadeiras — e buscava amparar-se em alguém.

Atraiu-me, segredou queixas sumidas e insensatas. Perplexa, ora se voltava para as janelas, ora examinava o livrinho aberto na sola do marquesão, negra e côncava. Não se conservou muito tempo indecisa. Na doentia curiosidade, arrojou-se à leitura, desperdiçou uma hora afligindo-se em demasia. Levantou-se, atravessou o corredor, a sala de jantar, arriou na prensa de farinha do alpendre. Seguia-a, sentei-me perto, calado, esperei que ela me chamasse. As nossas desavenças morreram. Julguei-a fraca e boa, desejei poder aliviá-la, dizer qualquer coisa oportuna. Sentia o coração pesado, um bolo na garganta, e propendia a alarmar-me também. Odiei a brochura, veio-me a ideia de furtá-la, escondê-la ou rasgá-la. A pobre mulher desesperava em silêncio. Apertava as mãos ossudas, inofensivas; o peito magro subia e descia; limitando a mancha vermelha da testa, uma veia engrossava. Diversas pessoas da família tinham a mancha curiosa. Em momentos de excitação ela se avivava, quase roxa, da sobrancelha à raiz do cabelo — e essas criaturas se enfureciam, avizinhavam-se da loucura.

Afinal minha mãe rebentou em soluços altos, num choro desabalado. Agarrou-me, abraçou-me violentamente, molhou-me de lágrimas. Tentei livrar-me das carícias ásperas. Por que não se aquietava, não me deixava em paz?

A exaltação diminuiu, o pranto correu manso, estancou, e uma vozinha triste confessou-me, entre longos suspiros, que o mundo ia acabar. Estremeci e pedi explicações. Ia acabar. Estava escrito nos desígnios da Providência, trazidos regularmente pelo correio. Na passagem do século um cometa brabo percorreria o céu e extinguiria a criação: homens, bichos, plantas. Riachos e açudes se converteriam em fumaça, as pedras se derreteriam. Antigamente a cólera de Deus exterminara a vida com água; determinava agora suprimi-la a fogo.

Eu ignorava o século, os cometas, a tradição. E estendia fraternalmente a minha ignorância a todos os indivíduos. Não percebendo o mistério das letras, achava difícil que elas se combinassem para narrar a infeliz notícia. Provavelmente minha mãe se tinha equivocado, supondo ver na folha desastres imaginários. Expus esta conjectura, que foi repelida. A desgraça estava anunciada com muita clareza.

***

Esteve alguns dias apreensiva, folheando a brochura, os olhos arregalados, séria. Enfim abandonou o cataclismo, embrenhou-se em novos temores.

O cometa veio ao cabo de, uns dois anos e comportou-se bem. Minha mãe foi observá-lo da porta da igreja, sem nenhum receio, esquecida inteiramente da predição. Nesse tempo nós nos tínhamos mudado, vivíamos longe da vila. O mundo estava imenso, com muitas léguas de comprimento — e desafiava, seguro, profecias e cometas.


---
Fonte:
Revista "A Cigarra", edição nº 00147, setembro de 1946.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...