Realizou-se, no cemitério de São João Batista, no Rio, a piedosa cerimônia da exumação dos ossos de Paula Ney.
Eu estava presente quando as “maxilas do sepulcro” se fecharam sobre o corpo do generoso boêmio. A tarde era linda, uma tarde fresca e dourada. O arvoredo funéreo estava cheio de cigarras e, no alto e negro cruzeiro, brilhava ainda uma faixa de sol.
Éramos poucos, todos amigos do que ia ficar no seio da terra e, silenciosamente, como se adubássemos o alqueive que recebera a semente, íamo-nos transmitindo a pá de cal antes que a terra incubadora rolasse fechando o túmulo; depois recuamos e os coveiros começaram o seu triste serviço.
As cigarras cantavam, alegres coeforas que, dos altos ramos funerais, diziam adeus àquele irmão que também atravessara a vida descuidado, sem pensar nos invernos agrestes que trazem a fome. Cantavam, nem deviam chorar porque a morte fora para o excelente rapaz um descanso — tão consumido andava ele e tão triste, como um príncipe que houvesse perdido o seu reino.
Nos últimos tempos tornara-se melancólico, silencioso, — raro em raro atrevia um comentário. Encostado à porta do Paschoal, os olhos parados e tristes, ficava horas contemplando a multidão negando-se aos convites. A alguém que com ele insistia, uma tarde, para que fosse beber um vermute, respondeu:
— Obrigado, meu amigo — não posso aceitar: estou sem espírito; e encaramujou-se amuado.
Dias antes da morte, indo eu visitá-lo, ele chamou-me para junto do leito em que jazia, estendeu-me a mão fria e magra — mão generosa que era como uma ponte de misericórdia entre a riqueza e a miséria, porque recebia dos banqueiros para dar aos pobres, e ficou a olhar-me — enternecido e mudo, com os olhos a encherem-se-lhe de lágrimas; e disse, com uma voz surda e áspera, arrancada, a custo, do fundo do peito:
— Estou acabando, meu amigo. A Morte, em mim, está procedendo por partes: estou assistindo a uma mudança. Ela começou pelos extremos: tenho os pés frios, tão frios que não os sinto — estão mortos: parece que estou soterrado em neve até à cinta. Não como, não tenho apetite... Isto cá por dentro está vazio — os órgãos essenciais já perderam a energia, a Morte levou-a. Estou agora sentindo que arrastam alguma coisa no meu coração. Ah! Não há de ser fácil a remoção nesse órgão, é que nele eu tenho os móveis mais pesados: o coração era o gabinete de trabalho de minha alma. Imagina o mundo de afeições que nele eu tenho...! E suspirou: Como deve pesar o meu amor de filho, velho amor que nasceu comigo e que a saudade foi, aos poucos, aumentando. Minha pobre mãe! E os outros amores! Meus filhos, ela, vocês, o sol, as crianças... tudo isto!... Quando saem das casas os móveis pesados, o soalho, por onde eles são levados de rastos, ficam vincados... é o que se está dando no meu coração. A Morte é brutal, meu amigo... que execução dolorosa! Como ela arrasta e como é lúgubre o vazio que se vai fazendo em mim...! Nunca imaginei que a minha vida acabasse assim, com um mandado de despejo. Sorriu tristemente e recostou-se nos travesseiros altos. Depois, tocando na garganta, continuou: Ouves a minha voz? Está rouca. Tu que a conheceste sonora deves ter pena da sua miséria atual. A Morte quis levá-la inteira, não pôde e fez com ela o mesmo que se faz a um grande móvel: desarmou-a e lá a vai levando aos pedaços. Foi primeiro o timbre — estou fanhoso, foi depois a dutilidade, estou áspero — resta-me o sarrido: falo como um asmático. Em pouco a Morte estará no cérebro abarcando as ideias e a divina Fantasia, que ocupa o altar-mor. É triste morrer assim, aos arrancos. Cair fulminado! Eis o meu ideal. Enfim... Quedou, cruzando as mãos. Que há de novo? Perguntou de repente, repuxando as cobertas. A Poesia indígena continua a proliferar? E a Política? E as mulheres?
— Tudo como deixaste, Ney.
— Não é possível: a imbecilidade deve ter produzido alguma coisa nova. Fala-me dos imbecis para que eu saia da vida sem saudade. Abriu os olhos como em ânsia e, surdamente, soerguendo-se, exclamou: Meus filhos! Que há de ser deles? Ah! Meu amigo, o que dói na morte é o desprendimento: os amores são as nossas raízes. Eu vou tranquilo — já dei balanço na vida: tenho um grande saldo a favor da alma e a benção de um sacerdote honesto... mas os pequenos? A Caridade anda muito atarefada e falta-lhe um repórter... como eu. Enfim... Deus está lá em cima e eu que tanto consegui dos homens ei de conseguir alguma coisa do Senhor, não te parece?
Quando me despedi ele exclamou, conservando a minha mão: Adeus! Eu disse: “Até logo!” O moribundo sorriu: Até logo! Vais suicidar-te? Adeus! Adeus!
De repente, com os olhos rebrilhantes, como se neles houvesse renascido a antiga centelha, filou-me e, rindo, com todo o corpo a tremer, pediu-me: Olha, vê se conténs F. Eu sei que ele anda a compor um necrológio para recitar à beira do meu túmulo, volta e meia está aqui a rondar-me, a beber inspiração. Compreendes que na minha posição de defunto, que é, com pouca diferença, a mesma de uma vítima do retrato a óleo, tenho de aturar resignado, mas vocês, meus amigos, que vão apanhar a maçada de uma viagem ao cemitério... não! Aquele canalha, que nunca conseguiu impingir-me um discurso, é muito capaz de aproveitar-se da minha morte para vingar-se... mas a pilhéria é que eu não ouço. Em todo o caso, por causa das dúvidas, não deixes falar senão depois que os coveiros houverem entupido a minha cova. E rimos. Dois dias depois extinguia-se serenamente o grande espírito. As suas últimas palavras foram ainda de piedade e fantásticas. Voltando-se para um dos amigos que o cercavam, rouquejou, referindo-se às crueldades praticadas em Canudos:
— Que ei de eu dizer ao Eterno quando ele interrogar-me: “Ney, como é que em teu país há um homem que enfurna mulheres e crianças para matá-las a querosene?” Confesso que, pela primeira vez na minha vida, quero dizer, na morte ficarei sem resposta... Logo depois, vagarosamente, arquejando, murmurou: Daqui a pouco estarei como o meu alfaiate: cadáver.
E assim desapareceu o gênio da pilhéria.
Paula Ney, cuja vida foi sempre misteriosa, era conhecido em ama roda muito restrita — o boêmio, esse era íntimo do povo: o banqueiro e o operário, a matrona e a cocote, o fidalgo e o mendigo tratavam-no com a mesma familiaridade — era o Ney, o alegre Ney, que fazia rir, mas o verdadeiro Ney que enxugava lágrimas, que levava criancinhas doentes aos consultórios dos médicos, que guiava os cegos nas ruas, que visitava enfermos em verdadeiras tocas de miséria, que fazia enterros à sua custa e que defendia os animais com o carinho piedoso de um brâmane, esse só era conhecido no reduzido grupo dos companheiros.
Trabalhávamos, uma vez, na tipografia Reynaud, onde era impresso O Meio: Mallet, escrevendo de pé, com o grande chapéu mosqueteiro, um imenso charuto a fumegar ao canto da boca, eu redigindo vagarosamente uma nota escandalosa, Ney, a vociferar contra a “sandice universal” quando assomou à porta uma velha, muito encarquilhada e tímida.
Ney, logo que deu por ela, precipitou-se e lá se ficou todo curvado cochichando, a gesticular com o pince-nez. De repente bramiu:
— Não senhora! Há de ser no sábado, neste sábado... senão... e rugiu ameaçador: meto-o na cadeia, a ferros. A ferros! Vá e diga-lhe isto: a ferros! E, tomando a velha pelo braço, inclinou-se e berrou-lhe ao ouvido: — Olhe, minha senhora, isto é uma canalha. Mulher não é melão que a gente cala para ver se está maduro. Diga-lhe que no sábado, às quatro horas, quero encontrá-lo pronto para a cerimônia. Os papéis estão arranjados, o padre está falado. No sábado! nem que chova raios, entendeu? Senão demito-o e meto-o na cadeia, a ferros. Ele sabe que sou homem para mais. Vá. O véu eu levo para salvar a moralidade do caso. E despediu a velhinha. Interrompendo, então, o nosso trabalho, esbravejou: — Comigo está enganado! Mallet voltou-se curioso:
— Que é? De que se trata? Quem é essa velha, Ney?
— Hein? A velha? Quem é? Homem, com franqueza... sei que é uma velha que a compulsória obriga a ser virtuosa. Procurou-me, há dias, lavada em lágrimas, pedindo-me que lhe salvasse a filha, uma linda pequena que abalara de casa com um amanuense. Pus os meus galfarros em campo e consegui descobrir o terno casal num chalé, no Engenho Novo. Entrei pelo ninho amoroso como o próprio símbolo da Honra e bradei: — “Olá, amiguinhos, não comprometam, a um tempo, com tamanho desplante, a gramática e a moral: o verbo amar é regular, nada de exceções arbitrárias...” e, intimando os pombinhos em nome da Lei, trouxe a pequena e dei ao marmanjo quinze dias para tratar dos papéis, sob pena de ser demitido e metido a ferros, numa fortaleza. Ah! porque se for preciso, vou a São Cristóvão, lanço-me aos pés do imperador pedindo justiça. O tipo anda a adiar a coisa e ontem foi pedir moratória, a pretexto de falta de dinheiro. Há de casar no sábado, mesmo porque eu sou o padrinho e a pequena não tem tempo a perder. Há de casar no sábado!
— Mas que diabo tens tu com isso, Ney?
— Que tenho! Homem essa! Não tenho nada... mas é um desaforo. Que tenho!... Tenho irmãs, sabe você? Tenho irmãs... Efetivamente, no sábado, às 2 horas da tarde, o Ney apresentou-se na tipografia enfarpelado para o casamento e com um lindo buquê de cravos brancos.
Cabem-lhe perfeitamente as palavras com que Philarète Chasles traçou o caráter estranho do poeta do Intermezzo:
“Heine est peuple; il est bohemien, et il l’avoue: bonhome et médisant, il en convient. Mais il est home. Il est même vulgaire à bon escient et j’aime mieux cela. Il pleure, il rit, il se desole. Redoutable et toujours, présente, mobile, incertaine et s’égarant sans cesse, en lui vit éclate et flamboie, come le feu follet sur les marais, la flamme de la passion sincere”.
Os que leram a notícia da trasladação dos seus ossos e que só conheceram o Ney das sátiras explosivas e dos paradoxos flamejantes muito devem ter pasmado sabendo que a Provedoria da Misericórdia resolveu realizar aquele meigo transporte em lembrança dos muitos e grandes benefícios prestados à santa instituição pelo grande estroina que parecia rir de tudo e que passava os dias às portas das lojas da rua do Ouvidor, não raro a pedir para os outros.
Generoso Ney, só os que privaram contigo podem
falar da tua caridade mas não serei eu quem desvende os teus segredos. Descansa
em Deus, tu que foste o melhor de todos nós, o mais escandaloso e o mais meigo,
o mais implacável e o mais terno — abelha dourada que distribuía o mel e as
ferroadas com a mesma liberalidade. Descansa em Deus, puro espírito.
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