MARTA
SANDOMIL
Acabava
de assentar-me à secretária, disposto a continuar um romance que o meu feroz
editor me obrigava a concluir, em prazo muito breve.
Sentia-me
acabrunhado com esta absurda necessidade de escrever por dinheiro, deixando
adivinhar pela palavra, pela forma, pelo estilo, ao primeiro imbecil, a minha
doce ou amarga maneira de desejar a felicidade, de gozar a vida, de suportar a
dor.
Principiei
a desenhar arabescos no papel, esperando a frase sintética, que correspondesse
rigorosamente ao meu pensamento, e que me não era possível encontrar nessa
ocasião. Mais uma vez media a imensa distância que separa a concepção, consoante
ela existe no espírito, até à sua redução a forma e vulto em palavras, quando a
porta do meu escritório se abriu, dando ingresso ao visconde de Lucena,
elegante e correto no seu fato à inglesa, cortado no Keil, as mãos apertadas em
luvas brancas, bordadas a torçal preto, um molho de violetas na lapela do veston.
A
presença deste rapaz, orgulhoso da sua nobreza de parvenu, cômico nas suas pretensões a copurchic, sempre teve o poder de distrair-me.
Quanto
ao físico, Raul é um belo homem, de estatura elevada, temperamento sanguíneo,
músculos de atleta, cabelos negros e ondeados, bigode farto.
Desde
que travamos relações, há bastantes anos, no colégio, onde ambos fizemos os
primeiros estudos, interessou-me particularmente, prevendo logo as disposições
naturais, que faziam dele, mais tarde, um snob
de primeira ordem.
Quando
o pai, já enriquecido, traspassou a importante fábrica de sabão, e comprou, em
duas vidas, o título de visconde, uma ingênua expressão de vaidade transpareceu
no rosto do filho, que principiou a dar de mão aos burgueses, como
desdenhosamente chamava aos seus antigos companheiros, e a arranjar
apresentações na primeira sociedade, imitando os hábitos, os gestos, os gostos
da aristocracia autêntica.
E o
seu luxo, elegância, maneiras fiel e pacientemente copiadas desse meio,
chegavam a iludir — a distância. Um dos espetáculos mais curiosos que conheço é
este gênero de metamorfoses.
Mas
o que principalmente me atraía para ele, era a sinceridade absoluta no
ridículo, e um certo ar pretensioso de erguer a cabeça, baixando as pálpebras,
enquanto a boca falava, sorrindo, na evidente satisfação das próprias palavras.
—
Afinal, és feliz na tua vida solitária, Gastão, disse-me Raul, sentando-se em
uma poltrona; estás livre destas corvées
que nos infligem... Vê tu, ontem à noite, baile na Embaixada de Espanha; hoje
grande jantar, para festejar o aniversário da filha, no palácio do duque de...
(aqui proferiu um dos nomes da mais alta nobreza); amanhã concerto no palacete
dos condes de D...; no dia seguinte sauterie
em casa da baronesa V..., uma belga muito pálida, de cabelos cor de vinho do
Reno, que toca Chopin toda vestida de branco, com uma pontinha de tosse e uma pose lânguida, a fazer acreditar na
realidade de uma tísica, que não existe... É de um homem ficar extenuado!
E
tudo isto foi dito com um ar de aborrecimento, verdadeiramente irresistível.
—
Mas se isso te incomoda, para que aceitas tantos convites? atrevi-me a
observar-lhe.
—
Impossível! Quando se vive em uma certa roda, contraem-se compromissos a que se
não pode faltar... Imagina o que sucederia, se eu não comparecesse esta noite
no jantar do duque...
Raul
foi extraordinário de fatuidade nesta última frase. A inflexão fazia-nos temer
um dilúvio universal, ou uma segunda guerra de Tróia, se o seu nome não fosse
apregoado dali a pouco, pela boca de um criado de vistosa libré e gestos
automáticos, nas vastas salas do alto personagem.
—
Mas deixemos o assunto, para ti sem interesse, e falemos do que aqui me trouxe,
continuou ele, esboçando um sorriso levemente irônico, como quem diz: Estas
coisas só te podem fazer crescer água na boca, pobre diabo ignorante dos
requintes do high-life, condenado a
rabiscar em umas folhas de papel, pensamentos a que ninguém liga importância.
“Marta
Sandomil gosta imenso dos teus livros, e sabendo que somos amigos (esta palavra
foi pronunciada em um tom de proteção, que me seduziu), pediu-me para
apresentar-te em sua casa.
“Não
arranjes pretexto para uma recusa; põe em ordem essa papelada, que não perde em
esperar mais um dia, e vem daí comigo.
—
Estou à tua disposição, respondi sem hesitar, contente por ter ensejo de travar
relações com esta senhora, que apenas conhecia de vista.
Não podia ignorar uma coisa sabida de toda a gente: que Raul era seu amante. E esse incompreensível amor de uma mulher inteligente, bonita, rica e livre, por um tal homem, despertava-me curiosidade.
***
Quando
chegamos a casa de Marta, o criado que nos veio abrir a porta disse-nos que ela
recebia nesse momento a visita das senhoras Melos.
—
As Melos! dois mostrengos, que horror! exclamou Raul contrariado; esperaremos
no boudoir.
E,
enfiando o braço no meu, seguiu familiarmente pelo corredor, fazendo-me entrar
em uma sala, cuja porta fechou.
Enquanto
ele me falava, eternamente preocupado da sua pessoa, temendo a possibilidade de
o alfaiate lhe não mandar a casaca às quatro horas em ponto, eu examinava
minuciosamente, com o prazer que sempre tive de participar da vida de uma alma,
tudo quanto me rodeava.
A
luz, filtrada pelos stores de seda
azul-pálido, envolvia o aposento em uma suave claridade.
Os
móveis estavam dispostos ao acaso, sem simetria, mesmo sem qualquer desordem
estudada, como se um furacão os houvesse arremessado para ali, de encontro uns
aos outros.
Tropeçava-se
em livros, esbarrava-se em pilhas de almofadas e de bibelots de todos os feitios.
Para
o observador atento, habituado a ler um mundo de coisas em um gesto, em um olhar,
na disposição de um objeto, esta sala punha, por assim dizer, a descoberto, a
complexa psicologia da mulher que a habitava.
Ao
lado de uma chaise longue de pelúcia
cor-de-rosa, erguia-se o vulto marmóreo da Vaga,
abrindo no espaço, como duas asas de neve, os seus braços de deusa, enquanto os
pés lhe ficavam presos na onda, como o símbolo das irrealizáveis aspirações,
dos sonhos impossíveis daqueles que, fatalmente acorrentados à terra, sentem a
cabeça roçar pelas estrelas.
As
obras de Aristóteles, Kant, Spencer, Darwin, Büchner, Ribot, Montegazza e
Hartmann, caídas no tapete, ou dispersas sobre as cadeiras, não indicavam o
amor da ciência, mas a curiosidade de tudo saber...
Uma
bela gravura colocada em frente do divan,
representando Eva no Paraíso, sorrindo voluptuosamente ao aproximar dos lábios
o pomo cobiçado, não seria o próprio retrato de Marta, saboreando com delícia o
fruto proibido e o prazer íntimo da desobediência?
Sobre
um guéridon de laca, entre uma jarra
japonesa e um ramo de flores murchas — homenagem talvez de um admirador obscuro
—, sobrepunham-se dois livros: Pensamentos,
de Pascal, e a Vida de Jesus, de
Renan.
Singular
aproximação de ateísmo e fé!
A
obra do fervente jansenista, possesso do mais intolerável catolicismo, devia
arrastar essa mulher, dotada de uma sensibilidade mórbida, ao infinito terror,
evocado pela visão de um Inferno crepitante de chamas, povoado de medonhos
suplícios; ou à infinita esperança, na concepção mística de um Paraíso
constelado de serafins e povoado de inefáveis delícias. Depois, levada pela
magia do estilo e o poder do claro raciocínio do delicado e ímpio autor das Origens do Cristianismo, como ela devia
estremecer de agonia perante o desmoronar de todas as crenças, entrando de novo
na Dúvida, triste como uma noite sem astros...
E
atestando ainda esse misto de superioridade intelectual e garridice mundana,
que eu notara logo ao primeiro exame, viam-se sobre uma mesa antiga os últimos
romances de Queirós, Zola, Bourget, Maizeroy, Maupassant e outros, confundidos
com um grande número de fotografias de cantoras, tenores, dançarinas,
escritoras, literatos, princesas e atrizes em voga.
A
entrada de Marta, neste momento, veio interromper as minhas observações.
—
Satisfazendo o seu desejo, minha senhora, apresento-lhe o meu amigo Gastão
Ariel, disse Raul.
—
Agradeço-lhe imenso ter acedido tão amavelmente ao meu pedido, respondeu ela,
enquanto eu me inclinava respeitoso. Vou ser compensada do tempo perdido a
escutar as duas senhoras que daqui saíram, e que me vi forçada a receber, pelo
imperdoável esquecimento de não avisar o criado que só estaria em casa para os
senhores.
Enquanto
ela falava, examinava-lhe eu a natural distinção do porte, os olhos negros,
alternadamente maliciosos e melancólicos, o estremecimento dos lábios, a
palpitação das narinas, que imprimiam à fisionomia uma extraordinária
mobilidade, denunciando a mulher apaixonada e fantasista.
Marta
é alta e delgada; a toilette que
vestia, de pelúcia creme, muito justa e singela, ia-lhe deliciosamente.
Os
cabelos pretos, atados negligentemente sobre a nuca, muito anelados na testa,
caindo-lhe em desordem até às sobrancelhas bem desenhadas, davam-lhe uma
aparência juvenil, que decerto não obteria com um penteado correto, produto das
mãos de um cabeleireiro.
Em
resumo, uma mulher mais capitosa do que bonita, que será possível aborrecer um
dia, que não temos a certeza de amar apaixonadamente durante muito tempo, mas
que se deseja logo, à primeira vista.
E
ela bem o sabia.
As
doces inocências, filhas de um espírito ignorante, deviam ter há muito
desferido o voo para o infinito, levando presas nas suas asas de ouro todos os
sonhos ingênuos; contudo, no fundo desse coração agitado pelo tumultuoso mar de
muitas paixões, quase embotado pela satisfação de muitas curiosidades,
adivinhava-se ainda uma nesga de céu azul — do límpido céu de outrora.
—
Mas não faz ideia, continuou Marta, sentando-se em um fauteuil e dirigindo-se a mim, não faz ideia até que ponto essas
senhoras irritaram os meus pobres nervos!... O assunto por elas escolhido para
me atormentarem foi a apreciação do Hamlet,
que tinham ido ver representar na véspera.
“Nesse
príncipe dinamarquês, que seguimos ansiosamente através do seu labirinto de
pensamentos trágicos, de dolorosas incertezas, elas viram apenas um cretino,
bom para meter em um hospital de doidos, sem compreenderem que todos nós temos
estremecido de terrível perplexidade perante o eterno problema: ser ou não ser... Que todos temos
conhecido as decepções da esplanada de Elsenor, e avistado, como ele, o trágico
e miserável reverso desta pomposa farsa da existência, no relâmpago de uma
desilusão aterradora!... Na genial produção de Shakespeare, exuberante de
ardente sensibilidade e de torrentes de eloquência que fazem estremecer a alma,
só encontraram uma série de disparates, que o público, afirmaram elas, decerto
por indulgência não pateou...
“É
horrível isto! Sinto em mim um desespero inexprimível quando ouço assim falar
dos poetas que venero, das obras que admiro, das ideias que me são queridas...
Por pouco me não escapou a frase de Flaubert, quando uma pretensiosa lhe falou,
sem o devido respeito, de Renan. E o Sol não se apaga, as flores não murcham
ouvindo estas coisas! Do céu não cai um raio que as fulmine, a terra não se
abre para as engolir, o mundo continua na sua infatigável rotação através dos
espaços, deixando vegetar em paz estes dois cúmulos!...
“Foi
decerto em uma hora de amarga ironia que Rivarol fez a apologia da mulher
estúpida; a sua paixão por Manette não passa de uma fábula, porque a vida seria
suportável, se não fossem os idiotas...
—
Para algumas pessoas, é verdade, respondi; mas não sabe vossa excelência que
outras existem, para quem a vida não teria encantos sem a colaboração dos
tolos? Há uma certa raça de homens, e homens superiores, que, como Rivarol,
fazem consistir na imbecilidade da mulher um dos maiores atrativos da
existência humana... Por inexplicáveis que se nos afigurem estas predileções, é
incontestável que existem...
E
enquanto lhe dizia isto, pensava que a ligação dela com o visconde era ainda
mais inexplicável, e perguntava a mim mesmo que força a arrastara, que
embriaguez a invadira, que vertigem a lançara nos braços daquele homem...
—
Os poetas a maior parte das vezes são uns doidos, observou Raul, não sabem o
que dizem nem o que desejam; não há nada mais delicioso sobre a Terra do que
uma mulher bonita e inteligente (nisto relanceou um olhar demorado em Marta,
que baixou os olhos); é necessário, porém, que não tenha pretensões a erudita,
resvalando no pedantismo, mil vezes mais intolerável do que as desopilantes
inépcias das outras...
A
que duque ou a que príncipe teria ele ouvido esta apreciação?
Porque,
no seu horror pelo plebeísmo, desde que fazia parte da nobreza, Raul nunca mais
se permitiu arriscar uma opinião, que não fosse previamente emitida pela boca
de um fidalgo de sangue azul.
Levantando-se
em seguida, consultou o relógio e pediu licença a Marta para colher uma das
pequeninas rosas brancas que pendiam de uma jarra de cristal da Boêmia,
colocada sobre uma elegante secretária Luís XV.
—
As minhas flores estão à sua disposição, visconde, disse ela, sorrindo, e
acrescentou, acompanhando-o ao lado oposto da sala, onde estava o pequeno
móvel: Se me permite, eu própria lhas colocarei na boutonnière?
E
Marta, tirando-lhe da lapela as violetas quase murchas, tomou entre os dedos
brancos e esguios uma rosa que entrelaçou com algumas folhas, pregando-a
cuidadosamente no peito de Raul.
Ao vê-los assim juntos, ele forte, robusto, de uma beleza acentuadamente viril, os lábios sensuais, os cabelos fartos, descobrindo uma testa pequena onde nunca brilhara a chama de um pensamento, e ela tão fina e delicada, tão graciosa e sugestiva, de uma superioridade moral tão evidente, um fisiologista, embora pouco experiente, compreenderia como eu, naquele momento, as causas, de ordem puramente física, que determinaram esta ligação...
***
Raul
retirou-se.
Marta,
pedindo-me para prolongar a minha visita, ofereceu-me um lugar ao seu lado, no
sofá, e principiou a elogiar os meus romances, falando em seguida sobre
literatura e belas-artes, com um fino e raro critério, que me admirou.
A
despeito da sua aparente frivolidade, era evidente que lera e pensara muito.
Depois
de um breve silêncio, corando ligeiramente, com alguma hesitação na voz,
disse-me:
—
Vou fazer-lhe simultaneamente uma confidência e um pedido... Desde muito que a
minha grande ambição se resume em possuir a amizade desinteressada de um homem
inteligente e leal... Amigas, não... Há sempre na mulher o quer que seja de
vago... de indeciso... O que ambiciono é uma proteção viril, uma delicada
afeição de irmão, um braço forte onde me ampare, um coração sincero e
indulgente onde possa esconder todas as minhas lágrimas, todos os meus
sorrisos, todos os meus prazeres e todas as minhas dores...
“Confiar
a uma criatura nobre e generosa os mais recônditos sofrimentos que nos
torturam, sem omitir coisa alguma, sem encobrir a verdade sob o doirado manto
da mentira, que ventura, até agora para mim desconhecida!...
“Desde
muito que penso em si; os seus livros, vibrantes de sensibilidade,
encantaram-me. Que grande deve ser a alma para assim sentir, e a inteligência
para assim conceber!...
Depois,
mais baixo, quase suplicante:
—
Quer ser esse amigo por mim sonhado, esse irmão dileto, sem desejos egoístas,
sem absurda vaidade, sem tolas susceptibilidades de amor-próprio?
Perturbado
pela estranha sedução que emanava de toda ela, lisonjeado por tantas frases
amáveis — quem o não estaria no meu lugar? — aceitei, sem objeção, o papel que
me era oferecido com tanta gentileza e sinceridade — se todavia a mulher pode
possuir esse sentimento, quando faz a um homem tal proposta.
Mas
embora devesse mais tarde arrepender-me, embora ela quisesse arrastar-me, com a
inexplicável crueldade do seu sexo, para um labirinto mais emaranhado que o de
Creta, a entrada, eflorescente de flores, exalava aromas tão enervantes, a
imaginação fantasiava oásis tão belos, que me faltava a coragem para recusar,
mesmo tendo a certeza de me estar reservada a sorte de Ícaro...
Agradecendo-me
com efusão e abandonando uma das suas mãos nas minhas, como prova de delicada
confiança — ou de perversa coquetterie,
quem sabe? —, continuou, parecendo seguir o fio de uma ideia abstrata:
—
Sou, decerto, o mais miserável depósito de matérias heterogêneas que tem
existido... A Quimera fabulosa devia ser um animal de simples composição,
comparado comigo... Sofro por futilidades que fazem rir os outros... Ambiciono
coisas em que ninguém pensa... Não me compreendo bem!... Há em mim o quer que
seja de obscuro, que me força a praticar atos reprovados pela minha consciência...
Tudo quanto faço parece mais o resultado de um estado hipnótico, do que o de
uma vontade livre... As mesquinhas realidades do mundo atormentam-me... A
promiscuidade, a que nem sempre posso esquivar-me, martiriza-me... A hipocrisia
da sociedade confunde-me... Namorada de todos os esplendores mundanos, sinto-me
ao mesmo tempo atraída para o silêncio do túmulo... Detesto a vida e não sei
renunciar a ela... Estorço-me na impotência tantálica do condenado mitológico...
Para me subtrair a tudo isto, tento elevar-me, pelo pensamento, acima das
esferas estreladas, no éter luminoso onde não chegam os miasmas da Terra, mas
em vez de voltar consolada, volto abatida, cansada de devaneios inúteis,
fitando sem esperança os páramos azuis, despovoados de deuses, ao passo que o spleen, a náusea da miserável condição
humana me sufocam, fazendo-me exclamar por vezes, como o Santo António da Tentação: Desejava voar, nadar, ladrar,
mugir, berrar, uivar, torcer o corpo, dividir-me por toda a parte, evolar-me
com os perfumes, desenvolver-me como as plantas, correr como a água, vibrar
como o som, brilhar como a luz, revestir todas as formas, penetrar em cada
átomo, descer até ao fundo da natureza — ser a matéria!...
A
tarde declinara, envolvendo os objetos em uma luz crepuscular, que a lua
dissipou, coando-se através dos stores.
E a
doce claridade, onde palpitavam, como vaporosas falenas, átomos prateados,
beijando as estátuas, alastrando-se pelos móveis, esbatendo-se nas curvas dos
cetins e das pelúcias, derramando-se sobre a massa escura das palmeiras e empalidecendo
a alvura das pequeninas rosas, imprimia uma aparência fantástica a essa sala,
capitosamente sugestiva.
Marta
calou-se, fechando os olhos, como se quisesse fugir a uma visão importuna,
enquanto duas lágrimas tremeram por um instante, desprendendo-se das pestanas
compridas e recurvas, e deslizando em seguida, silenciosamente, ao longo das
faces, agora sem cor.
É
provável que outro rapaz, no meu lugar, procedesse de forma muito diferente.
Eu,
porém, sem pensar aproveitar-me dos pequeninos artifícios, evidentemente postos
em ação para me estontear, respeitei-lhe o silêncio e a fraqueza.
E
contemplando-a demoradamente, senti o coração palpitar a ideia de poder
dispensar-lhe a minha proteção, de penetrar nesse universo de sensações raras
de que era composta a sua existência; de surpreendê-la, consolando-a, nas suas
crises nervosas, nas suas terríveis prostrações; de partilhar as suas doidas
alegrias e os seus irrefletidos entusiasmos...
Lastimo sinceramente o homem que nunca experimentasse, durante a mocidade, a profunda e puríssima comoção despertada por um sentimento desta ordem, e que preferisse quebrar com brutal audácia o encanto de tal momento...
***
Na
seguinte noite, em S. Carlos, enquanto as últimas notas do primeiro ato da Traviata morriam no espaço e a Patti
acabava de atirar nas pontas dos dedos rosados, à plateia eletrizada pela sua
voz de sereia, um último beijo, sublinhado pelo sorriso irônico dos seus lábios
sensuais, retocados a carmim, e pela maliciosa expressão dos seus olhos de
veludo, avivados a kohl, por entre o brouhaha dos bravos e das palmas, ouvi
pronunciar, ao meu lado, o nome de Marta Sandomil.
Naturalmente,
escutei.
Dois
rapazes elegantes, que apenas conhecia de vista, conversavam com animação:
—
Acho-a realmente interessante, dizia um deles, muito louro, de barba à Guise,
cuidadosamente aparada, gardênia na boutonnière;
agrada-me imenso e desejo fazer-lhe a corte... Apresentas-me?
—
Com todo o gosto, retorquiu o outro, torcendo, com gestos de Lovelace, as guias
do bigode negro e frisado.
—
Parece-te que...?
—
Parece-me que sim, atalhou o segundo; é uma extravagante; uma desequilibrada,
uma epicurista... Uma mulher deliciosa e uma conquista que dispensa bem a
diplomacia de um Metternich.
—
Tem algum amante? interrogou de novo o primeiro.
—
Um amante!... Santa ingenuidade! As mulheres como ela, só deixam de ter dois
para terem quatro...
E
voltaram-se ambos, assestando os binóculos para uma frisa.
Este
diálogo produziu-me uma impressão dolorosa, como se acabasse de assistir à
queda brutal de um astro...
Voltei-me
e olhei na mesma direção.
Marta
achava-se, efetivamente, nessa frisa; e tão elegante, com o seu vestido
Império, avivado de rosas chá, um dos braços reclinado no parapeito de veludo
escarlate, o leque de plumas brancas meio aberto, resguardando-a da luz crua
reverberada pelos bicos de gás!
O
visconde de Lucena, de pé, ao seu lado, curvando-se ligeiramente, parecia
dizer-lhe alguma coisa que a interessava muito, visto que o escutava com
evidente prazer.
Não
parecia a mesma mulher que eu tinha visto chorar na véspera!
E,
contudo, era ela, com todas as suas requintadas delicadezas de alma e coração,
que ali se estava dando em espetáculo, voluptuosamente reclinada em um fauteuil, embalando-se com o ritmo
monótono das frases ardentes de um homem inepto, deixando-se devorar pelo olhar
lascivo de muitos admiradores egoístas, que ainda mais lhe maculariam a
reputação, já poluída.
E
não fugia, não sentia as faces queimadas pelo rubor da vergonha, ao ver-se
impudicamente analisada por tantos olhos cobiçosos, ao sentir percorrer-lhe o
corpo essa insolente maré de desejos!...
Ao
ver-lhe os lábios vermelhos, entreabrindo-se em um sorriso provocante que
atraía o beijo, o olhar úmido, de um brilho intenso, autorizando as mais ousadas
esperanças, dir-se-ia que as admirações de que era alvo lhe agradavam e
lisonjeavam extraordinariamente.
Que
estranha vaidade a cegaria? Que pensamentos lhe atravessariam o cérebro nessas
ocasiões? Que misteriosa sensualidade lhe faria assim vibrar os nervos?
Enigmática
criatura, feita de lama e de estrelas, com todas as delicadezas de sentimento e
todos os apetites da sensação!...
As
palmas cessaram.
A
meu lado, os dois amigos conversavam agora em voz mais baixa, trocando
apreciações maliciosas.
O
dos bigodes negros contava pormenores picantes, cheios de reticências
equívocas, deixando adivinhar intimidades suspeitas...
Experimentei
um desespero enorme contra mim mesmo, por ter tido a ridícula ingenuidade de
acreditar na possibilidade de inspirar um afeto sério a essa leviana, que se
entregaria, sem escrúpulo, quando a isso a instigassem os nervos, aos braços do
primeiro imbecil, de olhar lânguido, flor ao peito e poses de tenor.
Senti-me
mau.
Apoderou-se de mim, fitando Raul, um estúpido ciúme, essa raiva de mâle à mâle, de que fala Spinoza, e saí bruscamente do teatro, fugindo à tentação e à vertigem que me invadiam.
***
Na
manhã do dia imediato, recebi um bilhete de Marta, ordenando-me, com uma
familiaridade adorável, que fosse sem perda de tempo a sua casa.
Hesitei
um momento.
Há
sempre um pouco de Dalila na natureza da mulher.
Desejaria
ela enganar-me, fazendo-me representar um papel absurdo, de que se riria
doidamente com algum desses homens que a requestavam, e que acharia, talvez com
razão, menos tolos do que eu, ou teria realmente precisão de mim?
Esta
última hipótese, auxiliada pela irresistível simpatia que ela me inspirava,
decidiu-me completamente.
Fui
recebido em um pequeno gabinete, mobiliado com extravagância.
Sob
o dossel de brocado via-se uma ampla chaise
longue, guardada por esfinges.
Nos
espelhos de Veneza, que forravam as paredes, miravam-se poussahs chineses e pastorinhas de biscuit, em amável convívio com aves, tigres, e outros animais
embalsamados.
Estes
contrastes, porém, fundiam-se em uma harmonia de luxo e suave elegância,
exalando o subtil aroma de uma feminilidade, perigosa para aquele que quisesse
conservar a sua razão clara.
Se
os fauteuils baixos, de braços
abertos como em um êxtase, sugeriam a ideia de diálogos íntimos e hálitos
confundidos, as almofadas, languidamente estendidas sobre o tapete, convidavam
os joelhos a dobrar-se, na apaixonada contemplação de um ídolo...
Marta
apareceu afinal, com os cabelos soltos, caindo-lhe sobre as espáduas, como um
longo véu negro, vestindo um penteador de seda crua, e disse-me:
—
Tomei a liberdade de escrever-lhe há pouco, por uma forma talvez indiscreta;
mas visto termos celebrado um pacto de sincera amizade, julguei dispensáveis as
formalidades do estilo. Não se zangou comigo? concluiu, assentando-se e
indicando-me um lugar a seu lado.
—
Por forma nenhuma, minha senhora.
—
Então, continuou, vou explicar-lhe o motivo que me levou a incomodá-lo tão
cedo, ou antes... veja se adivinha?
—
Sou um mau decifrador de enigmas... Se a Esfinge de Tebas ainda existisse, vossa
excelência pode crer que não me caberia a mim o privilégio de arrancar-lhe o
segredo...
— É
modéstia sua. O senhor é muito mais subtil do que o velho Édipo, e para nos
convencermos, basta folhear um dos seus livros...
—
Mesmo dada a hipótese que eu possua o poder de análise que vossa excelência
gentilmente me atribui, afianço-lhe, minha senhora, que o mais hábil psicólogo
não poderá nunca seguir e compreender a
tempo, as estranhas fantasias que perpassam, com a rapidez das vistas de um
caleidoscópio, pelo cérebro de uma mulher... e de uma mulher bonita...
— É
possível... volveu ela, depois de meditar um instante. Vou então dizer-lhe...
Desejava saber porque se retirou ontem do teatro tão apressadamente, sem entrar
na minha frisa?...
Senti-me
terrivelmente perplexo.
Como
explicar-lhe, sem ofendê-la e sem faltar à verdade, as causas determinantes do
meu procedimento da véspera?
A
minha hesitação pareceu surpreendê-la. Calou-se fitando por instantes nos meus,
os seus olhos negros e investigadores.
De
súbito, com um estremecimento brusco, passando as mãos pelo rosto, como se
acabasse de avistar a fauce hiante do precipício onde ia resvalando e na
voragem do qual se afundariam os seus pudores de mulher, as ilusões da sua
alma, as cintilações do seu espírito, exclamou, corando intensamente:
—
Já sei... Não explique nada... Não procure uma mentira generosa para
desculpar-se, desculpando-me... Compreendo agora!...
Depois,
inconscientemente, com lágrimas na voz, continuou:
—
Ambicionei o impossível!... Poderia eu nunca merecer a respeitosa dedicação de
um homem como o senhor? Devia saber que essa felicidade me era vedada... Uma
volúvel, uma inconsequente, como eu, pode lá nunca inspirar estas coisas?!...
Contudo, não sou má... Possuo um coração acessível a todos os sentimentos
nobres... Encanta-me a virtude... Compreendo todas as ideias elevadas... Que
misteriosa força me obriga a cometer atos, que no íntimo reprovo?... Se não
posso ser como a honesta e fria Récamier, descendo ao túmulo envolta em uma túnica
sem mácula, porque não serei uma depravada sem dignidade, como essas
desgraçadas que se vendem?...
“Espantoso
tormento, o da consciência do Mal que se não pode evitar, amando o Bem, na
impossibilidade de atingi-lo!... Dir-me-ão, talvez, que o remorso das minhas
faltas é a justa punição das minhas culpas; porém, se existe o castigo, é
forçoso que haja também o prêmio, e a parte boa do meu ser, esse outro eu que condena os meus desvarios e sofre
dolorosamente, que recompensa lhe será dado fruir? Quem, na Terra ou no Céu, me
compreenderá, me desculpará, me perdoará e me salvará?...
E
tu expiraste, fazendo com o teu sacrifício desabrochar uma esperança sublime no
coração da humanidade, ó doce mártir do Gólgota, para, decorridos dezenove
séculos, morreres de novo e sem prestígio sob o implacável escalpelo dos
filósofos, deixando-nos ainda mais desemparados sobre a Terra do que antes da
tua vinda!
Agora,
que voz, que eco longínquo responderão à angustiosa pergunta dessa mulher
banhada em pranto, a quem a Ciência ensinou a duvidar?
Que
cruz lhe abrirá os braços, como à formosa Madalena? Que luminoso paraíso lhe
oferecerá um refúgio? Onde encontrará ela esse Pai que baixou do Céu, do vasto
e inexorável Céu, mudo a todas as súplicas, indiferente a todas as preces,
abandonando a alma — pobre Psique ferida por uma irreparável nostalgia —, na
solidão dos espaços infinitos, em procura de uma fé que a salve, de uma criança
que a console!
À
medida que estes pensamentos se me debatiam no cérebro, sentia brotar de todo o
meu ser um amor intenso e uma piedade ilimitada por essa criatura, que a
natureza dotara com as disposições as mais funestas a uma mulher do seu
nascimento, lançada no conflito da sociedade moderna: um coração romanesco e um
temperamento apaixonado.
Faltando-me
a religião divina, apoderou-se de mim, mais intensa, a religião humana.
Esqueci
o passado, e sem pensar no futuro, fazendo calar o amor-próprio, o orgulho e o
egoísmo naturais ao homem, ajoelhei aos seus pés, ofereci-lhe,
incondicionalmente, todo o meu afeto e murmurei-lhe as frases apaixonadas que
ela desejava ouvir da minha boca.
Em
uma expansão de felicidade, devida talvez em parte, a satisfação da vaidade
inerente ao seu sexo — não será secreta a quimera da maior parte das mulheres,
por mais honestas que sejam, verem prostrados aos seus pés, loucos de amor ou
ébrios de desejo, todos os homens, mesmo os que lhe são indiferentes ou que no
íntimo desprezam? —, Marta agradeceu-me com um desses divinos sorrisos que
despontam nos lábios da mulher, nos raros momentos em que nos é dado vê-la
despretensiosa e sincera.
Pobre Marta! ou, com mais razão talvez, pobre de mim, que iria despojar-me das poucas ilusões que ainda me restavam...
***
Decorreram
quatro meses deliciosos na convivência íntima de Marta, que eu amei como nunca
amara mulher alguma.
A
posse exclusiva de uma criatura encantadora, dotada de uma alma superior, é,
para o homem, uma voluptuosidade quase sobrenatural. Saber que são para ele, e
só para ele, os sorrisos que lhe entreabrem a flor purpúrea dos lábios, o olhar
que lhe transmite a impressão recebida pelas suas carícias; compreenderem-se e
partilharem ambos os mesmos pensamentos, os mesmos desejos, a mesma sensação e
o mesmo êxtase que os arranca à terra por momentos, é decerto a suprema
ventura, e não conheço outra que se lhe compare.
Eu
bem sei que o amor feliz não pode durar sempre. A nossa miserável condição
humana não nos permite a constância em qualquer sentimento.
Mas
embora ele devesse ter, como todas as coisas deste mundo, uma duração efêmera,
a intensidade do prazer sentido era tal, que a impressão recebida em todas as
moléculas do nosso ser vibrará nelas sem cessar até ao fim da vida.
Como
Marta se ia a pouco e pouco transformando!...
A
fisionomia readquirira uma expressão quase ingênua, reflexo da que devia ter
possuído na adolescência, antes das primeiras iniciações feitas por um marido
libertino, que a morte lhe arrebatara, um ano depois de casada.
Fechara
a porta da sua casa ao visconde, que possuído do despeito cômico que
caracteriza os tolos, foi consolar-se nos braços de uma francesa, toda ela
cosméticos, mentiras e artifícios; uma destas mulheres, produto monstruoso das
grandes cidades, que sem beleza, sem educação e sem mocidade, sabem ainda, pelo
esforço de uma vontade inabalável, coadjuvado por uma consumada ciência do
vício, inspirar desejos e extorquir libras.
Marta
não se cansava de escutar os conselhos e as observações por mim feitas, a seu
pedido.
Percebi,
com um reconhecimento profundo, que todos os seus esforços convergiam a um
único fim: tornar-se digna da afeição que eu lhe dedicara.
Por
vezes, vendo-a sentar-se em um banco aos meus pés, cruzando sobre os meus
joelhos os braços, em uma atitude tão meiga e submissa, cheguei a acreditar na
veracidade do velho e estafado assunto de tantos dramas e romances: a redenção
pelo amor; sem me lembrar que as causas que produziram a primeira falta,
continuavam a subsistir latentes, a despeito do arrependimento e das boas
resoluções.
Quando
a queda de uma mulher é determinada por uma ilusão, por uma injustiça, ou pela
miséria, é fácil regenerá-la; porém, quando as complexas causas que a levaram
uma vez para o mal, têm a sua origem na parte mais profunda e obscura dos
sentidos e dos órgãos, que amor poderá salvá-la em absoluto?
Mas
no meu santo empenho em guiar-lhe o pensamento para a razão, fazendo-a
compreender e amar o Bem, na posse do qual o espírito se liberta, criando em si
e para si um mundo completo e transcendente, não vi logo a impossibilidade de
atingir o fim a que me propunha.
Em
Setembro, Marta, cuja saúde exigia nessa estação os banhos do mar, partiu, a
pedido meu, para a praia de E...
Não
queria separar-se de mim por tanto tempo; porém, na impossibilidade de
acompanhá-la naquela ocasião, exigi-lhe esse sacrifício.
Por
entre as lágrimas da despedida, ela jurou-me que a sua conduta seria de longe,
como de perto, digna em tudo da minha confiança.
Escutava-a
com o coração oprimido por uma tristeza invencível... O vago pressentimento de
que ia perdê-la para sempre...
A ausência é a pedra de toque destas ligações; era ela que se encarregaria de dissipar as minhas dúvidas, ou de justificar os meus receios.
***
A
princípio, Marta escrevia-me todos os dias, e essa era a única consolação para
a saudade que me deixara.
Decorridas,
porém, duas semanas, a correspondência principiou a afrouxar sensivelmente;
apenas bilhetes rabiscados à pressa, desculpando-se com as amigas, que não a
deixavam descansar com convites para passeios, picnics, e prometendo sempre para o dia seguinte uma extensa carta,
que não chegava nunca.
Há
pouco, duas folhas de papel não bastavam para descrever as impressões de um
dia; agora, o pequeno cartão, recebido muito irregularmente, trazia margens em
branco, como se fosse um imenso Saara, impossível de preencher com o seu
elegante cursivo inglês.
Apoderou-se
de mim uma suspeita atroz, impossível de afugentar, não obstante os argumentos
formulados no intuito de a defender.
Para
pôr termo a esta cruel perplexidade, resolvi partir sem preveni-la, buscando
ensejo de observá-la, quando ainda me julgasse distante.
Que
dolorosas desilusões, se todos os maridos e todos os amantes fizessem como eu!...
Cheguei
a E... às oito da noite, entrei em um hotel, fiz à pressa a minha toilette e dirigi-me ao Clube, onde ela
ia quase todas as noites “para se não tornar original, mas muito aborrecida”,
segundo me dizia nas suas cartas.
Com
precaução, para não ser visto senão em tempo oportuno, penetrei no corredor,
aproximei-me de uma porta que encontrei aberta e relanceei os olhos pela sala
de baile.
A
orquestra tocava nesse momento uma valsa, os pares perpassavam enlaçados.
De
súbito, entre aquele turbilhão de casacas pretas, braços nus, tules diáfanos,
palpitações de fitas e cintilações de joias, ressaltou o vulto gentil de Marta,
abandonando-se voluptuosamente nos braços de um rapaz muito alto e muito louro.
Que
ela gostasse desta dança tão moderna, tão característica, tão sensual, não me
surpreendia; é a dança predileta dos nervosos, dos frenéticos, dos que amam a vida
agitada.
Mas
saberia resistir às perigosas sugestões desse ritmo embriagador e às frases
ardentes, balbuciadas próximo dos lábios?
A
música cessou; os valsistas dispersaram.
Marta,
largando o braço do seu par, sentou-se em um banco de veludo, logo rodeado por
meia dúzia de elegantes, aspirando à intimidade de um diálogo, e talvez à
liberdade de um rendez-vous sem
testemunhas...
E
ela consentia, depois do que me tinha jurado, que todos estes pensamentos, e
outros porventura mais audaciosos, lhe fossem patenteados pela expressão dos
olhares e pela ambiguidade dos sorrisos!
Acirrante,
irrequieta, vaidosa e garrida, deixava explodir a excitabilidade do seu
temperamento de histérica, em uma coquetterie
diabólica, donde emanava uma fascinação perigosa para os que dela se
aproximavam.
Era
assim que seguia os meus conselhos, mistificando-me, calcando aos pés o nobre
afecto que lhe dedicara e que poderia ter sido a reabilitação dos seus passados
desvarios!
Recordei-me
da noite da Traviata e das
apreciações que então ouvira a seu respeito.
Os
que assim falavam não mentiam...
Senti
na alma uma dor lancinante, pela decepção brutal que acabava de receber, e por
vê-la despenhar-se de novo no abismo, donde generosamente tentara arrancá-la.
Tornou-se-me
insuportável aquele espetáculo; com a vista turva, afastei-me desse lugar,
atravessei ao acaso dois ou três gabinetes, onde por felicidade não encontrei
ninguém, e fui dar a um vasto terraço, deitando sobre o mar.
Ali,
deixei-me cair sobre um banco de pedra, sombreado por uma enorme palmeira;
sentindo-me, pela primeira vez na minha vida, sem coragem para reagir contra o
mortal desalento que me invadia, escondi o rosto nas mãos, e chorei o pranto
mais amargo de que tenho memória...
Um
ligeiro sussurro e um frou-frou de
sedas obrigaram-me a voltar a cabeça.
Uma
senhora nova, em cabelo, com uma peliça branca sobre os ombros, acabava de
entrar no terraço pelo braço de um rapaz alto.
Ao
aproximarem-se, reconheci Marta e o seu louro valsista.
Assim
o acaso, tão fértil em aventuras inesperadas, encarregava-se agora de
mostrar-me o desenlace do episódio há pouco presenciado.
Passaram
quase ao meu lado, sem repararem em mim, e foram encostar-se à pequena muralha
que cercava aquele recinto.
Ele
falava-lhe em voz baixa, com animação; ela escutava-o abstrata, com os olhos
fitos no mar, que a lua bordava de palhetas luminosas, perdida no intangível e
misterioso país dos seus sonhos, onde devia haver flores tão perfumadas como as
rosas e as violetas, e plantas tão venenosas como a mancenilha e a árvore Upas.
Pouco
a pouco, como se as brisas salgadas do oceano e o perfume forte da mata,
sofregamente aspirados pelas narinas palpitantes e dilatadas, a fossem
embriagando lentamente, cerrou as pálpebras e deixou pender a cabeça no ombro
do seu companheiro, que a enlaçou, beijando-a com delírio.
Senti
fugir-me a razão; perpassaram diante dos meus olhos visões sanguinárias;
levantei-me de um pulo e encaminhei-me para eles com o desejo bestial de
matá-los, a ela sobretudo, mais tentadora e pérfida do que a serpente bíblica.
Felizmente,
a excitação deste momento, em que o instinto animal, aguçado até à ferocidade,
me fizera esquecer a minha educação e os deveres impostos pela sociedade,
abrandou um pouco, suavizada pelo dó que me inspiraram a palidez cadavérica e o
grito angustioso de Marta, quando, ao desprender a boca desse longo beijo, me
viu ao pé de si, como a consciência viva da sua vergonha.
Sem
dizer-lhe coisa alguma, fugi dali desvairado, cambaleando como um ébrio.
Divaguei
ao acaso pelas ruas, abismado em um caos de pensamentos insensatos, abalado por
um mundo de sensações contraditórias, incapaz de formular uma ideia, de tomar
uma resolução.
Recolhi
ao hotel de madrugada.
Ao
entrar no meu quarto, o criado disse-me que me esperava uma senhora.
Abri
a porta e deparei com Marta.
Assim
que me viu, levantou-se, dirigiu-se a mim vacilante, com os olhos vermelhos de
lágrimas recentes, e exclamou:
—
Gastão, perdoa-me ou castiga-me, mas não me desprezes nem me acuses... Tudo
quanto possas dizer, já o disse a mim mesma... Se soubesses o espantoso
sofrimento que me tortura!... Como pude fazer o que fiz, possuindo o teu amor,
a maior, a única ventura da minha vida!... Que bom seria morrer já, para acabar
com estas estranhas aberrações, estas tentações que me alucinam e perdem...
Gastão, tem piedade!... Não vás abandonar-me... Salva-me de mim própria... E
aproximou-se mais, tentando pegar-me nas mãos.
Este
apelo, feito à minha generosidade, não encontrou eco no meu coração, porque
entre nós interpôs-se a visão física da carícia de há pouco.
Recuei,
dizendo-lhe:
— É
inútil, Marta; entre nós está tudo acabado...
—
Tudo acabado?!... Não, não, não é possível... Não quero!... Tu hás de
perdoar-me... Serei tua escrava... Serei o que tu quiseres... Mas não me abandones...
Nem um instante deixei de amar-te... Não sei viver sem o teu amor!...
E
Marta caiu de joelhos, soluçante, rojando-se aos meus pés, agarrando-se ao meu
fato.
Aquela
dor, tocando as raias da loucura, comovia-me, mas o ciúme continuava a
cegar-me, tornando-me feroz.
Afastei-a
de mim com violência, gritando-lhe:
—
Não! mil vezes não! O outro, com quem me enganaste, em cujos braços estarias a
estas horas, se eu não tivesse aparecido, que te console... Que te proteja...
Dilaceraste-me a alma nos espinhos das tuas falsidades, mentindo-me nas tuas
cartas, como me mentirias ainda, se eu não visse! Não te quero!... Partirei,
levando intacta a minha dignidade, antes de tu a manchares no lodo em que te
afundas e para onde tentas arrastar-me...
— É
a tua última decisão? perguntou, fazendo-se lívida.
—
Sim!
—
Ah! murmurou ela, presa de um estremecimento convulsivo, estendendo os braços e
fitando no espaço os olhos, desmedidamente dilatados, como se acabasse de ver
surgir um pavoroso espectro, que viesse buscá-la para algum inferno
desconhecido, com suplícios mais tenebrosos que os do Dante. Em seguida,
soltando um gemido rouco, como o estertor de um moribundo, caiu sem sentidos
sobre o tapete.
Por
um impulso de caridade, tomei-a nos braços e deitei-a no sofá.
Nesse
instante, o sino de uma igreja próxima batia três horas — três badaladas,
dolorosamente repercutidas no meu coração, como um dobre fúnebre pela pobre
alma ali agonizante...
Meu
Deus! que miséria a desta criatura, sem coragem para suportar o meu desprezo e
sem forças para se tornar digna do meu amor!... Que luta titânica entre o bem e
o mal, acabando talvez por despedaçar esse corpo franzino! Que sede de puras
comoções e de degradantes sensualidades! Que Céu e que Inferno!...
E
como estava idealmente bonita, assim deitada, os cabelos em desalinho, o rosto
de uma palidez doentia, os braços e o colo descobertos, as flores do corpete
murchas e soltas, matizando de pétalas rosadas a seda branca do vestido de
baile!
Impelido
por uma misteriosa atração, debrucei-me para vê-la melhor.
Como
se a requintada nevrose do seu sentir lhe houvesse transmitido, apesar desse
aparente letargo, a impressão que me dominava naquele instante, quebrando-me a
energia, um sorriso inefável dourou-lhe de súbito a fisionomia; estendeu as
mãos, sem descerrar as pálpebras, encontrou a minha cabeça, enlaçou-a nos
braços e estreitou-a docemente contra o seio.
A
inesperada sensação em mim despertada ao contato da sua pele fresca, da sua
carne palpitante, fez-me pulsar com força as artérias e correr no sangue uma
chama quente como metal fundido, avivando-me a recordação — impossível de
apagar por completo no espírito daqueles que uma vez a tivessem conhecido — das
suas estranhas e enervantes carícias, onde havia instintivos pudores de virgem e
insensatos ardores de cortesã.
Apoderou-se
de mim a paixão física, obscura, desordenada, com uma intensidade brutal, como
até então nunca tinha experimentado.
Chamei
em meu auxílio a dignidade, o bom senso, o raciocínio...
Apelo
inútil!
A
febre vertiginosa e abrasadora do desejo empolgou-me com tal violência, que me
paralisou a razão, violentando-me a sucumbir...
Triste e humilhante verdade, que o ciúme, ideia de que outros cobiçam o que nós possuímos, e até o conhecimento da própria infâmia, em vez de serem para o homem motivos de afastamento, compaixão ou nojo, se transformem em novos agentes da paixão que o devora...
***
A
manhã rompia alegremente, enchendo de uma claridade suave o aposento, quando
Marta acordou do seu torpor, na plena consciência do que se passara na véspera,
e ergueu para mim, timidamente, os seus belos olhos suplicantes, que cobri de
beijos, concedendo-lhes não só o perdão que imploravam, como pedindo-lho também
para a minha injustiça e para a minha fraqueza.
Compreender
é perdoar, como disse a Staël.
E
eu acabava não só de compreender que há na natureza humana instintos a que é
impossível opor por muito tempo os estreitos diques do dever, e encerrar para
sempre nos acanhados limites do convencionalismo, como também de sentir a impossibilidade
de lutar contra uma tentação obcecante.
Se
há em todos nós duas partes distintas, uma superior, que emana da alma e nos
faz amar a virtude e o bem, a outra inferior, que emana do animal e nos obriga
a praticar os atos mais repulsivos, como exigir de uma mulher, enfraquecida por
hereditariedades mórbidas, produto híbrido de uma civilização decadente, cuja
vida psíquica é constantemente perturbada pelas crises da sua vida fisiológica,
o equilíbrio que deverá corrigir a obra da natureza, quando nenhum de nós,
mesmo dos mais superiores, se pode vangloriar de possuí-lo em absoluto?
Seria
mais do que desumanidade, seria estupidez ou demência.
Só um tolo, ou um malvado, por inépcia, ou por lhe faltar a santa religião da dor humana, ousaria negar o perdão e cuspir todo o seu desprezo sobre Marta Sandomil.
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