O BERRADOR DE CAPIM GROSSO
Conta
uma lenda capim-grossense que nos primórdios da cidade, quando a antiga Rua da
Librina ainda era um grande e fechado matagal, havia ali uma humilde casinha de
taipa, cujo morador era um velho roceiro chamado Chico, casado com uma boa
mulher e pai de dois filhos homens. Diz, ainda, a lenda que um desses filhos, o
mais novo, era dotado de uma natureza perversa e preguiçosa, ao contrário do
mais velho, que tinha uma índole de pura bondade e era bastante dedicado aos afazeres
da roça.
Certo
dia, o pai e o filho mais velho foram capinar umas terras num lugar chamado Jenipapo.
O mais novo permaneceu em casa, incumbido pelo velho de cuidar da mãe doente e
que, quando desse meio-dia, fosse levar para ele e o irmão o almoço e uma
moringa d’água. O rapaz, que não gostou nem um pouco da ordem dada pelo pai,
apenas maneou a cabeça afirmativamente e resmungou para si um palavrão, acrescentando
enquanto os outros dois sumiam na estrada: “Suas pestes!” Em seguida armou uma
rede e voltou dormir tranquilamente.
Enquanto
isso, a pobre mulher, que sofria de uns reumatismos nas pernas, fazia tudo
sozinha. A doença, porém, não a impediu de realizar suas tarefas domésticas, o
que incluía matar uma galinha e preparar a comida para toda a família.
Quando
deu meio-dia, a boa senhora que já havia embalado o almoço num utensílio de
plástico e enchido toda a moringa com água filtrada do pote, chamou o filho e
ordenou:
–
Vá levar a comida pro seu pai e pro seu irmão, e depressa!
O
moço, que acabara de se levantar da rede, nada disse e ficou por ali como se
não tivesse ouvido a determinação da mãe. Esta, já impacientada pela preguiça
do filho, gritou:
–
Você não escutou não, moleque?
O
preguiçoso perguntou então se não podia almoçar antes, pois estava com muita
fome e ia ter de caminhar mais de meia hora sob um sol causticante. A boa mulher,
porém, que naquele momento sentia fortes comichões nas pernas, impacientou-se
com a malemolência do moleque, e gritou mais uma vez, furiosa:
–
Ainda está aí, hein?
O
rapaz, que apresentava o semblante visivelmente irritado, pegou ligeiro da sacola
com o almoço, segurou a moringa pelo gargalo e saiu resmungando um dito feio, acrescentando
ao longe, enquanto olhava para trás:
–
Sua peste!... você vai ver...
Seguiu
a passos lentos pelo caminho, mas nem bem havia andado uns dez minutos, sentiu-se
exausto e, vendo uma copada árvore nas proximidades, dirigiu-se até ela e
sentou-se preguiçosamente à sua sombra. Neste momento, o cheiro inebriante da
comida exalou até suas narinas e, sem qualquer cerimônia, ele desamarrou o
vasilhame e começou a devorar todo o almoço. Feito isto, ergueu-se e tragou uns
goles da moringa. Porém, antes de tampar a bilha d’água, teve uma ideia maligna:
abaixou as calças e mijou dentro até passar toda a vontade.
Quando
ele chegou à roça, o pai e o irmão já o aguardavam ansiosos e mortos de fome. Com
um ar malicioso e diabólico, entregou tudo ao pai e se afastou. O velho, que de
nada desconfiava, abriu o embrulho e, atônito, encontrou ali apenas ossos e uns
restos de arroz misturado com feijão e farinha.
–
Que brincadeira é essa? – perguntou indignado.
–
Isso o quê? – respondeu o mandrião.
–
Cadê a comida que sua mãe mandou? Por que só tem osso?
Ele
então fez um gesto de ombro, e completou:
–
Foi só isso que ela mandou.
Ao
que o velho, tomado de ira, avançou até ele e gritou:
–
Foi só isso mesmo que ela me mandou? E como você explica esses ossos?
Após
sentar-se num tronco de arbusto, ele respondeu serenamente:
–
Hoje apareceu um homem barbudo lá em casa e os dois ficaram conversando por um
longo tempo, até se abraçaram e se beijaram. Quando foi meio-dia serviu o
almoço para ele, que comeu tudo, e o resto ela mandou pro o senhor.
O
irmão mais velho, que assistia incrédulo à cena, e que de antemão conhecia o
caráter torpe do outro, objetou ao pai que a mãe jamais faria uma coisa
daquela, e disse interrogativo para si mesmo: “Há caroço nesse angu!”
O
outro, no entanto, fez um ar sério, e disse ao pai em tom de ironia:
–
Corra lá que o senhor ainda o encontrará em casa com ela.
O
pobre do homem tomou então a resolução de ir averiguar tudo. Mas ai dele se
tivesse mentindo! Antes de sair, porém, abriu a moringa e encheu a boca de
água, cuspindo logo em seguida, desesperado.
–
Que significa isso? Quem foi que mijou nessa moringa? Foi também o desgraçado
do homem?
O
filho apenas afirmou que sim com a cabeça, e o pai saiu às carreiras para casa,
e ele o seguiu.
Quando
o velho chegou a casa e a adentrou bruscamente, viu de fato um homem sentado à
mesa, tendo um matolão de couro aberto sobre ela. Sem nada perguntar, ele pegou
dum punhal que trazia à cintura e desferiu um golpe brutal sobre outro, que
rolou pelo chão todo ensopado de sangue. Em seguida, correu até a mulher e a
agarrou fortemente pelos braços, indagando com voz de trovão:
–
Pensa que sou cachorro para roer ossos?
A
pobre mulher, que não compreendia nada aquela situação, dirigiu-se ao filho
perverso e perguntou o que significava tudo aquilo, ao que ele, sem um pingo de
pejo no rosto, confirmou tudo o que havia dito ao pai:
–
Sim, pai, ela mandou dizer que o senhor se contentasse com os ossos e ainda pediu
para o homem mijar dentro da bilha.
O
marido, louco de indignação, não hesitou em pegar do mesmo punhal e cravá-lo
várias vezes sobre o coração da companheira. Esta, porém, ainda agonizando,
fixou o olhar no filho e lhe lançou esta terrível praga:
–
Maldito serás para sempre! Jamais morrerás e tua alma perambulará perpetuamente
por essas terras, e berrarás feito um animal louco toda sexta-feira, até que
por fim o diabo te conduza à sua tenebrosa morada.
Lançada
esta maldição sobre o rebento, a pobre senhora espirou sob a ponta do punhal
sangrento.
Um
vizinho que ouviu toda a algazarra, correu até lá e deu de cara com o
apavorante desfecho.
–
A sem-vergonha me traiu com esse canalha! – tentou explicar o marido ao amigo.
Ao que este, boquiaberto, explicou:
–
Miserável homem! Este que você assassinou é um boticário de Jacobina que veio
oferecer remédios à sua esposa. Eu que o indiquei à sua mulher, pois sabia que ela
estava doente.
Daí
a dias encontraram o marido enforcado numa árvore. O filho mais velho ficou
tomando conta das terras. Quanto ao mais novo, desde aquele dia desapareceu do
povoado.
Quando nas noites de sextas-feiras se ouve um berro pelas redondezas, diz-se que é o Berrador pagando por seus pecados.
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