10/28/2022

Pela Pátria (Conto), de Júlia Lopes de Almeida



PELA PÁTRIA 

Os tiros lá fora repetiam-se, tremendos e abaladores. D. Catarina, muito lívida, segurava com os dedos magros, de encontro ao peito fundo e côncavo, o seu triste xale de viúva, escutando sozinha a agonia do coração... Morava em Niterói, num bairro afastado, e na sua pequena sala térrea, de uma nudez de ascetério, o seu corpo magro e esguio, todo coberto do preto, andava desnorteadamente, como um mastro sem velas batido na borrasca. 

Corria assim de canto a canto, de parede a parede, de janela a janela, sem parar, sem perceber senão que os seus dois rapazes lá estavam na guerra, o mais velho no exército, o mais novo na esquadra... 

A luz pálida do crepúsculo desfazia-se aos poucos. Coisas e seres retraíam-se num silêncio expectante. 

O troar da artilharia calava todas as outras vozes; nos intervalos caía sobre a terra uma mudez pesada e absoluta; mas o estampido vinha depressa fazer vibrar a natureza inteira. E o ar ficava por momentos trêmulo, como que dolorido pela passagem daquele som formidável assassino. 

D. Catarina tinha esgotado todo o fervor religioso da sua alma. A prece já lhe saía dos lábios frios como um débil perfume de flor murcha. Perdera as forças na ansiedade e no pranto; o coração não lhe destilava a água purificada da lágrima, que escorrera toda, deixando só no fundo os resíduos de sangue negro e envenenado, geradores da raiva. D. Catarina odiava a terra em que nascera e que lhe roubava agora os filhos, e execrava ainda mais os homens e a lei e tudo! Era ignorante, embora inteligente e imaginosa; e na curta parábola em que o seu espírito se abalançava, não podia atingir esses preceitos divinos, que se escrevem com sangue e que os homens leem corrente na sua alta sabedoria... 

A honra? O brio da nação? Palavras! Ela não sabia senão que amava os filhos, que os tinha criado com terno apego e grande sacrifício, pedindo honestamente e humildemente ao Senhor Deus dos exércitos, que fizera as estrelas do céu, as águas dos rios, os cedros altivos e as areias do mar, que, na sua força prodigiosa, de tantas maravilhas lhe concedesse a simplíssima graça de a fazer morrer bem velhinha, deixando neste mundo os seus dois filhos... os seus dois únicos filhos! 

Tinha caído a noite. D. Catarina procurou reagir. Acendeu a lâmpada, compôs na alcova próxima as roupas e as camas dos seus rapazes. Para quê? Eles não viriam ... mas era um hábito, e ela obedecia com submissão a todos os seus velhos costumes. 

Ergueu depois a vela à altura dos retratos deles, que se destacavam na parede caiada, em dois quadrinhos moldurados de veludo escuro. 

O mais velho era um soldado garboso, claro e bonito como o pai, de olhos rasgados e peito franco e largo. 

O outro, ainda muito novo, puxara ao tipo da mãe: era magro, trigueiro, de rosto comprido e lábios simpáticos. D. Catarina beijou ambos com igual ternura, confundindo-os no mesmo enleio e no mesmo cuidado. Voltou depois para a saleta, abrindo os ouvidos aos rumores de fora... 

Que estranho rumor seria agora aquele que percebia ao longe, no ar imóvel da noite? Fincou o olhar na treva. Ninguém! A estrada devia estar deserta. Tornou a entrar e foi sentar-se a um canto, com os cotovelos pontudos firmados nos joelhos e o rosto sumido entre as mãos. Caíra por fim numa atonia que lhe amolentava o espírito e petrificava o corpo; nem um leve estremecimento lhe agitava os músculos. Permaneceu por longas horas em igual postura, olhando para o mesmo ponto. 

A pouco e pouco ideias desencontradas foram nascendo e fugindo simultaneamente no seu cérebro de devota extinta. Deus e o diabo surgiam juntos na mesma luz indecisa que se esbatia em sombras, que mudava e que desaparecia. Santa Catarina, sua patrona, a virgem douta, vinha também, na sua nudez pálida de martirizada, atravessar-lhe a mente num clarão frouxo e frio. E depois outros santos, e grandes heresias, procissões fantásticas, mal definidas, indeterminadas, arrastavam-se lentamente, mudando de feitio e mudando de cor, esfacelando-se, extinguindo-se... 

D. Catarina permanecia surda a todas as bulhas exteriores, numa abstração de louca. O rumor recrudescera, recrudescera e avizinhava-se. Os estalidos da fuzilaria crepitavam já perto. De vez em quando ribombava o canhão, atroador, medonho. 

O solo e as casas tremiam então, abalados pelo estampido que o eco repetia em ondulações soluçadas. O clamor da guerra abafava tudo, terrivelmente, dolorosamente! 

Entretanto, alguém vinha pela rua solitária, batendo a calçada com passos apressados. D. Catarina, prostradíssima, continuava em igual postura, olhando para o mesmo ponto... Bateram; ela então, acordando daquele marasmo de extenuada, ergueu-se de chofre e correu para a porta. 

O coração saltava-lhe em ímpetos violentos, sufocadores. – Meu filho!

Era o João, o mais velho, o soldado. A mãe estendeu-lhe os braços, sorrindo, enlevada, numa grande ventura. Ele não respondeu ao afago; e pálido, abstrato, sem ter nem mesmo levado a mão respeitosamente ao boné, foi direito à mesa e apoiou-se nela, deixando-se cair numa cadeira. 

– Como você vem sujo de pólvora e como está cansado! Meu adorado filho, que medo que eu tinha! Agora fico pensando no outro...

o meu Pedrinho... você sabe dele? 

João voltou-se para a mãe com ar espantado. 

– Diga, você viu seu irmão? 

O soldado não respondeu; fixava a mãe com olhar parvo, muito aberto, como se não compreendesse o que ela lhe dizia. Vinha fugido, com a farda rasgada, aberta no peito, as mãos negras de pólvora, o rosto transtornado. 

D. Catarina apavorou-se. Estaria doido, o João? Ameigando a voz ela pediu-lhe que repousasse e ofereceu-lhe de comer. 

Que não; respondeu ele com um gesto. 

– Então... 

O espírito da mãe clareou -se de repente: o filho vinha só para dizer-lhe: vivo! E, já com medo de tornar a perdê-lo, instou para que fosse descansar. 

– Não posso... venho fugido. 

D. Catarina relanceou a vista por toda a sala, procurando esconder o filho, receosa de que o vissem de fora. 

– Não quero esconder-me, tornou ele, percebendo-lhe a intenção; eu volto para lá... Eles conseguiram vir a terra... temos lutado muito!

– Os revoltosos desembarcaram? 

– Sim. 

– Então você viu Pedrinho? 

João abaixou afirmativamente a cabeça. 

– Nossa Senhora! por que é que o não trouxe? 

O soldado calou-se, suspirando baixo. A mãe repetia as perguntas, atropeladamente: 

– Diga! diga! ele falou com você? está bom? não o feriram? Meu filho! que saudade! Ele é tão fraco... é preciso que ele venha; quero os dois aqui, vá buscá-lo... Não, não! eu nem sei o que digo... Espere...

vou eu! 

De repente D. Catarina estacou diante do rosto mudo e pálido do filho. Parou-lhe o coração no peito. 

– Por que é que você não diz nada? O mesmo silêncio contrafeito.

– Responde, João! Pedrinho está vivo?! 

A palavra custava a romper por entre os lábios do soldado, e foi ainda com um aceno de cabeça que ele disse que não. 

D. Catarina caiu de joelhos com as mãos juntas. – Misericórdia! misericórdia! mataram meu filho! 

Depois, erguendo-se, exigiu do outro que lhe dissesse tudo, e instava: 

– Quem foi que o matou? você não viu? por que não defendeu seu irmão? Diga, quem foi que o matou, diga, diga! 

João olhou para a espada, que lhe pendia do lado batendo-lhe na perna. 

A mãe não entendeu e repetiu: 

– Meu adorado Pedrinho! mas você não fala, João! Diga quem foi que o matou, diga tudo! 

– Fui eu... 

D. Catarina recuou espavorida; depois, avançando para o filho, bateu-lhe no peito, bem sobre o coração e bateu-lhe na cara, muitas vezes e com muita força. Toda ela vibrava na convulsão do desespero, e a voz, que a dor tinha desafinado e enrouquecido, uivava e rugia a um tempo, como um cão que se lamenta ou uma fera que ataca. 

– Maldito! matar seu irmão! você, que mamou nos mesmos peitos, saiu do mesmo ventre, nasceu do mesmo amor! amaldiçoado... Caim! 

D. Catarina esmurrava o próprio corpo, à proporção que falava; e o filho ouvia-a calado, trêmulo. A mãe teimava por arrancar-lhe uma palavra ao menos e repetiu num desespero: 

– Diga tudo, maldito. Por que foi que você o matou, por quê? 

– Pela pátria! 

– Pela pátria! repetiu ela, rindo, raivosamente. A pátria sou eu! Eu que sofri, e que só vivia do vosso amor! Isto não é guerra por amor da pátria: eu sei o que dizem por aí. Eu sei! Infame, maldito... some-te da minha vista, Caim! Caim! 

D. Catarina caiu sem um soluço. João levantou-a, fê-la voltar a si e, de joelhos, chorosamente, contou-lhe tudo. Matara o irmão na treva, na desordem da luta, corpo a corpo. Por que viera o Pedro para ele com tanta fúria e arreganho? Matara quem o queria matar, defendera-se...

porque, jurava, só conhecera a voz do irmão ao ouvir-lhe o ai derradeiro. Foi então que, procurando fixá-lo, viu-o deitado de costas, com os braços abertos e o peito estreito arquejando no desprender da vida. 

D. Catarina repetiu: 

– Amaldiçoado! 

João concluiu: viera despedir-se da mãe, pedir-lhe que lhe perdoasse... Mais nada. Voltava para o combate. 

A mãe não procurou retê-lo, e ele saiu chorando. 

O soldado não voltou à casa materna... 

D. Catarina começou a perdoar-lhe quando teve medo de perdê-lo. 

Um dia, já muito sobressaltada, saiu para ir buscá-lo, num alvoroço, sem saber como perguntar por ele; mas logo no meio da estrada esbarrou com uns soldados que lhe disseram cruamente a verdade: o João tinha sido baleado e fora levado com outros, num montão de cadáveres. 

O dia estava sombrio, uma manhã cinzenta e chuviscosa. Os soldados passaram. D. Catarina ficou imóvel, com os olhos na onda verde que vinha desfazer-se na escumilha fofa da espuma, à beira do caminho silencioso. 

Ela tinha-o amaldiçoado... lembrava-se só daquilo. O João estava decidido a morrer... fora-lhe solicitar o perdão e só tinha ouvido em troca as palavras: 

– Maldito! Caim! 

O vento agitava-lhe o xale preto, que se abria em asas de corvo, e D. Catarina, alongando a vista, julgou ver ao longe os espectros dos filhos, com os braços hirtos, muito erguidos para o céu inclemente e as bocas articulando sem voz, num esforço medonho: 

– Pela pátria! Pela pátria! 

Batendo então com as mãos fechadas no peito fundo, D. Catarina, no seu egoísmo materno, respondeu-lhes, gritando em arrancos de louca: 

– Calai-vos, ingratos! A pátria sou eu! sou eu! sou eu!

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