O CASAMENTO DA EMÍLIA
Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes, trazido à força por Pedrinho, aparecia o Marquês de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor.
Mas apesar de noivo o Rabicó não perdia os seus instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna preocupação de descobrir o que comer. Além disso, não prestava a menor atenção à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias.
Uma tarde, Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um representante.
– Rabicó não vale a pena – disse ele aborrecido. – Não sabe brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? – e saiu.
Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que andava jogado por lá.
– Esta aqui. De agora em diante o noivo será representado por este vidro azul, e o tal Marquês de Rabicó vai passear – concluiu pregando um pontapé no noivo.
Rabicó raspou-se gemendo três coins , e desde esse dia, enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.
Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando viesse com impertinências.
– Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição.
– Eu sei qual é! – adivinhou o senhor Vidro Azul. – Não quer morar na casa do Marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, os Visconde de Sabugosa.
– Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não quero é sair daqui. Estou muito acostumada.
– O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.
– Sim, mas…
– Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O Marquês fica por lá e eu fico por cá – declarou Emília, toda espevitadinha e de nariz torcido.
O representante do noivo suspirou.
– Que pena! O Senhor Marquês já mandou construir um castelo tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente…
Emília deu uma risada.
– Eu conheço os lagos do Marquês! São como aquele célebre “lago azul” que certa vez prometeu à Libelinha lá do Reino das Abelhas.
O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que Emília não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar.
– Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque…
– Uma lata d’água, diga logo! – completou Emília mordendo os beiços.
Narizinho interveio, repreensiva.
– Você esta aqui para noivar, Emília, para dizer coisas bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do Marquês. Veja lá, hein?
E dirigindo ao representante:
– O Senhor Marquês não escreveu ainda uns versos para a sua amada noivinha?
– Escreveu, sim – respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. – Aqui estão eles.
E recitou:
Pirulito
que bate bate,
Pirulito
que já bateu,
Quem
adora o Marquês é ela.
Quem
adora Emília sou eu.
– Bravos! – exclamou Narizinho batendo palmas. – São lindos esses versos! O Marquês é um grande poeta!…
Emília, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha.
– O verso esta todo errado! Vou casar-me com Rabicó mas não “adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão!
Narizinho bateu o pé e franziu a testa.
– Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?
Depois, voltando-se para o representante:
– Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém sabe nunca o que ele realmente esta pensando, não é verdade?
O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não.
Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira com torradas de mentira. Depois do chá, se despediam.
Passada uma semana, a menina queixou-se a Dona Benta:
– Este noivado esta me acabando com a vida, vovó. Todas as noites, tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!…
– Mas que é que esta faltando para o casamento, menina?
– Os doces, vovó…
– Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os doces.
Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi aos pinotes, com os níqueis cantando na mão.
Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pé-de-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma festa em quase todos os convidados ia comer de mentira.
Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convivas.
Lá estavam Dona Benta, Tia Nastácia e vários conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspetor de quarteirão, um velho amigo de Dona Benta que às vezes aparecia pelo Sítio do Pica-pau Amarelo, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de laranja na boca.
Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada.
Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emília e chorou lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o Marquês; enfiou-lhe no braço uma aliança de laranja, que Rabicó por duas vezes tentou comer.
Os outros animais do Sítio, as cabras, as galinhas e os porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem compreenderem coisa nenhuma.
Terminada a festa. Narizinho disse:
– E agora, Pedrinho?
– Agora – respondeu ele – só falta a viagem de núpcias.
Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de repente – nhoc! Deu um bote na mais bonita.
– Acuda os doces, Pedrinho! – berrou a menina.
Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu para cima dele, furioso. Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente inspetorada no lombo do porquinho…
– Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!…
Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada.
Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele casamento. Os gênios não se combinavam e, além disso, a boneca não podia consolar-se do logro que levara.
Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve meio. Quando Emília desconfiava, era toda a vida. E desse modo ficou casada com Rabicó, mas dele separada para sempre.
– Esta aí o que você fez! – costumava dizer em voz queixosa. – Casou-me com um príncipe de mentira e agora, esta aí, esta aí…
Narizinho dava-lhe esperanças.
– Tudo se arruma. Um dia, ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.
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