J. MORENO
I
Um romance fúnebre em duas palavras.
O herói é um rapaz comme il faut.
Isto vai assim a modo de coisa interessante.
Livre das canseiras universitárias, e farto de
combinar e de ruminar com engrilada mestria leis duma legislação rancida e
cediça, J. Moreno busca recuperar em Espanha os redenhos derretidos nas
momentosas esburgações da inteligência.
Viaja com o pretexto plausível, e nada pedantesco,
de recrear o espírito nesse vasto museu de antiguidades, entregando-se, ao
mesmo tempo, à vida, que lá se saboreia, tão livre, tão cavalheirosa, em tudo
tão diferente desta vida monótona, que arrastamos nós outros pobres diabos de
portugueses.
Aos sábios deixa o cuidado de revolverem o pó de
séculos e as ossadas dispersas das nacionalidades extintas na ímproba fadiga de
interpretar nas lápides, no soco dos pedestais, na frontaria dos decrépitos
edifícios, nos pórfidos e nos bronzes troncados os quase apagados
hieroglíficos.
Por si, o epicurista, antevê miragem de menos
custoso acesso, onde o mel jorra em cachoeiras e anda a rodos o amor.
Não lhe levou a bem a viagem o providente pai,
cioso da sua prosperidade, e interessado, como estava, em fazê-lo proprietário
duma cadeira em S. Bento, e seu colega nas facetas competências parlamentares.
Os eleitores, tomados de simpatia pelo novato
bacharel, e cientes de que desabrochava nele fruto para muitas esperanças,
ralharam impertinentes a princípio, mas tiveram de contemporizar, vencidos das
razões, sem réplica, que lhes foram apresentadas.
A compleição de J. Moreno, sobremaneira ofendida pelas
diurnas tarefas de escola, requeria acima de tudo descanso e distrações, para
que tão de golpe se abalançasse às complicadas barafundas da política, e da
mofina política da nossa terra, que mais é. Aceitando com precipitação o
mandato, que queriam confiar-lhe, não só ia lesar sua saúde e créditos, senão
também, e principalmente, os interesses dos seus estrênuos amigos; porquanto,
postando-se na brecha antes de estarem madurecidas e bem sazonadas as ideias,
que apenas levedavam, tinha por sem dúvida que vacilaria em toda a escaramuça,
que acaso provocasse. Assim, devendo por algum tempo entregar-se a um pleno e
suave repouso de intelecto para dar azo a que mais e melhor se arraigassem as
sementes de boa medra, que com tanto trabalho andara enceleirando, pretendia e
levaria gosto que, dando-o por forro de tão pesado, quanto glorioso cativeiro,
lhe permitissem que se fosse à ventura de viagem até que, criando bojo para
lidar na corrente dos negócios, pudesse pôr suas aptidões e seus serviços à mercê
de gentes não menos inteiras, que dedicadas.
Formulado por este teor o requerimento, já se verá
como seria o despacho.
J. Moreno sabia um pouco de viagens. A propósito
tinha lido, a esmo, desde o viajante científico mais remoto até ao moderno
imaginoso folhetinista.
Heródoto, Anacársis e cem nomes, em cima destes, se
os não conhecia como às próprias mãos, conhecia-os, pelo menos, dos catálogos
das livrarias.
Sabia um pouco de viagens. Não há que duvidar.
Contudo não se afastava sequer uma linha do sistema
negligente, que para si traçara.
Vá quem quiser bater à porta das cidades
monumentais carregado de bibliotecas e utensílios acomodados à escavação de
ruínas; espreite os edifícios por dentro e por fora; observe; estude; apalpe;
reúna pecúlio de anedotas pícaras, e invente as que o gosto aconselhar; cada um
consoante as proporções e a índole do volume, que traz incubado, que no entretanto,
lépido, como uma cotovia em manhã de rosas, lá vai o meu J. Moreno por Cádis
dentro.
A Espanha é o país da sua predileção. O porquê não
o saberá dizer. Cuida que vai meter pé no empório da luz. Vê-a engrandecida e
romantizada pela história. O sangue do agareno ardente ainda correria nas veias
azuis das flexíveis manolas; das manolas, cuja volubilidade floresce no
trajo aéreo, com que se arreiam.
O trajo, como o estilo, revela a índole de cada
ser. Sob a diabólica mantilha, volitante e inquieta, há de alvoroçar-se por
força um peito temperado ao calcinador influxo das sensações frenéticas.
As vestes curtas, pelo joelho, são como as asas
vaporosas duma borboleta. E não se negará este caráter de borboleta a essas
poéticas criaturas. A perna fina, torneada e lesta, semivelada pela malha rara,
ou antes pela rede da pérfida meia, tende a dobrar os carnais apetites,
aumentando o lustre da epiderme rosada e transparente.
Nisso está o capricho da mulher coquette.
Mas, bem como muitas vezes em recendente alfombra
se esconde venenosa serpe, também, se revolverdes as pregas daquela meia, que
vos perturba, lá encontrareis, sem dúvida, aguçado punhal. E tomai conta, que é
ele tão pronto em punir um insolente, como são prontos os lábios, tisnados pelo
cigarro e pelo vinho, em despedir um beijo de amor espanhol.
Nesse notável conjunto reconhece-se a manola.
As manolas,
as manolas! Aí está a magia, que o
arrasta.
Sem embargo, demorava-se pelas bibliotecas. O que
por lá fazia não sei eu. Todavia apostara cem contra um em como decerto não
pensava em tirar esferas do caos como praticou o Arquiteto Supremo, e como as
tiram da cabeça vários mancebos de tesa razão, nossos conhecidos; nem tampouco pensava em fazer que dum sopro animador se erguessem do lixo as raças, que nele
se amortalharam; em ler nas abóbadas dos templos; na arquitetura dos palácios;
na estrutura das fortalezas; no alinhamento das ruas; em ler no livro colossal,
escrito em caracteres de mármore e de granito, assim como quem lê na popular Cartilha do Senhor Padre Inácio, que é
obra de tanta substância no chorume, quão pequena no modesto formato.
É certo porém que ao passar no Escurial, ponha-se
um exemplo, podia como Quinet atribuir aquela sombria arquitetura ao nada menos
sombrio caráter de Filipe II. E, desta forma, fazer crer que lera na pedra isto
que, de há muito, anda nos livros.
Não o levava para aí a vocação. Pouco curava de
arquiteturas, e de suas classificações. Ou fossem jônicas ou coríntias, desta
ou daquela era, contanto que se harmonizassem com o sentimento do belo, que,
mais ou menos desenvolvido, não falta em nenhum homem bem organizado, nelas se
absorvia, não investigador, mas curioso e amante.
O mesmo a respeito das mulheres e do vinho.
Eram elas gentis? Davam com os lábios vermelhos,
abertos, úmidos, beijos pecadores, capazes de condensar num só indivíduo toda a
luxúria dispersa num convento?
Era o vinho perfumado e saboroso? Que importava
então que lhe chamassem málaga, ou xerez?
Não tinha gozado. E enleava-o a falsa ideia dos
prazeres, de delírios e de aventuras.
Quem buscar aventuras vá ao país de Cervantes.
Mas é de razão que se diga neste ponto que J.
Moreno tudo pautava pela prudência e assisada cautela.
Não era contudo sem fervuras de sangue que vestia o
dorman azul-ferrete com seus
passamanes e cordões profusos, metia no curvo bolso a navalha sevilhana,
enroscava à cintura a faja encarnada,
e punha na cabeça o chapéu espanhol para, ao cair do lusco-fusco, ir a qualquer
afamada taverna fazer oblações piedosas à divindade das loucuras no meio de muchachos bailadores, e de provocantes muchachas, ao som plangente das
cigadilhas lascivas, das estrídulas castañuelas,
do tinir dos copos, das juras e das pragas enérgicas.
Adorável nesse trajo. As boêmias do amor
tremiam-lhe nos braços, enrubescidas pelo desejo.
Por outro lado, nos teatros, no circo, nas
tertúlias, nos bailes, onde quer que J. Moreno mostrava a gentileza de sua
nobre presença não faltavam olhares furtivos, nem meneios dengues, da parte das
condessas e das señoritas do tom.
— Muy guapo!
dizia uma, facilmente impressionada de vê-lo.
— Y muy fino!
acrescentava outra, embevecida nas doces palavras que ele lhe dissera baixinho.
As descargas magnéticas começavam. Nas cabeças
tremeluziam os enfeites, e, envergonhados nos colos brancos, ondeavam os fios
de pérolas ao roçar veloz dos leques faladores.
Excedeu Lovelace. E, atravessando a Andaluzia,
caminhava com o vagar de quem muito lhe pesa desprender-se do palco de suas
ovações. O primeiro proscrito não deixara com maior saudade o paraíso.
Cheio de recordações gloriosas e afetivas, que em
letra redonda dariam matéria para um volume de oitocentas páginas com retrato
do autor, dedicatória a uma celebridade da época, que usa do democrático “tu”
com os amigos, e não sei que mais, dirigiu-se por Toledo a Madrid com tenção de
penetrar em Galiza, e descer pelo norte sobre Portugal.
Saiamos-lhe pela frente em Lugo, que é esta a arena
do espetáculo.
Em tendo reparado os estragos da viagem, parte J.
Moreno em demanda da amabilíssima família Franco y Puente.
Em Madrid estreitara amigáveis relações com Don
Jacobo de Puente, cavalheiro da primeira jerarquia castelhana, que, em virtude
de avantajado ministério, qual era o que professava, se mantinha
provisoriamente arredio dos seus. E tão boas foram as relações, que, ao tempo
de jornadear o mancebo para Galiza, lhe fez oferta Don Jacobo duma gentil
carta, de cordial apresentação, com aquele charlatanismo palaciano, que não
pouco estrema a sua raça. Era para sua mulher a carta.
Ora é de saber que o cavalheiro tinha uma filha, e
que esta donzela nada menos era que a preciosa pérola de Lugo.
Temos pois reunidos os elementos para o nosso
romance. O ponto está em fazer intervir os maldosos adejos do vendado.
J. Moreno é recebido pelas damas com a galanteria
ruidosa com que nas salas se recebe, em Espanha, um forasteiro do seu tomo.
Petra, chamava-se Petra a donzela, por cartas do
pai estava de prevenção familiarizada com o feliz viajante.
Todavia não o fitou sem embaraço. Aquele idioma do
mancebo, aquela simplicidade de trajo e maneiras, aquela esquisita delicadeza,
aquele caráter de filho doutro povo, isto mesmo, que com pouco se atesta um
espírito feminino, já de si tão cheio de quimeras esplêndidas, abismou a ingênua
menina numa confusão de ondeantes imaginações.
J. Moreno não foi mais forte. E, para encurtar
razões, poderíamos inspirar-nos nos termos gastos da circulação, em que começam
os ordinários bilhetes de amor campesino, ou de meia-tigela: "Vi-te e amei-te.”
Viram-se e amaram-se. Aí está a verdade nua e crua,
sem o luxo das lampejantes frases do ritual, que apenas serão de primor para
enfeitar ficções, e aplanar feias gibosidades.
Ao terceiro dia já Petra considerava J. Moreno como
de casa. Não dava pelas horas em que devaneada, com o corpo ligeiro, todo
quebrado sobre o ombro do mancebo, com ele vagamundeava por sóis e estrelas,
chilreando na arrebatadora melodia daquela língua, que, vibrada por mulher nova
e linda, é mais que música de arcanjos.
A serpente voluptuosa dos ardidos sentimentos,
insinuando-se branda, prendia-os então nas elásticas roscas, e ia-os apertando,
apertando docemente, até que alheados, mudos, um em frente do outro, quase
sufocavam de gozo. Vazava-se-lhes nos seios, em estos de vida, o licor fatal,
que produz a embriaguez dos sentidos, o desfalecimento mórbido do coração, o
delíquio dos insanos amores.
Uma fusão moral. J. Moreno desapareceu na risonha
imagem de Petra. Petra unificou-se em espírito com o seu loução caballero.
Era para notar-se o orgulho de desafio, com que o
mancebo a distinguia nos passeios, entre milhares de apetitosas formosuras.
Esbelta, bem torneada, fresca como uma açucena,
leve e travessa como uma fantasia airosa, Petra irradiava luz, animação e
júbilos em torno de si.
Ninguém melhor do que ela, nem com mais subtileza
de donaire, rojava a seda abundante dum vestido, ou se envolvia na estofa
transparente do seu pequeno xale.
Ninguém com mais primor levava os dedos pelas
teclas dum piano, ou entoava com mais vibrante e magoada voz alguma canção do
seu querido Trueba. Se porém, num sentimento agudo de tristeza, falava de olhos
baixos, rubra a face, em burburinho manso e lamentável, como arrulho de
amorosas pombas, da estreiteza de cena a que as egoístas sociedades se apraziam
de condenar a mulher, não sei, eu não sei como não fremiam os astros em
uníssona aclamação.
Cada sílaba era uma nota perdida da infinita
harmonia, que, ferindo a um tempo no ouvido e no coração, lançava J. Moreno em
torporoso desmaio.
Uma camélia purpurina e fresca, como seus lábios,
precisamente moldados pelo quilate da tentação, constituía o adereço predileto
da negrejante coma de Petra.
Simples adereço.
Mas aquela cabeça erguia-se acima das outras,
luzentes de pedraria, como a cabeça duma rainha num cortejo de vassalas.
Cale-se a atrevida filáucia da ignorância. Cale-se,
e não deturpe o que não conhece. Cesse de falar de Galiza, e das galegas com
lerdo desdém.
Galega! Como à força de estuprado, na boca da vil
canalha, nos parece grosseiro aquele nome adorável!
Em luxo de mulherio, far-me-ei campeão da ideia, é
Galiza a única temível competidora da vitoriada Andaluzia. Não é asserção
gratuita. Anda aí patente em obras de bojo e crédito. Voto até que a Galiza se
avantaja.
Se além, para o sul, ferve e ondeia mais requebro,
mais salero e mais denguice; para o
norte há mais magnificência de contornos acabados, frescura, colorido, rijezas
de carnadura e decididas aptidões para atingir a maternidade.
Já meus pecados me levaram a esses jardins boreais,
e, por mim, confesso compungido que por lá deixei feita frangalhos esta coisa,
moralmente insignificante, que chamam coração.
Vamos porém adiante com o recado.
Passaram sete meses. J. Moreno esquecera-se de si,
da pátria e dos penates. Vivia em Petra. Que não se estranhe a dicção. Há
destas vidas assim.
Senão quando, como um corisco, chega uma carta de
seu pai. Lacônica, fria e cortante, qual severo remoque de professor,
quebrou-lhe as ilusões, e lhe recordou que acima dos sumarentos manjares do
gozo individual assenta o dever.
Era mister partir.
Mas Petra? Partir, sem gostar as primícias
inefáveis de seus queridos arroubados amores! Partir, sem que uma só vez, em
solitário retiro, salvo dos repelões insofridos dos impertinentes, lhe fosse
dado vazar no peito dela o muito, que no seu tinha, e delatar insano a fervura
de áureas quimeras, que lá lhe revoluteava! Falecia-lhe a coragem.
— Petra! porque não hás de consentir?…
Em voz de moribundo suplicava o mancebo. Era de
joelhos que suplicava.
Titubeou a menina, pálida de desânimo. Recebê-lo no
seu quarto! Só! com o amante? Perigo imenso.
Ele insistiu, a princípio brando, e com ardimento
depois, já pondo razões em campo, já queixumes, já sarcasmos, até que,
arredados os embaraços com encantadoras promessas, se aprazou a entrevista para
a meia-noite.
Estrugia a voz clangorosa do sereno, apregoando essa hora de bruxedos e infernais sinédrios, e
já, cosido com a sombra, passava um vulto ao longo da casa de Don Jacobo de
Puente, em cujo mirador se desenhava
uma forma branca, vaporosa como subtil nevoeiro fantasticamente condensado.
— Petra!
— Moreno?
Foram vozes perdidas no ciciar do vento.
Num abrir de olhos estava J. Moreno no mirador. Dá-nos asas o afeto.
Petra pôs o dedo nos lábios a impor silêncio, e
fez-lhe sinal de a seguir de mansinho.
Oh que palpitar de corações! que estremecer de
receios! que melífluos arrulhos de pombas meigas!
Estamos na câmara da donzela. Não sei que estranha
narcotizada atmosfera se haure aqui. Donde vem este singular perfume, que
entibia e tão docemente paralisa os movimentos?
A câmara, o desalinho da câmara duma mulher moça e
galante esparge certos olorosos eflúvios, que aboboram. A confusão das fitas e
das rendas sobre uns móveis; as cristalinas redomas das essências, os colares
partidos, os pentes com escama de carbúnculos, mil pequenos cofres com seus
gentis embutidos, as flores artificiais na mesa do toucador; aqui umas luvas
amarrotadas, mas frescas e cheirosas; acolá um álbum; além um ramalhete
ressequido sobre um livro de versos; no açafatinho, ao pé da janela, a holanda
dos bordados; inúmeras enfim, inúmeras etéreas insignificâncias, mostrando
nesse adorável caos como que um segredo de combinações simpáticas, que não se
define, que se não diz.
A cortina de seda escarlata, ao de leve franzida,
expõe em doce penumbra, lá dentro, na alcova, o virginal leito da espanhola.
— Petra, Petra! balbucia J. Moreno, abafado de
comoção, e estreitando-a nos braços.
Ela, gelada e lívida, parecia destituída de
entendimento e de vontade e força para soltar um queixume, ou fazer uma
recriminação. De braços pendentes, velada a vista, e trança desatada deixa-se
conduzir entorpecida, morta, acusando existência apenas nas ardentes lágrimas,
com que envenena os lábios do amante.
— Petra! continua ele com penosa respiração,
sentando-a sobre o leito, que alma é a tua, que se não expande aqui com a minha
nesta alegria, que me endoidece? Petra! fala, ama-me! abrasa-te neste fogo, que
me carboniza, e morre na delícia, que me mata.
As faces da donzela purpureavam-se. Passara a
síncope. O coração, em sacudidos estremeções, reclamava mais ampla liberdade.
— Fiz mal, diz ela com doçura triste, só agora
conheço até que ponto levei a indiscrição de te receber nesta alcova à hora em
que a embriaguez se balouça nas auras tépidas, e em que os misteriosos
espíritos, entre as flores, murmuram harmonias, que nós sentimos, que só nós
compreendemos, mas que nos entontecem. Fiz mal. Este cheiro dos lírios do meu
alegrete, este cheiro não sei que morbidez me comunica… Tenho medo de mim.
Moreno, salva-me! vai-te. Adoro-te. Que loucura! Eu não devia aceder. Não pude
dizer-te que não viesses. Agora diz o que me queres tu, que me tornaste mais
submissa do que uma escrava.
— Que te quero! Que posso querer, minha vida, senão
isto, fartar-me de ver-te, esmorecer no teu regaço?… Que posso querer senão
zombar da eternidade, em êxtase a teus pés, e, avaro, escondê-los em meu peito
como um tesouro, que me custasse sangue, remorso e honra?
— Vamos, Moreno, tranquiliza-te. Marquemos trégua
às frases sonoras, embora sejam pintura exata dum sentimento enérgico. Há
momentos que decidem de destinos para que se desbaratem. Frieza, frieza!
— Queres porventura que eu diga à paixão vigorosa e
temerária que se modere como calcula a razão? Não sabes que fiz das minhas
esperanças uma esperança só, das minhas ambições de glória uma só glória, que
todo me encarnei num desejo único? Sê tu minha, que eu desprezarei o resto. Se
me traísses arrancaria os olhos para não tornar a ver-te. Se morresses dava a
alma ao Inferno porque morreria desesperado. E queres tu que o doente em febre
não tenha sede? Frieza, Petra! E tem-la tu?
— Oh, Moreno!
Ressoou um beijo. Os rostos afoguearam-se.
— Vou deixar-te. Chamam-me longe daqui imperiosas
necessidades. Desprezara-as eu todavia, sem a certeza de que vou enobrecer o
teu esposo. Não me dói partir. Doía-me na alma não levar um penhor, que me
assegurasse da tua posse. Para o implorar é que vim ter contigo. Amas-me,
Petra?
— Não o sabes tu?
— E se eu tardar um ano?
— Esperarei.
— Se tardar dois anos?
— Esperarei.
— Se não vier nunca? Se os meus passos guiarem ao
cemitério?
— Esperarei ainda.
— Juras?
— Pela Virgem.
— És minha!
— Tua, tua!
Estava de joelhos J. Moreno, e tinha os lindos pés
da espanhola nas mãos desinquietas e atrevidas. Como por descuido afastaram-se
um pouco as vestes, e ficou também exposto a seus audaciosos beijos um traidor
começo de perna, recatado na malha fina da meia de seda.
Mais alto quis levar a impertinência, mas,
humilhado, voltou atrás na tenção.
Petra, firme, em pé, majestosa, bradou-lhe irada:
— Não me impestes, lacaio.
O moço atribuiu a derrota a pudendos melindres da
virgem.
— Perdão. Enlouqueci. Perdoa, Petra!
E, como ela se embrandecesse negligente, extinguiu
a luz, esperançado em levar de vencida a fortaleza com violência suave.
— Minha! murmura desorientado, minha, minha, para
sempre!
Cuidando abraçá-la encontrou o vazio. Rangeu uma
porta interna, abrindo-se com rapidez, e por ela se escoou uma sombra.
— Villano!
exclamou indignada a fugitiva com tremuras na argentina voz.
J. Moreno definhou de espasmo na solidão do quarto.
Achara afinal uma mulher forte. Por mim estou convencido de que, se catássemos
bem todos os refegos desta bola, sobre a qual lazeramos, algumas mais
enxergáramos. E estou convencido, porque não pertenço à raça danada dos
cepticozinhos, que borbulham de cada esquina, e fazem ofício e chiste de
duvidar das coisas menos duvidosas.
Ao outro dia o nosso desapontado viajante, arranjadas as malas, curou de ir fazer seus
cumprimentos de despedida às senhoras.
Borboleteavam elas no parque com um rancho de caballeros e señoritas, que haviam chegado de visita. Lá foi dar J. Moreno com a
familiar franqueza com que costumava praticar. Pálpebras azulejadas, sinistro
fulgor nos olhos, gravidade fatal no todo, tal se apresentou à companhia.
— Venho contrito, diz, aproveitando a oportunidade
que Petra, apoiando-se em seu braço, lhe oferecia.
— Proíbo que falemos nisso, devolve ela com riso
encantador.
E foram conversando por detrás do leque em toda a
extensão daquele ameno passeio.
Não sabe o leitor como é esta casta de segredos por
detrás dum leque? Oh, então, por Deus! não queira estirar-se na cova, sem que a
interprete em Espanha. Parta. Se lhe não superabundam rendas, se não há
supérfluo em sua casa, venda. Venda a mansarda de seus avós, venda a valente
junta de bois, venda-se a si e aos bois. Mas vá, corra, quebre uma perna no trajeto,
quebre ambas as pernas, e diga como César — venci!
Depois, como viola gasta e destemperada, pode
esmigalhar a cabeça num marco do caminho, que tem cumprido um sacerdócio.
Cada ondulação do leque põe em movimento centenares
de alados gênios, que volteiam férvidos em frouxos cambiantes; abrem-se os céus
em torrentes de luz misteriosa, e a corola aveludada das flores, como
incensório, que nos endeusa, perfuma o espaço, destilando balsâmicos aromas. As
palavras então são como os suspiros dos anjos, e a alma atira-se arroubada, num
vislumbre da eternidade, por toda a natureza.
Ditoso J. Moreno!
É de saber que, se todos os dialetos adotados em
Espanha têm suntuosidade de palavras dulcíssimas e musicais, a palavra "cariño!” é a que, por excelência, mais
enfeitiça um ouvido, vezado às saborosas melopeias do amor. Eu, que certamente,
por minha desventura, palmilho em plana rasa, confesso todavia que não
encontrei muchacha de boa laringe,
que me não fizesse estremecer com tal melodia. E nisto concordo com o amigo J.
Moreno de chorada memória.
Julgue-se pois do muito, que por si exultaria,
ouvindo-a a cada passo e como que vendo-a cair, com forma e cor, duma boca
vermelha, recendendo a rosas.
Estão perto de casa. Damas e cavalheiros começavam
a entrar no vestíbulo.
— Adeus! proferem os dois, apertando-se com frenesi
as mãos.
Era pouco o aperto de mãos.
Olharam ao mesmo tempo em roda. Nem viva
testemunha. Caíram ao mesmo tempo nos braços um do outro como por tácita
convenção. E, ao mesmo tempo, se uniram os lábios abrasados.
Era a simpatia das almas.
Após este idílio veio o ditirambo, um ditirambo em
prosa. Tomaram chocolate em família.
Mas é que aquele chocolate era para inspirar
trovadores, como o sapato duma andaluza, como a papoula dos vales, como o poejo
dos montes. Terpandro, que o lambujasse, ainda outra vez reformaria a lira,
acrescentando-lhe mais uma corda.
Afinal, quebrem-se de dor os corações, mas é mister
separarem-se. Como cavalheiro e cortesão se houve J. Moreno. Aceso o seu
havano, ausentou-se magoado.
Petra e sua mãe saem ao balcôn para mais de espaço o verem.
Vai no extremo da rua. Volve o rosto, saudando-as.
Elas agitam os lenços de nevada brancura.
Desaparece.
E Petra cai desmaiada nos braços da aflita mãe.
II
J. Moreno é recebido no lar paterno com
contentamento, ressabiado todavia de acrimônia. O moço havia comprometido a sua
eleição de deputado pelas delongas da viagem.
Mudada a face, que a política afetava na ocasião de
se ausentar, vinha encontrar o partido governamental esmagado debaixo da
pressão enérgica dum punhado de homens exaltados da oposição.
Parece que de razões passaram no parlamento a vias
de fato.
Um deputado insofrido tinha espalmado um escarro na
calva do mirífico ministro da Fazenda, porque o pobre homem lhe desatara, com
sério detrimento para a sua pessoa respeitável, uns argumentos sem nervo, nem
conceito.
Seguem-se as negociações da praxe, com o fim de
restabelecer conspurcadas dignidades.
O ministro, cavaleiroso na gema, implora e invoca a
ossaria de trinta avós preclaros, e faz, de mão erguida, um terrível juramento.
Jura pelas cinzas de sua avó materna, por ser a mais ilustre das avós, que se
bateria em duelo a todo o transe, a ponta
de lenço até, se não fosse o respeito, que nos seios da mãe bebera, pelas
leis vigentes do Estado.
— Que assim mesmo, prossegue, esbravejando entre os amigos, que o consolam; que assim mesmo não serão menos temíveis os raios da sua vingança, pois que está resolvido a propalar no universo a injúria, que lhe fizeram.
Je veux résolument me venger du larron.
Déjà, pour commencer, dans l’ardeur qui
m’enflamme,
Je vais dire partout qu’il couche avec ma
femme;
tinha vociferado, tempos atrás, o Sganarello nesses três versos de
Molière.
Principiam represálias. Saltam à tribuna campeões
egrégios. De voz em grita vazam pela boca fora pestes e incêndios. Chovem
impropérios, cada vez mais arrufados, que hão por bem, afinal, desandar em
saraivada de miúdo bofetão.
Um senhor deputado puxa o outro pela guedelha. Este
segura-o pelas barbas honradas. Muitas vozes gritam — escândalo! vergonha!
As galerias tremem com as gargalhadas da
soldadesca, e dos outros digníssimos espectadores.
Saltam para terreiro certos periodistas, que não
perdem ensejo de aguçar o escárnio, arrepiam o fato, espremem-no, adelgaçam-no,
viram-no dum para o outro lado, e acabam por se tirar os chinós, e expor ao
soalheiro as lavadas calvas para, sobre elas, espatifar vilãs frases de
histriões de meia-tigela.
Dissolução de câmaras. Eis a necessária
consequência.
Um murro puxado de dentro, certeiro, pindárico,
seria para esboroar um castelo roqueiro, quanto mais um ministério, que,
segundo a ordinária rotina, se baseava em projetos, ou quejanda papelada.
Neste burlesco espernear da coisa pública é que J.
Moreno desceu de Lugo. Mas já então o círculo, em que punha mira, estava mais
que muito bem aforado.
Um abade das cercanias, astuto e ambicioso,
valendo-se da ausência do moço, foi de secreto urdindo a intriga, de há muito
fermentada, voltando em seu favor as coisas; abordoando-se a todas as
estratégias proveitosas; nada poupando, em suma, que pudesse porventura bem
assombrar sua causa, até que juntou corpo de sequazes assaz formidável.
Não foi porém sem custo de muita lida e despesa.
Fez primeiro de sua casa um hospital de inválidos,
uma casa de beneficência, em que cada qual entrava e tomava a bel-prazer do que
gostasse. Esqueceu na porta da adega a trambolhuda chave para não andar sempre
com ela no carreiro da formiga. E, sobre um tonel de bojo simpático, pôs um
cesto, mimoso de queijo e lourejado pão. O queijo extraía-o, por economia, do
leite das suas ovelhas. O pão, também por economia, andara antes ao soalheiro
para que secasse, e se fizesse duro e refratário, não só aos dentes roazes dos
eleitores, senão também aos dentes das petulantes ratazanas. Mas não devassemos
os arcanos do abade. Basta saber-se que, se deu em pantana com um invejável
patrimônio, não ficou mal compensado do sacrifício. Porque, vergalhando a
gafada Senhoria, que anda nestes reinos como coisa lazeirenta, fez jus a ser
tratado de Excelência. Tal e qual como um caixeiro taful, que se enchouriça em
louçainhas, que furtou ao amo.
Ditoso abade! Ter cadeira em São Bento vale bem uma
ruína, e fica ainda a Excelência.
O respeitável pai de J. Moreno, havendo tateado o
negócio, embicou no triunfante servo do Senhor, e retirou-se prudentemente do
campo, que mais convém uma retirada airosa do que destroço certo.
Em conclusão, resignou no filho a própria
candidatura.
Eis como J. Moreno madrugou deputado.
Durante esta efervescência de baixos interesses,
sucediam-se as cartas de Petra cada dia mais apaixonadas.
Amiúde falava no cariño com que lhe queria; nas saudades, que a devoravam; e no medo
de o perder, e perder com ele os fantásticos jardins, que das nuvens
cor-de-rosa suspendia. A romana tornara-se odalisca. Atiçara a distância as
labaredas da paixão. Não queria agora senão pertencer-lhe. Sofria penas e
remorsos por se ter vencido, por ter esmagado um desejo natural do seu coração
debaixo da estultícia de duas fórmulas artificiais.
Que volvesse quanto antes, era a súplica constante,
que volvesse às meiguices da sua amiguita
de Lugo, pois que lhe prometia gasalhá-lo agora sem fazer seleção entre o
mavioso nome de amante, e o nome sacratíssimo de esposa.
J. Moreno balouçava-se no delicioso pungir de acerbo espinho, como Garrett, esse flexível
engenho, que tudo sabia dizer, teve artes de chamar à saudade. Em Petra cifrava
o alvorecer da sua primavera. Quanto batesse fora do círculo, em que lhe
erigira um templo, enchia-o de tédio e parecia-lhe indigno de si, e indigno dela.
Suas cartas eram verdadeiros poemas da mocidade. Regurgitava ali inteira a vida
e a alma duns ardentes vinte anos.
Veja-se nesse espelho, leitor, e, se já não tem
dentes para morder o cartucho, nesta refrega doidejante, console-se comigo,
embora a água cresça, que farte, na desdentada boca.
Mas quer o destino que as exaltadas paixões não
sejam as mais duradoiras. Quando é excessiva a flama consome-se na própria
força, e o tempo como que varre sobre elas as lavas frias, que a cratera
arrojou de si.
Nas conjunturas, em que se viu apertado o mancebo,
tornava-se mister reprimir os voejos da alma, para que não caísse esfarrapado
no pó movediço, que em torno gorgolhava, o pendão, que desenrolara. A braços
com as labutações eleitorais, em que as misérias revolitam em formidáveis
cachoeiras, aguçam-se os melindres do amor-próprio. A par dos ditos do inimigo
derrotado, o mexerico ignóbil dos invejosos, a intriga pequenina e chata, dos
chatos confeccionadores dessa peçonha, azaram a J. Moreno uma armadilha, em que
se amarrou o amoroso para, chã, inteira e estéril de sentimentos extáticos,
ficar a individualidade política.
A política calcina e disformiza. J. Moreno, neste
borbulhar de peripécias incessantes, aos primeiros haustos de ar sorvidos nesta
corrupta atmosfera, bem percebeu, e com assaz de tristeza, que outros atrativos
iam furtando a Petra o que para ela só desejara impoluto.
Suas cartas perdiam gradualmente o calor, que
parecia aviventar o papel. Iam sendo calculadas, quase como artigos de fundo,
até que se tornaram raras, e, além de raras, sobremaneira concisas.
Já então se equilibrava na corrente dos negócios.
As divinas cartas de Petra ficavam, as mais das
vezes, esquecidas na papeleira, entre a petição interessante dalgum eleitor e
os apontamentos para um discurso parlamentar, ou coisa assim romântica.
Um lance de olhos sobre o caráter, que o nosso
herói assumiu em S. Bento.
Silencioso e modesto perdeu-se entre os barulhentos
gárrulos, que habitualmente revoluteiam, tão prontos em dar sentenças, como
inconsiderados na escolha de acertadas opiniões.
A pérola sumia-se em golfões de espuma.
A obscuridade, senão também o desdém, é o galardão
ordinário com que se premeia o verdadeiro merecimento, sempre moderado, e cheio
de estima pelas inteligências alheias.
Vindo porém à discussão uma dessas questões de sumo
alcance, que os oradores de fêvera estrangulam com palanfrório e gestos de
atemorizar os Mirabeau pretéritos e futuros, J. Moreno, depois de escutar
quanto se diz de frívolo e arrebicado, malgrado seu, pede a palavra. Malgrado, porque, tendo-se de antemão tomado o pulso, sentia carência de
fôlego para entrar na liça.
Os deputados veteranos, que o lobrigam na tribuna,
arregoam os beiços num riso precioso, encolhem os ombros, piscam-se os olhos e,
de arma à cara, entalam-se nas cadeiras.
— Isto é um suicídio moral, blasona o mais
compadecido.
— Tirem-no dali, devolve outro.
— Ditosa pátria! Já os infantes arredam a boca dos
peitos da mãe para erguer brado em prol das utilidades públicas.
— Juvencus,
juvencus!, acrescenta um jurisconsulto, arrebanhando todos os latins, que
aprendera nos bons tempos, que não voltam.
— Ouçam, ouçam.
J. Moreno, no entretanto, refaz-se de coragem. O
fogo sagrado faísca nos olhos da sibila. A verdade acesa e diáfana, que lhe ia
animando progressivamente a palavra, reboou no espaço em argentinos e varonis
acentos.
Ondeou um burburinho de surpresa.
Alguns dardos todavia lhe foram arremessados. O
mancebo apanhou-os no ar, e, devolvendo-os aos agressores, chumbou-lhos nas
goelas com gentil urbanidade.
Aplausos.
Não os estimou ele, nem tampouco os desatendeu. O
homem, e suas pequenas vaidades, não estava ali. Em seu lugar encontrava-se o
pensador circunspecto e independente, que tem como fim exclusivo depurar a
verdade. Mais nada. Desfiando com vagar e jeito o enredado da meada,
introduzindo em cada treva um raio de luz, leva consigo a câmara num rapto de
inspiração, e conquista a geral simpatia.
Foi um triunfo.
Lastimo não ter à mão a folha oficial, porque
estimava amaciar o paladar ao leitor com dois dedos daquele mel substancioso.
Assim, remeto-o para o Diário de…
Não me lembra agora o número do Diário, em que vem o discurso. Paciência.
Conta-se até que um morgado, descido lá dos montes,
fora expulso das galerias por causa duns “bravos!” altíssonos, que semeara pelo
meio do arrazoado adiante.
J. Moreno senta-se vitoriado pela câmara em peso.
Pasma das mostras de consideração com que o constrangem. E, fechado consigo,
pergunta se aquela gente estará tomada de demência, ou se, com efeito, existirá
em si algum veio de ignorada riqueza.
Duvidava.
O truão, que um dia se viu de luva branca, não
duvida jamais da sua fidalguia. Pelo mesmo teor o pedante arrepiado, que se
aparelha de berloques, como o aventureiro, que, por um acaso propício, conseguiu
agigantar-se num país de pigmeus.
Com vento de feição, seguiram as glórias de J.
Moreno.
Andava num rodopio vivo de casa dum ministro para
casa doutro ministro. Todos o queriam. Cada parcialidade o namorava com negaças
de primor. E, em resultado, por pouco me não estragavam o rapaz. Pespegaram-lhe
na cabeça a vertigem das ambições, e embriagaram-no em promessas dum futuro
luminoso.
Embriagaram-no! E é de saber que é este o meio de
fazer pecar um justo. Do ébrio tira-se facilmente um criminoso.
J. Moreno conservou-se ilibado. Porém o amor da
glória varreu-lhe do coração as últimas queridas reminiscências do amor de
Petra. Era o tufão que enovelava e emurchecia os vergéis da sua mocidade.
O homem é, nem mais nem menos, como um herói de
Shakespeare, ninguém duvide; porque, se derem forma à inconstância, essa é o
homem.
À proporção que J. Moreno se popularizava como
orador, outras conquistas, mais fáceis, e não menos agradáveis, lhe iam
enobrecendo o brasão. Já não aquecia os pés em brasido de lenha comum, senão
somente em bonitos perfumados bilhetes.
Copiemos da vulgarizada crônica dois trechos a
esmo.
Noite velha. Uma carruagem defronta com a casa do
nosso herói. Ele, que está firme, de atalaia, chega-se à portinhola, e recebe
nos braços um delicado fardo. Delicado, tanto quanto é permitido julgar-se pelo
mais fidalgo pezinho do mundo. O pé sempre se mostra ao descer da carruagem.
A dama era uma esfinge. Porque hoje chama-se
esfinge a quem quer que, cauteloso, se rebuça até aos olhos. Prende-se ao braço
de J. Moreno e, lépida e flexível, galga as escadas. O manto cai.
Um rosto angélico, uma face pudorosa!
Ninguém dirá que é a adúltera, que, aproveitando a
ausência do crédulo marido, vem abrir os seios aos beijos dum estranho, que a
colma de lama, de gozo e de vilipêndio.
Mutação de cena. J. Moreno marinha pela escada de
seda, que flutua presa da janela. Recebe-o dulcífica criança, derretida em
carícias. Tem quinze anos. Que pena! E já tão perdida. É a irmã de Benedito.
Apresentemos o homem.
Benedito é o herdeiro presuntivo dumas poucas de
arrobas de mareado e roto pergaminho. E tão fidalgo, que só uma coisa nele
excede a fidalguia: a pobreza. De mais faz profissão de peralvilho e zelador
determinado dos créditos da sua família. Pobre sim, mas sumamente honrado. Antes
quebrar que torcer.
Mísero daquele, que ousou feri-lo no pudor de sua
irmã! Informado do crime, espreita ensejo de o punir. Ei-lo de mão armada com a
temível farrusca do vizo-rei da Índia, seu avô, que, tão bem estreada fora no
costado de condenadas hordas. É o instrumento da vingança.
À sua parte os amorosos, descuidados, longe de
suspeitas e de receios, embevecidos um no outro, exalam meigos suspiros, como tênues
vapores de essências finas; casam as respirações e quebram-se as forças num
soluçar de blandícias ternas.
Senão quando soam vozes, passos, alaridos, na
contígua sala.
— Jesus! balbucia a pequena, inteiriçada de susto.
— Que será?
— Foge! É meu irmão! Um tigre!
Escancarou-se a porta. J. Moreno, cobrindo-se à
pressa com umas vestes da amante, leva mão do revólver e aponta-o ao peito de
Benedito. O tirano recuou enraivecido. E o nosso Lovelace, graças à escada de
seda, conseguiu escorregar para a rua, a salvo de todo o risco.
Voltando em si, não pôde ter-se, que não risse, por
dar com a sua respeitabilidade, passeando ao fresco, no trajo simples com que
entramos nos festins, nada cerimoniosos, da existência.
A honra de Benedito deu-se por satisfeita e
reparada com a sobrecasaca, e com o relógio do mancebo. Não era milionário, e
gostava de se bambalear, Chiado acima, anediado e garrido, que brios de
cavalheiro formiguejavam-lhe solertes no fidalguíssimo sangue.
Estas nódoas galantes, de que J. Moreno ia
salpicando a sua história, não pouco contribuíam para o arvorar em perfeito
homem da moda. Bailava o seu nome no soporífico artigo de fundo, no folhetim,
na boca das nobres matronas, no romance até. Entre o lupanar e o salão não
havia espaço, que não ocupasse. Era o centro para o qual todos os tiros
anedóticos se disparavam.
O que prova, com exuberância magna, que é o
escândalo uma das irresistíveis lisonjas com que se cativa a fama. E com efeito
o escândalo, em vez de ser verberado com espartana rigidez, vale quase sempre
um pregão de louvores.
O velho Moreno, quando ao lugar do seu voluntário
exílio chegava a notícia fugitiva d’alguma gentileza do filho, sentia-se
volvido a mais felizes tempos e como que remoçado. Deve ser grato recordar as
passadas façanhas, e vê-las dignamente continuadas por um filho muito
estremecido.
— Olhe, padre, dizia para o cura, eu sou homem tão
peco em matéria de prejuízos, que me curvo reverente diante das soberanas
exigências da mocidade. Não censuro o rapaz. Quero-o antes assim. Só porque a
este nosso Inverno já não chega uma réstia de sol, havemos de pretender que não
haja Verão para os outros?
— Todavia… a prudência é recomendável.
— Diz bem. Uma coisa me dá cuidado. É a temeridade,
com que, sem ponderar consequências, se extravia, o leviano, pelas ricas searas
da vizinhança. O padre sabe como eu quero àquele filho.
— Se sei! Filho único, herdeiro de seus bens e
títulos.
— Filho pelo nascimento, e filho pelo amor. Fui eu
que o criei, e lhe ministrei os primeiros alimentos do espírito. Minha alma
toda se derramou por ele. Vivo antes nele do que em mim. Também ninguém mais tenho
no mundo.
— Nem precisa. A árvore, que tantos desvelos
custou, paga em flores a dívida.
— É certo. Deus me não castigue este orgulho.
— E chora!…
— De regozijo.
Tinha justos motivos para orgulhar-se o venturoso
pai.
Foram grandes e soados os triunfos, que na tribuna
alcançou J. Moreno. Porém conquistas, como as dele, não se desfrutam, sem que
se tire na duração à existência o que ela dá de sobresselente na distinção.
A saúde do mancebo começou pois a tornar-se
sobremaneira duvidosa.
O trabalho faz por vezes obra de lima surda. E,
quando menos nos precatamos, cai sobre nós uma lousa, e um epitáfio.
Devorava-o febre latente, que pouco a pouco lhe
afogueava os lábios, amortecia a pupila e esverdeava a cútis. Nada apreensivo,
descurou o mal aos primeiros anúncios. Mas, como fosse crescendo, pela gradual
debilitação das faculdades, pela falência da memória, por amarguras incógnitas,
que no íntimo o remordiam, e por uma permanente irritação, rebelde em deixar-se
dominar, determinou pedir conselho à medicina.
Contrapuseram-se as opiniões dos esculápios, até
que assentaram, no fim de certames, que arrepelavam do grego, do latim e de
outras quejandas línguas de sábios e pedantes, que a doença era nervoso
estreme, só capaz de ser gladiada com mergulhos no oceano e bife grosso.
Quis parecer ao doente que os doutores ou lhe
ocultavam parte da verdade, ou se não entendiam com ela; pelo que se foi
consultar um médico, de grande nomeada e seu particular amigo, no firme
propósito de acabar com incertezas.
— Venho sondar a sua opinião, diz, apresentando-se.
Queira dar-ma, doutor; queira dar-ma, sem evasivas, e em humana linguagem.
Intumesceu-se o sábio de imponente solenidade, e
procedeu à auscultação.
— Compreendo, prossegue o moço, notando o ar
carregado, que lhe via assumir.
— Não…
— Franqueza. Estou resignado.
— Na sua idade…
— Franqueza, repito. Vesti-me de bronze para aparar
o golpe.
Concertou o doutor a fisionomia, coçou na suíça,
cruzou as pernas e pôs-se a discorrer.
J. Moreno despediu-se sombrio, como um espectro.
Levava o pai no pensamento, e, no fundo das
entranhas, o fel das incomportáveis dores.
Um aneurisma, engrossando-lhe no coração, pedia
gasalhado ao cemitério para o viageiro enfraquecido.
Esperanças, desejos, aladas ambições de poder e
glória… tudo desfeito, tudo em pó, tudo imolado ao sopro da voraz fatalidade.
Mirradas, tão lindas pétalas, pagam seu feudo ao lixo.
Foi menos forte do que cuidava. Caindo sobre uma
cadeira, dilacerou o peito com soluços, e chorou como uma criança.
É que tinha um pai. E este pai nele acumulava todas
as ternuras, nele cifrava religião, pátria e família. O infeliz velho, sem
ninguém no mundo, sem consolos e sem afetos, também havia de chorar.
Mil vezes venturosos aqueles, que se apodrentam no
comum monturo, sem que tenham experimentado a agonia insólita de verter
lágrimas, não sobre a própria desgraça, pela desgraça em si, mas pela aflição,
que ela acende nas almas, que nos prezam.
Há organizações, que arrostam impávidas com o
patíbulo, que vão para a morte como para um banquete. Dá-se um momento em que
vacilam, tremem, choram? Ficai certos de que não é pusilanimidade, ou apego à
vida. É sim de mágoa e condolência pela dor dos pais, das esposas, dos filhos,
dos amigos.
E que tormento se inventou jamais, que abranja a
suprema amargura daquelas lágrimas?
Responda J. Moreno.
Além disso, por sua parte exclusiva, não pouco
tinha que lamentar o mancebo. Não era o mendigo, que, repelido do meio dos
homens, entrevê afinal uma pousada amiga, e descanso do labor do dia. Era o
Lúculo, que deixa o fausto da sua mesa, o aparato das suas festas, para
aumentar a magnificência do festim dos vermes.
Afagar uma ideia generosa; fundir, encarnar e
circunscrever nela somente o tumultuoso sonhar de todas as noites; aquecê-la ao
bafo inflamado do peito; nutri-la com o sangue mais puro do coração; levantar o
edifício a toda a altura do gênio criador; e, soberbo, radiando júbilos,
volver-lhe os olhos cariciosos, e não enxergar senão a aridez dum solo maldito,
crânios vazios, corpos em pestilencial decomposição, o aniquilamento com seu
pavoroso séquito de fantasmas sórdidos, é tomar aos ombros a cruz de J. Moreno.
Eu mesmo, leitor, que para te dar gosto estou
preparando este narcótico, eu mesmo já de sobra, se bem que em ínfima condição,
me esfarrapei na agrura de iguais cuidados. Por isso os aprecio com tacto de
experimentado. Disse "esfarrapei” porque me não lembra agora outro mais
significativo verbo.
No duro transe reparava J. Moreno em que o evitavam
condoídos os amigos verdadeiros, enquanto que os outros, os refalsados, os que
encontravam nele as vigorosas frondes duma árvore majestosa, à sombra da qual,
rasteiras plantas, não podiam vegetar, lhe saíam de frente com tristeza fingida
a fim de se regozijar no espetáculo daquela muda agonia. Como não queria louvaminhar
os baixos sentimentos dos monstrozinhos, contrafazia uns risos e uns meneios,
que lhe granjeavam o epíteto de homem forte. Todavia, como é de presumir,
minava-o o sofrimento.
Liberto da coisa pública, perseverava na tenção de
regressar à sua aldeia. No adro da igreja suspirava o rústico sarcófago de seus
maiores por mais um cadáver. E, além disso, impelia-o o desejo de acabar nos
braços do consternado pai, e de o fortificar com expressões animadoras.
Ignorava o malfadado que outro revés, mais fatídico porventura, adejava sobre
ele. O martírio tem seus privilégios.
Vejamos.
Sono reparador, embora muito agitado, languesce as
maceradas pálpebras ao enfermo. Um criado o desperta, entrando. Dá-lhe uma
carta.
— Correio? pergunta o mancebo.
— Sim, senhor.
— Bem. Vai-te.
A carta trazia tarja de negro. Sem saber porquê,
tremia ao abri-la. Às primeiras linhas, que abarcou com a vista, amarrotou-a na
desvairada expressão da ira extrema, deixou-a cair, ejaculou uma praga
diabólica, e, numa cruciante crispação nervosa, estendeu os braços contorcidos,
cravando as unhas na parede.
Ficou de pedra.
Depois refluiu-lhe às faces um clarão de esperança,
arquearam-se-lhe os lábios num riso doce, transpareceu-lhe a vida nos olhos, e
desfaleceu suavemente. É que há sempre um talismã no fundo de todas as dores.
Fora o caso que o velho Moreno, prevenido acerca do
estado do filho, só tivera tempo para despedir um gemido, e cair redondamente
morto. Uma apoplexia fulminante precedera a loucura.
Conquanto pareça exagero, trebelham, sem delongas,
destas facécias na farsa de cordel, que debaixo do sol representamos.
E agora que peito aberto receberia o final suspiro
do moribundo? Partir, sem a triste esperança duma lágrima sobre a campa, duma
recordação na terra, duma saudade, duma oração! Fatalíssima jornada!
Espreitando a opima herança, já vê coriscar nas
sombras os olhos ávidos de alguns degenerados parentes. E aterram-no aqueles
olhos.
Porém cintila luz subitânea.
Petra, Petra! Há tanto tempo, com tão feia
ingratidão esquecida, ei-la, como anjo da caridade, a distribuir consolos ao
aflito. Então, ainda lhe resta um seio branco, em que adormentar a cabeça.
A mulher é o único milagroso bálsamo para as
incuráveis amarguras.
III - VAI
ALTA A LUA
Desta arte começa uma sentimental poesia do nosso
chorado poeta Soares de Passos. Começa pois a primor este capítulo.
Vai alta a Lua.
Uma liteira para à porta do solar de J. Moreno. É o
órfão, que vem tomar posse da paternal herança. Apeia-se.
Está um frio cortante. A Lua, toldada de um véu aquoso,
arrasta-se mansamente nas alturas por entre crassas nuvens. Da rama dos
ulmeiros penduram-se grossas gotas da chuva, que miúda caíra durante o dia. E,
nas cavernas dos penhascosos cerros, sibila, de longe em longe, vento gemedor.
J. Moreno sobe a tosca escada externa, que dá para
a habitação. Serve-lhe de amparo o braço dum enlutado escudeiro.
O escudeiro era dantes um desfrutador, que levava o
escudo ao cavaleiro. Sancho Pança levava o escudo a seu amo. Hoje creio que,
pelos modos, tem a seu cargo levar a roca e o estojo da costura.
J. Moreno demora os olhos no crepe negro, que cobre
o brasão da sua casa, e, em pé sobre o balcão, volta-os para as bandas do
cemitério. Suplicia-o a ideia da absoluta soledade.
Entra.
Junto ao fogão lá está a grande cadeira de seu pai.
Senta-se nela lavado em lágrimas.
Por uns vidros quebrados da janela entrava, a
espaços, uma lufada de áspero vento, que fazia crepitar os carvões ardentes. E
o fumo espalhava-se pela sala em contornos móveis e efêmeros.
Era bem recebido na casa paterna aquele deserdado
da fortuna.
Cansado da viagem, confia no repouso. Mas que
importa o repouso do corpo à vigília do espírito? O sono não atenua o
sofrimento. Também se chora a dormir.
J. Moreno adormeceu. Mas um tal sono nada deve às
torturas de todas as inquisições do mundo.
Que delir de angústias! Que tropel de fantasmas
sórdidos! Que de horrores concentrados numa insignificante molécula, despedida
ao acaso do seio da imensidade!
Quando a doença nos marasma alguns dos órgãos
essenciais, e, a par das ruínas da economia, nos punge indócil afecção moral, a
noite, com suas estrelas e seus românticos murmúrios, desce em torno a nós como
o mármore frio de suntuoso mausoléu. Sobre a macia plumagem, em que nos tomou a
modorra, amontoam-se informes esquálidas figuras. E quase sempre nos visita, em
forma e cor, o objeto, fictício ou não, de nossas doridas impressões.
J. Moreno, apenas adormecido, viu surgir seu pai. O
velho encolhia-se, envergonhado, na mortalha esfarrapada, e, tiritando de frio,
coberto de lama, vinha humilde implorar ao filho um pouco do calor de seu
fogão. E, enroscando-se-lhe aos pés, aquecia os membros no brasido.
O moço sentiu o roçar daquele corpo putrefato, que
extravasava hálito sufocador.
Acorda num estremeção.
A lâmpada, falta de óleo, apagara-se. Tomado do
terror, chama pelos criados. Uma voz responde.
Escuta.
É o eco da sua voz. E logo o mugir distante do
austro gemebundo.
Ergueu-se arrepiado.
Inerte, enroscado a seus pés estava um corpo.
— Meu pai! brada estupeficado o mancebo.
Oscila o corpo.
Que seria? A sombra de Banquo? O sombrio espectro
do Hamlet? Alguma das ensanguentadas vítimas de Ricardo III?
Não. Era o cozinheiro.
Era o cozinheiro, que, cabendo-lhe em sorte velar
sobre o enfermo, cedera ao sono, e acabara por se estirar no pavimento.
Raia o Sol majestoso envolto nas magnificências da
sua púrpura fulgente. Dardejando os brilhantes raios nas vidraças, ilumina o
rosto de J. Moreno com uma réstia aurífera.
O mancebo respira.
Este acordar ridente da natureza espavoria as visões
da infausta noite.
Fez abrir as janelas, e regalou-se, respirando as
matutinas auras, impregnadas de fragrâncias das flores do campo, e banhando-se,
confortado, naquele vasto oceano de luz.
Mas logo se lhe arrasaram de água os olhos, caindo
distraídos sobre as árvores do cemitério.
— Lá tenho a minha morada, murmura, recolhendo-se,
com a lástima no quebrado coração.
Nunca, como então, sentira tão viva pena de morrer,
uma tão pungitiva saudade de deixar um mundo, que era para ele como um cofre de
raros tesouros.
Abordoado num bastão, sobe à vizinha colina,
saudoso do sítio. A relva, aveludada e fresca, estendia-se em toalhas
graciosas, franjadas de variegados esmaltes. As trepadeiras silvestres, com as
madressilvas, toucadas de trémulos aljôfares, mostravam-se dentre as opulentas
alcatifas de verdura, ou se enfeixavam nas fendas dos muros arruinados. Por
cima adejava a madrugadora calhandra, soltando amiúde sua singela trova, até
que, erguendo-se perpendicular, se entranhava nas nuvens.
J. Moreno vagueia com os olhos pela campina, pelos
montes, pelos tugúrios e pelas choças da aldeia, segue as torrentes no seu
precipitado curso, e chora as recordações, que por aí lhe andavam soltas.
Que dera ele para que o volvessem à idade, em que
as alegrias fáceis da inocência tamanho contraste formam com as honras,
travadas de aflição, que vêm depois? Que dera por dez, por cinco anos de vida,
mas de vida sem dores, mas de vida sem martírio? Como aproveitaria esses anos!
Petra, a sua aldeia e a obscuridade. O céu aberto. E como lamentava os dias,
que passara na voraz ânsia do Prometeu, que indaga um fantástico fogo!
Conquistas, honras, glórias… Que mais valem do que os ecos finais duma sonora
gargalhada? Voláteis pirilampos, que fulgem e passam, fugazes como um sonho. Malditas
sejam elas, que são a perdição do homem, como foram a causa do primeiro pecado.
Ponto e vírgula no treno.
O mancebo põe-se a soluçar. Não de fraqueza. O que
não podia era viver assim. Jogara a vida numa carta, como uma libra em qualquer
loteria. Mas é que se não compadecia aquela imaginativa exaltada com a morte
lenta, medida, contada, em que o paciente desce, pouco a pouco, os degraus da
eternal jazida.
Prossegue o treno.
Vai-o ele suspirando, enquanto trepa mansamente a
um agigantado penhasco, sobranceiro ao rio.
Em baixo redemoinhavam as águas num escuro
sorvedouro. J. Moreno sentia aziaga consolação, suspenso sobre a voragem.
Era o Manfredo, pendurando-se do alcantil dos
Alpes.
Afunda os olhos no abismo. No cérebro entra-lhe o
desatino. Enreda-o a vertigem. Está a ponto de se abraçar ao esquecimento. Mas
a saudade, a extrema saudade, que desprende sobre a memória do seu único
verdadeiro amor, pôs-lhe diante uma imagem seráfica. Perplexo, vê esvaecida a
cerração, que o entontecia, e pensa que um benfazejo silfo o ampara, na queda,
sobre as asas cristalinas.
A pomba, emissária da paz, pairava sobre o
desgraçado. Petra estava ali em espírito, e na boca ressequida lhe vertia
celeste cordial.
Não sei como não foi confiada à mulher a redenção
da humanidade.
J. Moreno deu-se um momento como escorreito e
vigoroso. Nesse mesmo dia mandou cartas para Lugo. E disse ao escudeiro:
— Antes dum mês estaremos de viagem.
— Vossa Excelência!
— Vou buscar a minha mulher.
— Como! Pois?…
— Estimo em pouco os meus parentes. Quero uma
herdeira para esses bens, que aí ficam.
— Se mo permite, a que país vamos então?
— Espanha.
— Ah! Lugo!
— Está bem.
As noites, que seguiram, foram menos laboriosas
para o doente. Dir-se-ia que o mal fizera um retrocesso mais que muito satisfatório.
Mas, por infelicidade, esses sintomas eram, como calmaria, precursora de
tormentas. O princípio de morte lá estava enraizado.
Voltou mais tenebrosa a modorra. Espasmos,
letargias, funestos pesadelos revezavam-se à cabeceira do mancebo, como ciosos
na contagem dos minutos. Recostado na cadeira de seu pai, que lhe servia de
leito, a cada passo se levantava convulso, cabelos hirtos, cadavérica palidez,
espantado por visões estranhas. Ele mesmo parecia um fantasma.
Veio uma noite em que, mais tranquilo, desmaiou em
folgada sonolência. Não se fez tardar porém a agonia do costume.
Isto pede menção especial. É como um episódio.
Tremiam-lhe os lábios e as pálpebras entrecerradas;
latejavam as artérias do pescoço; os dentes, encontrando-se pela agitação das
maxilas, crepitavam uns de encontro aos outros. Adivinhava-se que um delírio
singular o enrodilhava nos intrincados meandros da extravagância.
Vejamos pelo seu prisma.
O espaço é uma névoa espessa. Anima-se a imensidade
de clamores misteriosos como lamentos de almas, que penam, divagando nos
escarcéus escuros da procela. As árvores vacilam gemebundas. E as alimárias do
monte, quebrada a sanha pelo medo, buscam a proteção dos povoados.
Gelado de frio, conchega-se J. Moreno ao fogão.
Era mortiça a chama do fogão, e estranhos e móveis
os clarões com que dissipava ora uma, ora outra penumbra. Sobre as cinzas, que
se estendiam como o fragmento dum lençol funéreo, rolava J. Moreno com mão
distraída uma metálica lâmina.
Reparou acaso, e só muito tarde, que os traços, sulcados
pela lâmina, se cobriam de palor fosfórico, afeiçoando-se a cabalísticos
contornos de linguagem nigromântica.
Sem saber como, perscrutou o arcano. Espantoso! Era
uma tentação de Satanás.
O espírito prometia ao enfermo um cautério
redentor, à custa de ominosa convenção.
— Sim, certamente, murmura J. Moreno entre
assombrado e alegre, eu adoraria a quem me tirasse deste suplício. A mão, que
me levantasse do aniquilamento, seria uma poderosa mão. Beijá-la-ia.
Não tinha ainda acabado, quando das profundezas da
terra se eleva um pio funesto, e no ombro lhe pousa a sombra duma asa
extraordinária.
Empina-se de horror.
Desmaiada, e quase perdendo-se na sombra, descobre
sobrenatural medonha aparição. Era como nevoeiro transparente, que, sob uma
vista atenta, se desvanece.
Satã estava ali. Não o tentador Satã dos poetas, o
anjo caído e orgulhoso no infortúnio, majestoso, apesar de proscrito. Não o ser
misterioso, que, debaixo da cadeia do escravo, conserva o esplendor soberano
dos astros. Mas intacto e perfeito, tal como a criação horripilante, de
amedrontar infantes, que se deve ao estéril imaginar dos pintores do século
XIII.
Estendia sobre J. Moreno uma asa imensa, semelhante
na feição à do morcego. A outra pendia, em abóbada, para o pavimento. Nas
garras apertava um pergaminho informe. Os olhos, como duas frestas pequenas e
arqueadas, por onde entrasse luz dum foco posto por detrás, vertiam nas
cadaverosas faces do enfermo raios crepusculares. J. Moreno sentia tisnada a
tez sob a diabólica influência daqueles raios.
— Aceito o pacto, freme uma voz, que se não sabia
donde vinha, semelhando o reboar de trovão longínquo.
Um frenesi hediondo desceu-lhe ao fundo das
entranhas.
— Que pretendes? exclama.
— Tenho o elixir da vida.
— És tu capaz de desviar de sobre mim as forças do
adverso destino?
— Sou.
— Desprezou-me Deus. Viu-me indigente, e não me deu
esmolas. Mau pastor deixou insensível que do redil se tresmalhasse a ovelha.
Sou teu escravo então.
O fantasma apresentou-lhe o pergaminho.
— Toca-o, disse.
J. Moreno obedece. E logo o seu nome transluz
impresso em caracteres de fogo.
— Agora, torna a voz singular, agora a minha
dívida.
Uma garra se estendeu, alongou, cresceu e se foi
profundamente encravar na fronte do infeliz.
A névoa ganhara consistência e rijeza férrea. O
sangue manou copioso.
E a garra, retinta naquela onda vermelha, escreveu
no pergaminho algumas fatídicas palavras com ruído, que fazia lembrar o ranger
de dentes dos precitos.
Aqui J. Moreno ergue-se estremunhado. Toma a luz,
que bruxuleava no friso do fogão, e interroga desconfiado e torvo os sombrios
extremos da sala. Olha, espreita, caminha como um autômato. E, quanto mais
caminha, mais lhe parece a solidão, que o cerca, uma solidão de túmulos.
Mede-se de alto a baixo aflito e atemorizado. Desconhece-se. Julga descobrir em
si um estranho. Quer fugir, quer fugir de si mesmo, e não sabe para onde. Cobra
resolução, olha de novo, escuta, e caminha ainda. Nem se lembra de que na
alcova repousa o escudeiro.
Reflete-se-lhe no espelho a transtornada fisionomia.
Uma cabeça de finado! Recua e novamente avança, antes de se reconhecer. Afinal
observa que tem, na fronte, larga mancha de sangue, e indícios como duma garra,
que ali profundara. Aproxima a lâmpada. Maravilha! É o selo do pacto infernal.
Asfixiado, cambaleia e vai encolher-se a um canto,
clamando misericórdia com gritos de arrepiar os cabelos.
Correm os criados, acordados de salto, e levam-no
sem acordo.
Em presença do alvor matutino, as sórdidas catervas
de impossíveis, que, apavorando-nos à noite, se tingem nas cores da realidade,
desfazem-se por sua vez intimidadas. E logo achamos, quase sempre, fácil
explicação para aquilo, que, em consciência, nos parecia inexplicável.
Foi o que sucedeu no caso em questão.
Era a cadeira, em que dormia J. Moreno, uma alfaia
de tão notável como esquisito labor. No recosto inclinado, da mesma maneira que
nos prolongados braços, não mediava espaço entre um e outro dos relevos, que a
ornamentavam. A confusão era a sua singularidade. Cabeças de javalis, garras de
águia, pés de sátiros, roscas de serpes fabulosas, folhas de acanto, flores
exóticas baralhavam-se em inexcedível capricho.
Ora J. Moreno, num jeito de alucinação febril,
ferira a fronte nas protuberâncias dum relevo, o que pela coincidência do sonho
deu o resultado, que detrás sabemos. E coincidências, de bem superior calibre,
todos os dias se repetem por esse mundo além.
Até aqui não embicamos ainda no inverossímil. E pelo
que se segue quase que me responsabilizo. Deixemos correr a pena.
Chegam cartas de Lugo. As coisas preparam-se às mil
maravilhas. Com ardor incitavam o moço a que, sem tardança, fosse trocar com a
alvoroçada noiva o anel da etiqueta.
Porque, rezavam as cartas, à sua chegada nada
faltaria para, em continente, ser efetuado o apetecido consórcio.
Ainda este júbilo estava reservado a J. Moreno.
A contar desse dia esmerou-se na conservação da
existência pelo teor por que um taful exímio, porém menos dinheiroso, do que
exímio, se empenha em furtar à traça e ao pó danoso a sua única casaca,
destinada a revolitar nas valsas duma esplêndida festa.
Da fonda,
na qual em Lugo se albergou, fez constar a Don Jacobo de Puente que se achava a
dois passos da sua casa, mas impossibilitado de correr a abraçá-lo, pois que
estava convalescendo duma séria enfermidade, que o havia assaltado no trânsito
para Espanha. E, certo de que com pequena detença viriam procurá-lo, invocou
todos os artifícios para dissimular os estragos da doença.
Petra entrou ofegante em infantil carreira.
Resplendente, feliz, desfeita em gosto, esquecendo refalsados decoros,
lançou-se toda corada e festiva nos braços do amante.
— Moreno! Oh meu querido Moreno!
Ficaram mudos.
Olhavam-se.
— Estás mudado, filho! diz a pequena, embevecida
nele. Como tu estás mudado, Moreno!
— Tanto pode a saudade.
— Meu Deus! Como são falsos os homens! Tu, que por
um pouco te não esquecias de mim! Eu, coitada, petrificava os olhos, já
exaustos de lágrimas, petrificava-os sobre o caminho por onde prometeste
voltar. Olha. Não estou eu bem mudada também?
— Não, não estás, que os anjos não mudam nunca. Mas
não sei donde vem que sempre me pareces mais linda a última vez, que te vejo.
— É que sou ditosa.
Acrescenta, baixando a voz:
— É que vou ser tua.
Não há martirológio que inscreva um mártir mais
legitimamente constituído do que J. Moreno. É indizível o tormento com que
arrostava. Agora, à beira da própria ruína é que, ao toque da sua mão,
frutificava espontânea a árvore santa da felicidade. Onde estava dantes, que a
não via, tendo-a tão perto? Era um escárnio aquilo com que a Providência lhe
punia o orgulho.
— Tens de que acusar-me, Petra, diz, alentando-se.
Encontrei na minha terra uma estrada de abrolhos.
— Abrolhos! devolve ela com ternura, abrolhos como
pode tê-los o laurel, que eu, cá de longe, te vi cingir; porque eu não deixei
um instante de te acompanhar nas tuas glórias, e notava, com o coração apertado
de tristezas, que floresciam louros na tua cabeça.
— Magoavam-te!
— Decerto. Cada degrau, que subias, era um passo,
que te afastavas de mim. Acostumei-me a ver-te tão alto, que todos os dias me
sentia mais pequena. Traziam gelo as tuas cartas. Não me queixei. Eu não era
digna de ti.
— Anjo!
— Tentei refugiar-me num convento. Resistiu meu
pai. E, quando o tinha persuadido a deixar-me amortalhar em vida, vens tu e banhas
de alegria a natureza para mim inteiramente morta. Agora, Moreno, não há
ninguém tão feliz como eu sou. Agora já posso encarar no futuro, que nunca,
outro igual, se ofereceu a uma rainha.
Uma lágrima furtiva bailou, como um aljôfar, nas
sedosas pestanas do mancebo.
— E que rainha, continua ela, transportando-se, que
rainha alcançou jamais a dita de se reclinar num ombro como o teu, de cobrir de
afagos uma bela cabeça como a tua; bela pelo talento, bela pela admiração, que
soube infundir num povo?…
Um beijo a interrompeu.
Ser de tal modo apreciado pela mulher, que se
adora, se não é a suprema aspiração dum homem de alma, não sei, por mim, qual
seja. J. Moreno sentia-se renascer com brios novos.
Neste comenos assoma ao limiar Don Jacobo de
Puente. Vinha ronceiro e pesado, ou de propósito, e é o mais natural, ou porque
com efeito, como ele asseverava, o estorvasse de andar ligeiro certo gotoso
entorpecimento, a que era sujeito.
J. Moreno mostrou-se prazenteiro. Fez chorar de
riso o cavalheiro, narrando uns divertidos incidentes da viagem. E, afinal, era
para ver-se a galhardia, com que se aprumava, descendo a escada com Petra pelo
braço, no acto de se retirarem seus hóspedes.
Conteve-se impassível até que os viu dobrar a
esquina da fronteira rua. Depois, quebrantado, deixou-se cair sobre um degrau.
Escondeu nas mãos o rosto, e soluçou baixinho. A doença também efemina.
Concluamos.
Demos por celebrado o himeneu.
Moreno está de joelhos aos pés de Petra. Ela
curva-se meigamente para o esposo.
— Que febre, Moreno! Há no teu rosto uma mistura de
prazer e mágoa.
— Perdoa; oh, perdoa-me! Não sabes tu que a minha
alegria é a alegria do homem novo, que se embalsama e veste de gala para as
festas da eternidade?
— Que dizes, louco?
— É que eu pressinto a eternidade no teu peito de
neve, nos clarões inquietos dos teus olhos lânguidos. É que eu adivinho que vou
remir-me nos teus braços do cativeiro do mundo. Petra, Petra! não me perdoas
tu?
— Não, não, não te perdoo os beijos, que me
recusas; não te perdoo as carícias, que me não fazes.
E beijou-o com ardor, e ânsia, e desejo.
Os cortinados do leito caíram sobre eles.
Passados instantes por toda a casa estruge um brado
pavoroso.
Petra tinha sobre o seu rosto um rosto gélido, e o brando peito, nadando em amor, unido ao peito nu dum inteiriçado cadáver.
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