11/28/2022

Sim e não (Conto), de Coelho Neto

 

SIM E NÃO

Nestes civilizados tempos, esterilizados por muito civilizados que são, sem ideal e sem crença, que é a “forma” mais nobre e mais alta do ideal, com muita cultura e muita chateza — porque o que se ganha em superfície perde-se em elevação — o homem, esse ser “amante e pensante”, perdeu as qualidades que o tornavam a maravilha maior da criação — um pouco de divindade dentro de um pouco de argila — e passou a ser uma obra artificial como as máquinas beneficiadoras ou o gárrulo fonógrafo. 

Nos bons tempos de antanho, tempos simples e heroicos, quando os anjos, nas horas douradas e calmas da tarde, nas épocas de aroma e sabor, que eram as da florescência e a do fruto, encolhendo as azas, vinham sentar-se sob a vinha dos lares, bebendo, com sede humana, a água fresca pelo gargalo vermelho das urnas que as moças, como Rachel, graciosamente lhes ofereciam e aceitando a broa, o anho e o vinho da refeição frugal dos patriarcas, a vida era, talvez, mais rude, em compensação a alma era mais pura e tinha toda a sua força de criação que os tempos foram consumindo. 

O patriarca era um nômade — se a terra do seu habitat se lhe tornava ingrata ou se a fonte, com os calores, ficava em marnota, logo ordenava a partida e, tomando um bordão, reunindo a sua gente, lá ia, entre os lentos carros toldados de peles onde se acolhiam as mulheres e as crianças, com um rebanho numeroso a balar e a mugir na coda da caravana, guiado por pastores, que eram, ao mesmo tempo, homens de guerra, olhando atentamente as terras, provando as águas, à escolha de um sítio de fertilidade e beleza onde estendesse as peles das fendas e cravasse os moirões dos currais. 

O “homem” era um ser de vontade, pensava e agia por si — era o sacerdote e o juiz, o patrono e o caudel: oficiava e julgava, abençoava e conduzia ao combate. O altar era um monte de pedras coberto de musgo, o tribunal era a soleira da própria casa e havia crença e havia ordem. Com duzentos bois, uma centena de vacas, um lote de ovelhas e rafeiros possantes e, para trazerem em ordem esse armentio, uns rapagões alentados, o patriarca era um rei no deserto e, se sucedia sair-lhe ao encontro algum rás, o senhor de campo e monte, com muitas lanças, embargando-lhe o passo, bradava à sua grei: o pampilho do pastor transformava-se em lança, o corno de reunir o gado ressoava como tuba de guerra, e toda a bucólica, perdendo o seu encanto sereno, aparecia como um epinício ruidoso. 

E a terra ficava em poder do mais forte como prêmio da vitória: era a prisioneira e os triunfadores, como não havia vaidade, em vez de levantarem arcos festivos e de abalarem o silêncio com arengas e apologias celebrando a batalha, bem conduzida e bem terçada, recolhiam os despojos, enterravam os mortos e, passando e repassando o arado pelo solo que as patas dos ginetes haviam calcado, semeavam cantando e as festas triunfais quem as fazia era a primavera. 

Os homens não tinham livros, muito eram os tijolos cozidos em que gravavam os fastos da raça e as observações que faziam na terra e no céu; não tinham tribunas, não tinham jornais, não tinham escolas — a sabedoria era pouca e bastava: saber a época de lançar a semente, a época mais favorável ao corte das árvores, quando convinha mondar, podar, armar um carro, laçar um touro, aderençar um potro, tosar a ovelha, aguçar um ferro de lança, cavar um pilão, fiar uma estriga, doubar um novelo, desviar um golpe, vibrar uma funda, triturar as ervas benéficas, sonhar e cantar os hinos religiosos, eis em que consistia todo o saber humano. E os homens tinham saúde e alegria e as mulheres tinham virtude e beleza — o céu era o mesmo, o mesmo era o sol e as estrelas brilhavam, talvez mais claras, dentro da noite. 

Rolaram séculos e os homens foram inventando e aplicando — e, à medida que inventavam e aplicavam, iam perdendo a energia: a escrita atrofiou a memória, a máquina atrofiou o músculo, o artifício matou a beleza, o sofisma foi batendo o bom senso, a pólvora inutilizou a bravura. A Ciência reduziu toda a ação humana a funções nervosas e musculares, sanguíneas e linfáticas, produtos de mais ou de menos bile, de mais ou de menos fósforo. 

O furor de Ajax, cantado por Homero, podia ser combatido por um cola gogó e a Ilíada não existiria. Hesíodo foi um ingrato cantando as pierides quando devia ter enaltecido a massa cinzenta. Em uma caixa de fósforos Jonkopings há mais ideias do que em todo o Parnaso grego de onde decorreu, como uma clara e sonora fonte, toda a antologia. Com a substância que gerou o Górgias de Platão, os petizes do nosso tempo acendem cigarros às mesas dos botequins e, sobretudo, para confundir o mundo e abastardar a Humanidade, a Palavra domina. A Palavra — eis tudo, eis o mal grande; a Palavra que voa e que é águia ou corvo, borboleta ou mosca, e a Palavra escrita, que é diamante eterno ou gota de água efêmera, luz ou brasa, glória ou difamação, epopeia ou mofina. 

Em verdade — quais são os verdadeiros polos do mundo senão estas duas palavras: sim e não, que resumem toda a vida? Estes dois monossílabos essenciais que respondem a todas as necessidades da existência dispensam a língua e, em qualquer gesto, numa contração sutil ou num ligeiro aceno logo se manifestam — basta uma oscilação de cabeça para que se afirme uma verdade ou se negue uma graça. 

No olhar o sim é brilho, o não é chama que arde; sim é fecundo, não é estéril, sim corresponde ao estio, não corresponde ao inverno, sim é vida, não é morte. Todas as demais palavras não passam de modificações desses monossílabos — são como os recamos com que o lojista, para dar mais valia e realce aos objetos, costuma enfeitá-los. 

No amor: a mulher que vos unge com a luz enternecida dos seus olhos, que vos envolve com o halo dos seus braços, que vos acaricia com o seu mais suave sorriso, que, pouco a pouco, brandamente, vai inclinando a cabeça, como uma árvore inclina o seu ramo florido, para que vos chegue à boca o beijo dos seus lábios, que faz com todos esses movimentos cheios de meiguice e de graça? Diz sim. Aquele que para responder ao vosso pedido aflito, explica que a política vai mal, que as terras estão esgotadas, que as chuvas são poucas, que há falta de braços, que o país está à beira de um abismo, vai desembrulhando lentamente um invólucro de palavras inúteis dentro do qual há apenas — o não. 

A criança, sorrindo, estendendo os braços, está a dizer: sim; amuando está a dizer — não. Na política — o parcial do governo que se levanta com muita gravidade e longamente discorre horas e horas sobre um projeto, despejando palavras ocas, pouparia um trabalho inútil se logo dissesse — sim; o oposicionista verberando, citando, apostrofando, lamentando, não faz mais que encher um não! para que retumbe. 

Vede duas obras compactas sobre uma tese controvertida, um autor é materialista, é espiritualista o outro — que há nas mil e tantas páginas atochadas dos pretensiosos volumes? Sim em um, no outro não. 

Trava-se uma guerra, ferem-se batalhas, sucumbem milhares de homens, arrasam-se cidades, soçobram navios... se quiserdes saber porque assim se hostilizam as duas nações perguntai a um filósofo lacônico e ele vos dirá — “Queria uma o sim, a outra respondeu que não e do sim e do não veio a guerra que as maltrata”. 

Simplificada a vida em duas palavras sóbrias, para que há de o homem gastar tanto tempo com tão oca facúndia? — palavras são folhas que caem, só o tronco subsiste — ou é verde e é sim, ou é seco e é não. 

Licurgo exercitava os jovens espartanos, não em discursos vazios, mas na precisão eloquente e, essa raça de austeros silenciosos, que brandiam na guerra uma espada curta, dizendo como Agis “que era de tamanho suficiente para alcançar o inimigo”, também nas suas respostas só empregavam as palavras estritamente necessárias: a prolixidade é um vício da decadência. Assim o homem que se tornou ateu para não perder tempo em orações, que inventou a escrita para descansar a memória, que inventou a máquina para poupar o músculo, que inventou a pólvora para aliviar-se do peso das armaduras, que negou o “ideal” para não sair do real, onde tine a moeda, que é o encanto da vida, esse adorador fanático dá inércia, que vive a poupar o esforço, não descansa e, falando ou escrevendo, trabalha mais do que todos os patriarcas do velho tempo e, ainda, não contente com o que a boca infatigável jorra durante as horas do dia em discursos, em controvérsias, em palestras, em maledicência, em conchavos, em declarações, ainda pôs o fonógrafo a palrar, conservando, como embalsamadas, as próprias vozes dos mortos. 

E a razão que alegam os avaros da hora em defesa desse instrumento é a falta de tempo: não sobra tempo para leituras, que os minutos são poucos para negócio e chalreio e assim, enquanto o homem estiver ao balcão vendendo ou a almoçar à pressa ou a espairecer na varanda, um fonógrafo lhe irá servindo, como em conserva, as notícias do dia, berrando os telegramas da última hora, os discursos do parlamento, as vendas da bolsa; outro lhe exporá as últimas novidades cientificas, outro dissertará sobre a nova filosofia, o último, rangendo, irá vagarosamente narrando as peripécias do romance em voga. E é isto a civilização: o culto da palavra. Ah! Os homens sóbrios do bom tempo! os patriarcas das primeiras eras! 

Mas, ó plumitivo incoerente e ingrato, que seria de ti se não fosse a palavra! Que vens tu fazendo por essas páginas fora senão desmentindo o teu sermão?... Dá conta do teu recado com um sim ou com um não. 

Se não fosse a palavra, ingrato, onde irias tu buscar assunto para tanto? — no Instituto dos mudos, talvez, que foram, sem dúvida, os autores desse falso adágio que diz que “o silêncio é de ouro...” De ouro, pois sim, mas estou certo de que eles o trocariam, de bom gosto, pelo cobre mais azinhavrado do calão mais reles. 

Louva a palavra, plumitivo, louva a palavra sonora. Para glória da palavra, basta este vocábulo: “Amo!...” cantando docemente na boca de uma mulher. Louva a palavra e pede aos homens que a louvem e, quanto à vida dos patriarcas, deixa lá, sempre se viaja com mais facilidade e comodidade em um wagon de primeira do que no melhor carro de bois do tempo de Jacob. 

Isso de lamentar o velho tempo... words, words, words

E vês, ingrato? ainda para remate do teu trabalho veio em teu auxílio a palavra.

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