EMANUEL
Foi em Belém, no Pará, em julho de 1899 que o vi pela última vez em companhia da formosíssima Nella Montagna, uma mulher alta e branca, de neve, em cuja alvura realçava, em contraste, o negror dos olhos e dos cabelos. Não era uma grande artista, sentia-se bem a sua fraqueza ao lado do possante interprete de Shakespeare, era uma divina carne, uma flor de volúpia, um estimulante lúbrico dos sentidos. O seu porte airoso e, ao mesmo tempo, flexível, dava-lhe o aspecto delicado de um grande lírio quando ela aparecia, como no Hamlet, toda branca, na sua cândida túnica, os olhos parados, desfolhando malmequeres e caminhando, como uma sonâmbula, para a morte nas águas.
Emanuel adorava-a com a fúria ciumenta de um italiano que sabe amar e admirar. Era preciso vê-lo no Otelo, na cena da câmara: avançava como um abutre para o ninho da pomba e como que todas as suas desconfianças sopitadas explodiam naquele momento misturadas com o seu amor ardente e sensual. Como ele admirava a filha de Brabantio, como sentia a mulher cuja beleza ia fanar-se na morte e o arrojo com que arremetia era bem o de um impulsivo, o de um homem que sabia, ao certo, que se não executasse, de pronto, a sua resolução, fraquearia diante da formosura vencedora.
E era bem isto, o grande trágico: um amoroso e um impulsivo. Na tragédia, quem examinasse detidamente a personalidade do ator, acharia estas duas qualidades — a veemência no amar e a violência na vingança. No Rei Lear, por exemplo, que era o seu melhor trabalho, no qual, até hoje, ninguém o excedeu, quando não era um violento, um homem da rebentina, era um domador da fúria. Na cena da divisão do reino o velho mal se continha no trono, atendendo à direita, à esquerda, irrequieto, agitado, alegrando-se ruidosamente com as respostas de Goneril e de Regana e insurgindo-se, aos berros, com a ingênua simplicidade eloquente de Cordélia. A sua saída era como uma rajada de borrasca — a corte seguia-o num torvelinho como se ele a fosse arrastando impetuosamente: era bem o homem que encarnava o personagem, a “alma” do poeta adaptava-se perfeitamente ao indivíduo que a carregava.
Nas cenas subsequentes desse doloroso poema que Florence O’Brien denominou, com tanta propriedade: uma noite de tempestade (a stormy night) era sempre o impulsivo que aparecia até o final em que irrompia o grande amoroso que se abrandava sentindo a presença daquela filha tão ingratamente repelida do seu coração e que, quando a encontrava assassinada, feroz na sublimidade do sentimento, como o leão que arrasta para a floresta a companheira morta, vinha trazendo o cadáver aos arrancos, que já lhe negavam auxílio os braços débeis, aos gritos surdos que eram verdadeiros uivos e, repousando a filha, hirta e fria, ajoelhava-se perto, numa agitação de agonia, chamando-a, apalpando-a, querendo ver-lhe os olhos vítreos, sem poder compreender aquela catástrofe, até que, desesperado, desenganado, não podendo suportar a dor ia, aos poucos, pendendo e caía morto sobre o corpo amado.
Emanuel era sublime em todas as cenas dessa estupenda agonia porque ela lhe dava ensejo de mostrar as duas forças da sua alma elástica — a força de arremesso e a força de retração — a violência e o amor. Ninguém definiu melhor esse tipo do velho rei bretão do que Victor Hugo — ele não o esculpiu num bloco, talhou-o numa pedreira virgem. Depois de haver descrito Cordélia diz o poeta gigante na sua linguagem gigantesca:
“Et quele figure que le père! quelle cariatide! C’est l’home courbé. Il ne fait que changer de fardeaux, toujours plus lourds. Plus le vieillard faiblit, plus le poids augmente. Il vit sous la surcharge. Il porte d’abord l’empire, puis l'ingratitude, puis l’isolement, puis le désespoir, puis la faim et la soif, puis la folie, puis toute la nature. Les nuées viennent sur sa tête, les forêts l’accablent d’ombre, l’ouragan s’abat sur sa nuque, l’orage plombe son manteau, la pluie pèse sur ses épaules, il marche plié et hagard, comme s’il avait les deux genoux de la nuit sur son dos...”
Ninguém encarnou melhor esse tipo sempre colossal e bárbaro, do que Emanuel, dando-nos perfeita essa espécie monstruosa da paleontologia do sofrimento e do amor.
Foi nessa tragédia que eu o vi em toda a sua grandeza, foi nela que o senti e que o admirei com mais entusiasmo e mais lágrimas, e mais tarde em um banquete oferecido a Rodolpho Bernardelli, no salão do teatro São Pedro, conversando com o grande trágico que, então, se me revelou um erudito, compreendi que ele não só representava aquelas cenas como as sofria todas porque não as comentou como grandezas literárias, discorreu sobre elas sentindo, com acabrunhamentos e ânsias como se fosse contando, em dolorosa confidência, os martírios da sua própria vida, os transes agudos da sua atormentada existência e não esqueço o ar resignado com que ele lançou toda a culpa sobre o desventurado: “eh! Um imprudente!...” E, encolhendo os ombros, ficou de olhos no chão, esmagando nervosamente entre os dedos pequeninas migas que encontrava na toalha.
Vi outros artistas interpretando esse tremendo papel, nenhum, porém, conseguiu dar-me a verdadeira impressão da realidade, da vida que eu obtinha de Emanuel e mais do que ao seu talento atribuo à sua constituição moral aquela maravilhosa “realização” da epopeia sinistra do poeta máximo.
Emanuel era admirável no Otelo, era revoltante no Shylock, era amoroso no Romeu mas, em todos esses papéis sentia-se o ator — no Rei Lear via-se a criação, era a própria figura ancestral daquele, que, conforme rezam as crônicas, “no ano do mundo 3105, sendo Joás rei de Jerusalém, subiu ao trono da Bretanha, sucedendo a Baldud, príncipe de grande poder e de muita sabedoria e bondade. Leir chamava-se e, governando o seu povo com muita cordura, criou para o seu reino uma época de prosperidades deixando, entre outros benefícios, a cidade forte de Caeirler, fundada pelo seu braço”.
No teatro moderno Emanuel sentia-se acanhado, oprimido — a sua voz, que dialogava, no escampo, com o trovão, soava estrondosamente nos salões, o seu próprio corpo como que se não sentia ajeitado no trajo contemporâneo — os seus gestos eram largos, os seus movimentos ríspidos. Imaginai um daqueles esforçados guerreiros que, como Oliveiro ou Guido, saíam a pelejar cobertos de aço e manejando armas que dois dos nossos coevos nem sequer alçariam, despindo o aceiro pesado e vergando a casaca cerimoniosa — toda a altivez desapareceria e, em vez de airoso e galhardo, o homem atorreado aparecer-nos-ia ridículo, atirando as pernas leves, abanando com os braços, desequilibrado e tímido, a servir de chacota a quantos o vissem. Não era ridículo o ator porque supria com o talento a falta de disposição, mas o artifício saltava aos olhos, o esforço era por demais visível e o vexame tornava-o quase humilde e lá ia ele procurando um plano inferior como envergonhado de mostrar-se com costumes que não eram seus.
Conhecendo profundamente os antigos, falava dos gregos com verdadeiro entusiasmo e uma vez, no seu camarim, conversando-se sobre Sófocles, Emanuel levantou-se e, descrevendo o tipo de Édipo, esse grande avô de Lear, a traçar largamente as cenas, pôs-se a murmurar o grande monólogo do desventurado... Ao fim, com um movimento descorçoado, juntou as mãos e, de olhos no céu, suspirou: “não é possível... Não é possível...” Representava-se nessa noite O Grande Industrial do incomparável senhor Ohnet e o contrarregra veio preveni-lo. Emanuel deu de ombros e, lentamente, como se fosse a um sacrifício, lá caminhou vergado para a cena.
Era um antigo, educado à antiga — o seu mesmo porte, altaneiro e robusto, inculcava-o um homem de rija tempera, um homem da idade forte. Novelli é incontestavelmente mais correto, falta-lhe, porém, a folgue de Emanuel, aquele ímpeto indomável que o arrojava na ação transformando-o de simples intérprete em personagem viva.
Nos últimos tempos a vida do grande ator ia caindo nas peripécias do Romance Cômico, de Scarron. Em Manaus, disseram-me, ele viveu enclausurado em uma casinha modesta onde escondia, com ciúme, o seu tesouro de amor. Aos que o iam visitar ele aparecia como Shylock: primeiro entreabrindo desconfiadamente a janela, depois franqueando a porta e acolhendo, a contragosto, na sua sala onde tudo era desordem. A mulher raramente aparecia e ele falava, sorria, lançando, de espaço a espaço, um rápido olhar à porta como para fiscalizar a prisioneira.
Era um sensual, dirão; não sei — sempre o conheci
assim, acompanhado por uma mulher formosa que mais se impunha pela cor da pele,
pelo brilho dos olhos, pela massa sombria dos cabelos, pelas linhas ondulantes
do corpo do que pelo talento. A primeira — Virgínia Reiter, abandonou-o,
segundo a versão que correu, por não poder suportar a sua cólera ciumenta;
houve outra, que também o repeliu — a última foi a alvíssima Nela Montagna e
essa, se os de Manaus não exageravam quando descreviam a sua vida atribulada,
esteve, algumas vezes, ameaçada de representar ao vivo a cena cruel da câmara
de Desdêmona. Não sei se o acompanhou até à última hora ou se, como as outras,
para não acabar às mãos do terrível ciumento, deixou no seu lugar uma grande
saudade.
Lembro-me de a ter visto, uma vez, no Pará. Emanuel magoara um pé e sofria; fui visitá-lo. Uma criada recebeu-me introduzindo-me em uma sala que estava muito longe de ser um primor de gosto. Ali fiquei relendo velhos jornais que se achavam sobre uma mesa onde era tanta a poeira que se poderia nela semear. Por fim ouvi passos lentos, arrastados e Emanuel apareceu-me em robe de chambre, a barba crescida, os cabelos arrepelados, coxeando, amparando-se ao ombro da formosa mulher, mais branca do que nunca. Não sei porque, lembrei-me do cego Édipo seguindo vagarosamente, sofredoramente levado por Antígone.
Ali estive algum tempo a ouvir o grande artista que então andava com um desejo forte de representar Macbeth. “Se voltar ao Brasil comprometo-me a trazê-la”, disse-me referindo-se à tragédia macabra e amoroso, festejando o rosto alvo e macio da companheira, ameigou-a: e tu farás a Lady... Tem as mãos lindas, não acha? E, com a pequenina mão marmórea pousada na sua mão de atleta, esperava a minha opinião. Eu afirmei: — que, em verdade, era maravilhosa e ousei levantar os olhos para os olhos negros... Creio que Emanuel rugiu... felizmente ele não podia correr e foi justamente por isso que a tanto me atrevi.
Não pôde o artista realizar a promessa magnífica confirmada no dia em que dele me despedi para subir as grandes águas, em direção ao Amazonas, depois de o ter ouvido, ainda uma vez, a última, não em cena mas no salão de um clube onde ele disse, como sabia dizer, o canto V do Inferno, de Dante.
Descansa, grande espírito, repousa nessa região misteriosa de onde viajor algum logrou jamais voltar e se lá, como conjecturou, em hora de saudade, o grande épico, se consente memória desta vida, certo estarás repassando o monólogo sinistro do príncipe sombrio e vendo o que nele existe de verdade: “Morrer... dormir... dormir! sonhar talvez!...”.
E com que sonharás tu, alma que foste o espelho de outras almas? Com que sonharás tu? Com a tua Arte? Com a Pátria azul? Com as terras que percorreste? Com todos os povos que viste?... Ah! Não, sonharás com elas: com Ofélia, com Desdêmona, com Portia, com a suave Cordélia, não as abstrações do poeta, mas as lindas mulheres que as fizeram viver a teu lado quando conspiravas contra a infâmia rebuçado na velha capa de Hamlet, quando rugias sob a couraça do mouro, quando exigias a dívida de carne, sentado a um canto do tribunal, afiando voluptuosamente a faca na sola do velho papuz, quando, coroado de urzes, com um junco por ceptro e um bobo por companhia, afrontavas a tormenta no descampado.
Sonharás com elas e, se sonhares, pobre espírito amoroso, mísero espírito ciumento, como te há de ser dolorosa a bem-aventurança com as reminiscências desses amores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...