O desfecho de "Pai contra mãe"
“Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga
e não se lhe dava do aborto.”
Machado de Assis: “Pai contra mãe”.
***
Leitor, deixemos o Cândido Neves triunfando sobre os despojos momentâneos de
seu caiporismo, e voltemos à Rua da Alfândega, onde a escrava Arminda expia os
drásticos efeitos de sua fuga...
Sangrando e se arrastando pelo corredor tomado de sangue, a mísera suplicava ao seu senhor que lhe poupasse a vida, que não a castigasse novamente, prometendo de joelhos e quase sem fôlego que não fugiria mais, que teria quantos filhos ele quisesse e que doravante não se deitaria mais com nenhum outro escravo.
- Só com o senhor! Prometo, só com o senhor!
- Cala a boca, miserável! Então pensaste que fugiria e que ficaria impune? Tu me pagarás!
- Perdão, meu senhor! perdão para sua escrava.
- Cala essa a boca sua desgraçada! Prudêncio, venha já aqui!
- Pois não, nhonhô!
- Arraste esta peste até o porão, amarre-a na corrente e aferrolhe bem a porta. Ah! dois dias sem água e comida. Entendeu?
- Sim, nhonhô!
Arminda, como o leitor já sabe, é uma escrava. Desconhece, porém, suas origens. Vamos a ela. Tinha nesse tempo 23 anos de idade. Era filha de uma cativa africana com um rico senhor de engenho, seu dono. Este, por suas constantes extravagâncias e desvarios, contraiu enorme dívida na praça. Para quitá-las precisou se desfazer de parte de seus bens, o que incluía meia dúzia de escravos. Cotrim, seu atual dono, que era um dos credores do fazendeiro falido, ficou na posse de Arminda como parte do pagamento. A jovem mulata, que na época tinha 19 anos, logo despertou no seu novo dono uma paixão avassaladora, daí a explicação para a alta soma de cem mil réis de gratificação por sua captura. A mísera, embora tentasse resistir inicialmente, por fim teve que se submeter, contra a própria vontade, a todas as devassidões do cruel senhor. Este, quando descobriu que a mulata nutria de amores por um negro, também seu escravo, mandou fustigar o pobre coitado com duzentos açoites, e nela aplicou duas dúzias de bolos de palmatória. Mas sua crueldade não cessou por aí. Quando lhe anunciaram que a escrava estava grávida e que o pai seria o dito escravo, ficou possesso e saiu quebrando tudo. Um dia, enquanto Arminda dava comida aos porcos na fazenda, ao vê-la já de barriga, ameaçou-lhe com voz satânica:
- Quando essa peste nascer, eu jogo no mato pros bichos comerem.
Ao ouvir tais palavras, a pobre cativa caiu desmaiada no chão de lama. Quando deu por si, estava trancafiada na senzala, onde permaneceu dois dias sem água e sem comida.
Nesse meio tempo o escravo seu amante fugiu. Antes, porém, haviam combinados que tão logo ele achasse um abrigo seguro para se acoitarem, ela também fugiria ao seu encontro. O local, que lhe fora oferecido anonimamente por um velho abolicionista, ficava num beco perto da Rua da Ajuda. Quando Cândido Neves capturou a escrava, ela vinha da casa de uma amiga, uma escrava alforriada, que lhe ajudava com mantimentos.
Agora, caro leitor, que explicamos esses pormenores, voltemos à casa de empréstimo, onde Cândido Neves, Clara e tia Mônica rejubilam em torno do pequeno varão e dos cem mil réis da gratificação.
- Amanhã mesmo vou procurar uma casa para alugar. Isso aqui não é habitação de gente - disse Cândido Neves, erguendo as mãos com as duas notas de cinquenta mil réis.
- Mas Candinho - objetou tia Mônica - é preciso economizar esse dinheiro, afinal não é todo dia que você vai encontrar uma escrava fugida.
- Sim, Candinho - opinou também Clara - tia Mônica tem razão. Necessitamos guardar um pouco desse dinheiro para uma precisão, uma emergência qualquer.
- Besteira - atalhou nervosamente Cândido Neves - tão logo que achar casa, vou procurar um emprego fixo.
De fato, assim que abrigados em nova habitação, localizada nas proximidades de Botafogo, Cândido Neves perambulou alguns dias pelo centro da cidade, a ver se conseguia empregar-se nalgum estabelecimento comercial que lhe agradasse. Nenhum porém o atraiu. Ou achava pouco o salário ou o trabalho era muito ruim. Certo dia, ao ler os classificados do Diário do Rio de Janeiro, deparou-se com o seguinte anúncio: "Precisa-se de um feitor, que seja de boa conduta, livre de vícios e que saiba ler e escrever, para tomar conta de uma chácara perto da cidade; quem estiver nestas circunstâncias, pode dirigir-se à Rua da Alfândega nº 40". Ao terminar a leitura, qual não foi o seu espanto ao perceber que se tratava do mesmo endereço onde levara a escrava fugida. "Deus escreve certo por linhas tortas", pensou consigo.
No outro dia compareceu ao local indicado no jornal. Foi atendido pelo mesmo homem que lhe pagara a gratificação.
- Pois não! - disse o proprietário sem se dar conta da pessoa de Cândido Neves, o qual, ciente do pouco prestígio que tinha o ofício de pegar escravo, optou por manter-se calado sobre a questão.
- Sou o Cândido Neves. Vi no jornal que o senhor precisa de um feitor...
- Sim, sim; entre seu Cândido Neves; acomode-se aí - e indicou o canapé. Em seguida gritou para a escrava: - Arminda, traz café pro moço!
A mulata, que já tinha notado ali a pessoa de Cândido Neves e que escutara a que viera, não se deixou perturbar, limitando-se a responder friamente:
- Já levo, meu senhor!
Daí a alguns minutos, quando notou que o patrão tinha ido ao gabinete buscar uns papéis, ela correu até a sala, indo direto até aonde estava sentado Cândido Neves. Não levava café. Na mão segurava uma adaga que reluzia. Num salto brusco pulou sobre o futuro feitor, apunhalando-lhe violentamente bem no meio do peito. Quando o senhor retornou, deparou-se espantado com o cadáver de Cândido Neves no chão, todo ensanguentado. Desesperado gritou para a escrava.
- Arminda!
Já era tarde. Ela havia fugido
pela última vez.
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