AS TRÊS IRMÃS
Havia muitos anos já que D. Teresa não via as duas irmãs. A segunda, D. Lucinda, partira logo depois de casada, com o primeiro marido, para Buenos Aires, e lá ficara sempre; a mais moça, D. Violeta, fora habitar a Bahia com o seu esposo e ali estava gozando os triunfos acadêmicos dos filhos e os respeitos delicados do seu velho.
Mas um dia, D. Teresa, apreensiva, com medo da morte que se avizinhava, escreveu às irmãs:
– Que viessem ao Rio despedir-se dela e tomar posse do que lhes pertencia.
Interesse ou saudade... (quem lê claro em corações tão bem ocultos?) empurrou para as plagas natais as duas senhoras.
D. Teresa remoçou uns dias. Só ela ficara solteira e em casa dos pais, já há tanto mortos, como um guarda fiel, depositária de todas as relíquias da mocidade deles e delas! Assim, recomendou à criada, mulata antiga, ex-escrava da família, em todo caso uns trinta anos mais moça do que ela:
– Olha, Emília! para a mana Lucinda arranja o quarto azul, aquele da esquina... era o seu quarto de solteira... Ela gostava de canários... tinha sempre uma gaiola no quarto... era isso: bota lá a gaiolinha dourada do canário novo... Escuta! Lava bem tudo! Ela era muito faceira... não te esqueças do pó de arroz, de pôr sabonete fino e frascos de... espera! qual era o cheiro que ela preferia?... Ah! já sei! jasmim! manda comprar essência de jasmins...
– Sim, senhora.
– Agora, para D. Violeta prepara o quarto branco, das três janelas...
Era o quarto dela! Vê se arranjas muitas flores... Violeta era a nossa jardineira!... Olha, faze um ramo para o lavatório, outro para a cômoda. Era assim que ela usava... Espera! que pressa! Manda comprar essência de violetas... era o aroma dela!
– Sim, senhora...
– Não te esqueças de nada!
– Não, senhora...
A mulata saiu, deixando D. Teresa aos guinchos com um ataque de asma. Não queria morrer deixando aquela casa em mãos indiferentes. Só as irmãs receberiam com amor aqueles trastes antigos, em que tantas vezes rolaram juntas, onde os pais presidiam às suas travessuras de crianças e onde, depois, os noivos as beijaram com embriaguez... A pobre coitada estava a desfazer- se, sentia, a cada arranco da tosse, desmanchar-se-lhe sob a pele seca e enrugada a carcaça frágil e dolorida. O seu corpo, nunca amado, caía, como um feixe de ossos partidos, para a sepultura. Como estariam as irmãs? A Lucinda deveria estar bem velhota! Agora a Violeta, essa, apesar de mais moça, com tantos filhos e já tanta netalhada, é provável que viesse trêmula e bem achacada pela velhice! Havia já uns trinta anos que a não via... e à outra... uns bons quarenta! E D. Teresa revia com saudade o rosto pálido e formoso da esbelta Lucinda, de olhos verdes, dentes sãos, faces brancas como a neve; e o rostinho delicado de Violeta, moreno, levemente rosado, com uns olhos travessos e negros e uma boquinha perfumada de juventude, muito fresca e vermelha!
E apesar de calcular-lhes as rugas, só via diante dos olhos as figuras louçãs e radiantes das irmãs noutros tempos...
A mulata aprontou tudo com esmero. D. Teresa, apoiada ao seu ombro e a uma bengala grossa, percorreu toda a casa. Ela tinha tido sempre a singular mania de conservar as coisas nos mesmos lugares e em igual posição. Se mandava renovar o papel de uma sala, exigia que o novo fosse exatamente igual ao que de lá saísse; e os trastes eram polidos, os estofos espanados com escrúpulo e as alcatifas nunca substituídas por outras que não fossem da mesma cor e de igual desenho... Para ela, aquelas velharias eram preciosidades raras. Não saía nunca, não dava festas. Vagava no ar das suas salas um cheiro de mofo, denunciador do triste isolamento da sua vida de solteirona, sem sobrinhos, nem afilhados, nem ninguém!
Custava-lhe deixar todo aquele esplendor em mãos alheias e ansiava pelas irmãs. Por uma coincidência, chegaram no mesmo dia D. Violeta, vinda da Bahia, e D. Lucinda, de Buenos Aires.
A manhã estava de uma beleza incomparável; o céu todo azul, a atmosfera morna, o que aprouve a D. Teresa, que pôde aliviar o peso da roupa e cruzar sobre o vestido de seda roxo o seu belo mantelete de renda preta. A Emília ajudou-a naquela tarefa. Toda a roupa comparticipava daquele cheiro de umidade. Vestido havia tanto tempo guardado, o que as rugas fundas denunciavam, não podia cheirar a sol nem a primavera...
No topo da escada, com a cabecinha trêmula sempre a dizer que sim, uma das mãos apoiada à bengala, a outra sumida no braço da mulata, D. Teresa esperava as irmãs com os olhos luminosos, molhados de lágrimas. Elas subiam, vagarosas também, falando alto, uma com voz grave, outra em um falsete de gaita. Haviam de ser risadinhas, lembranças da mocidade...
D. Teresa ordenara que se abrisse o salão principal, e foram logo para lá as três. O que ela notou, com certa alegria invejosa, foi que as irmãs andavam mais direitas, sem necessidade de apoio. Sentaram-se no salão. D. Lucinda faiscava de vidrilhos, descansando a papada cor de leite na rica seda preta da capa. Era enorme. A gordura disfarçava-lhe as rugas. O coquetismo da mocidade ainda mostrava os seus traços: lá estava o cabelo pintado, caído nas fontes em duas bellezas, à moda espanhola.
E de vez em quando saltitava um caramba, que rebentava como uma bomba naquela casa antiga e reservada.
D. Violeta, essa guardara alguma coisa do seu aroma de flor, para a secura da velhice. Era pequena, muito engelhada; vinha vestida de lã marrom, com uma capa de rendas, de pouco enfeite. O que lhe dava graça era o cabelo muito branco e a meiguice dos seus olhos negros, habituados a sorrir para os netos travessos.
D. Teresa era a mais acabada! Faltara-lhe o amor, faltaram-lhe as sagradas agonias da maternidade, e a sua existência passiva, concentrada, inerte, levara-a àquele ponto, de passa seca já empedernida e intragável!
As três irmãs olharam-se com tristeza; mas o que pensaram não o disseram. Os lábios sorriram, houve uns suspiros mal disfarçados e um brilho de lágrimas, que pareceu molhar ao mesmo tempo os olhos de todas, sem rolar pela face de nenhuma... D. Lucinda rompeu o silêncio. Vinha por pouco tempo... o seu segundo marido, um argentino, morrera havia um ano; tinha ainda muita coisa a liquidar...
O seu palacete não podia ficar abandonado em mãos dos perversos enteados... O seu palacete! Como ela encheu a boca, descrevendo em duas palavras o luxo das suas mobílias e da sua equipagem.
Era conhecida e invejada na cidade toda!
D. Teresa pasmou:
– Quê! pois as suas mobílias são melhores do que...
– Estas?! Oh! E riu-se com desdém. Teresa! você não imagina: isto é horrível! Nós outras temos coisas modernas, vindas de Paris! Meu marido gastava todos os anos uma fortuna em quadros, em louças, em cavalos e em roupas!
D. Teresa, pálida, com a cabecinha ainda mais trêmula, olhou para a irmã Violeta.
– E você?
– Eu já não me importo com luxos... meus netos acabam com tudo! A não ser à missa, não vou a parte nenhuma... O que eu quero é ter muito espaço para as crianças e uma capela bonita. Em minha casa celebra-se sempre, com alguma pompa, o mês de Maria... É o nosso sistema.
– Eu não conheço, modéstia à parte, casa mais completa do que a minha! impou D. Lucinda.
– Nem eu casa mais alegre do que a minha. Se saio, volto logo com saudades... murmurou D. Violeta.
D. Teresa disse, já um tanto envergonhada por tratar as irmãs por você, em um tom cerimonioso e encolhido:
– Pois eu mandei pedir a... vocês... que viessem tomar conta das mobília e da casa, julgando que lhes fosse agradável...
– Vamos ver! interrompeu D. Lucinda, erguendo-se com dificuldade bem disfarçada. Emília amparou D. Teresa e seguiram todas em peregrinação. D. Lucinda apalpava tudo e ia murmurando:
– Esta mobília tem o estofo podre... Olhem! e esgarçava com a unha o damasco das poltronas.
– Está mesmo... afirmava D. Violeta. Assim tudo: este canapé é medonho; eu não o quereria nem na minha cozinha! Meu Deus! esta sala de jantar parece-me um refeitório de convento... E dizer que antigamente a gente achava isto bonito...
D. Violeta sorria; D. Teresa não chorava por vergonha, com respeito às irmãs, que vinham mais fortes, com outros hábitos e outros gostos, cada qual educada por um marido, com o espírito influenciado pelo espírito deles; uma adorando o luxo, a outra a família e a igreja. Era bem certo, o casamento e a distância roubaram-lhe as irmãs para sempre; a Lucinda e a Violeta de outrora estavam enterradas em algum cemitério de virgens; aquelas duas velhas de gênios opostos... não era elas!
À noite, D. Teresa, opressa pela asma, não se quis recolher cedo ao seu quarto. Emília foi dizer-lhe com acento irônico:
– D. Lucinda mandou tirar do quarto dela a gaiolinha. Diz que não pode suportar barulhos... que o sono da manhã é o melhor!
Ao mesmo tempo aparecia D. Violeta com as flores na mão:
– Isto não pode estar lá no quarto... As flores devem ficar nos jardins... Lá em casa é o meu sistema.
La em casa! pensou D. Teresa; lá em casa! Afinal cada uma ama o que é seu, pensa no que é seu! Eu, só eu, amo esta casa, não porque seja minha, mas porque era nossa... Serei melhor do que elas? De onde me vêm esta ternura e esta saudade que elas não sentem?
D. Teresa chorou na penumbra da sala.
No dia seguinte mandou recolher ao quarto dos badulaques, no fundo do quintal, os trastes mais antigos e de maior estimação. As irmãs zombavam de tudo... pois bem! deixaria escrito que se fizesse com eles uma fogueira no dia do seu enterro. Mas não escreveu, e dois dias depois, à hora do almoço, morreu sentada na sua cadeira de couro, com as mãos sumidas no xale e a cabecinha pendida para o peito.
D. Violeta recolheu as imagens do oratório, como lembrança piedosa; D. Lucinda, nada. Venderam a casa, repartiram os bens... e foi cada uma para o seu destino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...