A VESTAL!
I - L. GUNDAR
La nature, qui pense à tout,
a fait la vierge pour être amant.
MUSSET
Eu sei de soberbas peças de contexto grave, cuja ação
se não aclimaria melhor em Paris ou Lisboa do que em Argel ou na Hotentótia. A
presente memoranda história empantufa-se no antegosto de se filiar nessa classe
distinta; o que, a falar verdade, vale, na aparência, como se disséssemos que
medra nos domínios da fábula, ou que fica ao arbítrio do leitor a escolha do
local. O local, para o nosso intuito, é, com efeito, de ínfima consideração.
Estão em cena Fausto e L. Gundar.
Mas a cena? É indispensável dar-lhe uma qualquer
decoração. Ponhamo-la na casa campestre de L. Gundar, e fica vencido o primeiro
barranco. É a casa um pequeno edifício, que, pelo aprazível da localidade e
capricho de construção, para logo denota um destino exclusivamente recreativo.
Ergue-se no cimo da colina. Por detrás e até ao cume do convizinho morro
estende-se o pinheiral; a um dos lados vergam as árvores do pomar ao peso das
coradas frutas; do outro verdejam os pâmpanos nas torcidas cepas, cobrindo, a
meio, os cachos vermelhos ou enlourecidos, e pendem, em vigorosos festões das
hásteas, que se enleiam nos carvalhos; em frente alinham-se as árvores do
jardim, que se alongam, descendo, até que se debruçam sobre o riacho, que, dormente
em seu leito de areias pulverizadas e luzentes, sulca, num listão de prata, o
ameno vale. Do meio de cada florida moita surge a maliciosa cabeça dum tritão
ou duma ninfa, golfando espumosas águas das bocas de pedra. Os lagos imitam a
natureza. E as grutas, e as ilhotas de base granítea não precisaram de muito
trato para se tornar deliciosas.
É um daqueles sítios, solitariamente poéticos, de
que te hás de lembrar, leitor; um sítio dos que, quando temos vinte anos, nos
avivam irresistivelmente, por prosaicos, que sejamos, a vaga saudade da mulher,
que amamos, ou que ideamos, ansiando por nos esconder ali com ela a prelibar da
mesma taça o néctar dulcífico das imaginárias ternuras.
Penetremos no gabinete, em que nos esperam os
personagens. As alfaias são modeladas pelo gosto francês. E, fingindo-nos
entendidos em modas, poderíamos acrescentar com charlatanismo, nada original,
que a escolha dos objetos estava como que lançando ligeiras reminiscências da
corte suntuosa de Luís XV. Basta.
Fausto e L. Gundar. Temo-los diante de nós.
Duas palavras de apresentação.
Educado na província com a austeridade, que a seus
honrados pais era peculiar, L. Gundar chegou à adolescência sem outros dotes
além duma pureza imaculada, cordura precoce, ignorância das apostemas sociais,
e paixão pelos bolorentos clássicos da livraria paterna.
Mas, como já nessa época começava a entrever a
fidalguia que nem só as armas ilustram, nem tampouco a mestria na equitação,
as proezas da caça e os donaires de salão; e, como o mancebo mostrasse
propender para as letras, foi-lhe aberto o franco caminho dos Tribonianos, dos
Newtons e quejandos patriarcas das graúdas ciências. Em pouco tempo porém L.
Gundar andava em briga cerrada com as matemáticas, e fazia biocos, pouco
decorosos, aos manes dos respeitabilíssimos jurisconsultos romanos.
Dera, no toutiço, pela bossa da política. E tinha,
de si para consigo, que a primeira qualidade dum homem de Estado consiste no
profundo conhecimento de que não sabe coisa nenhuma. Julgou-se pois com
capacidade e pulso para gerir os negócios dum país tão grande, pelo menos, como
o mundo.
Órfão de pai e mãe, confiado à direção dum tutor
condescendente, lembrou-se então de experimentar, como estudo preparatório, em
quantos anos se esbanjariam os nédios cabedais da sua herança. O moço tinha,
como se vê, a ideia intuitiva da moderna ciência das finanças; sobretudo das finanças,
como entre nós se compreendem. Para levar a efeito o empenho, deixou o caminho
dos Newtons e tomou pelo caminho de Paris, provido de boas pranchas para
comunicar em todos os arraiais.
Aí o temos na esplêndida sociedade parisiense,
cercado daquela mocidade entusiasta, elegante, filosófica, ousada e
esperançosa, que, a mãos largas, ia já semeando os gérmenes fecundantes da
revolução.
Num tal convívio, em que as ideias borbulhavam
diáfanas na veia dum manancial civilizador, se atilou o espírito do nosso
herói. De aristocrata, que era de nascença, voltou democrata à sua aldeia
natalícia: democrata frenético e decidido, com a cabeça cheia de revoluções.
O retiro do seu solar, a falta de distrações e de
recreios mais o enredavam nos fios duma teia extraordinária, que andava
urdindo. Encontrava-se estranho às antigas sensações acordadas por aquelas
viridentes devesas, por aquelas espairecidas campinas, por aqueles montes
agrestes, em que tanto parafusara no futuro. Afizera-se a natureza do grave
provinciano a outro menos tranquilo ambiente. Como enriquecido de fertilizadora
seiva, latejava-lhe duplicado ardor nos ímpetos da aspiração. Suspirava por arcar
com atletas. Sentia-se vigoroso, e desejava combates para alcançar vitórias.
Depois de muitas vigílias, consumidas no
delineamento de projetos numerosos, ergueu-se resoluto uma manhã. Tomou um
manuscrito, com muito esmero preparado, e dirigiu-se à capital.
Fez-se pregoeiro das ideias novas. Eram simpáticas
as ideias, e já de sobra irradiadas de França, faziam palpitar os corações.
Daqui se ajuizará se L. Gundar escolheria oportunidade para se inscrever no
catálogo dos escritores. Apenas saído do prelo o seu livro, derramando-se por
todo o país, conquistou-lhe nome e reputação.
Pouco favoráveis iam porém os tempos para as lides
do pensamento. Duas inquisições, a política, ou o despotismo do príncipe
reinante, e a religiosa, encrespavam-se vigilantes e terríveis a fim de tolher
a mais cara ambição das inteligências.
Sem embargo L. Gundar com tal prudência, moderação
e agudeza de vistas se houve, que, sem melindrar alheias convicções, realizou
uma operação de mestre. Não se perdeu um só grão da semente, que este audaz
prosélito de Rousseau semeara em tão fértil terreno. Em breve o cercaram
poderosos satélites.
E começou, clandestino, a levedar um esperançoso
partido.
Está definido o caráter.
Acusa-me a consciência de prolixidade ociosa no
desenho geral. Mas é assim que ele é. Se bem que seja esta uma história de
amores, e não de conspirações guerreiras, cumpria-me ser fiel na descrição.
L. Gundar, diga-se a tempo, era além de tudo um
esbelto rapaz. Desejo que observem nele alguma coisa de interessante. Façamos,
neste ponto, como se o convencionáramos. Supra o leitor, pela condescendência,
as tintas, que eu economizo, por prudência, para não dizer incúria, ou
ignorância.
Agora Fausto.
É este o que, não sei em que dialeto, se chama
homem do tom. É um original. Bandeia-se do lado daqueles, que, nos grandes
centros, aparecem a pequenos intervalos, como saindo duma nuvem, e de contínuo
ora ligados a um escândalo, ora a um rasgo de heroísmo e generosidade, ora a
uma inqualificável vilania, e sempre de luva branca, e sempre airosos, com o
riso na boca, e com a graça na ginástica de belas frases. Era escura e
impenetrável a sua biografia. Mas ninguém, que o conhecesse, deixava de lhe ser
afeiçoado; se não por seus desvarios elegantes, ao menos pelo gênio prestadio,
e vivaz entendimento. Constituía uma mescla singular de bom e mau, nada
antipática. Aos trinta e dois anos possuía uma calva, que Lavater cobiçara.
Pálido, de olhos encovados e luzentes, como os dum profeta, maceradas e
angulosas faces: eis os traços salientes do retrato.
Estava ali uma velhice prematura. Cansara nos
excessos do prazer, bebendo a par amarguras de provações e desenganos. A
existência não tinha novidades para ele.
Por costumeira aprimorava-se no trajo, e, sendo
galhardo como Don Juan, ostentava a
negligência dum nababo.
— Estou à espera, diz ele, no ato de cair debaixo
do raio visual do leitor fisionomista, estirando-se no tapete aveludado do
sofá. Ouçamos o madrigal.
— A casa de minha tia, diz L. Gundar, acabando de
acender o seu charuto, e como prendendo o fio à narrativa, um momento
interrompida; a casa de minha tia assenta nas abas da serra. Seguido dos meus
podengos, e com a espingarda sobraçada, para lá me dirigi, à laia de caçador.
Eu devia estar bem mudado. Fora muito longa a minha ausência para que, voltando
de improviso, houvesse de ser prontamente reconhecido. Se ardia em desejos de
abraçar minha tia, como a um resto estremecido da família, não era menor a
curiosidade de ver minha prima, linda e afetuosa criança, que, debulhada em
lágrimas, me vira partir, e que devia desabotoar agora em todos os atrativos
graciosos, com que a mulher desponta na juventude. Emproava-me no prestígio de
viajante, e ia caminhando infantilmente persuadido de que a minha presença,
clareada pelo sol de países, que ao longe, e para as almas inexpertas, assumem
vantagens de maravilha, não deixaria de produzir satisfatório efeito, quer no
ânimo bondoso da mulher, que me vira infante, e me prestara maternais desvelos;
quer no ânimo da exaltada criança, que me brincara nos braços, e que eu soubera
entreter, noites a fio, com inextinguíveis histórias, em que se via grega a
bruxaria. Podiam folgar as lebres na campina, as perdizes nos restolhos, e na
selva as rolas. Ia muito distraído o caçador, para que se ocupasse delas. Em
chegando ao portão da quinta, ergui, com certa comoção, o martelo, e por três
vezes o deixei cair no ferrenho batente. Respondeu-me o sanhudo latir dos
rafeiros, que, furiosos, engatinhavam pelos muros, mostrando as irritadas
carrancas. Um, sobre todos, atrepado ao parapeito do balcão, parecia
endemoninhado nos arremessos furibundos, que do alto me fazia. De repente,
junto dele, no mesmo ponto… que ilusão! que encanto!
— Viste?…
— Um milagre. Era ela.
— Tua prima?
— Minha prima. As tranças loiras, o jaspe da cútis,
o alvor das vestes lançavam não sei que resplendores vermelhos… Eram como uma
auréola…
— Ah, ah!
— Notei depois que resultavam do sol, que declinava
num mar de púrpura. Pareciam cor-de-rosa os montes e os arvoredos, que
limitavam os horizontes, enrubescidos ao beijo luminoso dum suavíssimo poente.
Florentina!, exclamo, prima? Não me conheces?
Ela olhava-me com tímida curiosidade, chegando ao
peito, como num afago, certas flores que cresciam ali nuns vasos toscos. Mas,
apenas lhe falei, toda se inclinou sobre o muro, e, de repente, como que se
iluminou de estrepitosa alegria. Reconheceu-me. E, em gritos deliciosos,
correu, ela própria, pondo toda a casa em alvoroto, correu, desfeita em júbilos
e em sorrisos, a abrir-me a porta. Que abraço, que longo abraço e que séculos
de ventura, vividos num instante!
— Escândalo! ejacula Fausto, dando-se ares de
moralista.
— Faltará ao homem, prossegue o narrador, sem o
ouvir, faltará ao homem o pão de cada dia, a aura da felicidade, a consolação
da esperança, a Graça de Deus e a graça de seus irmãos; mas o que decerto lhe
não falta, ou seja positivo ou sonhador, é um ideal de mulher. O meu em vão o
procurei debaixo dos veludos luxuosos das esplêndidas sociedades. Encontrei-o,
sem o procurar, numa solitária serrania, no meio de penhascos aprumados, longe,
bem longe dos miasmáticos bulícios do mundo.
— Eterno devaneio dos namorados.
— Enamorado, por certo. O que não mereço é ser
medido pela craveira de qualquer fútil devaneador. Já sou bem velho.
— Andas pela minha idade.
— Trinta completos. Florentina é, além disso, o meu
primeiro amor.
— Que dizes!
— A verdade.
— Queres então que descreia do perigoso salero das espanholas, do coquettismo dengue das francesas, do…?
— Compreendes que amor seria o meu, interrompe L.
Gundar, sem lhe responder.
— Amor virgem.
— Na idade viril.
— Adiante.
— Voaram dias após dias, sem que eu pudesse quebrar
o encanto, em que me enleara a pequena. A constante descrição das minhas
viagens, com seus recamos de anedotas pícaras, pela maior parte inventadas a
capricho, cobria-me de adorações em casa de minha tia. Era este um prato
peregrino à mesa singela da família, para que deixasse de ser estimado.
Todavia, eu tinha ali um inimigo.
— Olá! Começa pois o enredo.
— Um inimigo terrível.
— Era o capelão. Aposto…
— Era o afilhado do capelão.
— Quem!
— Níger.
— Quem é esse Narciso?
— O rafeiro; o azougado rafeiro, que tão sem
cortesia me dera as boas-vindas. Soberbo animal! Nunca eu vira outro, que
pudesse igualá-lo no gigantesco das proporções e na altiveza de movimentos. Era
felpudo, como um bode, e negro como o azeviche. Nem tinha menos lustre do que
este mineral. Os dentes eram finos, longos e esmaltados. Luzia-lhe nos olhos a
inteligência, e como que se espelhava neles uma alma contristada. Em torno às
patas lhe pendiam franjas de felpa branca como de neve, que não davam pequena
distinção ao composto. Era com todos submisso e até cortesão. Porém se passava
por mim eriçava-se-lhe o pelo, aprumavam-se as orelhas, chispavam os olhos,
dilatavam-se as ventas e, arregoadas as maxilas, apareciam formidáveis as
falanges terríveis dos alvíssimos dentes. Cada um dos meus afagos nunca obteve
senão rugidos de ameaça, e outros nada delicados sinais de enfado. Costumava
seguir Florentina com estranha contumácia. Dir-se-ia arrastado dum poder
magnético. Seguia-a cegamente, como leal e oficioso companheiro, sem escolha de
lugar ou circunstância. Mas, desde que me vira conduzi-la, em diversões
frequentes, pelos rústicos e alpestres passeios da quinta, deitando-lhe de
longe vistas de tímida exprobração, principiou a descair numa tristeza lassa, a
perder visivelmente o vistoso arredondamento de formas e a recusar-se, com
invencível tenacidade, a acompanhá-la. Alta noite, quando o sono melhor faz
sentir suas doçuras, acordávamos, por vezes, em sobressalto, julgando ouvir
gritos lamentosos de moribundo. Era Níger,
que, aproveitando o repouso geral, desafogava a indecifrável opressão em uivos
prolongados, dolorosos e medonhos, que muito tinham de humanos queixumes. Seria
instinto agourento de desgraças, ou medo de que o privassem da estima da sua
bela protetora?
— Atribuem-se, com efeito, bem extraordinários
pressentimentos a essa casta de animais, diz Fausto.
— Às tardes, prossegue L. Gundar, depois de breve
interrupção; às tardes, com Florentina pelo braço, subia aos outeiros para me
ir sentar com ela junto dum castanheiro selvagem, muito grato em sombras.
Dormentes sobre os musgos secos das fragas, passávamos horas esquecidas em
conversas, em amenas leituras, ou a fitarmo-nos, simplesmente, em muda
eloquência. Os romances de cavalarias eram os livros da predileção de minha
prima. Mandava a cortesia que lhe lesse as passagens, que de preferência lhe
agradavam. E dava-me por bem pago e satisfeito, só com surpreender-lhe, nas
lágrimas ou nos risos, as impressões da leitura. Pouco e pouco ia explorando a
riqueza de sensibilidade, que pululava naquele seio de neve. Mas, no meio
disto, confessar-te-ei que me sentia deslocado. Afeito ao ambiente dos salões,
em que flutuam vaporações perigosas, como as do Ganges; audaz com as mulheres
lustradas na corte, não compreendia a estranha timidez, que uma rapariga de
medíocre cultura, de nenhuma experiência e de superior ingenuidade me
despertava, em face da natureza. Morria por lhe falar de amor, mas não mo
sofria o ânimo. No ato de me determinar, todos os projetos faliam por mais que,
pensando com frieza, me esboroasse em piedade pela minha candura bolônia.
Afinal pude abordoar-me a uma circunstância feliz. E dei inteira fluência ao
estro das declamatórias baforadas. Lia eu um caso de amores, em que a heroína
se consumia nas flamas duma vigorosa paixão. No entretanto, queria-me parecer
que Florentina tomava muito ativa parte nas desditas imaginárias da nobre
castelã. Era castelã a heroína. Quando conheci que estava em boa afinação a
terna condolência de minha prima, foi então que, fechando o livro, empreendi
hábil auscultação a fim de não perder uma só das argênteas notas daquele
coração virgem.
— E tu, minha bela priminha, perguntei, sabes
avaliar a grandeza sublime desse sentimento misterioso, que tanto te comove?
— Sei, primo, sei.
— Sabes! Pela ternura da tua alma? Ou já porventura
a experiência te adoçou alguns instantes?
Hesitou, para balbuciar um equívoco “sim”.
— Tens a experiência, Florentina?
— Tenho.
— Mas aqui, no ermo destas brenhas, tão longe do
mundo e tão perto de Deus, quem se glorificaria na posse do teu amor?
— Eu não sou ambiciosa.
— Em que pões os desejos?
— Devolvam-me o que dou: recompensa de afetos…
— E quem há que, só de ver-te, não estremeça
amoroso?
Corou.
— É que não era inocente, interrompe Fausto em
ferrenha coerência nas suas teorias de pessimista.
— Por quê?
— Corou. Tu o disseste.
— Não achas compatibilidade entre o pudor e a
inocência?
— Para logo os comentários. Continua.
— Seja. Para logo os comentários. Florentina
parecia aturdida.
— Priminha, lhe disse eu, dar-me-á a amizade
direitos a perguntar quem é o escolhido da tua alma?
— Que pergunta! murmura ela, baixando virginalmente
os olhos.
— Não serei eu um discreto confidente?
— És… decerto. Mas eu é que não tenho segredos…
— Disseste que amavas…
— Amo. Não havia de amar? Tenho vida, fé e
esperanças.
— Deixa-me ser invejoso.
— Como?
— Profere o nome…
— Adivinha.
— Receio.
— Pois é fácil. Sabes que sou filha, e que tenho
uma mãe, como não há segunda.
— Maliciosa!
— Agora sabes.
— Sei que és cem vezes mais má do que eu cuidava.
Então não conheces afeição menos branda, mais inquieta e exigente?…
— Não.
— Por um homem, que te aparece em sonhos, na
embriaguez da imaginação, nos frouxos deliramentos da alma?
— Não.
Senti aperturas de coração.
— Que sou eu para ti, Florentina?
— Primo.
— Queres dizer indiferente?
— Indiferente, não.
— Pois quê! Não consegui radicar em teu seio mais
profundos afetos?
— Eu sei, primo. Há coisas…
— E avalias os nobres sentimentos do amor?
Enganaste-me.
— Oh, Gundar! Eu sou uma pobre rapariga. Eu não sei
responder. Mudemos de conversa, que me perturbam muito as tuas perguntas. Sê
generoso.
Tomei a mão, que me abandonava, e levei-a aos
lábios com transporte. Aquele beijo devia fazer-me descorar. Ela, entre risos
de angélica candura, fitou-me, nadando em alegria, como se eu tivesse praticado
uma ação muito engraçada. Pelo contrário Níger,
que por acaso nos acompanhara, desta vez, investiu para mim, mostrando
ameaçadora a terrível dentadura.
— Não é pura de nigromancias a tua história. O cão
era uma esfinge.
— Era como uma esfinge, posto de guarda à minha
princesa encantada.
— Vou jurar que não levou a melhor. Tu serias
paladino para vencer o monstro, e desencantar a princesa.
L. Gundar continua:
— Neste comenos reclamavam a minha assistência
vários negócios de interesse particular. Tornava-se pois forçoso abrir uma
lacuna ao primeiro canto do meu poema, e renunciar, por algum tempo, a este
paraíso terreal. O meu cavalo aparelhado e lesto esperava que declinasse a
sesta para conduzir o cavaleiro. Com a fraterna liberdade, que a malícia dos
homens afugenta das cidades, entrei no quarto de Florentina para a estreitar no
abraço da despedida. Ela, quebrantada sobre o leito, espreguiçava-se molemente
nessa morbidez comunicativa, que quadra, às mil maravilhas, nas mulheres dos
países cálidos.
— Dormiste? perguntei.
— Não pude.
— Não quiseste, para não sonhar comigo?
— Estava a sonhar.
— Comigo?
— Sim.
Que dulcíssima expressão a daquela miserável
sílaba! A mulher é um divino cofre de segredos. Quando quer, num gesto meigo,
numa palavra, mal proferida, resume as magnificências duma sinfonia inspirada.
— Vou partir, tornei eu.
— Mentira.
— É necessário.
— É necessário que fiques.
— Por quê?
— Porque eu mando.
— Não estás cansada de me ver?
— Estou cansada de pensar que me deixas.
— Posso acreditá-lo?
— Deves.
— Obrigado. Mas…
— Proíbo reticências.
— Quando tornarei a ver-te?
— Logo, amanhã, que sei eu?
— Sim, amanhã e sempre, que, já agora, andarás
sempre a meu lado, feiticeira!
— Não te deixo partir.
— Deveras?
— Deveras.
— Pois ajustemos. Eu sou muito egoísta. Exijo até
que me paguem as delícias, a que me obrigam.
— Estou pronta.
— Além disso, no meu comércio, costumo adotar a
usura.
— Vamos a ver. Que pedes?…
— Permites?
— Permito.
— Um beijo.
— Primo!
Doeu-me a queixosa repreensão, que pôs no modo,
porque acentuou a palavra.
— Ofendi-te, Florentina? Foi sem querer… Perdoa.
— Não me ofendeste. Humilhaste-me.
— Divinas esquisitices das donzelinhas Teodoras.
Sentou-se no leito. A luz, amortecida nos
cortinados da janela, fez brilhar duas lágrimas, que das pálpebras voluptuosas
lhe desciam.
— Sabes porque me aflijo, primo? diz ela,
infligindo à voz simpático queixume. Não é por ser mais melindrosa do que as
outras raparigas. Se com algumas virtudes me fadou Deus, também não me faltam
grandes e bem grandes fraquezas. Sou talvez muito orgulhosa. Queria que a
mulher nessa sociedade, em que vós os homens semeais escândalos com a mesma
gentileza com que semearíeis flores, ao abrigo dos direitos, que vos
concedestes; queria que a pobre desfavorecida não fosse ao menos escarnecida na
dignidade, que impõe respeito…
— Quem ousou escarnecer-te, Florentina? Que
perdeste tu?
— O que eu perdi foi a serenidade das minhas
noites; foi o sorrir da minha infância.
— Como!
— Porque tudo é teu; porque tudo me levaste.
Oh Fausto! julga do êxtase suavíssimo, em que fiquei dulcificado. Esta linguagem na boca infantil da criança, que adoramos!… Compreendes? A vida dela contava-se por dezesseis anos de eremitério. Se não é aquela a linguagem privilegiada da inocência, eu descreio da inocência. Que seja o culto de Vesta interpolado no catolicismo, e Florentina será a mais casta das sacerdotisas.
II - A MULHER NO PELOURINHO
Desde as primeiras Laudas, nega a Bíblia
Fidelidade em fêmea.
FILINTO
Os fugitivos lineamentos da narrativa avivavam em
Fausto certa curiosidade dolorosa, que se traduzia nas transformações graduais,
por que passava. Arregoava-se-lhe a fronte em sulcos alternados, fulgiam nas
pupilas sanguentos clarões, e as cores variadas do camaleão tingiam-lhe,
sucedendo-se, o rosto singular.
— Concluíste? pergunta, fitando com fingida
placidez o interlocutor.
— Dava tempo a que ajuizasses.
— Primeiro saberei das traças, com que a criança
engoda o velho sapiente, diz Fausto, em inflexão pouco delicada.
— És injusto.
— Não, sou visionário.
— Se a conhecesses!…
— Era mais uma Eva no registro das industriosas.
— Fausto!
— Não há considerações, que me abstenham de
indigitar o réptil.
L. Gundar pregou vistas interrogadoras no amigo.
Este parecia alucinado.
— É minha amante, Fausto!
— Eu não verbero a amante, esmago a víbora.
Depois, como fazendo sobre si extraordinário
esforço, e, descaindo, de súbita vermelhidão, na palidez natural, continuou,
peando a voz em pedagógico acento:
— Tens diante de ti um horizonte, que pode cansar a
audácia duma poderosa ambição. Não o limites. Aceitaste uma sagrada missão na
política deste povo. Não a aviltes. Concilias, em volta de ti, os elementos
generosos duma grande ideia, quase embrião. As tuas ações não te pertencem,
desde que te devotaste a uma causa, que não é só tua. Não vás amarrar-te em
grilhões, suaves sim, mas que hão de estorvar-te de cumprir o feliz horóscopo.
Amodorrado, entre uns braços de alabastro, o homem esquece o que sejam cívicas
virtudes, desflora a castidade da inteligência, efemina-se e deprava-se, como…
como a mulher.
Esta baforada de inesperados conceitos, gafados de
paradoxo, embotou os espíritos de L. Gundar. Intimidado pelo aspecto sinistro
do companheiro, não ousava tomar a questão no campo do jocoso. Esperou,
moderando-se, em plena perplexidade, que lhe viessem à mão os fantásticos fios
do enigma, que se lhe afigurava meandroso e emaranhado.
Fausto, tendo-o considerado com olhos cheios de
fascinação, prossegue, exaltada a voz, e descomposto na fisionomia:
— Se duvidas, pergunta-o às rugas precoces do meu
rosto, às vergonhas da minha vida, à esterilidade das minhas faculdades. Falo
seriamente. Caia a máscara do jogral, com que se escondem enraizadas tristezas,
e apareça nua a verdade, nua e horrenda, como meretriz, contaminada da lepra.
— Submeto-me, redargúi o outro, transigindo
benévolo. Mas faz por ser mais sóbrio em insultos cínicos, que me ofendem, e
que ofendem um sexo adorável, o sexo de nossas mães.
— O sexo de nossas mães! repete Fausto.
E pôs-se a rir diabolicamente.
— Sondaste o abismo de mistérios e incoerências,
que o Inferno disfarçou nas seduções da mulher? acrescenta, tomando-lhe a mão,
e com entono extraordinário.
L. Gundar sentiu uns arrepios do receio
supersticioso, a que não se exime a mais segura sensatez, e a mais sábia
justeza de princípios. A mão, que apertara a sua, estava fria de gelo, e o
hálito de Fausto escaldava, como o reflexo duma chama infernal. Nunca por tal
face vira o excêntrico amigo.
— Conheces a mulher? insiste Fausto.
— Se a conheço!
— Conhecê-la dos livros. Mas a ciência é impotente.
E o romance não passa duma superficial respiga de idealidades. Se não és adepto
das ciências ocultas, contesto o que disseste; pois que a experiência, esta
verdadeira pedra-de-toque, sei eu que te falta.
— Enganas-te. E, se não, pergunta-o à opinião
pública.
— O juízo das massas! Seria bater à porta duma casa
deserta, ou antes num crânio vazio.
— Salvas-te no exagero. E não te lembres de que
tenho lidado com mulheres de todos os países. Conheço-a, portanto; conheço-a
como tu, como te conheço a ti.
— Como me conheces!
— Justamente.
— Olha para mim, Gundar.
Dizendo, estava em pé, sinistro, imóvel.
— Que sou eu, então?
L. Gundar estremeceu. Toda a razão lhe era precisa
para se não dar em espetáculo de irrisões. Julgou-se embriagado.
A figura de Fausto tomara a inércia e a dureza do
mármore. Só os olhos, sombrios e magnetizadores, como os do sapo, fosforesciam
no fundo das cavernas, em que estavam mergulhados.
— Sabes quem sou! continua com ironia picante. Pois
bem, sabes que tenho levado vida de perdido; por inclinação primeiro, depois
por luxo e, em seguida, por desfastio, ou por hábito. Fiz meu leito no leito do
adultério, da virgindade, das viúvas com fama de honestas. Corri os degraus da
escala social, e provei o absinto de todas as taças.
— Que queres concluir?
— Tinha crenças como tu. Adorava a mãe, linda e
moça, quando a via acurvada, em êxtase, para o berço do seu primeiro filhinho;
alegrava-me com a vista da esposa, no poético período dum noivado ditoso;
embevecia-me na virgenzinha, quando a surpreendia em seus brinquedos infantis;
respeitava a mulher desiludida, que, declinando para a velhice, dizia adeus às
coroas do noivado e à mocidade, sem uma nódoa, mas também sem uma fagueira
recordação… Isto, porque tinha um prisma, que dourava as imagens. Um dia
quebrou-se. E vi retintos os objetos nas hediondas cores da realidade: argila,
que uma gota de orvalho reduzia a lama. Nunca, nem uma só de tantas mulheres,
que conheci, se uma vez lhe cingi com o braço a cintura, para em langorosa
violência experimentar como o seu peito arfava junto ao meu, deixou de acolher
nos pálidos lábios um beijo, caído dos meus, como num sorvedouro de imundícies.
— Convenho. Há tais, que fazem da infâmia um
mister. Mas não tires de alguns fatos atributo geral…
— Já o velho Voltaire dizia: heureux cent fois qui trouve un pucelage! Voltaire é o teu
evangelista. Mas tu, que, neste ponto, te prendes aos preconceitos do vulgo,
juro-te que não ficarás impune.
— Tornas-te agoureiro como um vidente.
— O futuro!
— Em que te fundas?
— Dispamo-nos das fórmulas amaneiradas lá de fora.
Sejamos francos.
— Lisonjeias-me.
— Ao contrário.
— Ao contrário! Por quê?
— Porque vou ser o iconoclasta dos teus ídolos de ouro.
— Como?
— Fazendo transparecer a tua Florentina num espelho
fiel.
— Como? repete L. Gundar, sem o compreender.
— Basta que consintas em abrir os olhos, e em lhe
descobrir na boca, em labaredas, a peçonha das víboras.
— Caprichos!
— Já esperava o desdém.
— Acusaste. Uma acusação gratuita e acintosa não
tem força em juízo. Provas?
— Tenho-as.
L. Gundar sentiu-se desfalecer no interior.
— Onde estão? pergunta de ímpeto.
— Tenho-as aqui na cabeça.
— O que tu tens na cabeça é o calor das alucinações
febris.
— Oxalá!
— Explica-te.
— A cândida virtude de tua prima, essa virtude ingênua,
de que a coloras tão castamente, cai, sem canseiras de entendimento, debaixo
duma razão poderosa.
— Qual é?
— Fatalidade.
— Onde vês a fatalidade?
— Na condição de mulher.
L. Gundar respondeu com a exprobração dum riso
glacial.
— Além disso, os seus rendimentos pouco excedem
honesta mediania.
— Quem to disse?
— Ninguém. É que a lógica não é uma mentira. Os
teus ricos morgados deviam tomar parte na sedução.
— Blasfemas. Há na vida uma fase pouco vezada à
adição de parcelas.
— Quanto ao homem. A mulher tem a escola da mãe
matreira, que a inicia nos segredos da ambição, visto não lhe ser dado
espraiar-se, como nós outros, por esses mil e um caprichos, de que nos é lícita
a escolha.
— Todavia…
— Para concluir: Florentina é, como disseste, uma
donzelinha de medíocre cultura e de superior ingenuidade; e eu descubro-lhe no
perfil algum disfarce das insídias do Inferno. Porque te enfeitiçou com
discursos maliciosos, com langores estudados, dando pudicas e queixosas
lágrimas, e invectivas de Lucrécia ofendida ao feroz Tarquínio, que implora, de
joelhos, um beijo puríssimo. Porque depois, em ocasião oportuna, desvanecido o
pejo, não te deu um, deu-te centenas de inflamados beijos.
— Fausto! Quem to disse?
— Ninguém. Diz-mo o teu espanto.
— A inocência é inconsiderada.
— E a mãe da menina? Nada significa, para ti,
aquela fabulosa complacência, que deixa esvoaçar a pomba nas garras do
milhafre?
— Minha tia é uma santa. E bem sabia que a minha
honra…
— Amigo! O teu estômago sobre-excede em vigor o do
avestruz. Descansava na tua honra! Por isso mesmo. Não devia supor que fosses
um eunuco miserável; e era-lhe pois permitido esperar gentil reparação, no
valor de três ricos morgados.
— Misericórdia!
— O dedo providencial de tua tia andava, não podia
deixar de andar, nas ciladas elegantes de Florentina. Uma rapariga de superior
ingenuidade, com bom ensaiador, porque não há de ser ótima atriz?
— Fausto! Suposições dessa ordem… Perdão. Minha tia
é uma santa, torno a repeti-lo.
— Oh, oh, oh! pôs-se a rir o céptico com riso que
gelava o sangue. Consentes que te conte uma história? acrescenta.
— Como te aprouver.
— Aí vai: há muito que isto sucedeu, e cuido que se
passou ainda hoje, tão fresco o trago na memória. Tinha eu doze anos, os doze
anos mais viçosos, em que jamais se abotoou uma existência. Pousavam-me nos
ombros os anéis louros dos meus cabelos, e trazia aferrolhada a saúde nas
nacaradas bochechas. Chamavam-me travesso e lindo as damas, que visitavam minha
mãe, e não se despediam sem me beijar com mais ganância, do que o faziam a seus
maridos, posto estar eu já então desenvolvido, como um fruto quase maduro. Não
falta, quem os ache mais saborosos assim. Meu pai tinha na província um amigo,
que, por ocasião do casamento de sua filha, fora condescendente com a menina, a
ponto de a levar à capital para, mais a sabor seu e dela, a adereçar para o
noivado. Hospedaram-se em minha casa. A noiva tocava nos vinte anos. Era uma
criatura angélica, tímida e pudorosa como a mesma virgindade. Baixava os olhos,
se a fitavam; quando falava era em marulho de ternas blandícias, que deixavam
adivinhar uma alma seráfica; e, se lhe dirigiam a palavra, tremia, sensitiva,
como receosa de manchar-se ao contato impuro dos mundanos. Uma noite sonhei
que um bom gênio brincava nos meus cabelos, enchendo-me os ouvidos de
harmonias, e o travesseiro de perfumes. Um sonho de inocência! Ainda
impressionado, ao despertar, abri os olhos interrogadores, e pasmei-os numa
sombra, que se desenhava no muro. A luz da lâmpada deu em cheio na face da
tímida provinciana. Disse-me que, assustada por se ver sozinha numa câmara
imensa, para não enfadar ninguém, preferira refugiar-se mansamente no meu
quarto, que era contíguo ao seu, e esperar ali que amanhecesse. Falando,
quebrava-se sobre mim, com o rosto junto ao meu, com a respiração a queimar-me
na fronte, com a voz desfalecida; e não reparava que saíra quase nua do leito,
e que expunha, à minha vista indignada, os redondos seios de donzela, os mais
castos e resguardados tesouros de pureza. Parecia-me febril, e não sei que
fascinação lhe vi nos olhos, que me assustou. A nudez aumentava a cada
movimento, que fazia, e ela nem dava mostras de o perceber. Eu inquietava-me de
a ver nesse desalinho, porque já o pejo me rebentava nas faces. De repente
apertou-me frenética nos braços nervosos. Soltei um grito, que ela sufocou,
pondo-me na boca a mão. E, apagando a luz, introduziu-se no meu leito,
descansou a cabeça no meu travesseiro, e…
— E?...
— Violou-me.
— Hediondo!
— Bagatela.
— Tinha ido à capital colmar-se de atavios para se
dar, enfeitada e brilhante, às ternuras do esposo…
— E levou-lhe esterquilínio debaixo dos adornos.
— É-me permitida a curiosidade de saber o nome
desse demônio?
— Porque não?
— Quem é?
— Chamaste-lhe santa.
— Quem é?
— Tua tia.
L. Gundar faz-se amarelo de cera. Fora muito rude o
abalo. Sente-se vencido.
Fausto reconhece-o. E, depois de sorver, reclinado
na janela, alguns haustos de ar, requisitados por seus viciados pulmões,
prossegue em crescente excitação:
— Ao menos as corrompidas das ruas não são
hipócritas. Oferecem despejadas as cadaverosas e enxovalhadas carnes às turbas,
que nelas vão tropeçar; pagam meus afagos, meus insultos sórdidos com beijos,
que, minguados do calor, que exalta, são eivados da sífilis, que putrifica; mas
vendem-se francamente. Resta-me a vingança de lhes matar a fome, ferindo-lhes a
emagrecida cara com uma moeda de prata.
— Quisera dever-te mais delicadeza, amigo.
— Por quê?
— Em casa de enforcado é crueldade falar na corda.
— Aqui não há enforcados. Há um fato e a sua
crítica. Tu adoras a mulher com toda a energia dum amor noviço. Quero fazer-te
a operação da catarata, a fim de que, nas mãos dela, te não transformes em
baldão de escárnios; a fim de que, quando a encontrares na cena do mundo,
coroada de rosas brancas, tentes segui-la ao recesso dos bastidores, onde
possas vê-la, a pureza que te endoidece, em toda a hediondez das suas
inclinações. Saberás que debaixo do travesseiro esconde, quase sempre, em vez
dum edificante catecismo de moral, alguma dessas obras ignominiosas, com que se
provoca a sensualidade, em quadros obscenos e torpes. Atordoada nessas
lambarices, lê-as com o sangue em ebulição. E, quando fecha o livro, não é
senão para se revolver nas ateadas labaredas, espumando incêndios; esbugalhando
os olhos, que só veem a impudica concepção do cérebro debilitado; enroscando-se
nas imagens sórdidas, que flutuantes tumultuam, até que um sono profundo, como
a morte, lhe avassala os membros.
Ia continuar, numa espécie de delírio contagioso.
Porém interrompeu-o uma tosse seca e cavernosa, que lhe espedaçava o peito.
Levou um lenço à boca.
L. Gundar, longe de se irritar, compadecia-se.
Pregara nele os olhos, acesos em perspicácia de lince.
— Há por força um segredo na tua vida, exclama. Um
segredo terrível!
Fausto ia replicar. Mas novo acesso de tosse, mais
seca e mais estridente, o sufocou.
— Fausto, Fausto! Tu sofres! Essas feições…
Sentes-te mal?
— Nada, responde o outro em voz sumida, mostrando o
lenço, manchado de sanguentos laivos. A confissão dos teus amores bucólicos,
continua sorrindo, trouxe-me à memória recordações, que eu desejara
aniquiladas. Tais são, que animaram uma fibra paralisada, a qual, como vês,
espirra sangue.
— Não, tu não és o que pareces!
— Oh, oh, oh!
— Há nesse rir uma amargura, das que gangrenam. És
um arcano, Fausto.
Em seguida L. Gundar chamou um criado para que
trouxesse cordiais, com que se confortasse o doente.
— Que arreiem o meu cavalo, interrompe este, em pé,
levando mão do chicote, cujo pesado martelo fez soar no pavimento.
— Partes?
— Imediatamente.
— Oponho-me. Nesse estado…
— Sê humano. Não me recordes o meu estado. Morre
muita gente aos trinta anos.
— Morrer! Donde te veio essa ideia fúnebre?
— Estou tísico, diz Fausto em ar de confidência.
— Tísico!
— Basta.
— Porém…
— Basta. Há assuntos mais interessantes.
— Sempre excêntrico.
— Estou aqui, atrofiado pela raiz, diante de ti,
robusto e escorreito; e, de nós ambos, não sou por certo o mais digno de
piedade. Para mim uma morte ligeira, natural e simples, uma lei universal; para
ti uma morte lenta, desesperada, o matrimônio. Mas impavidez só tu a tens,
porque te rendes à escravidão, cantando hinos de vitória.
— O matrimônio também é uma lei.
— De que eu zombo.
— Sim, mas como? Saltando a pés juntos por cima de
todas as conveniências; atirando o facho, extraído dos brasidos do pecado, ao
meio das desonradas famílias.
— Perdão!…
— Sossega. Não te quero irritado.
— Conversemos. A não ser certo travor, que encontro
nas bordas deste cálix, que, em comum estamos a delibar, regala-me o curso, que
tomou a diversão. Já agora vou dissecar este peito, fibra a fibra, para que
vejas a cadeia de horrores…
Como retido por uma convulsão, interrompeu-se.
Bailavam-lhe no rosto grandes bagas de suor. Após morna indecisão, dessas que
denunciam internos conflitos, clama com ênfase:
— Não. Ao esquecimento os espectros do passado!
Mas, já que chegamos a estas alturas, vou contar-te uma anedota da minha vida,
com que hás de folgar e rir a preceito. Que nos tragam vinho e tabaco.
— Vinho, e…! Queres envenenar-te?
— Que importa o que eu quero? Tenho sede.
Esgotado um copo, Fausto principia:
— Era na quadra, em que há superfluidade de luxo no
anil dos céus, e no ouro e na púrpura dos ocasos. Eu via tudo luminoso e
clareado pela irradiação esplêndida dum idear juvenil. Era poeta, porque amava.
Amava uma mulher, que me satisfazia a vaidade, e que me satisfazia o coração.
Nas formas toda a voluptuária sensualidade das virgens de Ticiano; no espírito
as virtudes heroicas como as quer o douto misticismo. Onde aparecesse,
erguia-se um burburinho de admiração respeitosa. As damas, em segredo,
invejavam-lhe a formosura; os elegantes maldiziam a estranha isenção, que tão
singular respeito infundia; os velhos cobriam-na de louvores por sua modesta
serenidade e discrição extremada. Eu era o Romeu daquela Julieta.
Correspondia-me; mas sem calor, sem vivacidade; glacial como a virtude,
inflexível como os seus princípios de romana severidade. Nas diferentes
conversas, que, em completa liberdade, entretínhamos juntos, nunca, uma vez
sequer, me consentiu o favor mais insignificante e pequeno. Punha entre ambos
uma raia intransitável, o respeito; esse respeito, que perturbava quantos,
porventura, pretendiam galanteá-la. O meu amor porém, longe de se apagar com o
irremovível obstáculo, tornava-se cada dia mais lascivo e pertinaz. Uma noite,
era depois do baile, dando-lhe o braço, tinha-a conduzido ao seu quarto de
dormir. Começamos a borboletear nos jardins das nossas esperanças.
— No quarto de dormir! diz L. Gundar com um sainete
de malícia.
Fausto aproveitou a interrupção para de novo
emborcar o copo.
— No quarto, sim. Contraíramos esponsais. Além de
que o seu caráter lhe santificava todos os atos, por absurdo, que isto possa
parecer. Falávamos do futuro. Mas eu estava sobre brasas. Aqueles braços nus,
aquele colo gracioso, aquela carne palpitante, viçosa e fresca, ornada de
pérolas e diamantes, as rosas lânguidas do toucado, cheias de aromas, e
reminiscências do baile… coavam nos sentidos torrentes de embriaguez
irresistível. Uma nuvem de gozo me circunda. Quero dominar-me, mas…
— Bárbaro!
— Mas não pude.
— Ficou perdida!
— Estava a ponto de lhe beijar a mão…
— Ah!
— Ela leu no meu pensamento e apenas me fitou.
Fiquei imóvel.
— Fascinava.
— Estávamos nas vésperas do casamento, quando
adoece a mãe da minha bela. A doença deu logo todos os sintomas de insuperável.
Julga da minha dor. Fiz-me enfermeiro. À segunda noite cumpria-me velar.
Entrei, sem ruído e sem precedência de anúncio, na alcova da enferma. Oh pasmo!
Encontrei-a nos transes do passamento! Contorcia-se em ânsias aflitivas,
expelindo dos beiços amarelos enegrecida espuma, e rolando nas órbitas os olhos
sem luz. As mãos tinha-as crispadas sobre o peito, como se sentira ali o mal. A
um lado, de joelhos, estava a minha noiva silenciosa e absorta. Quando me viu,
deu um grito de surpresa, e correu uma vista de sinistro pavor do leito da
enferma para a mesa, em que estavam os remédios. Não sei que de espavorido
havia nela. Estranhei-a. A desgraçada fazia lembrar o criminoso, descoberto em
flagrante. Respondeu quase em delírios, às minhas perguntas. Os olhos não os
tirava duma taça, posta à cabeceira da doente. Por acaso, atentando no
lastimoso quadro, que tinha diante, deixei escapar alguns impropérios contra a
medicina. À palavra "envenenadores” de que eu, com a injustiça, que as aflições
atenuam, acoimava os médicos, a piedosa menina caiu-me aos pés em choro. Tive
então uma desconfiança satânica. Observei a taça. Havia nela as fezes dum
líquido nauseabundo, totalmente diferente do remédio que das receitas constava.
A minha noiva seguia-me com ansiedade. Ao tomar a taça, quis arrancar-ma da
mão. Era noviça no crime. Denunciara-se, sem que o pressentisse. Que abismo, e
que desengano, Gundar! O Diabo mostrava ali o seu poder.
— Diz antes a Providência.
Fausto assaltou outra vez a ânfora. E prossegue com
a epiderme colorida de sombria escarlata:
— Precipitei-me na sala próxima, resolvido a
entregar à justiça a desnaturada filha. Porém esta, desfeita a turbação, pela
iminência do perigo, fora mais veloz; e, aferrolhando a porta, interpusera-se à
minha passagem. Repeli-a com desabrimento e cólera. Mas ela prendeu-se no meu
pescoço com os braços de alabastro, elásticos e macios, como de seda!
Indignado, ergui a voz para a verberar com acusações sangrentas. Mas pôs-me na
boca, por mordaça, os lábios tão cobiçados, e tão cheios de artificiosa
volúpia! Amolecem-me os músculos em laxidão suave; uma estolidez profunda me
invadiu o cérebro… Mulher, mulher!
A ânfora foi de todo esvaziada. Fausto pede mais
vinho.
— Desgrenhada e nua, como uma bacante, levei-a para
o sofá. Ao mesmo tempo, no fundo da alcova, estrebuchava a mãe nas vascas da
agonia.
Tão negra pareceu a narração a L. Gundar, que,
sorrindo consigo, a desterrou para a fábula. Porém, o aspecto de Fausto
convenceria o próprio S. Tomé, que é o pontífice dos incrédulos.
— Horrível! exclama. É inaudito, não está na
natureza! A filha envenenar a mãe, e prostituir-se sobre o cadáver?! As
saturnais da Bórgia, em que a peçonha circulava, em copos de ouro, nos vinhos
de Siracusa, são a par disso meras bagatelas. Qual foi a causa do
envenenamento?
— Havia na família um tesouro escondido, cuja
existência, por uma deferência mais que muito especial, fora apenas confiada à
minha matreira noiva. Como a doença perigosa da mãe devia atrair os outros
filhos, dos lugares afastados em que já constituíam famílias diferentes, esta
moderna Brinvilliers, contrariada pela ideia duma partilha…
— Avareza!
— Uma avareza refinada. A medicina lavrara sentença
de morte. As reações da consciência combatiam-se pois facilmente. Consistia o
grande passo em obstar a que os outros herdeiros precedessem a hora do
trespasso. O veneno não matava, apressava a morte. É assim que os grandes
criminosos se justificam, muitas vezes, perante o infalível tribunal, que do
interior os fulmina. A virgem forte, caída a máscara, arrastou um cúmplice.
Sabia que regurgitava em mim esse fluido diabólico, que cresta de desejos, e
que faz do homem, mais são, um sátiro concupiscente. Deixou-me um remorso em
troca dum segredo.
L. Gundar fica tomado de espanto. Fausto dispõe-se
para sair.
— Acabou o catecismo, acrescenta ele. Agora diz-me
quando conduzes ao altar a tua bela?
— Em acabando o luto.
— Luto! Por quem?
— Por um parente.
— Ah! Não te felicito.
— Pelo luto?
— Pelo casamento, que vale o mesmo. Ideias
associadas. Casamento e mortalha… Sabes o adágio.
— Outra vez!
— Não te felicito; porque, não nascendo para
carrasco, hás de ser escravo ou desonrado.
— Fausto!
— Desculpa. Não estamos no campo da lisonja.
— Insultas e calunias muitas pessoas, que…
— Oh, oh, oh!
L. Gundar exalta-se irrefletidamente.
— Nunca conheceste tua mãe? pergunta.
A fisionomia de Fausto alterou-se num trejeito
horroroso.
— Hei de ir ao teu noivado! diz com azedume,
seguido de certo riso enigmático, e como para se subtrair à resposta.
L. Gundar arrependeu-se da pergunta. Um ligeiro frêmito
lhe correu na espinha dorsal.
— Hei de ir! repete o outro, com oculta intenção.
E saiu, cambaleando.
L. Gundar desce atrás dele.
Na alameda se apavonava um soberbo andaluz
ricamente ajaezado. Fausto cavalga, não sem custo, anafa-lhe as luzentes comas,
faz um gesto de despedida, e dá de esporas.
— Cautela, brada L. Gundar, notando a lânguida
fraqueza do amigo.
O cavalo empina-se, sacode por vezes o curvo
pescoço, e parte, em bizarros meneios, caracolando airoso.
L. Gundar permanece muito tempo colado ao sítio,
com os olhos no vácuo, e cheio de tristes pressentimentos. O rumor sonoro das
fontes, o ramalhar dos arvoredos, o descante das aves, soam-lhe aos ouvidos,
como vozes exaladas do seio do mistério.”Hei de ir ao teu noivado!”, essa
promessa de Fausto, de tão estranho modo proferida, zumbia ameaçadora em volta
dele.
Era quase noite, quando voltou ao gabinete, em que
o encontramos com Fausto. Tão absorto andava, que lhe chamaríeis sonâmbulo.
— Hei de ir ao teu noivado! clama insensivelmente,
e como que desafogando dum pensamento, que no íntimo o flagelava. E desperto,
pela própria voz, interroga os extremos, fantasticamente escurecidos, do aposento.
— Quem está aí? pergunta com certo supersticioso
terror.
Era o eco que repetia ao longo das salas: “Hei de
ir ao teu noivado! Hei de ir…”
III - NÚPCIAS
Ange éternel des nuits heureuses, qui racontera ton silence? Ô baiser! mystérieux breuvage que les lèvres se versent comme des coupes altérées! ivresse des sens, ô volupté! oui, comme Dieu, tu es immortelle!
MUSSET
A noite foi lauta em apreensões para L. Gundar. As
palavras de Fausto, de que o ar não parecia ainda purificado, encravavam-lhe no
amolecido cérebro pressentimentos nada consoladores. E o céptico tomava a seus
olhos, dilatados pela insônia, proporções sobrenaturais de profeta ou de
fantasma. Era-lhe precisa toda a cordura e fortaleza para que o delírio da
imaginação o não emaranhasse nos esconsos dédalos do maravilhoso.
Em sendo dia, por tal forma o assaltou a
hipocondria, que, aborrecido do seu éden solitário, se foi em busca das
estimulantes distrações da cidade. Ao passar junto do palacete de Fausto,
sentiu, dentro em si, um como derramamento de amargoso fel. As janelas estavam
fechadas, e o edifício parecia silencioso como um túmulo. Ia dobrar a esquina
da rua, quando, mudado o propósito, voltou atrás, e, atirando as rédeas do
cavalo ao lacaio, que o seguia a respeitosa distância, tomou pela escada acima,
para saber notícias do amigo. Um grupo de indivíduos, de sombria presença,
conversava em voz baixa, na antessala. L. Gundar cortejou-os, e passou adiante,
levado de imperiosa atração. Chegou à câmara de Fausto. Ardiam dois círios ao
pé do leito. Sobre ele, estendido, repousava um cadáver.
Fausto morrera gentilmente, com os lábios franzidos
por um escárnio.
Ao mesmo tempo, no fundo ignorado da província,
Florentina enlanguescia de saudades pelo primo, e suspirava, adormentando-se
nos sonhos do noivado.
E quem descansou jamais em vésperas de noivado? A
virgem vai sondar arcanos. Que arcanos serão? Que vertigem, e que curiosidades!
É necessário ser formosa. É necessário encher de orgulhos o noivo. Quais serão
as cores de mais realce para a brancura das espáduas? Que enfeites escolher? As
fitas, as rendas, as flores, como devem ser combinadas? Qual será o mais
gracioso penteado? Um pente cravejado de diamantes, prendendo as lustrosas
tranças, e um fio de pérolas, solto por elas ao acaso, darão encanto às
feições? Mas um cravo vermelho, uma flor solitária, colhida fresca no alegrete,
é toucado mais singelo e talvez mais atraente. Todavia…
Enfim é uma califórnia de conjecturas. E a palidez
romântica vai substituindo o nácar da epiderme; e a menina, em seus delírios,
vai esvoaçando pelas campinas azuis do gozo e do mistério.
Vinte e três anos! Eram os anos de Florentina. O
poema cifra-se nisso. Robustecida, vigorosa e cheia de si largava, ouso
assegurá-lo, largava velas pandas ao desejo pelas auríferas e perfumadas ondas
do mundanismo. Que imagens, que traidoras pinturas lhe não turbariam o sono! Se
dormia, é que a atordoava o narcótico dos carnais deleites, ou porque se
extenuava, perguntando às flores, em que regurgitava a seiva, o que tinham elas
de comum com o suave entorpecimento, que lhe exauria as forças.
Florentina não era dessas donzelinhas das baladas e
dos romances, etéreas e impalpáveis, que se alimentam com uma lágrima, que se
confortam com um suspiro, e que pouco mais duram do que essa lágrima ou esse
suspiro. Protuberantes seios, docemente arredondados; largas espáduas;
dilatados quadris; confluía nela, enfim, todo o luxo dos frutificantes dons que
fazia respeitada a virgem lacedemônia. Virtuosa, era sem dúvida. Mas, à perspectiva
dum tálamo de esposa, não resiste a enérgica severidade de feminino estoicismo,
nem resistira a sacra devoção duma vestal piedosa.
Os dias voam. L. Gundar, ainda impressionado pela
singular e repentina perda do amigo, apela para os consolos, que de antemão
saboreia entre os nevados braços da amada.
— Pobre Fausto! murmura, já com o pé no estribo.
Que destinos! Para mim as doçuras celestiais do casamento; para ti a mortalha
apodrecida.
Como contrariado por este contraste, que lhe
pairava no pensamento, cobriu-se de infinita tristeza.
— Quem sabe se foi um vaticínio o que disseste?
continua no íntimo solilóquio, picando de esporas o ginete. Ideias associadas!
Foi assim que lhe chamaste. Foi assim que um antigo adágio as associou. E o
adágio é às vezes como o oráculo inspirado da sibila.
Estava o dia tão sereno como sombrio. Não corria
uma aragem, nem soava uma harmonia pelo espaço. O fumo erguia-se dos povoados
em densas espirais. E, de longe em longe, apareciam nas alturas miríades de
aves carnívoras, que, silenciosas, se perdiam na imensidade.
L. Gundar via em tudo maus presságios.
Teve de pernoitar numa estalagem, assaz
confortativa para um cenobita, mas detestável para quem, como o nosso namorado,
se aclimou aos mimos da opulência. Ponto de reunião de homens sem pátria, sem
nome e sem mister, assim como de todos os que prezavam o jogo, o vinho e as
folias; a estalagem não lograva dos melhores créditos. Também com pouco se
contentaria o viajante, se ao menos lhe franqueassem uma cama tolerável. Era
dura de pedra a enxerga, o ruído dos turbulentos fregueses excessivo, e
numerosos os próprios cuidados, para que esperasse conciliação com o sono.
Erguendo-se, foi-se recostar, distraído, ao peitoril da esguia janela. Alguns
alegres magotes de aldeões se apinhoavam, no terreiro, em volta dum pobre
músico ambulante. Tangia este o instrumento tão querido do nosso Rodrigues
Lobo, a lamurienta sanfonina, acompanhando, com voz doente e plangitiva, a
vozeadora toada. L. Gundar escutou, e, em remate, alcançou ouvir indistintamente
estas coplas soltas da fértil musa do povo:
Maria tem pés de neve,
pés de neve tem Maria;
quando os pés eram de neve,
o corpo de que seria?
Abre-te, janela d’ouro,
aparece, resplendor;
veste-te e anda comigo,
meu delicado amor.
De me ir abraçar contigo,
trago cheio o pensamento;
Menina, deste-me a morte,
a mortalha e o casamento…
Calara-se o menestrel. E ainda as últimas notas
gemem moribundas. L. Gundar fecha com precipitação a janela, e retira-se mais
crente, que nunca, em maus agouros.
O resto da viagem correu sem incidentes.
Amanhece afinal o grande dia. As aldeanas, já
entrajadas em suas vestes festivas, apressam-se a ir aos montes e aos cerrados
fazer provisão de flores. Em continente são levantados arcos, muito bem
enfeitados, no caminho, que, da casa de L. Gundar, dá para a igreja. O chão
está tapizado de ervas cheirosas e de esmaltadas pétalas. E, em seus postos de
observação curiosa, trebelham multidões de homens, mulheres e crianças. Mas
embalde esperam. Os noivos não vêm. Passou toda a manhã, vai passando a tarde,
e eles sem chegar.
L. Gundar não se comprazia com dar em espetáculo a
sua felicidade. A olhos de indiferentes, que encaram com frieza a poesia do
casamento, ou de maneira muito positiva, porque a não compreendem; o noivo, por
atilado que seja, toma uma posição assaz embaraçosa, se não desgraciada e até
ridícula. L. Gundar tremia diante do ridículo. Isso lhe valera, hoje em dia, o
nome de original. Pois que de tal jeito se infiltrou em nossa natureza, aquela
ideia, que por pouco não fica sendo ridículo tudo que tem o mau sestro de o não
ser.
Eis, caríssimo leitor, os incentivos, que induzem
aquele, que escreve estas linhas, a fazer mais gasto em tinta, do que conviera.
O nosso herói pois, logrando as turbas, tomou
modesta e silenciosamente a mão de Florentina e, com as testemunhas do ritual e
alguns poucos familiares, dirigiu-se à capela da sua casa, onde, paramentado e
pronto, estava à espera o capelão. Ainda assim não foram moderados os rubores
na donzela, durante a cerimônia.
Quando dos vizinhos solares chegaram primos e
amigos, bifurcados em enormes ginetes, em plena compatibilidade de corpulência
com seus donos, pasmaram que tão clandestina, e sem sonoros ruídos, corresse
uma festa por tão longe soada, e que prometia estrondo e aparato, dignos dum
rei. No salão heráldico não havia mudança nos adornos. As mesmas jarras no
bufete; as mesmas antigas cadeiras de espaldar gigantesco; os mesmos quadros a
óleo; os mesmos candelabros; enfim, tudo no mesmo estado de singela elegância, cujo
segredo era um privilégio de L. Gundar.
Florentina constituía uma maravilha de gentileza,
conciliando, no trajo, o luxo com a simplicidade, o honesto com o gracioso.
Conversava com naturalidade, sem quebrantos, nem abstrações românticas, no meio
de algumas amigas, como se não fosse aquele o mais solene dia da sua vida.
A certa distância L. Gundar, com o invariável e
despretensioso primor nas vestes, que fazia o desespero dos leões da época, discorria em coisas
sérias com o capelão, velho letrado e mais que muito entendido em coisas do Céu
e da Terra.
Os primos admiram sobretudo que tão reduzida,
tranquila e familiar seja a companhia. Esperavam cair de chofre na mansão dos
delírios, em que não houvesse meio-termo entre os harmoniosos estrépitos da
música, o retinir dos cristais e o turbilhão fascinador das danças. Ignoravam
que o amor íntimo, sentido, profundo, depurado da ostentação e da vaidade, que
são a alma de muitos sentimentos, que também chamam amor, prefere a obscuridade
e o silêncio às pompas ruidosas das grandes festas.
Iguarias dum opíparo banquete, postas na mesa,
esperam os convidados. L. Gundar desafia-os a segui-lo. São estes pouco
numerosos, mas valem por muitos; se os julgamos pela pureza de sangue, pela
distinção do porte e fidalguia de caráter. É sociedade escolhida. Todos estão
comodamente, como em família. As meninas lançam vistas dissimuladas a L.
Gundar, que, noutra ocasião, deveram apunhalá-lo. Valiam por feixes de setas,
não sei se amorosas, se de raiva ambígua. Os moços fitando Florentina, ficavam
pensativos, como a suspirar por um semelhante consórcio. Fala-se com frouxeza,
mas todas as almas transbordam gozos secretos. Os brindes são desataviados e
sinceros. Os copos voltam vazios à mesa, e os manjares sucedem-se em renovada
baixela.
É noite.
Serena e límpida, surde a Lua por detrás das
serras. O gosto das expansões começa a animar os convivas.
L. Gundar está em pé, e, levantado o copo em que
referve a espuma de generoso porto, corresponde a um brinde, em termos de
brilhante eloquência. Um brado de aplauso geral lhe abafa as palavras. Flutuam
erguidas as taças, e voam os lábios, perfumando-os.
Mas L. Gundar permanece imóvel, hirto, petrificado.
O vinho entornara-se na mesa, e o copo caíra-lhe da mão.
Encaram-no com assombro. Parece surpreendido de
paralisia súbita. Os olhos, como dilatados por desconhecido terror, tem-nos
presos na janela fronteira. As damas estão consternadas, os homens indecisos.
Voltam-se todos, procurando a causa do incidente.
Na vidraça, que deita para os campos, desenha-se
uma pálida figura, que logo desaparece.
Então L. Gundar, como quebrada a fascinação,
murmura, caindo prostrado na cadeira:
— Fausto! Tinha jurado que havia de vir…
Seguiu-se equívoco silêncio. Depois ressoam passos
no fim das salas; ressoam cadentes, medidos, sonoros… cada vez mais próximos.
Ergue-se o reposteiro.
— É ele! clama L. Gundar fora de si.
Um homem se adianta.
— Tinha prometido vir ao teu noivado, Gundar, diz o
recém-chegado com esquisita acentuação estrangeira. Eis-me aqui.
L. Gundar, mais tranquilizado, acolhe-o a primor.
Este novo personagem era Don Pablo, catalão, de
origem pouco averiguada. Aventureiro e gentil, associara-se à família dos
Gundares por um casamento infeliz. Matara de desgostos e maus-tratos a esposa,
e agora vivia dos destroços duma opima herança, que dela lhe ficara. Não lhe
era muito afeiçoado L. Gundar. Mas razões de parentesco opunham-se a que
inteiramente se afastasse dele. Só esta noite deu o mancebo pela paridade
infinita, que havia entre Don Pablo e Fausto. Os mesmos traços gerais, o mesmo
olhar de lampejos sombrios, o mesmo rir motejador; ambos excêntricos, ambos com
lacunas na sua história, ambos descrentes, desdenhosos, insondáveis como um
abismo sem fim.
O contentamento renasce. Apenas L. Gundar parece envolvido
numa nuvem de tristeza. A doçura duma tácita interrogação de Florentina
consegue todavia afugentar as brumas, que lhe empanavam os risos.
Volvem ao salão.
Don Pablo eliminara-se, como as bruxas do Macbeth.
L. Gundar fuma na varanda com alguns homens sérios.
Os outros ficam prestando homenagem às belas. No entretanto Florentina afina a
guitarra. Não sabe resistir à instância dos que lhe pedem uma endecha ao som
mavioso do instrumento.
A guitarra era, nesse tempo, o mimo predileto das
damas bem prendadas.
Não tarda que sussurre brandamente o prelúdio duma
música celestial. Uma voz se mistura, pura e cristalina, em inefável concerto.
Corre frêmito suave nos corações. E o espaço anima-se de melodiosas ondas. Por
fim a cantora divina, num esgotamento de sensibilidade, pende a fronte abrasada
sobre o braço da guitarra, e deixa-se enlevar de saudoso êxtase. A sensação
comunica-se. E, quando se retiram, os convidados levam gostosa reminiscência
daquele remanso ditoso.
Os esposos ficam finalmente sós. Mas aquelas
organizações, por mais que pese a maliciosos, não pertencem ao barro comum.
Almas delicadas, não se humilham ao serviço de grosseiras tendências. Se já
viram como se amam os anjos, saberão com que esquisita delicadeza se amavam.
Une-os principalmente a simpatia dos espíritos. O que sentem de extático, de
sobrenatural, de soberanamente grande e delicioso é vedado à pena delatá-lo.
Almejam confundir-se num eflúvio brando, quebrar as terrenas cadeias, librar-se
pela cerúlea amplidão e fundir-se na divina harmonia dos astros.
Isto, em idioma de mortais, não significa nada. Mas
há coisas, que toda a gente assim diz.
Comovidos, tímidos, corando um em frente do outro,
balbuciando a medo expressões sem ligação, nem sentido, deixam passar alguns
instantes. Um infinito de indizíveis gozos!
Agora me convenço de que em nenhum ato da vida do
homem recendem tantas, tão suaves fragrâncias de verdadeira poesia.
São estreitas de mais as paredes do salão, para que
não impeçam o curso arrojado dos dois vagabundos pensamentos. A noite é uma
noite de epitalâmios. Veio também à festa a natureza com os adornos da sua
majestade. Florentina cobre as espáduas com um xale da Índia, esteia-se ao
braço do esposo, e vai com ele sorver mais livres ares. Lá passam debaixo dos
plátanos. Ilumina-os um tênue raio da Lua. Murmuram. Que ternuras, que
fluências de mel ignoto andarão naquele segredo! Perdem-se na sombra. Mas soa
um beijo, como frémito de brisas em pétalas de rosa.
À maneira de sátiros, espreitemos dentre as moitas
para o interior dos côncavos rochedos, que formam uma gruta, coroada de
floridos estendais. Vê-los-emos, os noivos, aboborados em alcatifa de musgos. A
luz branca da Lua penetra tíbia e frouxa na solitária caverna. Inebria-os,
dificultando-lhes a respiração, o aroma dos rosais. À melancólica elegia das
correntes, que se despenham, casa-se apenas, de longe em longe, o queixoso
canto d’alguma ave triste. Os dois fitam-se na penumbra; apertam-se as mãos,
faltos de palavras. Compreendem que pode morrer-se da asfixia dum gozo ideal.
Ainda um pensamento grosseiro os não manchou. Porém a embriaguez recrudesce.
Languescem os sentidos em indefinido torpor. Inclinam-se as frontes,
encontram-se os lábios, e colam-se num segundo beijo, num beijo úmido, viscoso
e ardente.
A carne triunfa.
Florentina oscila, esvai-se-lhe a luz, cerram-se as
pálpebras enfraquecidas, e deixa pender a cabeça para o seio do esposo,
desprendendo um suspiro longo, como um derradeiro suspiro.
O delírio apossa-se de L. Gundar.
Nesse instante ergue-se ali perto um lamento
fúnebre, um gemido lamentável, que vai ferir nas nuvens.
Levantam-se apavorados os esposos e logo divisam
sobre um rochedo o enlutado vulto de Níger.
De orelhas pendentes e focinho aprumado, o pobre cão atroa o espaço com uivos
prolongados.
Florentina, verdadeiramente contrariada, toma veloz
a direção da casa. L. Gundar segue-a de perto. Entram na misteriosa câmara,
cuja porta se fecha, após eles, com estrondo.
Então a dama enrosca-se no esposo com exaltação
felina, e, raivosa de amor, crava-lhe na face os dentes vorazes.
IV - A RISADA MISTERIOSA
... il vit ces deux filles embrasser tendrement les deux singes, fondre en larmes sur leurs corps, et remplir l’air des cris les plus douloureux:”Je ne m’attendais pas à tant de bonté d’âme”, dit-il enfin à Cacambo; lequel lui répliqua:”Vous avez fait là un beau chef-d’œuvre, mon maître; vous avez tué les deux amants de ces demoiselles.”
VOLTAIRE
(Candide)
L. Gundar tinha seu tanto de visionário. Sistemático até no casamento, principiou a desenvolver certas incubadas teorias, que, no seu juízo, deviam de eternizar a poesia conjugal. Tudo se reduzia a um refinamento de melindres e subtilezas de trato, que desagradavam sobremaneira a Florentina.
— Enganaste-me, primo! diz-lhe ela, morbidamente
entristecida pelo seu primeiro amuo.
— Como! Enganar-te, meu amor? E por quê?
— Foges-me. Não me queres ao pé de ti.
— Eu! E poderia eu viver se tu me faltasses?
— Porque me deixas, então?
— Pois não percebes?…
— Eu sei!
— Ignoras que o permanente contato entibia os afetos
puros do coração, e, não poucas vezes, dá entrada ao aborrecimento?
— Ai, que tens medo de me aborrecer!…
— Tenho, tenho medo de perder a felicidade, que só
tu me podes dar.
— Estimo mais a franqueza.
— Se te ouvissem, diriam que levei a crueldade a
separar-me de ti pela extensão dos mares. Valha-te Deus, filha! Não ficamos nós
vizinhos? Não ficam os nossos quartos tão juntos, que apenas uma cortina os
separa? Não nos cobrem os mesmos tetos? Não respiramos o mesmo ar? Que te
falta? Diz-me o que te falta, que o quero ir mendigar de joelhos.
— Estou a pressentir… Não, tu já não me amas.
— Caprichosa!
L. Gundar acompanhara a palavra dos mais
convincentes afagos. Todavia a arrufada menina deixava manar, dentre as
pálpebras amortecidas, algumas fugitivas lágrimas.
São passados três meses. E já se dispensam agudezas
de perspicácia para notar o esquisito constrangimento, a insólita reserva, que
reinam no lar doméstico. Os linguareiros do lugar, sempre com a foice nas
messes do vizinho, têm matéria reunida, com que tirar diagnósticos para futuros
dissabores. Que ocorreria? Que pandórica boceta toldou, num abrir e fechar de
olhos, um tão azul firmamento?
Devagar se vai a Roma, diz lá o adágio.
Ardiam despeitos em Florentina, despeitos de
criança exigente, que reage contra remédios preventivos. Havia mágoa sincera em
L. Gundar, por se ver injustamente apreciado.
A cada instante resvalava a menina em nova fadigosa
melancolia, e numa indiferença desleixada, que era para o esposo insuportável
suplício. Atenciosas condescendências, desvelos de enamorado, tudo recebia com
forçada delicadeza.
L. Gundar viu em fumo o seu prestígio. E, à sua
parte, começou também a entristecer-se, ao passo que aviava o regresso à
capital, onde o chamavam o dever e solene compromisso.
Sucedia que Don Pablo se mostrava infatigável em
reiteradas visitas. Pouco seguro da moral e discrição do espanhol, acolhia-o L.
Gundar com frieza imponente e nada amorável. Porém ele ou o não entendia, ou
lhe não convinha mostrar-se entendido. Apresentava-se cada dia mais delicado e
oficioso.
Florentina, ao contrário do marido, regalava-se com
as visitas de Don Pablo. Nos dias, em que o esperava, era mais morosa ao
toucador, e aparecia mais risonha. L. Gundar franzia o sobrolho. E ela,
sorrindo para dentro, acusava íntima satisfação em contrariá-lo e afligi-lo. Os
ditos fúteis do cavalheiro, suas trovas licenciosas, o atrevimento dos seus
olhos, longe de a desgostar, tornavam-na correntia e animada.
Don Pablo concebia não sei que infames projetos.
Queria-lhe parecer que a dama não seria absolutamente inacessível às suas
ardilezas. Jogava com alguma superioridade a pistola, e daí derivava a ousadia
do cometimento.
L. Gundar, conquanto a ligeireza de Florentina o
magoasse sumamente, revestiu-se de precauções prudentes, pois cumpria
elucidar-se bem, antes de se resolver a baldear o hóspede impertinente da
janela abaixo.
— Hei de dominá-lo pelo ciúme, pensava Florentina,
olhando de revés o marido, enquanto se oferecia prazenteira aos galanteios do
cortesão.
Assim se introduziu a desconfiança na família. O
anjo da paz fugiu espavorido. A guerra estava travada.
Uma tarde L. Gundar foi sentar-se ao pé de
Florentina. Puseram-se a conversar.
— Tenho um desgosto, Florentina.
— Tu! Que desgosto é?
— Sofres. E, quando tu gemes, não posso senão
chorar.
— Oh! Não mereço… Eu sou feliz.
— Dizes-mo com os olhos úmidos. Perdoa.
— Perdoar! Mas… que hei de perdoar?
— O orgulho, que me cegou.
— Como?
— Cuidei fazer-te venturosa.
— Fizeste. Pois não fizeste, Gundar?
— És cruel na ironia. Sou um escravo.
— Escravo!
— Para que é esse riso de dúvida?
— Já me impões seriedade? Pois bem, não tornarei a
rir-me, visto que tanto te desagrada.
— Desconheço-te.
— Bem sei.
— Sabes, e teimas?
— Falta-me a tua lição. Não aprendi a mentir. Tenho
uma índole e um instinto, que são os meus conselheiros.
— Incertos conselheiros são esses. Não te louvarei
a escolha.
Seguiu-se breve silêncio. L. Gundar continua em tom
mais grave:
— Desconheço-te, devo repeti-lo. Não sei donde te
veio o gosto de sacrificares a minha ventura aos teus enfados humiliantes. Eu
não sou homem a quem a paciência sofra, por muito tempo, imerecidas
desatenções. Quero que nos expliquemos, porque se não vive assim. Há quem diga
que o casamento, como os quadros a óleo, é belo para se ver de longe. Os
traços, os contornos delicados, sábia distribuição de luz e sombras, a fina
perspectiva do quadro, que a distância favorece e aprimora, se o contemplas de
perto, não passa de grosseira mistura de tintas várias. Por mim, rejeito
francamente a comparação, por inverossímil. Bem doutra sorte, segundo parece,
sucedeu contigo. Cuidavas talvez que, ligada a um homem, que amavas,
iludindo-te, verias realizados os impossíveis do teu opulento idear; verias
reflorir ao contato da tua mão todos os objetos, como numa perene e fabulosa
Primavera…
— Talvez.
— Desfeitos os brilhantes fantasmas, pela realidade
prosaica, não seria de estranhar que te arrependesses de ter associado, por
laço indissolúvel, o teu destino a outro destino.
— Por certo, que não.
— Nascendo daí o agastamento, com que te não cansas
de me injuriar.
— E quando assim fosse?
— E quando assim fosse! repete L. Gundar, todo
convulso; quando assim fosse, eu estancaria, pelo sentimento da dignidade, o
desespero do amor-próprio escarnecido, e, sem maldizer a hora, em que rocei meu
peito, enobrecido pelo trabalho, pelo seio volúvel duma mulher, havia de
levar-te a tua mãe para, sem ódio, nem desprezo, nem talvez saudade, te deixar
para sempre, e continuar solitário o meu caminho.
— Deixavas-me sem ódio?
— Juro-to.
— E sem saudade?
— Havia de poder mais o orgulho.
— Oh, os homens!
Florentina estava lívida.
— Que te fizeram os homens?
— Mentem à fé jurada com a indiferença, com que
desfloram uma inocência. Pois eu se alguém, que porventura amasse, me desse
tédio em paga de carinhos, havia de votar-lhe eterno desprezo; mas nunca, por
preços da Terra, cederia a saudade dos inefáveis gozos, que me deu. Pode
meter-se um punhal no seio ingrato; mas não podem os olhos ficar enxutos, sem
lágrimas para lavar a ferida.
— Mal de nós se nos fazemos ludíbrio da paixão. É
preciso escravizar o barro. Eu desafio a adversidade a que me encrespe na
fronte uma ruga. Faltas-me tu, embora! Que me reste a honra, a paz dos bons, a
minha vontade e a ajuda de Deus; e lutarei com a vida, e apagarei a inscrição
ao túmulo esquecido do meu passado. Florentina! Não vês que é impossível esta
situação? Como comportar o aflitivo silêncio, que é o nosso manjar de todos os
dias? Não sei se me aborreces; sei que escondes um pesar muito íntimo. E eu,
que te falo com esta lisura, é que entendi que era necessária para o bem de
ambos. Não foi sem reflexão e mágoa, que me resolvi. Escuta.
Passa a mão pelos cabelos, cobrando alentos. Depois
continua:
— Amo-te, Florentina. Amo-te, puro de vaidades e
puro de egoísmos. E tanto, que vou fazer-te o sacrifício da minha felicidade.
Se te pesam as cadeias, que nos unificam… quebremo-las.
— Gundar!
— Fica aberta a porta por onde entraste. Podes
sair, se o desejas.
— Expulsas-me! brada Florentina num estremeção de
despeito.
— Adoro-te.
— Que quer dizer essa linguagem?
— Interroga a consciência.
— Que crimes cometi?
— Crimes? Nenhuns. Definhas a meu lado. Os meus
afagos são para ti verdadeiros suplícios. E eu, que não nasci para carrasco, se
o acaso me distribui tão odioso papel, reabilito-me, dando liberdade à vítima.
— És o culpado. A minha natureza é fogo, que
consome. Deste-me um irmão, em vez do esposo, que prometias.
— Contraí um consórcio, o consórcio das almas, que
lupanares não faltavam por aí. Que fizeste do pudor, mulher?
— Gundar!
— Não te ofendi. Foste tu que te ofendeste.
Florentina não replicou. Sufocava enraivecida.
Fitaram-se silenciosos um momento.
— Está bem, Florentina, torna L. Gundar com certo
carinho; desterremos quaisquer rebuços. Eu sou pouco exigente. Só quero que
sejas feliz. Para o conseguir provar-te-ei que não sou homem vulgar, acedendo a
quanto for compatível com o racional, ainda que incompatível com as rotinas
sociais. Se te iludiu o coração, quando junto ao altar proferiste o
inquebrantável protesto de amor, nem por isso deves cerrar o teu seio aos
influxos doutras esperanças mais gratas.
— Que queres dizer?
— O amor é um sentimento essencialmente
independente do querer de cada um. Se assim não fosse, a todo o tempo poderíamos
dizer ao coração — ama! E ele amaria.
— Que queres dizer? repete ela, assustada do
sentido, que a conversação parecia tomar.
— Quero dizer que deve ser um martírio a
existência, levada a suspirar por um homem nos braços doutro homem. Quero dizer
que, em tais circunstâncias, por mais severas e inflexíveis que sejam as leis
dos homens, Deus absolve a infidelidade.
— Jesus!
— Absolve-a. Porque o sentimento, que a produz, é
superior à criatura. Livre é só a vontade.
— E dizes-me isso a mim!
— Digo.
— Que cinismo! exclama com desprezo.
— Cinismo é viver amarrado ao instrumento da
tortura, sem alegria para louvar o Omnipotente; sem sossego de ânimo para
bendizer a religião; sem esperanças para crer nos gozos dos prometidos mundos;
com o corpo ileso, mas com o pecado no pensamento.
— Pretendes?…
— Que, se outro, mais favorecido da sorte, teve o
consolo de te cair em graça, o sigas, sejas dele e para ele. És livre.
— Afrontas-me. Que mal te fiz?
— Tornava-se indispensável este desafogo. Agora,
minha querida Florentina, pensa e resolve. Pede ao coração que te aconselhe; e,
se te convier, pede conselho à “tua índole e ao teu instinto”. Antes a desgraça
dum só, do que a desgraça de ambos…
Ia continuar, mas partiu-se a palavra na garganta.
Foi-lhe preciso todo o rebuço para não mostrar fraqueza.
— É um escândalo, que propões! diz ela cheia de
indignação.
— Não sei ao que o preconceito do vulgo chama
escândalo. Reflexiona.
Ergueu-se. Florentina estava já em pé.
— Reflexionei, devolve.
— És minha? pergunta L. Gundar com a precipitação
da ansiedade.
— Talvez, responde pausadamente, simulando
hesitação. A intenção permanecia oculta.
— É pungente a dúvida.
— É que estava a pensar que "deve ser um martírio a
existência, levada a suspirar pelo objeto amado, nos braços doutro homem”.
— Repetes as minhas palavras…
— É que são verdadeiras.
— Oh Florentina! Eu fiz uma concessão terrível.
Depois dela…
— Se tua mulher traísse o juramento?
— Pode ser que…
— Perdoavas?
— Matava-a.
Florentina pôs-se a rir. L. Gundar retirou-se,
receoso de crescente irritação.
— Despreza-me, pensava ele, confrangido de dor e
raiva; despreza-me, a mim, a mim!
Florentina, ficando só, escondeu o rosto nas mãos
para reprimir os soluços. Assim esteve muito tempo, até que sentiu que um corpo
estranho roçava timidamente no seu. Era Níger
que, arrastando-se de mansinho, viera estender-se aos pés da aflita menina,
lambendo-lhos submisso.
— Níger,
oh Níger! exclama ela comovida. E
abraçou-se no rafeiro.
Conviria agora azedar ainda um pouco os humores dos
embespinhados cônjuges, a fim de subir de ponto a gravidade do desenlace, que
está no último período de choco. Inimigo porém de fúteis delongas, partirei
como uma seta em direitura à catástrofe. O que se passou nos imediatos dias, já
o leitor o adivinhou, talvez com mais precisão do que aquele, que tem a honra
de lho dizer. Prossigamos pois.
Tendo passado um dia em venatórios exercícios, L.
Gundar entrava na alameda da quinta, envolto nos últimos tíbios raios
crepusculares. Por essa ocasião fechava-se com ruído o portão do jardim.
Impelido por curiosidade irresistível, corre ao mirante, e já a distância
descobre um homem, que se afasta vagaroso. L. Gundar sente-se possuído de
indescritível aflição. Aquele homem, se não era Fausto, devia de ser a sua
sombra! Um criado porém vem salvá-lo da alucinação, assegurando que Don Pablo,
depois de se ter demorado algumas horas com Florentina, acabava de sair; e que
não era outro o indivíduo, que sua senhoria avistara de relance.
— Don Pablo! murmura L. Gundar com o rosto turvado
pelo desgosto. Tinha proibido a sua recepção durante a minha ausência.
Pondo de parte a espingarda, sentou-se afadigado
num banco de pedra. O suor rebentava-lhe na cara em grandes bagas.
— O interesse, que ela lhe consagra, já não vem de
hoje. Devia ter receado. Fausto não era uma criatura ordinária.
O pensamento, quando sem nexo, nem rumo, se espraia
livre nas asas da paixão, quase sempre nos atraiçoa. Os atos mais
insignificantes e simples da esposa, esses mesmos, confundidos em tropel de
emaranhadas ideias, tomam facilmente a negridão do crime. L. Gundar lamentava a
sua excessiva boa-fé, e, conquanto não fosse precipitado no ajuizar, desta vez
desmentia a própria natureza. Julguem-no as apaixonadas almas dos Otelos.
Quando se ergueu era um desonrado convicto. Mas
disfarçou.
Florentina, meio deitada num sofá, recebeu-o com um
bocejo desanimador. E, tendo-a osculado na fronte:
— Que ardência, menina! exclama ele. Terás febre?
— Não.
— Todavia… Esta soledade, que preferes, há de
fazer-te mal.
— Eu nunca estou só.
— Ah! Tiveste companhia?
— Tive.
— Tiveste! E será lícito saber-se quem?…
— Esse livro.
— Somente?
— E Níger.
— Mais ninguém?
— Tão pouco seria?
— É que me pareceu quando cheguei…
— Que te pareceu?
— Que saía o espanhol.
— Ah! Sim… Viste?
— Vi.
O jantar estava na mesa. L. Gundar sentou-se em
face de Florentina.
— Pérfida! pensava ele. Nem corou.
Contudo desenvolveu durante o jantar alegrias de
pessoa despreocupada. À sobremesa falou no regresso à capital em tom plácido e
natural. Havia de ausentar-se alguns dias, a contar do imediato, a fim de dar a
última vista às suas terras; marcar os melhoramentos a fazer; tomar contas aos
rendeiros; e reduzir a metal sonante parte das numerosas manadas, que trazia
nos montados. Findas estas operações buscariam compensar os aborrecimentos da
aldeia pelos prazeres da cidade.
Florentina escutava-o com admiração. Dir-se-ia que
lhe tinha falhado algum cálculo secreto.
L. Gundar ordena, ainda sentado à mesa, que, em
alvorecendo, estejam selados os cavalos. Tinha pressa de pôr a bom recado os
serviços da casa.
Depois duma noite de tormentosas opressões,
levantou-se vestido, como se tinha deitado, tomou o chapéu e o chicote, e saiu,
fechando a porta do seu quarto, e guardando a chave. Ao passar junto ao leito
de Florentina, arredou o cortinado, e, vendo-a adormecida, deixou-se amodorrar
de pressaga tristeza.
— E dorme! Fausto, Fausto! diz entre dentes,
ausentando-se com precaução.
O lacaio esperava-o já com a mão no estribo. E foi
este aquele mesmo que, mais tarde, no ato de ser interrogado em juízo, declarou
que o aspecto sombrio de seu amo o intimidara, no momento de montar a cavalo;
acrescentando que, no trajeto de duas léguas, por agrestes trilhas, o vira
fúnebre como um cenobita.
Depois de algumas horas de caminho, L. Gundar e o
lacaio apearam-se numa granja, rica propriedade, vinculada à casa dos Gundares.
Era excessivo o calor. Descansaram.
Ao anoitecer L. Gundar desceu à cavalariça.
Ergueu-se respeitoso o servo, e preparou-se para embridar os cavalos. Porém
conteve-se a um gesto do amo, que, tendo posto no cinto as pistolas tiradas dos
coldres, lhe diz com imperiosa voz:
— Fica.
E voltou à aldeia por caminhos escusos.
Era noite cerrada, quando penetrou no pomar. Impôs
silêncio aos rafeiros e aos podengos, que o acolhiam com celeuma festiva, e
desapareceu na alameda. No interior da casa tremeluziam algumas luzes.
Subindo cauteloso por uma latada, tocou o nível
duma janela, que, cedendo a leve impulso, lhe facilitou a entrada do seu
quarto. Aí ficou indeciso por alguns momentos. E, certificado de que estavam
desertos os quartos contíguos, avançou com pés de lã, até à porta da câmara de
Florentina. Havia nessa porta um interstício, que o nosso Otelo, com a
previdência do ciúme, abrira antes de se ausentar. Podia pois, a coberto,
observar o que além se passasse.
Mal teria decorrido uma hora, que para ele valeu
por um século, viu aparecer a graciosa figura de Florentina. Avultava nela
enfado e laxidão. Parando junto ao toucador, voltou-se a meio, e o rosto
iluminou-lho um sorriso afável; sorriso, que, no entender do marido, só podia
dirigir-se ao amante.
— Vê-lo-ei face a face, diz L. Gundar, cerrando com
força os dentes, e apertando na mão a coronha duma pistola.
O sorriso era favor, que a dama concedia à sua
criada particular, a qual não tardou que viesse ajudá-la a desoprimir-se das
infinitas insignificâncias, com que a moda zomba das formosas.
L. Gundar assistiu petrificado a essa cena de
desalinho, que pode ser fatal comprometimento para a mulher. A vaidade de
Florentina tinha porém de que exaltar-se, pois que era bem mais bela na sua
beleza natural e simples, do que transformada pelos adornos. O mancebo
sentia-se febril. Nunca a esposa lhe parecera tão sedutora. Pouco depois estava
ela no leito. Cerraram-se os brancos cortinados, apagou-se a luz, e não se
ouviu senão uma respiração doce e regular, e não se experimentou senão a
exalação dos perfumes do Céu.
— Será então amanhã, profere L. Gundar,
estendendo-se ao comprido numas cadeiras, e em boa harmonia com a ideia fixa
que o alucinava.
E, antes que o sol fosse nado, já estava no seu
posto de observação. Passou a manhã sem notável ocorrência. A tarde é que se
anunciou com desmedido calor. L. Gundar, cansado de insônias, falto de
alimentos, abrasado de febre, foi desfalecendo em modorral abatimento, que
breve degenerou em sono pesado.
Voltou em si numa crispação de nervos. O suor
repassava-lhe as vestes. Arrastou-se estonteado para a porta, e, tendo olhado
pelo interstício, julgou-se ludíbrio das maravilhas dum conto das mil e uma noites.
Pelas janelas meio fechadas penetrava dúbia e
confortativa claridade. Rosas mais luzentes e odoríferas do que as celebradas
rosas de Xiraz, formavam fartos ramalhetes em vasos colossais de antiga
porcelana. A câmara toda pintada e brunida, como
o altar de S. Pedro em Roma, segundo se exprimiria Voltaire, convidava a
doce repouso, nessa hora de abrasadora sesta. Sobre um tapete, com as orelhas
dilatadas, olhos brilhantes e o focinho poisado nas patas dianteiras, estava Níger, atento, vivo, inteligente, como à
espera dum momento desejado. Para o outro lado, sobre uns coxins alvos e moles,
repoisava brandamente angélica aparição. Di-la-iam, à primeira vista, estátua
de alabastro, gloriosa fantasia dum grande artista, Prosérpina dum Fídias
iluminado. Porém, melhor considerada, facilmente se conhecia que fora
surpreendida de olhos cerrados e marmorizada naquela divina postura por algum
travesso pensamento, que a amortecia na morbidez dum desejo. Como a Vênus de
Praxíteles, como as imagens da ardente imaginação de Ticiano, como a Vênus do
nosso adorado Luís de Camões, Florentina ostentava aos olhos do marido preciosa
nudez, finamente escultural.
Com tal vista L. Gundar, que se tinha na conta de
entendido na arte, ficou alheado, estúpido, devaneado entre visões infinitas,
como um schak persa, que acaba de
fumar ópio no kellian doirado. E, no
cúmulo da abstração, quase traía a sua presença, porque, novo Pigmalião, só lhe
lembrava ir animar com beijos o mármore daquela Galateia.
Níger,
no entretanto, do seu canto sombrio dardejava estranhas vistas.
Senão quando, Florentina começa a espreguiçar-se
com voluptuosidade asfixiante. Descerram-se as pálpebras, e mostram uns olhos
velados, que logo derramam faúlas incendiárias.
— Níger!
murmura com voz singular, tremente, horrível.
O cão ergue-se de golpe e, dum gracioso pulo,
acerca-se dela. Pousa-lhe nos ombros, finos de cetim, as patas calejadas, e
mergulha nos seios transparentes o gélido focinho.
L. Gundar esfrega os olhos apressado. Estava afeito
a sonhos de energúmeno, e equilibrava-se na esperança de que podia ser aquilo
um mau sonho.
— Oh não, não!
Quis fugir. Impossível.
Ouviu-se um grito. A porta estala, quebrando-se. E
o espectro da loucura aparece súbito.
Níger
arrastou-se humilde aos pés de seu dono. Um tiro e uma praga soam. O cão
estrebucha no próprio sangue. Florentina com o rosto no pavimento pede em altos
brados a morte.
— Que perdição, que perdição! exclama.
L. Gundar ergue-a pelos cabelos, e põe-lhe na testa
o cano frio da outra pistola.
— Mata-me. Salva-me desta vergonha, grita ela.
— Matar-te! devolve ele com frenesi de inferno,
desviando a arma, e atirando-lhe ao seio um escarro. E, então, quem me mataria
a mim?
Depois, cravando nela os olhos, como dois
carbúnculos, brada num riso soluçante, dos que fazem rebentar todas as fibras:
— Florentina! Olha para mim, Florentina.
Olhou.
Mas foi para o ver rolar no chão com o crânio
esmigalhado por uma bala.
O tiro pôs em vibração todos os objetos, que, por
desconhecido motivo, reproduziram o estrondo, numa espécie de risada satânica.
Dir-se-ia que era a sarcástica risada de Fausto, que estrugia sobre o cadáver, como vitupério sangrento.
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