HONRA ANTIGA
I
Não há castor ou hipopótamo, que me sobre-exceda no
amor às águas.
Desde pequenino se manifestou em mim esta afeição,
pois que, ainda não tinha quinze dias, quando me chimpei de mergulho na onda
fresca dum lago.
O lago era a pia batismal.
Mergulhei buliçoso como uma enguia, e emergi
radiante como um querubim.
Mas prendas desta polpa e calibre não se baldam em
meros exercícios de ginástica como a equitação, a dança, a esgrima; nem tampouco se limitam como a música, o desenho e o lirismo a misteres de
galanteio e passatempo.
Têm mais prestimoso alcance.
O pescador de pérolas mergulha, por entre florestas
de corais, para extrair do fundo dos mares os tesouros, que lhe tentam a
cobiça; o pescador de truitas mergulha para, das cavidades dos rochedos, ou
dentre as torcidas raízes dos amieiros, extrair, apreendido pelas guelras, um
mimo da boa culinária; eu mergulhei, se não para me colmar de pérolas, ou para
me regalar de truitas, ao menos para fazer aquisição dum nome.
Chamo-me Cristóvão. Pesquei um nome de romance,
sonoro como qualquer madrigal. E, com ele filado à minha grave personalidade,
vou vivendo, por não ter mais nada, que fazer. O nome de meus pais, esse é que
ficou nas águas turvas, ainda por algum tempo.
Sou filho do pecado. Devo a existência a uma
insignificante distração de minha mãe. Perdera-se, a desavisada, perdera-se de
amores por um simpático moço, de condição muito sobranceira à sua. Se era
mulher!
E qual é o anjo, que não tem na esplêndida madeixa
o selo duma passageira mácula?
Entre ela e meu pai não se encapelavam oceanos, nem
revolitavam montanhas de candente areia, nem se alongavam continentes, nem se
encadeavam cordilheiras. Maior, muito maior era o obstáculo que se interpunha:
uma coroa de conde, e uma origem feudal.
A paixão encurtou as distâncias, que o nascimento
assinalara, e uniu-os num doce amplexo. O prejuízo do século obstava todavia a
que se santificasse perante o mundo o que, perante a natureza, estava
santificado.
Isto passou-se na escuridão do mistério. Cobriram
seus devaneios culpados de espessas neblinas, que, se não, o velho alferes, meu
avô, vingara a desonra da filha no sangue do sedutor.
Era meu avô um velho de rija têmpera peninsular.
Como voluntario gladiara nas
pelejadas lutas da liberdade, e sempre introduzira a espada valorosa até ao
mais luzido e nervudo das inimigas falanges. Donde procedeu, restabelecida a
paz, voltar a suas magras terras, tão magras, que mal davam para um passadio
decente, levando na escarcela carta patente e honras de alferes, e no rosto
nobres cicatrizes a atestarem os feitos do soldado. Melhorando de posição, nem
por isso deixava de considerar como evidentemente necessária a escala das
jerarquias, tal qual a tradição lha transmitia. Filho do povo, não consentiria
em mesclar seu sangue com o sangue dum nobre, nem talvez à custa da própria
vida. E só uma coisa estimava mais do que a vida — a honra.
Pouco habituado a discernir por si, pensava na
maioria dos casos o que seus avós quiseram, que pensasse. Seguia-lhes na
esteira, de olhos fechados, fanático e pertinaz, duvidando da luz, que doutro
lado lhe fizessem, porventura, resplandecer.
Em matéria de honra era como um reflexo de Catão.
Era a honra em pessoa, mas a honra consoante a entendia ele, tal como nós a não
entendemos hoje. Tão seguro estava de si que, nem por sombras, se lembrara de
que na sua família podia inocular-se um fermento de corrupção.
Se soubesse! Ensandecia decerto.
Petronilha, o nome de minha mãe, viçava como uma
flor, que fresca desabrocha. Todas as pompas da juvenilidade se abrilhantavam
nela. Também mais requestada nunca foi beleza campesina. Nem se viu moça linda
tão esquiva e avessa ao santo matrimônio. Iam-se os galãs, uns após outros, feridos
e estropiados na infeliz campanha. O alferes olhava de soslaio a filha, com
trejeitos de nada contente, e satisfazia-se, rosnando lá consigo:
— Há de mudar, há de mudar em lhe chegando a
primavera. Estou pronto a apostar com quem quiser.
Mas a tal primavera parecia uma ficção, não
chegava. E arriscada fora a aposta, porque os anos sobrevinham, e Petronilha
continuava livre como uma toutinegra. O alferes dava-se a perros.
Um belo dia, tinha-se servido o jantar, um jantar,
se não opíparo, mais abundante, que de costume. Acrescia à mesa um hóspede. Um
mocetão robusto e fornido de tesas e avermelhadas carnes, prognósticos
satisfatórios e nada comum pecúlio.
Petronilha media-o com terror. Adivinhava um noivo.
Seu pai lhe falara dele na mais eloquente e lisonjeira linguagem, que sabia.
— Lá vai à saúde, diz alegre o alferes, levantando
um copo, cheio até às bordas, e piscando um olho com maliciosas pretensões, à saúde
de certa insensível, refratária ao casamento, que, antes de três dias, graças
aos estimáveis dotes do nosso amigo Estevão Ribô, aqui presente, se fará mole
de cera, dada e correntia.
O moço agradeceu, esvaziando um canjirão.
Petronilha baixou os olhos, perturbada.
— Então que é isso, menina? exclama o alferes.
Assim agradeces o bem, que te queremos?
— Eu, pai?! Mas… deveras, não sei que agradecer!
— Valha-te Deus, filha. Pois não percebes o que te
anda por casa? A tua boda, uma boda magnífica!
— Minha!
— Não. Sou eu que caso, ali com a permissão de tua
mãe.
— Consinto! clama a velha matrona no meio dos
estrépitos da hilaridade.
— Mas… balbucia a pequena, competindo na cor com os
corais, que trazia ao pescoço.
— Silêncio, atalha o pai, impando de soberania e
majestade. Todos temos a nossa época de eflorescência. Não há ser organizado na
criação, que possa fugir a lançar, como as árvores, seus rebentões, flores e
sementes, pelas quais se multiplique, e se perpetue. Eu estou velho e acabado,
e tenho o direito de exigir a minha filha que me não prive de ver ainda a
continuação duma raça, que merece mais prolongada existência. Não te quero para
freira, Petronilha.
— Mas, senhor, meu pai… torna ela, cada vez mais
envergonhada.
— Está bem. Sei o que vais dizer. Lamúrias de
rapariga. Lá te avém com o Estevão. Comigo está tudo dito.
Esta linguagem rude, e sobremaneira estouvada, não
se compadecia do melhor modo com a índole aristocrática de Petronilha. Em
extremo humilhada pregava timorata no alferes os grandes olhos azuis,
dirigindo-os depois suplicantes para a mãe. Esta mostrava-se entretida no bom
serviço da mesa, e totalmente estranha à conversa. Sentia-se desamparada a
pobre rapariga.
Ela, ao revés dos seus progenitores, era uma
romanesca imaginação. Antes quereria ser a amante aviltada dum príncipe
proscrito e mendigo, do que a esposa respeitável dum rico burguês. Julgue-se do
que sofreria.
Devorou com paciência as graçolas de Estevão, que,
apimentadas, saltavam com fecundo gáudio dos cônjuges, e suportou, sem
redarguir, os azedumes do pai. Mas, apenas fechada no seu quarto, vingou-se,
deixando manar livremente abafadiço pranto.
Bem conhecia ela o ríspido e contumaz caráter do
alferes, para esperar clemência. O”quero” de seu pai, poucas vezes pronunciado,
valia uma sentença sem apelação. Como resignar-se? Que seria do seu conde, do
seu formoso conde, que, em cada novo sofrimento, que lhe causava, mais adorado
se fazia? E como agora lhe feriam no coração as saudades desses deliciosos
sofrimentos! Revelar tudo, seus amores, já tão duradouros e tão obscuros, a
existência dum filho, a minha existência, as noites sagradas a indizíveis
ternuras fora pedir a morte, que uma falta dessas não passara impune.
Porém… num peito de mulher não acharia eco a sua
desventura? A mãe, que também foi filha, não saberá dar desculpa às invencíveis
fragilidades dos dezoito anos?
Cair-lhe nos braços, e fazer, em lágrimas,
eloquente confissão, quem sabe se, entrando com ela a caridade, lhe granjearia
uma defensora contra a paterna vontade?
Vão desejo.
A matrona, identificada com o marido, seria
inexorável como ele, e mais do que ele talvez. Que fazer?
Ai, conde, conde!
Nestes termos ia enfileirando planos com que
acender reanimadoras esperanças, e com que desbastar a dor, que rijamente a
asseteava, quando o alferes veio procurá-la de séria catadura e refletido tom.
— Petronilha, diz ele, vejo-te as pálpebras
inflamadas do choro. Não te perdoo a aflição, que me não queres poupar. Bem
sabes que te prezo, e…
— Sei que me amaldiçoa.
— Ofendes-me. Sou teu pai, tenho por mim a
experiência, e quero procurar-te a felicidade, já que tu tens dado sobejas
mostras de a desprezar.
— Felicidade fictícia, convencional, cem vezes pior
do que o infortúnio, do que todas as calamidades.
— Razões mal assentadas. Cala-te. Esperei muito,
fartei-me de esperar que, a teu jeito, escolhesses, para amparo e companheiro o
homem, que o teu coração desejasse. Queria deixar-te livre a eleição. Hoje é
tarde, porque escolhi eu. Rejeitei a princípio a violência, opto por ela agora.
É tempo. Eu e tua mãe vamos no entardecer da existência. Temos a cova aos pés.
E, quando se fechar, não queremos que a terra pese de mais sobre nós por ter
abandonado aos enredos perigosos do mundo a filha, que estremecemos. Que
destino seria o teu, pobre criança, confiada a ti mesma, com a inocência por
defesa, com a paixão por conselheira e com a credulidade por norte? Estevão
Ribô, sem pretender engrandecê-lo com levantados conceitos, é o tipo da
probidade e da discrição. Tenho por sem dúvida que há de estimar-te às
direitas. Se o ouvisses ainda agora! Conhecendo a tua repugnância em negócios de
casamento, só teme uma renúncia ofensiva. Casarás, porque eu mando e quero.
Entendes?
— Quer matar-me, pai?
— Hás de casar. Recomendo-te que sejas o menos
desamorável, que possas, com esse honesto rapaz. Não vás aguar-lhe o gosto de
te possuir.
— Não posso, não…
— Silêncio.
E saiu com ar soberbo e tenção inabalável, dessas
que se não resolvem em certames de palavras.
— Pois sim, sim, murmura ela, tornando em si do
desconcerto, em que ficara. Se é o tipo da probidade e da discrição, há de
ouvir-me sem despeito, e com benevolência. Vou contar-lhe o meu segredo, sem
nada omitir. E, desta vez, considero-me salva. Querem adulterar-me em presença
do altar, mas não hão de consegui-lo. Ignoram que pertenço ao meu conde, e só a
ele, que lho jurei.
De tarde, afinando coragem e paciência, mostrou-se
brilhante de satisfação. O alferes, sem caber em si de contente, cobria a filha
de mil pequenos cuidados, e pôs-se em maré de condescendências. Para logo
alvitrou que se fossem, no passeio predileto de Petronilha, até ao Sobreiro da
serra, lugar pitoresco e sumamente aprazível, que tinha o nome dum vetusto
sobreiro, que ali se criara majestoso.
Postos a caminho, Petronilha fingiu-se tocada das
vilãs frioleiras de Estevão, e conseguiu arredá-lo do grupo, deixando os pais a
perder de vista.
Iam estes devagar, com muita quietação, em
companhia duma apavonada moçoila que, num cestinho à cabeça, levava acepipe de
que fazer no monte apetitosa merenda.
— Doidos! diz o alferes, designando os dois, que
iam adiante. Como se entendem já! Ora fiem-se nos amuos das raparigas. Ainda
bem, ainda bem que pelos jeitos, que toma o negócio, tudo vai pelas boas. Antes
assim.
Dizendo acometia o seu simonte a largos sorvos,
satisfeito de ver a filha tão outra, do que esperava.
— Deram-se os braços! Bem, continua. Conversam em
intimidade, a modo que segredam. Que dirão, mulher?
— Que dirão! Que dissemos nós, quando por lá passamos?
Sempre a mesma cantilena. Rapazio, rapazio!
O que se passou entre Estevão e Petronilha é um
segredo que não nos pertence devassar. É de crer todavia que alguma triste
revelação se fez intervir. Isto, a termos de julgar pelo que, ao diante, se
verá.
Reunido o pequeno rancho na eminência do Sobreiro,
sentaram-se na relva, e foi logo estendida uma toalha alvíssima sobre a qual se
amontoaram gulodices tão salutíferas como substanciosas.
O alferes, de ordinário divertido e folgazão,
abraçou-se na ânfora do falerno, e fez exclamações dum cômico sobrenatural.
Estava nas melhores disposições do mundo. Pouco bastava para alegrar aquela
natureza rude e simples. Respeitar o próximo, e bem merecer, por esse preço,
igual respeito; percorrer os campos em cuidados da lavoira nos dias de
trabalho; merendar, com a família, aos dias santificados, sobre os cômoros
verdes; e empenhar-se, com pia intenção, embora com limitado sucesso, em legar
à posteridade numerosa progênie; tal o carreiro, que, para seu trânsito
invariável, arroteara.
Mas parece que neste dia entrou mau-olhado na
função.
Estevão Ribô acabrunhava-se em mazorral e
emurchecida aparência. Recusou-se a tomar parte na refeição, e não passava de
monossílabos, se o interrogavam.
Petronilha, de má sombra também, denunciava no
aspecto melancólico como remorsos d’alguma ação, pouco meditada.
O certo é que, no regresso ao povoado, iam todos
silenciosos e um tanto contristados. O alferes levava de Estevão para a filha
olhos de interrogações e de sombria desconfiança. Entraram no pátio.
Estevão, sem proferir palavra, encaminhou-se para a
cavalariça. Meu avô foi-lhe no encalço.
Atirava o moço, quando ele tocou o limiar da porta,
atirava a sela para o espinhaço do possante macho, quadrúpede, que mais, que a
si próprio, estimava. Digo quadrúpede, para que os pechosos o diferencem do seu
dono, o qual, por um capricho da natureza, tinha o exclusivo defeito de ser
bípede.
— Estevão! grita o alferes, que significa isto?
— Retiro-me.
— Retira-se! Que quer dizer?
— Que vou apresentar-lhe os meus agradecimentos
pelos obséquios, com que me obrigou, dizer-lhe adeus, e partir.
— Pois deveras?…
— Deveras.
— Julguei… Todavia… Não há nesta casa quem o
prenda?
— Há.
— Quem é?
— O reconhecimento.
— Petronilha?
— Tenho por ela afeições de irmão.
— Mais nada?
— Não é pouco, cuido eu.
— Não… lá isso… É estranho. Então?…
— Calemo-nos.
— E porque havemos de calar-nos?
— É o melhor.
— Queira explicar-se.
— De que serve? Nem eu tenho que explicar.
— Exijo-lho, senhor.
— Por Deus, clama o roliço Estevão, que estava
morrendo por ceder à coação, por Deus, não falemos nisso.
— Pois quê!
A curiosidade de meu avô tocara a afinação. O
moçoilo, que outra coisa não desejava, foi-lha atiçando, dando ao mistério
manhosas proporções, aventando termos dum vago significativo, manobrando enfim
com tal arte, que não pudesse ausentar-se sem ser constrangido a destrinçar o
imbróglio. O que ele buscava era absolver a consciência duma ação que lhe
cheirava a vilania. Queria a coação. Continuou, fingindo-se trancado por dentro
e por fora:
— Eu não sou um bárbaro, senhor alferes!
— Basta, devolve o alferes, comendo-se de
impaciência, e assaltado de negra desconfiança. Repare, meu amigo, que me deve
satisfação, porque recebi agravo. Quem lhe ofereceu a mão de minha filha? Quem
o convidou a transpor estes umbrais? Julga que, quem entrou com os títulos do
senhor, há de sair sem dar explicações?
— Perdão. Há casos, que a honra não deixa revelar.
— Quando não periga uma honra.
— Revolta-se a prudência.
— Reclama-o o dever.
— Não devo.
— Nem mais uma palavra de recusa. Receio
adivinhá-lo. E juro-lhe que há de ficar, enquanto me não esclarecer.
Tinha os punhos cerrados em gesto de ameaça. Estevão
exulta no interior.
— Lamento-o, diz este com afetado sentimento.
— Por quê?
— Porque desafia o raio.
— Devesse ele fulminar-me.
— Seja, já que absolutamente o deseja.
— Exijo.
— Por mim lavo as mãos.
Despediu uma vista circular e investigadora. Os
miseráveis são todos medrosos. Depois, travando do braço ao interlocutor, saiu
com ele para o quintal.
— Estamos mais à vontade aqui. Não nos
importunarão. Posso pois declarar-lhe com afoiteza…
— Que rejeita minha filha.
— Justamente.
— Rejeitá-la! E por quê?
— Há um fantasma, chamado dignidade, que o
determina.
— Como?!
— Não pode ser minha.
— Quem lho disse?
— Ela.
— Mentiu.
— Pertence a outro homem.
— Petronilha!
O capitão levou a mão à calva cabeça e oscilou na
base.
— Céus e Inferno! vocifera. Quem lho disse?
— Ela.
— Mentiu, mentiu. Impossível. Uma hora de fraqueza
seria a sua última hora. Morreria de vergonha. Quem é o sedutor?
— O filho do conde.
— O conde novo! Biltre! Eu me vingarei. Mas é
impossível. Não creio. Provas, quem me dá provas?
— Existe um penhor.
— Onde?
— Em casa da Guiomar.
— Quem lho disse?
— Petronilha.
— Calúnia, é uma horrenda calúnia!
— Perdão. Por minha parte…
— Silêncio, miserável!
E, indigitando a estrada, gritou:
— Parta.
Teve ânsias de correr à sua espingarda e dar sobre
ele, no córrego deserto. Porém foi mais forte a comoção. Exausto de ânimo,
cessou-lhe a vida por instantes.
Depois pôs-se a soluçar com o rosto nas mãos. E pelas venerandas barbas abaixo lhe escorregaram graúdas lágrimas de sangue.
II
Estilo sécio.
A noite desdobra-se brandamente, como o manto duma
rainha, fulgurante de pedraria. Porém não tarda que um borrascoso vento do Sul
se encrespe, frema, se atire pelo espaço e apague todos os lumes do firmamento,
rolando grossas nuvens prenhadas de eletricidade. O trovão traz de longe seu
rugir de ameaça, que brame no povoado, como voz de extermínio. Estalam as
franças dos arvoredos, e as urzes da serra tisnam-se, lambidas do relâmpago.
Depois, como extenuados na luta, serenam de repente
os revoltos elementos, e a Lua mostra, a espaços, a cor desbotada entre aquosas
brumas.
Não é uma vitória. É como um combate singular,
cheio de alternativas, em que não há determinado vencedor.
Petronilha está no seu quarto. Debruçada sobre um
móvel antigo, mira-se num grande espelho, com certa indizível satisfação. É que
realmente lhe fica a matar aquela desordem de vestes e de cabelos, com tanta
arte e com tanto estudo executada.
Ai, quando vier o amante, como lhe parecerá
formosa! Mas, se não vem? O mau tempo há de pôr-lhe estorvos. Vem, vem, que a
ama do íntimo da alma. Ele é tão gentil, tão amoroso, tão dedicado!
Neste enlevo, cola o rosto à janela, e espreita
para a floresta.
— Que noite! murmura. Uma aberta da chuva pode
contudo trazer-mo. Todos dormem. É bem tarde. Mas não me deitarei, sem a
certeza de que não virá.
Uma sombra desliza por entre os troncos dos úmidos
carvalhos.
Petronilha respira e, torcendo a meio o delicado
corpo, apaga a luz dum sopro.
Espera com o ouvido à escuta.
Lá percebe o ruído abafado duma porta, que se abre
mansamente, e, em seguida, cautelosos passos, de pés de lã, no corredor, que
para todos, menos para ela, seriam indistintos.
Voltada contra a porta do seu quarto, arrouba-se na
grata expectativa de a sentir estremecer ao contato dos dedos do amante.
Arfa-lhe pressuroso o seio.
A porta oscila, descerra-se, abre-se.
— É ele!
Denuncia-o o capote em que se disfarça.
Devaneada, a pequena, salta ao pescoço do
recém-chegado, murmurando:
— Conde, meu conde!
O embuçado, que o não era de melodrama piegas, não
fez um movimento.
Ela recuou indecisa. Então, como por encanto, a
Lua, desvendando-se, verteu através dos plátanos, que sombreiam a casa, tênue
clarão no aposento.
— Jesus! exclama a moça num terrível calafrio.
Em vez da madeixa loira e opulenta do gracioso
conde, o crânio ossoso e nu dum ancião; em vez dum tenro acetinado bigode, umas
barbas, como estrigas, longas e eriçadas; em vez de… Santo Deus! em vez do
almejado bem, aparece-lhe um demônio.
Isto na solidão do seu quarto, quando, em profunda
sonolência, jaz submersa a natureza inteira.
Como um espectro, que ressurge irado dentre os
mortos para vibrar a blasfêmia e o anátema dos preceitos contra o algoz, tal se
eleva diante da filha a agigantada figura do alferes.
— Boas noites, filha! diz ele com cruelíssimo
carinho.
— Oh meu pai, meu pai!
— Não chores. De que servem lágrimas? Em lágrimas
não se lavam as faces, quando estão negras. Demais, que importa um escarro
cuspido no rosto de teus velhos pais? Foi uma lição. Os pobres tinham a vaidade
de passar ilibados, sem se mancharem no vício. Castigaste-os, filha. Bendita
sejas tu.
— Perdão, perdão! Sou mulher, sou fraca.
— Sei que és fraca. Perdoo. Não havia de perdoar à
minha Petronilha? Mas com uma condição: hás de confessar-me tudo.
— Tudo, meu pai!
— Esperavas o conde?
Ela titubeou.
— Esperava, consegue dizer afinal.
— Então a que hora vêm os seus lacaios?
— Misericórdia!
— E tiveste-a comigo, prostituta?
— Não sou culpada. Foi a desgraça. Amei-o. Eu não
podia esmagar o coração. Pois para que pôs Deus o ímã fatal da perdição nos
olhos do homem?
— Para que pôs o Inferno a incontinência no teu
leito? Para que fizeste de teu pai um homicida?
— Homicida!
— Infeliz do conde! Que mal te fazia aquela
existência?
— Virgem Santa! Matou-o!
— Hei de matá-lo!
— Oh não, não! Peço-lho de mãos erguidas. Peço-lho
de joelhos. Emparede-me num convento. Expulse-me de si. Imponha-me a cruz mais
dolorosa. Eu hei de ser resignada. Eu hei de ser agradecida. Mas que lhe não
caia um fio só dos louros cabelos. Senhor! Ele tem prometido desposar-me.
— Nunca! brada o alferes, com entono soberbo.
Desdourava-se. Acasos de guerra me levantaram acima de mim mesmo. Mas não
renego a esfera, em que nasci. E o plebeu honesto castiga o insolente, e não
aceita uma dívida de honra à custa duma desonra. Hei de matá-lo, como se mata
uma alimária.
— Meu pai!
— A morte, que tudo nivela, essa sim, que pode
unir-vos.
— Meu pai, meu pai!
— Cala-te.
Vai à janela. A lâmina duma espada fulge debaixo do
capote. Petronilha quase sucumbe. Todavia o momento é decisivo. É precisa toda
a coragem. Por sobre o ombro do pai observa, trêmula e sufocada, se alguém
desponta no caminho.
Ambos esperam, ambos sofrem, mas que diferença nos
pensamentos, que se atropelam naquelas almas!
Silêncio de túmulos. Apenas se ouviam as pulsações
surdas dos corações, e o zumbido dalgum alado inseto, que nos ares revolita.
Ao longe marulham saudosas as cachoeiras.
Pai e filha a um tempo oscilam. Apressuram-se as
respirações, intumescem as artérias, perde-se o fôlego. Um vulto surdira da
espessura.
Olham, dão toda a tensão à vista, fundem todos os
sentidos num sentido só. Que tormento!
Petronilha reconhece o conde, no vulto, com aquele
instinto feminil, que às vezes parece maravilha. Então contrai-se numa estranha
reação.
— Foge, foge! grita, fora de si, esforçando-se por
levantar a vidraça.
Reprime-a o alferes, e arrasta-a dali, pondo-lhe na
boca, como mordaça, a nervuda mão. Ela, feroz como a loba a quem furtaram os
cachorrinhos, resiste temerária. Não durou a luta. Resvalou no chão alquebrada
e dorida. Mas, espumando raiva, crava até ao osso, crava os dentes na mão, que
a macerava.
O alferes levou-a pelos cabelos para a alcova.
Quando tornou a entrar no quarto, estava mais
sinistro ainda. Enxuga a espada a um pano da cortina, e, terrível como o gênio
das vinganças, posta-se ao lado da porta por onde devia penetrar o conde.
Este não se fez esperar.
— Petronilha? profere, tomando forma na escuridão.
Estás aí, Petronilha?
Fere lume o alferes. O mancebo fica hirto de
assombro. Em seguida intenta retroceder. Mas já então a porta estava fechada.
— O alferes!
— Sou eu, senhor conde, devolve, inclinando-se
humildemente.
Fitaram-se em silêncio. Meu avô comprazia-se em ver
como o conde se estorcia na tortura. Arquejava o pobre rapaz, asfixiado por um
supremo embaraço. Do rosto lhe escorria em bica suor, que escaldava. E tinha o
intelecto de todo cerrado a ardilezas, com que tirar-se da singular apertura.
— É ali, torna o alferes com o mesmo cerimonioso
trejeito, com que o saudara, levantando as cortinas, e indigitando o fundo
negro da alcova.
— É ali? pergunta maquinalmente o moço, sem
entender o interlocutor.
— O leito de minha filha, conclui este.
Quisera o conde que se abrisse o Inferno, e que o
tragasse.
— Sua filha! balbucia, achando ponto de apoio
nestas palavras. Alferes… eu vinha pedir-lha.
— Pedir-ma!
— Por esposa.
— Vossa Excelência!
— Eu.
— Ignora porventura?…
— O quê?
— Petronilha é uma mulher das ruas, uma perdida.
— Alferes!
— E esta casa um alcouce, acrescenta o velho. Eu
sou o rufião. Não se revoltam as cãs, nem estas rugas. O branco é cor muito
atreita à mácula.
— Seja justiceiro.
— Quererá Vossa Excelência esfolhar sobre vivas
apostemas as grinaldas dos seus passados! A honra, meu senhor, não se mercadeja.
A honra é o timbre heráldico das almas nobres; é a felicidade, é o consolo, é o
orgulho, é a fidalguia comum, que tanto pertence ao homem, que nasceu nas
lamas, como ao que nasceu nos arminhos. Não a jogue numa louca irreflexão de
mancebo, pois que não sabe quanto custa perdê-la para sempre, para sempre.
A voz tremia-lhe. Estava medonhamente comovido.
O conde, cobrando ânimo, conseguiu tomar-lhe a mão.
— Não tresvarie, disse. De sobra são conhecidos os
nobres dotes da sua família, e, com justo respeito, compensados. Acuso-me e
arrependo-me. Adoro a Petronilha. E não ofereci logo condigna reparação, porque
esperava no futuro. Certo fiquei sempre de que o mais cioso de fidalguia
tiraria desta união motivos para orgulhar-se. Imploro pois o seu assentimento.
— Não. Nunca.
— Imploro.
— Não vê que se avilta?
— Ninguém se avilta, cumprindo um dever, que
importa felicidades.
— Um dever! Com que ingenuidade o invoca! É o
roteiro dos covardes. Viu o azorrague na mão do ofendido, e lembrou-lhe então o
dever.
— Senhor!
— Desprezo-o, tanto na sua súplica, como no seu
crime. Não sei por qual dos lados me parece mais degradado. Desculpe-me, senhor
conde. Sei quanto se deve ao seu nascimento, mas parece-me que nem pela glória
dos escolhidos trocaria o prazer de o ter na conta de inimigo execrável.
O conde cresceu para ele flamejante. Porém
conteve-se.
— Tem razão, diz no maior abatimento. É justo.
Mereço a invectiva. Mas hei de provar-lhe que sou menos culpado, do que se
persuade. Hei de provar-lho. Amei-a… O alferes calcula os desvarios, a que
arrasta um amor arraigado e impetuoso? E quem o autoriza a julgar das minhas
intenções? Quem lhe diz que não pensei mil vezes em sanar o mal?…
— Petronilha é do povo.
— Eu a levantaria.
— E as conveniências de sociedade e de família?
— Relegava-as para o rol das coisas frívolas, e,
mais que frívolas, estúpidas. Entre um e outro homem não há senão uma
distância: é a que vai da virtude ao vício.
O rancor do alferes amaciava-se manifestamente.
Soavam-lhe no coração aquelas palavras. Pareciam-lhe palpitantes de verdade.
Mas na recalcitrante cabeça tinha gravadas, como em bronze, outras bem
diferentes ideias. Todavia, sem acertar com azada resposta, assumiu mais humana
exterioridade. O mancebo, que o observa, continua com fogo e paixão sincera:
— Por Deus lho peço. Consinta que, ao separarmo-nos
bons amigos, eu lhe dê o respeitoso nome de pai.
— Os homens, que dirão os homens?
— E a consciência?
— A minha consciência condena.
— Engana-o.
— Enfim…
— Permite?
— Senhor conde!
— É de ferro este homem!
— Pense bem. Não se arrependa depois.
— Juro…
— Basta.
De olhos baixos e mortal palidez levantou a cortina
da alcova, murmurando:
— Entre. Vá oscular sua mulher. Consinto.
O conde hesitava. Não sei que lhe leu na
fisionomia.
A cortina caiu sobre ele como um sudário.
Na planície circunvagava iroso o furacão, e o raio
nos píncaros lascava as rochas. Era uma noite de pavores.
O alferes desembaraça-se do capote, e corre pelo
gume da espada uma vista cheia de diabólica ternura.
Um gemido de expressão funérea parte do fundo da
alcova, e perde-se no estridor da rajada, que silva no carvalhal. Depois outro
gemido.
O conde aparece à entrada da alcova. Dir-se-ia
outro homem, tamanha mudança se operara nele. Treme numa convulsão lastimosa,
e, com a mão recurvada, apega-se ao muro para não cair. Mas, perdido o
equilíbrio, verga de joelhos, estorcendo os braços, sem outro gesto, sem voz
para a blasfêmia, sem resolução para um esforço extremo.
— Morta! é a única palavra, que, rouca, despede da
garganta.
— Tem medo, senhor conde?
Esta pergunta é formulada com fereza hedionda.
— Não, responde o outro.
— Mas treme.
— De horror. Tremo por ela. Maldito sejas tu!
— Ofereço-lhe os meus serviços, senhor conde.
— Aceito-os.
— Terei a ventura de lhe ser útil em alguma coisa?
— Tens.
— Em quê, meu senhor?
— Mata-me.
— Só?
— Mata-me.
— Traz armas?
— Quebrava-as, se as trouxesse.
— Quer que lhas procure?
Um riso de amargo escárnio tremeluziu nos lábios
brancos do mancebo. Ergueu-se sobranceiro.
— E querias que me batesse contigo, demônio? diz
com um resto de altivez.
— Porque não? Não lhe ouvi há pouco que na escala
das jerarquias há apenas uma distância, a que vai da virtude ao vício?
— É essa distância, que se interpõe aqui. Dou-te as
honras de carrasco, e não é pouco, porque injurio a classe.
— Antes de ser carrasco fui juiz.
— Para imolar tua filha.
— Mentira! Ela não era minha filha.
— Petronilha?!
— Pertencia certamente à estirpe de Vossa
Excelência, senhor conde, diz com urbanidade não contrafeita, porque era
infame.
— Se a renegas, quem te deu o direito?…
— A vergonha, meu senhor.
— A vergonha!
— A vergonha de a ter adotado. Sangue meu não se
corrompia.
— Silêncio. Não afrontes a santa. Concluamos.
— Concluamos.
— Vais ver como morre um homem de alma.
— Mas antes… queria fazer-lhe um pedido.
— Tu!
— Peço-lhe…
O alferes parecia embaraçado.
— Diz, carniceiro.
— Peço-lhe que se defenda.
A resposta foi um gesto de soberano desprezo.
— Recusa? pergunta comovido o velho.
— Se recuso!
— Nesse caso, que a terra lhe seja leve, meu senhor.
Ergueu, com ambas as mãos, à altura da cabeça, o
mortífero instrumento, e, prestes a descarregar o golpe, deixou cair os braços
esmorecidos.
— Não posso, murmura.
E, apagando a lâmpada, feriu nas trevas.
Um corpo baqueou.
III
Já minha avó andava florejando nas domésticas
canseiras, como boa dona de casa, que era, e ainda os visos das montanhas
estavam longe de se corar com a rósea tintura da manhã.
O alferes entrou tranquilo, como a consciência dum
justo. Só nos olhos lhe bruxuleava certo notável fulgor, que, a meu ver, trai
os espíritos imbuídos por qualquer fanatismo. Envolta nas faixas infantis
conduzia uma criança.
Era o filho de Petronilha, era eu.
— Mulher, vem comigo, diz para minha avó.
A velha seguiu-o. Passaram a uma sala retirada.
— Que linda criança! exclama ela, reparando nas
minhas menineiras graças. Anjinho! psiu!… Donde te veio? De quem é o menino?
— Escuta, atalha com solenidade o alferes.
Petronilha, essa filha da nossa ternura, atraiçoou-nos. Atirou-se de braços
abertos ao seio da depravação. Cedeu às instâncias sedutoras do conde, e,
sensual como uma barregã maldita, não soube guardar o depósito de honra, que
lhe confiamos.
— Virgem Santa!
Cambaleou tomada de vertigem.
— Não a amaldiçoaste? continua.
— Não.
— Pois?…
— Perdoei-lhe.
— Tu!
— Matei-a… apenas.
— Petronilha! Oh meu Deus!
— Pediu-ma o conde em casamento. Dei-lha. Dorme com
o esposo no mesmo leito. Foi magnífica a boda. Não correu o vinho em jorros,
mas correram jorros de sangue.
— Oh minha filha!
— Eis aqui o fruto inocente duma ruim árvore. É teu
neto. Educa-o bem, e possa ele redimir por extremos de virtude o crime de seus
pais.
Depositou-me nos braços de minha avó, que me
estreitou ao peito com ansiedade terna. Mas a luz esvaiu-se-lhe, desamparou-a o
varonil valor que a ensoberbecia, e caiu exânime no instante em que, proferindo
a palavra "obrigada!” ia beijar a mão de meu avô.
O alferes deixou-a aos cuidados duma criada. Vestiu
pesado luto por sua filha, e foi oferecer a garganta ao baraço do algoz.
E minha avó, ainda hoje, quando é mais lauto o
jantar e maior o número dos convivas, conta, entre a sobremesa e o café, conta,
com orgulho de leoa, como na sua família se castiga uma afronta.
Por mim, que, sem conhecer minha mãe, a imagino
todavia um tesouro valioso de sensibilidade, nem censuro, nem tampouco louvo o
rigor selvagem do alferes.
É mais difícil, do que geralmente se pensa, este
mister de censor.
A honra, como tudo o que é convencional, pauta a
sua mobilidade pelas fases por que vai passando uma civilização. Desde a
infância individual até à idade madura, que de caracteres diferentes não
assume! Desde a barbaria ao estado culto, que de vezes não muda o trajo, a cor
e as feições! Na mesma atualidade nem todos os povos lhe rendem o mesmo culto.
A mão esquerda para os orientais corresponde à nossa direita. E a divergência,
ou a oposição, que, acerca de certas cosmopolitas ideias, se observa no
conceituar dos povos dum a outro hemisfério, duma a outra das grandes partes do
globo, não deixa também de se assinalar dum a outro vizinho continente, sem
excetuar aqueles, que, a par e fraternalmente, desabrocham nas flores e nos
frutos do progresso.
Sobre a desprezada campa do alferes já vinte
primaveras semearam seus silvestres matizes. E em vinte anos não era esta raça
de Nenrods que deixava de transformar vinte vezes a face das coisas. Mudaram os
tempos.
Seja juiz na causa do velho soldado aquele, que,
remontando ao viver patriarcal das províncias do Norte, souber compenetrar-se
de religiosa veneração pelas extintas tradições. A sentença então sei eu que
será justa. E, seja como for, tê-la-ei por alvitre de gosto.
Os amigos do progresso, os que nele se sensualizam,
esses não duvido de que hajam de cuspir injúrias sobre aquele viril caráter do
alferes.
Eu sou dos renegados do progresso.
Que exaltem falsos levitas esse deus de lama,
coberto de ouropéis mais falsos ainda! Por mim maldigo-o. E pouco importa que,
em sua louca protérvia, me impropere a populaça,
que não compreende a sinceridade dum homem, chão por certo, mas que não cede a
outrem o direito de lhe domar o pensamento.
Progresso! É ideia que se escoria e ferve nos
entendimentos; é palavra que anda no sorrir de todos os lábios; é sanefa com
que se mascaram os que não crêem; é fato, que perverte a sublime natureza dos
homens; que revolve, altera e disformiza a criação inteira. A vaga febre dum
desejo ignoto arrasta-nos e nos impele de encontro não sei a que medonho
Cáucaso. Caminhamos. Para onde? É
como se arrancássemos os olhos para não errar o caminho.
Maldigo-o.
Porque nos furta ao viver natural e contemplativo
das florestas; porque polui a nudez dos nossos corpos e a nudez da nossa
primitiva inocência, pelo artifício; porque derruba a árvore, providência de
Deus! que espontânea nos garante, com seus purpurinos frutos, uma conservação
deleitosa; porque nos obriga ao trabalho fatal de Sísifo; porque troca em
conveniências, interesses, comodidades, metal, todas as grandes riquezas dos
nossos corações, como em cobre se poderá trocar um diamante.
No meio do desvario, aos encontrões da política, do
comércio, da indústria, da ambição, do luxo, da opulência de alguns, da miséria
de muitos, do aviltamento do maior número, submerge-se a família, apagam-se da
memória os nativos sóbrios costumes, e vêm a efeminação e a gangrena disputar o
seu quinhão ao festim das gentes.
O luxo é o mais nocivo parto das idades cultas,
sendo também o mais lógico e fatal de todos. O aparato nos atavios é para a
mulher o velocino de ouro. A formosura, sem realces postiços, é como a pérola
no fundo dos mares. E a mulher preza, acima de tudo, a formosura. Holandas,
fitas, rendas, colares, martas… quer profusão. Se não há, com que obtê-la,
negoceia com a ignomínia.
O homem, na sua condição, cria necessidades duma
outra ordem, mas não menos imperiosas e não menos frívolas. Em cada rua uma
tentação, em cada tentação uma fraqueza, em cada fraqueza uma necessidade. Em
casa não resta às vezes sequer uma negra fatia de pão. A última peça foi
dissolvida em champanhe. Que fazer? Jogar? É arriscado. E, que o não fosse,
onde encontrar capitais? Roubar? Se a polícia fosse, como a justiça, cega! Que
fazer? Ah! Uma ideia! Ainda se não vendeu tudo. Ainda resta a virgindade de
duas filhas.
Olhado o alferes através desta onda civilizadora,
como não há de causar estranheza?! Damos-lhe, pelo menos, o epíteto de bárbaro.
E ainda somos beneficentes.
Mas esquecemo-nos de que são bárbaros os heróis da Ilíada.
O leito de Ulisses era um montão de peles de
ferozes alimárias, derribadas a murro, creio eu. E mais que muito conhecidos
são os seus banquetes. Um mastodonte, quer-me parecer, um mastodonte assado com
intestinos e tudo, servindo de recheio algum javali, que, vivo e a pular, lhe
encaixaram no tórax, resume e constitui o fausto da régia mesa.
Estava nesta altura a civilização. Mas, quanto
havia de lerdamente grosseiro no trato externo, avultava no íntimo em
magnificências de singulares virtudes. Façanhas gloriosas de semideuses,
prestígio de monarcas, ventura dos povos, épicas proezas datam das eras
bárbaras. Havia muita crença e havia muita esperança, e, além disso, muita
constância e severidade no amor das Penélopes.
Disse-o primeiro Homero. E digo-o eu, em segundo
lugar. É de crer que, qualquer de nós, tenha meditado o assunto.
Assim pois, em teoria, fica, pouco mais ou menos, esfaqueado
o”progresso”, e conscienciosamente se demonstra, por consequência, o quanto são
dignos de saudade os tempos de barbaria, ou aqueles mesmos, em que ela se reflete
mais fagueira. Ainda há vinte anos se desmantelavam peitos, em que efloresciam
rosas carrasqueiras, ou coisa assim dura. Hoje essa tribo dos fortes
torrificou-se nas luzes do século. E tanto é certo, que daqui prometo cem anos
de indulgências plenárias do nosso Beatíssimo Padre a quem quer que me descubra
um homem da estofa de meu avô.
Está feita a justificação.
Oxalá que tal, tão soberana fosse sempre a
indignação dos pais ofendidos. Estou todavia seguro, peço licença para o
confessar, estou seguro de que o alvitre viria a dar cabo do sexo amável… se
excetuarmos, bem entendido, a granítea prudência das avisadas damas da minha
parentela e amizade, e da parentela e amizade de quantos ressonam, ou abrem
perenal bocejo, beatificados pela cruenta narrativa.
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