Dans les villes et dans les écoles l’esprit subtil et vain peut rire de l’âme
de l'arbre. On n'en rit pas dans le désert, dans les climats cruels du nord ou
du midi, où l’arbre est un sauveur.
On
y sent bien le frère de l’home (Michelet)
Quem, como eu, teve um dia a fortuna de dormir agasalhado por uma floresta, mais antiga que a cruz nesta formosa e moça região da América, sentiu, por certo, a mesma impressão poderosa que avassalou o meu espírito quando, ao morrer da luz forte, ao nascer da luz branda, desde a beira do rio até o íntimo da selva, correu um sussurro manso como o suspiro amoroso da vegetação.
Os nossos canoeiros, acocorados em torno de um fogo de versas, as mãos estendidas acima da chama que as avermelhava como se as trespassasse, falava baixinho. A água lenta e cheia do rio deslizava com um leve murmúrio e, por vezes, longe, um pio de ave noturna feria o silêncio. As nossas redes oscilavam de galho a galho fazendo farfalhar a folhagem.
Esfriava. Docemente, no céu límpido, ia a lua subindo. Já a densa fronde alta estava toda forrada de alvo e, insinuando-se pelos escassilhos, atravessando as abertas, a claridade mística escorria pelos troncos, alastrava a alfombra, brilhava na água ou estendia-se no recesso do arvoredo ribeirinho figurando maravilhosas estruturas: Aqui era um adito de capela, com o altar atoalhado, os nichos brancos, como de mármore; ali eram ruínas dos castelos — as franças semelhavam muralhas aluídas, parapeitos ameados, torres que subiam talhadas em seteiras; e clarões, salteando o negror, criavam perspectivas fúnebres e fundas recuando aquelas fantasmagorias selvagens. Além era uma alvura que se destacava, perpendicular e esguia, fincada na treva como um cipó solitário. Mais longe, disseminadamente, esplendores colgando o negrume e a água lisa e dormente do rio espelhava todos aqueles aspectos estranhos recordando-me as descrições românticas do Reno onde os poetas vão abeberar a musa elegíaca, ao longo das margens tradicionais em que perduram, como arcabouços do passado, muros negros de castelos e elfos e ondinas, à noite, esvoaçando ou bailando, redizem lendas do velho tempo ou entoam bailadas melancólicas que fazem tremer o barqueiro retardatário ou assombram e enlouquecem o afoito caçador furtivo.
Meus companheiros dormiam; eu velava extasiado, olhando o céu por entre os ramos e parecia-me que as estrelas eram flores que desabrochavam na coma altíssima daquelas árvores. Por vezes, como se alguma se desfolhasse deixando cair uma pétala esplêndida, uma centelha descia trémula, bruxuleando e perdia-se... Vagalume errante, vagalume errante, ardentia alada dos oceanos de verdura.
Então senti, senti bem a vida grande e misteriosa das árvores.
A espaços era um crepitar, depois um estalido seco, e logo um hálito — era a brisa que passava... Seria a brisa ou o suspiro da selva pressaga? Pobres árvores acolhedoras, prisioneiras da terra, eu bem senti que vivíeis e vós, porque nos víeis ali, quisestes guardar reserva como o caçador surpreendido pela fera que, de bruços, contém a respiração enquanto sente o inimigo a farejá-lo. A vossa alma, que os gregos personificaram na hamadríada, não ousou deixar o recesso dos cernes, lá se ficou encolhida porque o homem cruel estava ali perto.
Debalde o luar magnífico brilhava, debalde as auras passavam, não procurastes corresponder ao apelo do mistério e a noite correu serena e casta, só os arbustos amaram, eles, os pequeninos, eu bem os senti que se abraçavam na sombra, junto às raízes dos jequitibás portentosos; mas, pela madrugada, um perfume forte, acre, estonteante, veio até mim, perturbador como uma sedução — vinha de longe, era a respiração ofegante das árvores que se amavam na brenha virgem, era o aroma nupcial da floresta, a exalação erótica dos vegetais. Era o amor poderoso e eterno da natureza, o amor fecundo, o amor criador que passava em eflúvio pelo bosque, multiplicando a beleza, a graça, a força e o benefício.
E porque se acautelavam tão pudicamente as árvores mais próximas? Porque sentiam o homem, o homem cruel, o encarniçado inimigo da sua generosa espécie. Ó se têm alma as árvores!
Alma é amor e que maiores provas de amor queremos que nos dê a árvore? Ela é a purificadora do ar que respiramos, ela é que nos garante a fonte que jorra para a nossa sede e para a rega dos campos, ela é a fiandeira de sóis — caem-lhe na copa os raios caniculares e ela, desfiando a flama, dá apenas o calor ao que se achega à sua sombra. Ela é a medicina, ela é a beleza cercando a moradia em que vivemos, ela é a nossa confidente discreta porque é sob os seus ramos que abrimos francamente o coração deixando livres as saudades e as reminiscências. Assim é a árvore viva.
Morta ela é tudo — o princípio e o fim: berço e esquife, e, entre esses dois polos, tudo mais é floresta: a casa e o templo, o leito nupcial e o altar, o carro que trilha os campos, o navio que sulca os mares, o cabo da enxada e a haste da lança, tudo é madeira, tudo é arvore, é a floresta.
Matai a árvore e tereis o vagueiro. A terra tem os seus nazires: Sansão tosquiado é impotente para a vingança, as regiões devastadas tornam-se desertos. E que vemos nós por todo este vasto Brasil que era uma floresta frondosa? A destruição inclemente. E porque vai tão encarniçadamente o homem à árvore, que foi a primeira geradora do lume nos tempos remotos do pastor ariano? Porque a árvore é um ser bruto, insensível e mudo. Ah! que se atentasses bem, lenhador, à morte de árvore, tal não dirias, homem de coração. Ao primeiro golpe do machado todo o colosso treme e os passarinhos, como a gente de uma cidade abalada por um terremoto, logo desertam os ninhos. Vai o segundo golpe ao mesmo lanho, afunda-o — eis a seiva a correr, é o sangue que se esvai; outro golpe e começa a árvore a gemer surdamente, doridamente — a sua folhagem agita-se como a acenar à clemência, os seus ramos debatem-se mas o lenhador, a mais e mais empenhado na crueldade, redobra os golpes e canta.
Em torno da que agoniza as outras parecem tremer como ovelhas num pátio de matadouro e, como se de uma a outra corra a notícia cruel, toda a floresta vibra prevendo a mesma sorte.
Por fim, a um golpe mais rijo, um estalo responde — é o estertor da árvore e o lenhador recua e fica a olhar... Lá vem pendendo a frondosa cabeça, inclina-se e um fragor levanta-se na mata; derruba-se hirta, roçando de raspão nas companheiras, a árvore ferida e cai estrondosamente esmagando os arbustos gerados à sua sombra. Cai e agoniza e leva dias agonizando até que se lhe vão secando as folhas, encolhendo, mirrando... então sim está morta a árvore.
E para que a sacrificas, homem de coração? Para o fogo... e secas a fonte da qual a vítima era como a ninfa protetora, e esterilizas o terreno que ela fecundava alimentando-o, como o pelicano, com o seu próprio sangue que ia nas folhas, que ia nas flores, que ia nos frutos. E, com a morte das árvores, lá se vão os animais e, em pouco, o que os descobridores viram como a região favorecida da fartura e da beleza não será mais que um campo arrasado, seco e triste, cavado em valetas que foram leitos de rios, brocado em grotas que foram nascentes e desamparado ao sol esterilizador...
Felizmente começa a reinvindicação e coube à criança iniciar a santa empresa. Para responder ao machado ai está a enxada nas mãos débeis dos infantes — mas a semente é como a esmola e a Terra é como Deus: dai-lhe um grão e ela vos responderá com a centena, plantai um renovo e ela vos gratificará com o milhão e ainda com prêmios maiores que são o ar puro, a água, a sombra, a medicina e com a sua beleza — assim a árvore demonstra a sua gratidão
Não tem alma e é grata! não tem alma e vinga-se...
Eu, que tive a fortuna de dormir agasalhado por uma
floresta, posso dizer-vos, crianças heroínas do renascimento, semeadoras
benditas da segunda geração floral: fazei o bem às árvores que elas saberão
corresponder à vossa caridade e lembrai-vos de que a festa que celebrais é o
início de uma Redenção: renovar a flora é robustecer a Pátria da qual as
florestas são os reservatórios de vida e de fortuna.
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