11/28/2022

Manoel Vitorino (Conto), de Coelho Neto

MANOEL VITORINO

A infância de Manoel Vitorino parece moldada no versículo do evangelista: “nonne hic est fabri filius?” Não era ele, como Jesus, filho de um artífice? Não foi em uma oficina que passou os seus primeiros anos serrando, acepilhando a madeira, afeiçoando-a a móvel, lixando-o, envernizando-o, com os pés nos montes farfalhantes de maravalhas, entre operários, seguindo os conselhos paternos como o sírio misericordioso ouvia as palavras do carpinteiro que, à sombra da vinha doméstica, enxameada de abelhas, escavacava, a enxó, os lenhos dos montes? A mesma cidade natal, alta, numa formosa situação dominando o mar liso, com a sua população mista e a sua verdura tão viçosa nos eidos e nos pomares lembra a Galileia messiânica que Amiano comparou ao Paraíso pela doçura do ar, pela pureza cerúlea do céu, pelo perfume das flores, pela beleza languida das mulheres. 

Ali cresceu o infante no trabalho, entre os irmãos e os operários — com o homem simples que vinha do povo, com o tronco saído da floresta, o primeiro conservando ainda todas as tradições puras do passado, o segundo ainda a exalar o perfume silvestre das resinas — os representantes robustos das duas grandes forças humildes: a plebe e a selva. 

Ali cresceu na virtuosa atividade e dali saiu para o Sanhedrin tornando-se, em pouco tempo, o mais arguto e o mais brilhante dos doutores. 

Do passado não se desligou jamais renegando-o por vergonhoso — o seu prazer era mostrar, na sala nobre da sua residência, a cadeira que fizera na oficina paterna: era o seu brasão de orgulho aquele móvel. 

Conhecendo a vida porque a vivera desde o grau mais modesto até o sólio mais alto, de cima, como se o coração lhe houvesse ficado na rasa planície de onde partira, tinha sempre os olhos abaixados para o sofrimento dos que fervilham obscuramente na miséria desconhecida e era por eles que a sua palavra ressoava ferindo toda a gama das angústias; era por eles que a sua pena, forte como uma clava e delicada como um plectro, rodopiava demolidora ou vibrava suavemente a harpa das elegias; era por eles que o seu gênio criava e a sua mesma força vinha daquela humildade tanto que, quando um adversário, querendo abatê-lo, referiu-se, com desprezo, à sua origem, vimo-lo sair mais alto daquela modéstia. O nada deu mais grandeza ao seu filho e do opróbrio da acusação rebentou o esplendor da defesa, como das chagas de Jesus saiu a glória da sua doutrina. 

O povo devia amá-lo porque ele era o seu mais legítimo representante. No passado tinha apenas para mostrar a porta de uma oficina, mas, estendendo a pena, apontava o Futuro, cujas ondas ia apartando para levar a Canaã os que confiavam nos seu prestígio e na sua coragem. 

Morreu pelejando, caiu na trincheira e, como o soldado fiel que, ao sentir-se ferido, procura, na confusão da batalha, a bandeira pela qual verteu a última gota de sangue, ele, na agonia, pediu ansioso: “Abram as janelas! Deixem-me ver o sol. Quero morrer vendo a luz!”. 

Era o combatente que procurava com os olhos a bandeira sob a qual pelejara. Queria vê-la, ainda uma vez, como se pudesse levar para a sombra do túmulo a sua visão esplêndida do céu azul, da manhã iluminada em ouro pelo sol que subia. E foi, efetivamente, o seu lábaro, a Luz, na sua fulguração mais bela: a Verdade. 

Pela verdade foi que ele surgiu entre os guerreiros da santa campanha da abolição. Era ainda estudante, conservava, talvez, nas mãos os calos da ferramenta quando lançou o seu grito de guerra correndo a juntar-se aos propagandistas da redenção O que ele foi como abolicionista dizem-no os seus escritos, repete-o o povo rebuscando na memória as palavras flumíneas com que o seu patriotismo ou, melhor, a sua filantropia verberava a exploração cruel da gente negra. 

Vencida a primeira batalha logo se empenhou, com o mesmo atrevimento, em outra, e foi dos que mais lutaram esquecendo interesses, e só visando o triunfo ideal e até a hora em que estrugiram os clarins da vitória ninguém o viu desfalecer, ninguém o encontrou repousando. 

Como o Macabeu estava sempre nos pontos mais arriscados e foi a sua ânsia nobre de refazer a cidade do Futuro, que o matou — ficou sob as ruínas quando, a grandes camarteladas, procurava desempecer os lugares tomados ainda por construções defeituosas para nelas fazer subir o edifício novo e admirável que sonhava. 

O hebreu, filho de Matatias, caiu sob o paquiderme monstruoso que, partindo das alas sírias, incitado pelo cornaca, esmagava no campo a gente israelita. Cravando-lhe a espada no ventre o herói não mediu a força nem pôde escapar a tempo à queda da mole viva e foi por ela apanhado; assim ele, na luta, sem olhar as consequências, ouvindo apenas a voz do patriotismo, afrontou o perigo e, quando quis recuar, as forças depauperadas negaram-lhe a necessária energia e o vencedor ficou sob o peso do vencido. 

Era um tipo de raça, um dos últimos representantes desses heróis em que tão fértil tem sido a gloriosa Bahia, que reúne nos seus filhos o brilho dos atenienses e a audácia dos lacedemônios. 

O seu enterro foi uma apoteose, todas as representações populares acompanharam ao frio silêncio o despojo do grande homem como se nele vissem um viático que se recolhia. Foi a homenagem respeitosa com que os sofredores quiseram honrar aquele invólucro de onde saía, em clarões, como do sarçal montesino, o verbo eloquente da defesa e os protestos altivos contra o Erro. 

Com Manoel Vitorino desapareceu mais uma das glórias que nos orgulhavam. 

Homem múltiplo ele era o sábio e o poeta, o fundibulário e o artista, o ciclope e o miniaturista. 

De volta da sua viagem à Europa, reassumindo a cátedra de lente e tornando à clínica, arrebatava o seu auditório de alunos com a beleza da frase, sempre culta, com que deslindava todos os segredos da ciência e, à cabeceira dos enfermos, maravilhava os colegas com as audácias de alta cirurgia, recompondo, por meio da autoplastia, faces corroídas ou propondo e realizando resseções e ablações que pareciam loucuras. Terminada a operação, deixando o alívio àquele que gemia, purificando as mãos que haviam chafurdado em sangue e em ichor, sentava-se à mesa e o cirurgião desaparecia e no seu gabinete tudo se transformava: o tabix do esqueleto cobria-se de carnes, um sangue entrava a colorir os lábios que se entreabriam, onde só havia o rictos sinistro, olhos acendiam-se nas órbitas vazias, voltava o sorriso à face; o gesto, o movimento acionavam o que era inércia e o símbolo triste da Morte aparecia sob a feição risonha da própria Vida: era a Musa inspiradora! E a mão que havia, minutos antes, retalhado a carne, esborcinado a pústula, lá ia obediente à inspiração divina, traçando o período cintilante onde a ideia fulgurava facetada carinhosamente pelo capricho requintado de um artista magnífico. 

Mas se o barbarizo se levantava nas ruas, se partiam justas queixas do meio do povo oprimido, ele deixava a sua torre de Marfim e, subindo ao posto de combate, com a fúria de um lapita, era vê-lo lá de cima a arrojar catapultuosamente penhas sobre penhas como a ave monstruosa da lenda persa que, remigiando na altura, de azas largas, para vingar-se, subia penhascos até perto do sol e, lá de cima os deixava destruindo com eles esquadras nos mares e aldeias nas terras. 

Morreu pobre como o homem da cabeça de ouro, de A. Daudet que, depois de haver enriquecido meio mundo com as preciosas lascas do seu crânio, um dia, querendo comprar um par de botinas, levou os dedos à cabeça, que era o seu tesouro, e tirou-os ensanguentados, com umas miseráveis estrias de ouro... “Il y a par le monde de pauvres gens qui sont condamnés à vivre de leur cerveau, et payent en bel or fin, avec leur moele et leur substance, les moindres choses de la vie. C’est pour eux une douleur de chaque jour; et puis, quand ils sont las de soufrir...” e assim termina a Légende de l’home à la cervelle d’or

O que morreu tinha ainda uma copiosa riqueza na grande mina mas dava-a toda aos que a pediam. Aqueles lábios não sabiam dizer não! E lá ia ele a todos os trabalhos, mostrando-se em todos os lugares, na hora do combate ou no instante da caridade — fulminando ou implorando, batendo-se pelos oprimidos ou pedindo para os pequeninos e para os valetudinários. 

Na sua casa da rua Leite Leal, nas Laranjeiras, disse-me ele, uma noite, a propósito da literatura: “que era uma carreira ingrata, menos ingrata, todavia, que a política. Não me aconselhava a deixá-la porque eu poderia responder com o mesmo conselho e ele teria de calar-se e concluiu: esses idealismos são sempre fatais. A política é também uma poesia”. 

Toda a vida desse extraordinário lutador de rija tempera, mas desprovido de couraça, porque não tinha o egoísmo para defender-lhe o corpo nem a indiferença a reforçar-lhe o coração, residia no cérebro que funcionava como um farol mostrando ora a luz branca da paz, ora a luz verde da esperança ou o clarão sanguíneo do combate. 

A tempestade rugia em torno dele, tremenda, os vagalhões assaltavam o seu rochedo cuspindo-lhe a baba salgada da injúria, e ele, indiferente, continuava a alastrar o mar proceloso com o clarão salvador do seu gênio — por ele fugiam os navios evitando a costa tenebrosa salteada de rochedos e as alcíones vinham bater as azas de encontro à sua luz como se tentassem fazer a treva, mas só conseguiam magoar-se e caíam palpitantes nas rochas do seu pedestal. Às procelárias, gritavam, longe, na vaga, receando afrontar o esplendor e todos os monstros marinhos, que esperavam a carniça dos naufrágios, olhavam, com ódio impotente, aquela fulguração bendita que abria na ferrugínea densidão uma clara estrada por onde os navegantes pudessem levar seguramente os barcos frágeis. 

Como não visse clarão de sol e a noite se prolongasse pelo dia o farol não se apagava e aclarando, resplandecendo, ia sendo minado na base pelos vagalhões assaltantes e, repentinamente, fragorosamente, eis que a torre desaba deixando em negra escuridão costa e o mar sinistro onde agora erram, entrechocando-se, os navios perdidos e alcíones, monstros e procelárias festejam, com alegria selvagem, a catástrofe. 

Mísero e grande luzeiro, tiveste a sorte de Prometeu e mais do que o grande piedoso que viu apenas as filhas de Oceanos chorando lamentosamente em torno do seu presídio, tu tiveste toda a Pátria a chorar à volta do teu corpo, e se, como na linda poesia do grande lírico das Levantinas, as lágrimas que a tua morte arrancou corressem em uma só caudal por ela iria flutuando o teu esquife, como uma bari divina descendo na correnteza de um rio de saudade.

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