7/27/2022

O punhal de Rosaura (Conto), de Álvaro do Carvalhal

 

O PUNHAL DE ROSAURA

 

I - EVERARDO

 

Já a aurora derramava o lívido crepúsculo sobre os picos piramidais das montanhas, quando, trôpego e conturbado das infectas vaporações da orgia, entrei no meu camarim.

Ao ruído do reposteiro, acusando a minha presença, Rosaura apaga, apressada, as lágrimas teimosas, e atira ao longo das espáduas os soltos cabelos de azeviche, fitando-me de rosto afogueado por um misto de contrários sentimentos.

Descansava o corpo mórbido nos coxins elásticos dum rico divã, e o estofo macio e flácido do seu amplo roupão não furtava a meus olhos nenhuma das airosas curvas, nenhum dos peregrinos contornos dum talhe, que logo recordava a voluptuária negligência da ideal formosura grega.

Mas na serena imobilidade, nos despargidos cabelos, nas roxeadas pálpebras, em algumas lágrimas que, de longe em longe, lhe tremiam nas faces como bagas cristalinas, transluziam profundamente impressas as amarguras duma arrependida Madalena.

Rosaura tinha na fisionomia simpática a perfeita manifestação da sua alma ardente. Era uma natureza extraordinária pelo complexo de elementos variados e opostos, que a constituíam. Nobre orgulho; imaginação febril, fácil em exacerbar-se na criação de impossíveis, de fantasmas e de terrores; desvairada impaciência no aspirar para o desconhecido, próprio das organizações veementemente nervosas e sensitivas; quanto há de mais doce e pudico na virgem, temperado indescritivelmente com um tanto da libidinosa soltura da pecadora: tais as qualidades, que davam relevo a esta criança original.

Nada mais selvagem no ciúme! Em cada ondulação do peito encapelavam-se tempestades; mas tempestades, que um singelo carinho meu tinha o condão de esconjurar.

Crescera sob o influxo do ardente sol da América, desse sol poderoso, que se infiltra no sangue como lepra invisível. E nisso estava, a meu ver, parte do segredo da sua organização.

Em Óbidos, em face da majestade imponente do Amazonas, se trocaram nossos suaves juramentos. E, fascinada, nunca mais se separou de mim.

Amava-me deveras! com um amor doido, insaciável e ferino.

Às vezes entrava eu, alta noite, atordoado dos báquicos prazeres, que me tresvariavam, e via-a correr para mim, ágil e elástica, como uma pantera. Mas de súbito, coberta de lágrimas quentes do desafogo, e semelhando a rola mansa, que, voluntária, acaricia a ingrata prisão, que a furta à liberdade, caía-me quebrada aos pés, como uma escrava.

Era eu então como todos os homens que chegaram ao extremo desejado do caminho, e que, entorpecidos, se deixam enfim pender no regaço morno da indiferença e da saciedade.

Sentia-me com efeito saciado. A fascinação, que exercia sobre a infeliz, era, bem o sabia eu, só comparável à que se atribui a certos répteis da América. Havia a fatalidade da desventura a aproximá-la de mim. E ela rojava em meus braços à laia do febricitante, que, incapaz de conceber mais jubilosas esperanças, anseia por se despenhar no mais fundo do abismo. Era um amor assim, indescritível, incomensurável, único.

E tanto basta para a satisfação de qualquer vaidade exigente.

Que me importava que a festa e o funeral, o luto e a gala se germanassem naquele grande sentimento, se era eu o objeto de tão extraordinária paixão?

A dureza do meu caráter, embrutecido no gozo mesquinho e sórdido, e cansado da renovação diurna de tocantes expansões, fazia-me mais desdenhoso e sarcástico; mesmo, porque mal concebia, então, que tão aguadas aflições, tão alambicados queixumes, manifestados por mil extravagantes maneiras, deixassem de ser comédia estudada, ardilosa estratégia armada à minha boa-fé.

Conhecia, é certo, conhecia a candura da pobre vítima, mesmo no marulho indistinto das suas imperiosas paixões; considerava-a incapaz dum fingimento degradante; e contudo, quando a contemplava em aflitivos lamentos, não sabia comprimir a desconfiança; sentia não sei que bárbara satisfação em lhe espremer rudemente as dolorosas chagas.

Tarde virá o dia em que eu rejeite o inveterado hábito de considerar a mulher simples objeto de luxo; arrebicado brinquedo que, nós os homens, em momentos de tédio, possamos impunemente quebrar nas mãos.

Surpreendera-a desta vez na serenidade reflexiva das suas mágoas; e nem um longe de piedade me abalou o cinismo. Até, pelo contrário, da potência dos meus desdéns tirei motivos de orgulho.

Foi por isso que, sem proferir palavra, me arrimei com enfado à enroscada moldura dum tremó. E fleumático, como um excêntrico, que vai deleitar-se no estampido de iminente borrasca, fiz voar em nuvens o fumo do meu charuto.

— Everardo! murmurou sufocada.

— Rosaura! disse eu com frieza.

Poisou-me no ombro o braço nu, límpido e perfeito, como a esmerada execução dum artista, e com o rosto anuviado de simpática melancolia exclama, imitando na voz as mais dulçorosas harmonias musicais:

— Vens mal comigo, Everardo? Que frieza! Eu tenho passado a noite a pensar em ti, que decerto o não merecias... Pois nem sequer um beijo depois de tantas horas de ausência, nem a mais fácil das tuas carícias!... Sossega, filho; estou alegre, vês? Não me queixo, prometo não me queixar... E poderia fazê-lo, sendo tu sempre o meu querido Everardo? Então! não me dizes uma palavra de carinho, não me repetes que és, que serás meu, o meu Everardo?...

Encolhi os ombros.

— Criança! É pois necessário que todos os dias te repita a mesma ladainha! Incomoda-me essa dúvida em que andas sempre, Rosaura. Quanto exiges mal o saberá fazer, quem estime em alguma coisa o seu bom nome de sensato; quem, como eu, recebeu do Criador um gênio, quando não sisudo no rigor da palavra, ao menos rebelde a ridículos enlevos e a lamuriosas pieguices. Querias que passasse dias e noites, com as minhas mãos nas tuas, a escutar em seráfico enleio o ruído das florestas, o gemido dos mares, o suspirar das correntes, todos os clamores desprendidos do seio da natureza e outras belas coisas, que tu sabes, para te convencer de que continuo, de que continuarei a ser para ti o que fui no começo do nosso romance? Sou muito novo ainda para tão cedo renunciar aos atrativos com que me seduz a boa sociedade. Quero viver.

— Viver! Vida me prometias tu, quando, com astúcia de serpente, te introduzias na feliz morada de minha mãe, para com o teu bafo maculares os doces frutos da minha primavera. Perdeu-me a inocência. Caí, porque desconhecia o fogo penetrante e consumidor, que anda nas palavras duma malévola sedução. Ah! então não te julgavas ridículo, quando me desenrolavas maravilhas, que na minha descuidada existência nunca sonhara; quando de joelhos me fazias protestos loucos, impossíveis, e me apertavas ao peito, trêmulo e ardente; quando, com doces e vibrantes inflexões na voz, me pedias o que eu não sabia negar; porque a mulher, se chega a amar, cobre o rosto e dá tudo; alma, pudor, tudo. E depois chora por ter dado pouco, por não ter mais que dar...

— Verduras!

— Não o dizias nesse tempo. Eras...

— Era uma criança.

— Foi há dois anos.

— Veio precoce a velhice.

— Diz antes o aborrecimento.

— Oh! bem pelo contrário.

— Ironia! Eras criança? Criança, que sabe enganar e corromper; que sabe todas as trilhas do vício; que, sem dó, me roubou à mãe, ao irmão, à pátria para me levar numa vida de aventuras por mares, ilhas e continentes, e para me dar desdéns, quando peço esmolas, esmolas de amor! As crianças são ingênuas, Everardo.

— Eu fui uma exceção.

Doeu-lhe o escárnio, em que moldei a frase. Olhou-me com desprezo, e curvou a cabeça, disposta a pôr termo ao pungitivo diálogo. Porém a palavra "miserável” desceu-lhe surda dos lábios.

Por meu lado intentei sorrir e não pude. Estava em maré de agastamentos.

— Rosaura! gritei, impando de dignidade.

Ela saboreou pausadamente a minha indignação; e, endireitando-se, como que se resolveu a provocar sangrenta luta.

— Sou mulher, Everardo; uma rapariga indefesa, só, sem ninguém... Mas sobra-me desprezo na alma para humilhar um vilão.

Os olhos dela chamejavam.

— Que te fiz eu, Rosaura? perguntei, mais humanizado pela agressiva resolução da minha amante.

— Nada, porque só me envileceste. Amarrando-me ao carro dos teus facetos triunfos, privaste-me da estima e das considerações a que tinha direitos; privaste-me da família, que tanto me queria; condenaste-me a perpétuo abandono. Bagatelas. Que é para um homem galante a perdição duma pobre rapariga? Ai! e eu não me havia de queixar, se não fosse o cego furor com que te divertes, cobrindo-me de vergonhas! Tinha adivinhado que nos homens à curiosidade satisfeita sucede o tédio. Mas a infeliz, que tudo te sacrificou, julgava-se credora dessa afeição, que a delicadeza, ao menos, não recusa à forasteira. Nada me deixaste. Tira-me também agora a existência desflorada, e cospe, ainda em cima, nas faces do cadáver.

Nunca a tinha visto tão energicamente exaltada. Reclinei-me no divã, e tomando-a pela cintura coagi-a a sentar-se nos meus joelhos.

— Não vês que és injusta? Não vês que me magoas, Rosaura?

— Injusta! repete com riso amargo. Injusta, porque acarinho o basilisco, que me atormenta? porque cultivo a planta que há de ervar as setas do meu martírio?! Oh Everardo! se tu quisesses!... Um resto de caridade abriria à mulher que se despenhou dos braços de sua mãe nos teus braços, abrir-lhe-ia o divino sacrário das venturas do Céu! Porque me desprezas? Eu não peço muito. Apenas imploro o preço do meu opróbrio. Porque mo não dás? Vendi-me cara? Oferecesses menos, que eu não pedia nada, e nada tinha a esperar. Não contente de me conduzires a um país muito distante do meu, onde se fala um idioma, que eu ignoro, e onde não conheço ninguém; não contente de me expores nos lugares públicos, nas festas, nos teatros, nos passeios, à semelhança dum objeto raro de mera ostentação, escondes-me finalmente neste retiro, como saciado das inglórias ovações, obtidas à custa duma amante aborrecida! Esqueces que por ti, a desgraçada teve orgulho da sua vergonha, delindo-a em júbilos e sorrindo a cada novo escarro, que lhe atiravas pela boca duma sociedade, que não entende estes obscuros martírios, os martírios do amor. E deixas-me penar, nesta esterilidade de afetos, quase sempre só, só, entregue à saudade acerba da minha tranquila infância, enquanto te debates nas convulsões da crápula, nas festas dos libertinos; enquanto sacodes os cabelos, esses lustrosos cabelos, úmidos ainda do hálito mais puro do meu peito, no travesseiro das perdidas... como eu. E, porque me deixei arrastar ao lamaçal do impudor, julgas que não sustento íntimas, pungentíssimas lutas entre a dignidade e o amor? Serei injusta, Everardo?

E queimou-me a face com um beijo fervente, dando expansão aos represados soluços.

Começava a desconfiança a soprar-me aos ouvidos segredos pérfidos. E deve de saber-se que, por minha parte, de nada me arreceio tanto como das irrisões a que as ardilezas da mulher submetem o homem. Eu começava a palpar na dorida melopeia fino joguete de atriz esperta. Regelei-me pois na habitual dureza, que degenerou na grosseria duma frase torpe.

Rosaura pareceu acometida de repentina paralisia. Depois, com os olhos em brasa, e a palidez da morte no semblante, exclama em voz aguda e ligeiramente trêmula:

— Tem cautela, Everardo. Tem cautela. Não apares no rosto, transformadas em metal candente, as humildes lágrimas que te caem aos pés.

— Louvo a forma, mas censuro a ideia, disse eu com gravidade irônica.

— Tu!... censor?

— É que a imprudência e o desatino são grande falta na mulher.

— Eu é que sou imprudente?! Sou decerto; porque me rebaixo ao teu leito; porque desde o momento, em que me enxovalhei no teu prostíbulo de imundícies, fiquei sendo a ínfima das meretrizes.

Era extraordinário aquilo. A meu pesar cerrei os dentes de raiva. Contive porém os impulsos da inflamada vaidade, e redargui através dum riso deslavado:

— Sobra-me gosto e tacto para que, a despeito da tua malquerença, deixe de dar-te um conselho.

— Adivinho.

— Qual é?

— Que me exponha nas praças, e nos recantos das ruas, e na sombra dos pardieiros aos caprichos da soldadesca? que me ofereça aos teus lacaios? que...?

— Não, não é isso... por enquanto.

— Por enquanto! Então que é?

— Já leste Shakespeare?

— Não.

— Lê-o. É o conselho.

— Que queres dizer?

— Tu nasceste trágica. E pode ser que aquele grande homem te reservasse um tipo. Essa postura, esse ar, esse frenesi, esse rir nervoso... Bravo! És artista. Falta na mão, que tens levantada, o punhal de Medeia.

Ela tocava a última potência do desespero.

— Um punhal! Tu queres um punhal, Everardo?

Dizendo, tira das pregas do roupão aguda lâmina. A madeixa encrespava-se-lhe sobre o pescoço nu, como a juba duma fera irritada. E o corpo recurvara-se num conjunto de resoluta agilidade e de elegância escultural.

Eu estava mal preparado para a transformação. Recuei intimidado. Ela seguiu-me com sinistra inflexibilidade.

Tentei reprimi-la. Mas opôs prodigiosa força.

Faiscou o ferro, e embebeu-se-lhe no acetinado peito.

Num grito estridente caí de joelhos para a amparar na queda.

— Mãe! minha mãe! meu irmão! murmura, volvendo para mim os olhos vidrados de lágrimas.

— Rosaura! oh Rosaura!

Apertou-me violentamente a mão, levou-a aos lábios e espadanou-me o rosto com borbotões de sangue.

E caiu, como Vênus de alabastro, quebrada no pedestal.

*** 

Só a figura do sombrio Antônio, fiel escravo de Rosaura, alcançou evocar-me do perdido acordo. Um pensamento egoísta e fatal, o pensamento eterno da salvação, que nunca nos desampara, ainda nos mais difíceis transes, veio ocupar o primeiro lugar entre os cuidados que me atormentavam. Se o lamentoso caso se propalava, recaía naturalmente sobre mim a suspeita do atentado. Revoltei-me contra o negro.

— Escravo! Quem te chamou aqui?

Mostrou o cadáver.

Encarei-o compungido e ardendo por lhe perscrutar a intenção. Em seguida, como a mover a simpatia duma dor compartilhada, murmurei:

— Grande desgraça, amigo!

Ele sorriu com malignidade triste. Entendi-o, e saí-lhe ao encontro do pensamento.

— Sabes que podias perder-me?

— Sei.

— Mas não ousarás.

— Se ela o amava tanto!

— É por amor dela?

— Somente.

— Perdoo-te a franqueza. E até a estimo. Continuarás a merecer a confiança que a tua provada fidelidade soube captar.

O negro arrancou o punhal da ferida e parecia meditar uma ação extrema. Eu lancei os olhos para um móvel que, em caso de agressão, me podia aproveitar. Antônio porém, adivinhando o meu temor, conseguiu demonstrar que nem todas as potências humanas o fariam levantar braço inimigo contra mim. Apertei-lhe a mão com certo vil reconhecimento. E, tomando aos ombros o cadáver, fui escondê-lo a um lugar subterrâneo.

Quando voltei para lavar o sangue do tapete, já ali não estava o escravo nem o punhal.

*** 

Dias depois fiz-me de vela para Veneza.

Antes porém da partida, cumpria legar aos vermes o corpo da minha amante. Era noite. A casa estava deserta. Tomando uma luz, dirigi-me ao subterrâneo. A lembrança da soledade, que fúnebre se estendia em volta de mim, avivou em meu ânimo pavores de legenda ou de superstição. Era como se respirasse no fundo dum túmulo mortíferas exalações. Atravessei as salas como vagabundo espectro. A luz vacilava ao sopro inquieto de bafejo desconhecido, e refulgia em cores avermelhadas nas exóticas figuras das amplas tapeçarias chinesas. Os cabelos eriçavam-se na cabeça, e nas artérias ondeava o sangue em calafrios. Desci os quebrados degraus, que comunicam com o subterrâneo; desci, sentindo na cabeça o formidável martelar dos ciclopes, e no coração os característicos sinais de medrado aneurisma. Os meus passos soaram incertos no chão umedecido. A luz flamejava dúbia nos vapores duma atmosfera asfixiante. E embalde meus olhos buscaram no rosto putrefato da defunta as belas feições da minha deliciosa amante. Caiu sobre ela tênue clarão. Fascinaram-me aqueles olhos baços, vidrados, transvasando viscosos líquidos e carregados de magnética fixidez. Inteiriçado, como pálida múmia, apoiei-me contra o muro, e não sei que tempo, inconsciente, alheado, esquecido de mim, estive nessa prostração. Afinal resolvi-me. Tomei um alvião, e abri a cova. E num instante o corpo aveludado de Rosaura repousava debaixo de ásperas camadas de terra.

Da chalupa, que havia de conduzir-me ao porto vizinho, lancei a vista para os lados, em que assenta a deserta granja, meu paraíso dalguns instantes. Para além das árvores seculares, que orlam o vale, brilhava uma luz, frouxa, triste, como luz de cemitério. Era uma solitária estrela, errante nas densas neblinas da noite. Era talvez o pressago reflexo do meu destino.

Em Veneza, nas vertigens da embriaguez, nos sensuais deliramentos, em que cego me rojava para fatigar o corpo e estupeficar o espírito, buscando no cansaço o sono rebelde e o ambicionado esquecimento, lá mesmo, no fundo perturbado da consciência, lavrava o meu martírio. Lavrava de contínuo, como um cancro, sempre mais vivo e pungente, até minar e abater pelos fundamentos os desbotados castelos, com que, porventura, cuidava divertir-me a minha atemorizada fantasia.

Assim passaram três meses. E cada hora imprimia em meu rosto o selo fatídico da sua passagem. Cabelos crespos, castanhos, opulentos, converteram-se nas cãs, que vedes. Faces morenas, lisas, de seda, quiseram competir com o amarrotado pergaminho das faces desse velho que, mais venturoso do que eu, ressona aí no chão lodoso, coberto dos andrajos da pobreza.

Tinha trinta anos.

Na impotente pesquisa do esquecimento me fui afundando no vício, como se ele tivesse o condão de me salvar de mim mesmo.

Mas ainda então desconhecia estas ruidosas folias da taverna, entre tão alegres companheiros como vós sois.

Bandidos, ébrios, mendigos, ladrões! Chama-vos isso o mundo dos soberbos, que vos repulsa, e que todavia não vale mais, nem tanto. Porque, não sendo menos feroz, é mais hipócrita e mais covarde. Porque faz da impostura um paládio, da lei um manequim, da justiça um sofisma ou uma teoria. Porque se arreia com os espólios do menos forte. Porque pleiteia baixas competências com lastimosa vilania. Porque tudo, família, crenças, amigos, tudo sacrifica a impudentes vaidades e a ambiciosas conveniências. Indagai, e vereis que tais são as principais qualidades dos felizes da Terra, dos virtuosos, dos queridos da multidão, dos honrados. Sejamos então nós os apóstatas da honra. E bebamos! Escárnio à sociedade madrasta, que exclui do festim universal, como se não fora filho do homem, o pária ou o proletário! Bebei. Sou eu que pago.

Faz um ano. Era, como hoje, a última noite do Carnaval. Se quereis saber do Carnaval em Veneza, perguntai-o às crônicas ou aprendei-o nos romances. A Veneza decrépita, a Veneza escrava ainda não esqueceu as gloriosas tradições. Ainda o mistério revoluteia nas gôndolas, ainda o punhal se esconde no veludo, ainda a intriga regurgita nos salões.

Os salões, os salões! Eram o meu proscênio. Meus passos ecoavam com ufania nos marmóreos vestíbulos dos palácios. Abriam-se-me as portas com franqueza. Escutai: soam onze horas. A esta mesma hora aparecia eu no baile do conde Sebastiano Falieri. Ferviam-me no cérebro poderosos vinhos de Espanha; mas nem tanto, que me fizessem cambalear. Entranhei-me no ruidoso centro da festa. Perdi-me no brilhante torvelinho das máscaras. Por toda a parte seda coberta de luminosos recamos, veludos refulgindo em lumes diamantinos, damasco abrasado em carbúnculos. Era de olímpica riqueza a pedraria. E olímpicas eram as façanhas, que cada nome recordava. Progênie de príncipes, de doges, de cardeais, de papas, enfraquecidos rebentões de troncos vigorosos, disfarçavam ali o marasmo e o desalento íntimos. À estrela radiante das conquistas de Bonaparte não resistira o lustre de tantas famílias soberanas. E maior humiliação trouxe depois o austríaco. Mas, nos tripúdios do Carnaval, o escravo esquece as algemas, e afoga as dores na taça.

Eu deixei-me vagamundear no meio do burburinho elegante das intrigas, de amores e de ciúmes. Assistia à cena como triste comparsa, esperando, indiferente, que se esgotasse a ampulheta do meu destino.

*** 

Ouço dizer que há emanações simpáticas, que, expandindo-se, comunicam, por encanto irresistível, as almas, que estão debaixo da subtil influência. Não duvido. Porque só assim saberei explicar o toque misterioso, que me impeliu para um tentador dominó-escarlata, que, no mesmo passo, se confessou avassalado de semelhante ignorado impulso.

Era fatídico o seu porte como o meu.

Algumas expressões do estilo, monossílabos, reticências, pouco ou nada aumentaram o encantamento. A sua mão pequenina e aristocrática tremeu nas minhas mãos dentro da pele finíssima das luvas. De que procederia a comoção? Oh! que de segredos, que eflúvios santos, que celestes ambíguas confissões! Fui irrisório, poeta, desgraciado, amante.

Mas quem era o dominó-escarlata?

Homem ou mulher?

Velhice ou mocidade?

Tinha que se lhe perdia a figura como que na sombra duma nuvem de mistério.

Encarava-lhe na altiveza de ademanes, nos desafogados meneios, nos vigorosos e seguros contornos, e supunha-me em face de perigoso sedutor.

Estudava o pudico arfar do seio, o respirar doce e balsâmico, enfeitiçava-me naquelas mãos divinas, naqueles pés de criança, e supunha-me em face de peregrina divindade.

O trajo não tinha divisa, que estremasse sexo.

E, demais, que significa o trajo no caprichoso Carnaval?

Fosse como fosse, em meu cérebro entrou não sei que luminosa centelha, acenderam-se clarões de vida nova, como fogos-fátuos de cemitério.

Ao deixar os salões aceitou o meu braço; aceitou-o com voluptuosidade sombria. Eu tinha pois atingido o grau supremo de cavaliere sirvente.

Em torno a S. Marcos ditava leis a demência. E das arcadas do suntuoso edifício subia às nuvens o alarido dos eróticos sacrificadores.

Dormia o gondoleiro no fundo da movediça gôndola. Acordei-o, envolvi-me no manto e partimos.

Os remos feriram simultâneos a face das encrespadas águas do canal. E a gôndola espreguiçou-se sobre elas, como soberbo palmípede. 

*** 

O dominó-escarlata caíra em cismadora prostração. Eu, desnorteado por indizível constrangimento, não ousava romper o silêncio. Por vezes quisera subjugar a timidez, que me apoucava, e que tão bem aquilata as situações. Porém faltava-me coragem.

Afinal, em pé e com a máscara na mão, aventurei umas frases de drama arrepiado.

— Está a pensar? lhe disse eu. Deve ser assim o êxtase dos anjos, quando velam pela sorte dos mortais. Oh, feliz, mil vezes feliz aquele, que merece um tal pensamento!

— Morto, devolve em voz sumida e frouxa, como abafado suspiro.

— Invejo-o.

— Inveja um morto?

— Se o vejo acordado por um pensamento muito querido; se o vejo, ditoso Lázaro, estendido no féretro para ressuscitar nas saudades dum seio de mulher. Morto sou eu, que rodo em turbilhão de gozo fictício, só, sem afeições, sem ninguém, ambulante como cadáver galvanizado, mas sem a verdadeira vida, a vida do coração. Não morre quem deixa a saudade a refletir-lhe a imagem num espelho de lágrimas. A esse... invejo-o.

— Já amou, Everardo?

— Quem lhe disse o meu nome?!

— Li-o nas estrelas.

— Elas que lhe respondam então.

— Responderam. Mas queria ouvi-lo da sua boca, para julgar até que ponto um homem sabe mentir.

— Não minto nunca.

— Já amou?

— Já.

— Se lhe morreu nos braços a companheira da sua alma, se a sepultou em terra amassada com lágrimas, ensanguentando as mãos para lhe abrir uma cova; se, em paga de muito afeto, lhe ficou dela apenas um triste legado... pode compreender a minha dor; tem direito a repetir o que ainda agora lhe ouvi.

Senti-me empalidecer. Encarei com desconfiança no dominó-escarlata, e apalpei na algibeira a minha arma favorita.

— Compreendo, tornei, momentos depois. Não há desgraça que eu não tenha compulsado. Mas que triste legado é esse, em que me fala?

— Chamam-lhe os árabes "vingança do sangue”.

Dito isto a dama suspirou.

— Um suspiro e a morte! clamei, novamente inflamado em efêmera tentação, e seguindo no galanteio, a despeito das misteriosas palavras, que me soavam no tímpano.

— Lisonja insensata. Mau gosto sobretudo em despendê-la ao acaso.

— A formosura até nas trevas se adivinha. Não receio enganar-me. E senão... A minha máscara já a atirei ao canal.

— A minha é um fadário.

— Que importa! Rejeito a impertinência de a contrariar com súplicas. De sobra me compensa a curiosidade este magnífico espetáculo, que noutra companhia se me tornara insuportável. Este céu, estas ondas, as músicas nos iluminados pórticos, essas estátuas, que, de pé, nas ricas balaustradas das varandas, parecem contemplar-nos, fazem recordar as grandezas da soberba sultana do Adriático. E eu sinto-me germanado a esta decrepitude casquilha. É uma festa que parece um estertor de agonia. As risadas são como risadas de delírio. Aqui os infelizes têm a certeza de que não andam sós.

— E quem são os infelizes de Veneza?

— Tantas famílias soberanas abatidas...

— Vaivéns da política. Infelizes são os perseguidos do remorso e os feridos no coração.

— O amor!...

— É a morte.

— É a vida, exclamei, caindo-lhe aos pés.

A dama pôs a mão no peito com melancolia.

— Senhora, continuei com efusão; os protestos, que se fazem num momento como este, não têm significação plausível; não a conheço sequer; ignoro se será formosa ou não; mas permita-me que lhe confesse que há um destino invencível a atrair-me a seus pés.

— As suas confissões, Everardo, são labaredas.

— Que se apagam num beijo.

— Ou no fundo das águas.

— Longe vá o agouro.

— Longe vá, disse ela com solenidade.

— Somos ambos novos. O timbre da sua voz não deixa duvidar. Anda impregnado não sei de que longínquas, vagas e relembradas harmonias, que me cobre de saudade. Somos novos. Porque não havemos de gozar? Não se sente com forças para o amor?

— Para a morte.

— É fúnebre. Não ama?

— Amo.

— A quem, senhora, a quem?

— Quer que lho diga?

— Onde está o venturoso?

— Bem perto.

— Onde?

— Ao pé de mim.

Eu tinha as suas mãos nas minhas, e sobre elas a fronte. Ninguém estava pois tão perto dela.

— Deus! exclamei. Será possível!

— Juro. Tem sido um fiel amigo, um bom e leal companheiro.

— Quem, mas quem? brado com o esgar desastroso de quem viu falsados seus doirados sonhos.

Apertou com a destra como que o cabo dum estilete, escondido no seio. 

***

Os remos açoitavam, cadenciados, a cristalina superfície. E o gondoleiro entoava um canto grotesco, que enchia de demência o espaço.

A gôndola foi amarrada junto dum edifício de tão equívoca como sombria arquitetura.

Convidou-me a dama a entrar. Era esta a sua morada. Acedi.

Acedi porque me dominava fatalíssima vertigem.

Escancarou-se com estrondo a porta. Uma luz azulada apareceu, mortuária, no alto da escada. Conduzia-a um anão negro e disforme, que, depois de me fitar com ferocidade selvagem, partiu trôpego e em lorpas cabriolas, adiante de nós.

A escada era uma ruína, dum a outro extremo salpicada de lama. Das fendas escuras e dentre as pedras deslocadas brotavam algumas ervas pálidas, ou transparecia, a meio, a escama dalgum imundo réptil.

Subimos.

Silenciosos atravessamos duas extensas salas. Nem um móvel as decorava. A umidade escorria em gotas dos muros esverdeados, sobre os quais se amontoavam camadas de limos. Caminhávamos cautelosos para não resvalar nas enormes fendas do pavimento. Assim fomos até penetrar num gabinete, que, na sordidez atual, ainda recordava o passado fausto. A minha imaginação já me inscrevia entre os lívidos personagens, que figuram nas lendas.

A casa parecia tão velha como o mundo. Dir-se-ia que um selo de maldição a tornava abominável aos homens. A aranha urdia tranquila a sua teia acima das nossas cabeças; corriam desassombrados os ratos pelos frisos salientes dos muros; e a carcoma tomava a seu cuidado as tapeçarias, que, esfarrapadas, pendiam das paredes. Todavia, no teto abatido e roto ainda uma análise entendida descobrira essa magia de colorido, essa potência ornamental, que denuncia o pincel veneziano, a brilhante escola que Paulo Veroneso personifica. Alguns retratos de doges, certamente cópias de retratos atribuídos ao célebre Tintoretto, apodreciam nas velhas molduras. Para contraste e extravagância ardiam a um lado, num pequeno fogão portátil, alguns resinosos troncos, que derramavam no aposento confortativo calor. E junto dele, elegantemente postas numa mesa, estavam iguarias de aspecto e odor não menos esquisitos, que apetitosos. O cristal de Boémia casava-se às mil maravilhas com a porcelana de Sèvres. E os tríplices reflexos das velas cor-de-rosa, que ardiam no meio, cintilavam em púrpura, em ouro, em corais e rubins nos vasos perfumados de málaga, de malvasia, de porto, de vários preciosos vinhos. Sobre a mesa havia duas cobertas. A minha misteriosa indigitou-me o lugar de honra.

— Uma ceia! exclamei.

— Esperava-o, responde negligentemente, deixando-se cair em meigo requebro junto de mim, que já nesse tempo estava sentado.

Apesar duns restos de desconfiança e receio, pairou-me à flor da epiderme certo calor de satisfação. Não seria novidade no país das Desdêmonas uma paixão clandestina de nobre dama por um estrangeiro, qual eu era, mais que muito interessante por mil proverbiais aventuras.

Houve um poeta, um grande poeta, que, seduzido por descrições de viajantes, desejara observar, por si, a forma nua das belas italianas para julgar em que pé de verdade assenta a plástica perfeição, que lhes atribuem. Todas as jerarquias se prestaram ao artístico empenho. Não se viu donzela de torneada figura, que de bom grado deixasse de se expor às vistas do ditoso poeta. Apenas resguardavam o pejo, cobrindo o rosto com um fragmento de seda transparente.

Aqui se manifesta o amor do belo, a consideração pela arte, a febre das coisas indizíveis. Um povo destes adora por força as aventuras.

Que muito, pois, que em Veneza, mansão dos delírios, viesse amorosa dama, atraída pelo meu extravagante renome; viesse, ao abrigo da máscara, colher lascivas aventuras nos meus braços? Era isto por certo menos para notar-se.

Abracei-a, ardendo por lhe arrancar a máscara. Ela resistia com senhoris ademanes. Mas parecia dar-me a esperar mais lucrativa empresa.

No entretanto vai enchendo de reno os copos. Minhas faces estavam afogueadas, exprimindo as torrenciais sensualidades, que me carcomiam. Peçonha, que me oferecesse, não a repelira. Bebi.

Mas o dominó-escarlata, longe de imitar-me, quebra no pavimento o seu copo, e mede-me de alto a baixo com alegria de hiena.

Eu fiquei hirto de indecisão e terror. Adormecia-me a cabeça em rápido atordoamento, regelavam-se as extremidades e refluía-me o sangue, em cachoeiras, para o coração.

Compreendi. A taça dos festins dos Bórgias vazara-se na minha boca. 

***

A minha primeira ideia foi estrangular o basilisco. Porém o entorpecimento paralisava-me os movimentos. E a impotência em que me via, infundiu-me concentrado furor, que se descarregou numa risada, superior, na expressão a todas as ameaças e a todas as vinganças.

Há anomalias assim.

A dama fez coro com outra risada, mais selvagem e mais feroz. Era como estridor de grandes lâminas metálicas postas em vibração, que se perdia ao longe no melancólico marulho das águas e nos sussurros do Carnaval agonizante.

— Harpia dos Infernos, regouguei eu então; querias o meu dinheiro! Aí o tens.

E num extremo esforço consegui arremessar a bolsa, pela janela, ao canal.

— Sumiu-se nas águas, como o anel do doge nos desposórios do Adriático. Já vês que estou vingado.

— Não era a tua bolsa que eu buscava.

— O que era então?

— A tua vida.

— Ah, ah! Baldadas fadigas! Pedisses-ma, que eu dava-ta. Era um peso com que mal podia.

A dama fez um movimento de desgosto.

— É espantoso este entorpecimento! Mas de que te servirá a insignificância da minha vida? Pudesse eu transmitir-ta, que te não desejava outro castigo. Dás-me morte voluptuosa. Obrigado. Mas permite que, à semelhança duma luz, se me apague este resto de existência no teu rosto de demônio. Tira a máscara.

Do fundo do peito arranca o dominó-escarlata surdo gemido. Numa contração sinistra cai sobre as espáduas o capuz, e rola no chão a máscara.

Encrespavam-se-lhe os cabelos como juba de fera irritada. O corpo recurvava-se num conjunto de resoluta agilidade e de elegância escultural. E pregava em mim uns olhos baços, vidrados e carregados de magnética fixidez.

A morte não se apiedou da minha sorte. Pude ver. E não me submergi dos Infernos.

Rosaura estava ali.

Não a Rosaura, resplendente de vida e de alegrias; não a minha formosa amante. Mas lívida, petrificada, como um anjo de mausoléu.


*** 

Senti que um raio me estalava no crânio. E, fulminado, sem dar um gemido, caí com todo o peso do corpo, arrastando a mesa na queda.

Soprava fresco vento matutino, quando acordei de profunda letargia.

Lancei em torno vistas de investigação espantadiça. Estava no cemitério.

Persuadi-me de que sonhava. Mas, desenganado, ergui-me de salto do mármore, sobre o qual estivera estendido. Era um belo fragmento das pedreiras de Verona; uma campa sem lavores, rasa, original.

Sobre ela havia apenas um nome, um nome de mulher, um nome fatídico:

ROSAURA. 

*** 

Passados quinze dias, eu era isto, que vedes; era um velho. Mas um velho dissoluto e horrível. O abismo repelia-me. O suicídio zombava comigo. A morte tinha medo de mim. Maldito, como o judeu errante, reneguei pátria, família e tudo. Lancei-me aos reveses do acaso, e errei sem bússola e sem norte.

Dormente na planície, que as vizinhas alturas da Sierra Morena e as límpidas águas do Guadalquivir tornam mais aprazível, sorriu-me um dia Córdova, a cidade das belas tradições e das manolas gentis, apetitosas e ligeiras.

Aqui estou. Conheceis-me.

Bebamos, que, a par da minha história, vai findo o Carnaval.

O jogo, o vinho e as mulheres consumiram o meu patrimônio. Dos moles tapetes rolei de escantilhão para as lamas da taverna. Amparastes-me em fraternal amplexo, quando os opulentos, que se haviam deleitado no fruto temporão das minhas tolas prodigalidades, me voltavam as costas. Ainda bem! Tisnada a carne ao fogo das grosseiras sensações, desafio os sentimentos patéticos. Obrigado, amigos! Sou quase feliz. Quando não bebo ou fumo, durmo com a direita no copo e a esquerda num seio de andaluza; dessas que têm na fisionomia a seráfica candura das virgens cristãs e no corpo a corrupção mais aviltante e asquerosa. E inebrio-me de fazer espadanar sobre as nuas espáduas o vinho das tavernas, espirrado dos beiços, que a luxúria crestou.

Murmure embora a feroz virtude dos santões hipócritas. Se são melhores do que eu, é que não sofreram tanto.

Eia, amigos! Largas ao cinismo da desgraça! Quebre-se nas lajes enlameadas este invólucro de barro sangrento, e solte-se isto, que a presunçosa teologia chama alma, nas exalações do vale-de-penas, e nos estrépitos das seguidilhas e das cantilenas báquicas.

A transbordar os copos. Bem! Bebamos à memória da minha pobre Rosaura!

 

II - LORENZO DEL GIOCONDO 

Tinem os copos uns de encontro aos outros.

Mas eis que das sombras surge mais um sacerdote.

Tem a máscara no rosto, através da qual cintilam uns olhos como duas estrelas fixas. O corpo desaparece totalmente nas amplas dobras dum dominó-escarlata.

— Um copo para mim! exclama em castelhano bárbaro com acentuação toscana, estendendo a mão para a mesa da orgia.

Everardo cambaleia. Os outros estremecem.

— Tens medo, Everardo? brada o fantasma com voz e gestos de masculino desafio. És tão poltrão como...

— Como paciente, creio que ias dizer, acode envergonhado de si o audacioso Everardo, dissipada a primeira impressão de terror. Porque me vês exaltado de funestas preocupações, enganas-te, se me supões crédulo, à semelhança dum religioso fanático, a ponto de te acolher como alma do outro mundo ou coisa assim horrenda. Guarda a presunção para os solitários castelos de Ana de Radcliffe, e deixa em paz a taverna. Bebe e retira-te; ou fica, se quiseres, contanto que nos não enfades com cenas de irrisões.

— Trago-te notícias de Rosaura.

— Guarda-as.

— Cedo te esqueceste.

— Apaga-se a memória como secam as lágrimas.

— E os remorsos?

— Que te importa? Os remorsos, quando não trazem em si os gérmenes venenosos da loucura ou da monomania, tomam mais resvaladio o pendor do abismo. Também se apagam. Mas enfim, que buscas aqui?

— Pouco.

— Que procuras?

— “A vingança do sangue.”

— Bravo! O local, minha bela trágica, é baixo de mais para o teu coturno. É isso ao que o espirituoso Janin chama truc, em estilo de folhetim.

— Empalideces quando motejas?

— Eu?... pálido!

— Como um covarde.

Everardo quis rir, mas só se ouviu uma espécie de rugido gutural.

O fantasma continua:

— Acautela-te, Everardo. Vou dar-te um conselho. Há quem se ocupe de ti. Há quem te conte as horas, os instantes de vida. Rosaura tinha uma família, e dessa família surgiu um vingador. Stefano era um florentino de raça muito ilustre, que, expatriado por obscuras perseguições de política, criou na América uma família. Lorenzo, o seu primeiro filho, apenas lho permitiu a idade, cedeu a instâncias dos tios paternos, que o chamavam de Florença. E aí seguiu a irresistível tendência do seu espírito. Dedicou-se à pintura. No entretanto Rosaura consolava os pais, da ausência de seu irmão. Estavam ainda quentes as cinzas de Stefano quando tu, Everardo, postergando todas as leis de honra e decoro, atraiçoaste quem tanto te queria; mataste a mãe, porque lhe roubaste a filha. É a acusação. Seguir-se-á a sentença. Lorenzo correra ao chamamento da mãe moribunda, e vira-a morrer, embalada na doce esperança duma vingança sem limites. Lorenzo jurara. O juramento, que fez, ninguém o ouviu. Mas devemos crer que projetou vingança de negro, selvagem, terrível. Acautela-te, Everardo.

— Mas quem és tu?

O dominó-escarlata inclinou-se gentilmente, e desafivelou a máscara.

— Rosaura! exclama Everardo, aniquilado pela evidência do que para a sua razão era ainda contestável.

Os espectadores iam caindo na beatífica estupefação do idiotismo.

— Dizem que com efeito me parecia infinitamente com minha irmã. A todos maravilhava a semelhança.

Dizendo, debaixo daquela forma feminil, deixou perceber, em fogoso movimento, toda a flexível elasticidade de ágil e forte compleição.

— Lorenzo del Giocondo! Oh, graças, que respiro! brada Everardo numa efusão de alegria indescritível.

— Sou eu, torna o suposto fantasma, inteiramente desembaraçado do dominó, e patenteando toda a galhardia de mancebo.

A multidão agita-se sobressaltada e curiosa.

— Guapo! Digno irmão da minha chorada amante! Senhor Lorenzo del Giocondo, beso a usted los pies!

— Cai sobre ti o motejo.

— Embora. Uma pergunta, se me permite...

— Ao pé do altar nada se recusa à vítima.

— Pois sim. Mas não roubemos às tragédias o que é das tragédias. Quisera saber a razão por que, tendo-me, em Veneza a seu arbítrio...

— De que me serviria uma miserável existência? Era-me precisa primeiro a tua honra, o teu sossego, a tua riqueza toda. Era-me preciso primeiro fazer-te cair uma a uma as flores da mocidade; envenenar-te os alimentos e as bebidas; povoar-te as noites de espectros, e de vergonhas os dias. Era-me preciso primeiro sulcar-te de rugas as faces, coroar-te de cãs, vestir-te de andrajos e apontar-te como possesso do vício às turbas enojadas. A todo o tempo podia o estilete compadecido procurar-te o coração e mandar-te ao diabo de presente.

Everardo desprendeu da lôbrega garganta uma risada de Mefistófeles.

Lorenzo tinha na mão um punhal.

— Graças à lealdade de Antônio, diz ele, aqui está o punhal de Rosaura. Conhecê-lo?

Everardo recua num gesto de profunda repugnância.

— Cuidado, mancebo; cuidado, que o não trespasse o pérfido punhal. Instrumentos desses são maus para brinquedo de imberbes. Volte a Florença, meu formoso bambino, e nutra-se das lácteas tetas da Madona, se quer um dia tomar parte nas arriscadas empresas de faca e trabuco. Entre nós não acha Heliogábalos, que aceitem favoritos mimosos.

E riu de novo.

Lorenzo encolhe os ombros, desdenhando as torpes facécias do adversário. Contentou-se com atirar-lhe placidamente à cara as fezes, que estavam num copo.

Seguiu-se a mudez indefinida, que nos lances decisivos nasce de angustiosa expectativa.

Everardo contraiu-se em espasmo colérico. Contraiu-se como a fera, que mede salto sobre a rês. E pôs-se em pé hediondo e terrível.

— Pelos fígados de Satanás! pragueja, arrancando do roçado dorman uma navalha sevilhana. Desconfio que vou tirar a virgindade à minha boa lâmina. Agora vereis como a meto pelas goelas dentro a este imbecil impertinente.

A avinhada turba escancarou as bocas num riso de medonha aprovação. Alguns porém, menos endurecidos, tentaram obstar ao duelo. Everardo levanta a navalha à altura da cabeça em concentrado frenesi. Todos se arredam confundidos. Só Lorenzo, imóvel, com o riso nos lábios, parece disposto a um jogo de galanteios.

Vibra Everardo pronto o golpe, faísca o ferro como relâmpago...

Mas Lorenzo, numa evolução imprevista, furta o corpo, e com murro de atleta derruba o enorme lampião, que esclarece a cena.

Trevas densíssimas. E nas trevas um duelo de morte!


***

 

A mina tem sido explorada por numerosos alquimistas de sensações fortes. A mim, com pena o digo, cai-me a pena da mão. Mas já que vim coxeando até aqui, coxearei um pouco mais. Permite, leitor.

No meio da repentina escuridão o terror não poupou ninguém. Havia ali foragidos da Sierra Morena; mas, quem lhes divisasse o rosto, veria que estavam descorados. Tornava-se irregular a respiração; os corações batiam opressos; e cada qual se cosia com a parede para que algum ferro mal dirigido lhe não entrasse nas carnes.

A luta andava travada. De quando em quando um rugido de dor, um móvel quebrado, o baque dum corpo, uma jura, uma praga.

Dos pés à cabeça dos conchegados grupos, subiam contrações, como correntes magnéticas, provocadas pelo receio, pela impaciência, pela incerteza do que ia suceder. O ouvido estava atento, os olhos sequiosos de luz.

Duraram segundos as asfixiantes aperturas. Depois sentiu-se surdo rumor e um grito rouco.

Ninguém respira.

Abre-se de mansinho a porta, e sai tranquilamente um vulto. Sobre ele caíram os mortiços revérberos dum candeeiro, que esclarecia a rua.

Os ébrios, que de tropel haviam corrido à porta, soltam uma exclamação de espanto. Era Lorenzo del Giocondo.

— Everardo! Everardo!

Embalde o chamam. Caíra de bruços sobre a mesa da taverna com o punhal de Rosaura atravessado na garganta.

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