A FEBRE DO JOGO
I
Lúcio parecia protegido do mágico influxo duma
constelação propícia. Aporfiava a fortuna em fazê-lo mimoso de seus
munificentes donativos. As cartas, tão dóceis em obedecer-lhe como pertinazes
em resistir a meus ansiados reclamos, andavam como que à mercê da sua vontade
imperiosa. E ele, revestido das honradas insígnias de banqueiro e enfronhado em
presunçoso desdém, acusava em cada movimento a satisfação característica, que
extravasa dos jeitos particulares dos bem sorteados.
À direita de Lúcio estava eu. Era a primeira das
vítimas, o ludíbrio da sua ventura. Por isso o encarava de maus olhos,
recalcando a indomável inveja, que transbordavam. E, magnetizado, para me
servir de frases grandes e vazias com aspirações a graciosas, seguia voraz os
rios de dinheiro, que rolavam copiosos para as bandas do banqueiro ao passo que
lamentava, de mim para comigo, que tão depressa se me fosse desvanecendo a
acalentada esperança de acabar meus dias em lúcido e sonoro pélago de belas
peças de ouro.
Morreu num tonel de malvasia o duque de Clarence.
Foi pouco aparatoso o duque. Morreu como pode morrer um sapo, ou mesmo um
qualquer burguês. Não admira todavia, que no vinho recai a excentricidade
ordinária de um digno britânico.
Eu, menos modesto, suspirava por uma sepultura como
nem no paganismo a obtiveram deuses: oceanos de dinheiro. Era o meu fraco.
De mistura porém com íntimos lamentos de vate
arruinado, coalhados pela ira em elegias chorumentas, ia ao sopro encantado da
filosofia, tão avezada a reduzir o confiado intelecto dos pobres mortais a
bolhas de sabão nas asas do vento, ia desfiando de cada libra, que deslizava no
pano verde da mesa, uma história longa de longas agonias.
Anos e anos de trabalho ímprobo, noites fadigosas,
vigílias acerbas; o descanso, a paz e a honra de muitas famílias; o amor, a
ternura e a castidade de muitas crianças; via tudo como numa galeria imensa e
negra sacrificado ali ao delírio dum leviano deslumbramento; via tudo
impiamente atirado à voragem lôbrega daquele funesto Titicaca. Titicaca, sim,
já que tão arrevesado nome vale bem um anátema. E buscava interpretar nas
alegrias dissimuladas de Lúcio (infantil ingenuidade!) longes da generosa
condolência que reabilita o vencedor aos olhos do vencido.
Se eu ainda então ignorava que a febre do jogo
afugenta benfazejos instintos; enerva a afinada corda dos sentimentos delicados
a furtar-lhe as mais doces vibrações; bestifica sob a pressão ignóbil da
desenfreada cobiça!
Como media a desgraça dos outros pela minha
desgraça, compulsava de perto, por uma notável complacência do egoísmo, os
males alheios, as paixões desaforadas e as angústias, que de envolta se
eriçavam.
Os valores, que meu pai me confiara, essas
relíquias santas duma opulência desbaratada (santas, porque delas pendia a boa
fama e a segurança da minha família) iam caindo no abismo peça sobre peça, balouçadas
no fluxo e refluxo irregulares daquela aurífera onda.
Atraído primeiro por simples curiosidade, e em
seguida, como de ordinário sucede, pela esperança sedutora de farta colheita,
deixei-me depois vencer do teimoso despeito, que se origina das repetidas
perdas, e pus mais audácia no jogo até que, sem o pressentir, atingi o perigoso
termo da fascinação. E daí não há voz de raciocínio que levante o homem.
Todavia eu ainda não estava pervertido a ponto de
esquecer que não era uma moeda fria e supérflua que submetia às veleidades da
sorte. O produto das jóias de minha mãe mirava a mais nobre emprego, qual era
salvar-lhe a honra, salvando os ameaçados créditos de meu pai. Era pois a honra
e o crédito da minha família que eu estava comprometendo com repugnante
cinismo. Fazia-me cínico a demência. Estava ali fatalmente amarrado como
Prometeu ao píncaro do Cáucaso com o abutre da avareza a mergulhar as garras em
meu peito confrangido. Afeiçoara-me aos repelões duma miserável esperança.
Necessitava reaver o perdido, arriscar ainda algum ouro, lutar, estrebuchar…
Estorcendo-me no espaldar da cadeira, e arrepiando
os empastados cabelos num trejeito de oratoriano desespero, que é o mais
ridículo de todos os desesperos, pregava iracundas vistas no banqueiro,
observando de soslaio com frenesi de tonto o apoucado destroço subtraído à
voracidade das cartas, o último punhado de libras, que me restava.
Formei decisivos planos de ataque, indaguei um
apropriado sistema de jogo, erigi barreiras e castelos fortes, e coloquei-me na
brecha com o aprumo resignado de um mártir. Porém minhas maduras combinações,
meus cálculos prudentes, astúcias e determinações medidas chegaram serôdias de
mais para que medrassem. Goraram-se num abrir e fechar de mãos.
Acertou em vir por esse tempo à mesa uma carta que
me deslumbrou. Foi invencível a tentação. E concorreu a redobrar-lhe o valor a
soberana urgência de um cometimento arrojado, pois que em assaltos parciais e
moderados se tornava quase impossível a restauração dos perdidos capitais.
Esta consideração acabou de me resolver. Joguei
tudo na maldita carta. Lúcio olhou-me com sobrecenho repreensivo. Eu baixei os
olhos humilhado, pasmando da temeridade, e, na iminência do perigo,
arrependi-me sinceramente de tão precipitado lance. Mas, caso inexplicável! não
ousei retirar a parada.
Em pé, hirto, com o pescoço grotescamente
estendido, boquiaberto, abafando em suor e com a serpente da cobiça, na sua
mais sórdida expressão, enroscada na garganta, considerava tremebundo cada
carta que despontava no baralho. O receio agitava-me barbaramente o coração; e
a inteligência, escurecida, lampejava a espaços em acerbas exprobrações. Hora
aziaga!
Não há fugir à sorte. A minha estava lançada.
Perdi.
Vibrou-me aos ouvidos uma voz de tormentas,
inflamou-se em meu cérebro um clarão de desespero, caiu pesado meu punho sobre
a mesa, e meus lábios encresparam-se numa palavra obscena.
Ninguém se ofendeu, nem apiedou tão-pouco. O jogo
prosseguiu no estilo em que começara. Eu é que estava irremediavelmente
perdido.
Desorientado fui sentar-me longe dos jogadores com
a cabeça apertada nas mãos como um tendeiro falido, ou como um galã soberbo
atraiçoado em seus desfraldados afetos. As labaredas daquele inferno não há
nesses caminhos, em toda a cristandade, painel de almas penadas, que as
represente ao vivo. Quantos as terão experimentado menos abrasadoras sem ânimo
para preservar as regiões cranianas dos estragos duma bala!
Não calculo o tempo que permaneci nessa dolorosa
prostração. Despertou-me o som de uma voz, que pronunciava o meu nome com certa
acentuação sentimental. Era a voz de Lúcio.
Tinham-se dispersado os jogadores, e apenas ele,
condoído do meu abatimento, consentira em malbaratar comigo à míngua da
panaceia infalível e milagrosa, ao menos algumas estafadas palavras de
consolação.
— Mariano, diz em tom enfático, aproximando-se, não
serás tu um homem? Esmaga essa consternação que é um insulto para o teu
caráter, e mostra que sabes reconhecer que nem as pedrarias de Bornéu, nem
todas as minas do Peru compensariam uma aflição de momento. Pois quê! Tão
mudado estarás? Nos belos tempos do nosso condiscipulado… lembras-te?
memoráveis tempos! tornou-se notável o teu nome por um sem-número de
liberalidades galantes, que desfalcariam os recheados cofres dum nédio
capitalista: desdenhavas esse estúpido metal. Hoje…
— Mudaram as circunstâncias.
— Não há circunstâncias que dobrem uma boa
natureza.
— É falso. Fala em ti a felicidade, que tudo vê
retinto em seus peculiares arrebiques. A tua generosa e boa natureza, Lúcio, a
tua boa natureza é a primeira a desmentir-te, porque se altera, como se
passasse de cadinho seleto a grosseiros moldes, desde que tomas lugar a uma
mesa de jogo. De civil e cortês eis-te petulante; de liberal avaro; de probo e
justo…
— De probo e justo?
— Burlão de taverna.
— Mariano!
Quem tivesse o sangue em ebulição e o coração ao pé
da boca deparara nessa injúria com favorável ensejo para uma festejada briga de
faca em punho. Por mim estava em termos de a desejar. Lúcio porém era de fria
têmpera e ânimo reto, e nunca à primeira farpa investiu contra o adversário,
quando mesmo não fosse um amigo.
— Paciência, Lúcio! volvi, sanando a ferida. Já que
estás rico de dinheiro, consente que eu o seja ao menos de franqueza. Não me
queixo, não devo queixar-me. Percebi a tempo o engodo, podia ser cauteloso.
— Juro-te…
— Fazes mal. Cansas-te sem proveito. Surpreendi-te
nos ardis da empalmação.
— A mim! Mentes. Continuaste jogando, e terias
cessado, se fosse verdade.
— Arrastava-me uma força superior. Tinha de ser.
II
— Tinha de ser! repete Lúcio, encolhendo os ombros
com enfado. Falsa desculpa, filha do despeito, que inutilmente disparas em
abono de um procedimento repreensível como para iludir a consciência!
— Tenho por mim um argumento inabalável. Vi.
— Muito bem! O testemunho de um sentido, frequentes
vezes mentiroso, deve antepor-se ao protesto de um provado amigo! Desculpo a
alucinação. Todavia, se é certo que as cartas tomam na minha mão a docilidade
da cera, estimaria que me explicasses por que casta de prodígio levam
destroçado o meu patrimônio.
— Quem viu germinar jamais a maldita semente duma
colheita ilegítima?
— Ah! ah! Um frade sentencioso não rosnaria melhor
qualquer máxima bafienta. Está bem. Não discuto. Perdoo-te o errado juízo pelo
desvario em que te anda o espírito. Porém… mandando os arrazoados pingues de
moralidade para as celas da fradaria, vê no entretanto se descobres em mim
alguma vantagem, que te levante acima dessa lástima capaz de enternecer
estadistas e usurários.
Concebi uma ideia radiante.
— Salvas-me, Lúcio?!
— Salvar-te!
— Estou perdido.
— De perdição melodramática?
— Falo seriamente.
— Como!
— O dinheiro, esse dinheiro, que eu joguei,
representava nada menos que a honra de meu pai. Era a égide protetora destinada
a pô-lo ao abrigo duma falência aviltante.
— Oh!
— Compreendes? Renunciarei pois a outro estímulo
que te chame em meu amparo. Eu fui rude, muito rude e muito insolente contigo,
Lúcio; mas tu perdoas aos lábios o aleive com que profanaram o coração…
Perdoas, e não te recusarás a tirar-me, com um nada de sacrifício, deste leito
de urtigas, que me preparei…
Leito de urtigas! Porque não? Quem nesta era
elegante, de modas sécias, de finos atavios, de primores sem conta consentiria
numa câmara, já não digo senão modesta, o tosco leito de um bárbaro, o leito de
Procusto, sem colchão de mole plumagem, e cheio da pele de bestas ferozes
apodrecida pelos séculos? Um leito de urtigas ao menos, se lhe falta o sainete
das antigas histórias, abunda em frescura; recende novidade; desfar-se-ia sem
custo em viçosas coroas, que não iriam mal em fronte de donzelas; não é enfim
como um prato que da mesa de patrícios descambou em plebeias mesas.
Portanto, aqui sanciono a frase, e defendê-la-ei
com a afoiteza, com que se defende o motivo duma gloriosa reputação.
Isto não lho disse a ele, que seria água entornada
no patético do discurso; mas digo-o agora, entre amigos, em guisa de
parêntesis, e com donaires de quem sabe o que diz.
— Não vás esquecer que estou pobre, devolveu Lúcio;
pobre, arruinado, perseguido de credores… Recordo-to, a fim de que me não
julgues ressabiado de má vontade. Contudo não me esquivarei ao que for
compatível com os meus amesquinhados recursos. Vejamos, é grande a soma?…
— Enorme.
— Diabo!
— Enorme, mas limitada em relação ao muito que
acabas de ganhar. Dá-me o dinheiro, dá-mo; e, se me exigires como penhor a
própria liberdade, não acharei que exiges muito. Aniquilarei a dívida em
estreito prazo. Vencerei esta inércia, direi adeus aos prazeres da ociosidade,
trabalharei: ao lado de meu pai comerciante; no meu escritório advogado. E tu
sabes se me faltam cabedais, que façam jus a uma rendosa clientela! Lúcio, olha
para mim, e recusa-me o que te estou a pedir!
— Basta. Que quantia necessitas?
Disse-lho. Ele mediu-me dos pés à cabeça com
manifesto assombro. Volvidos momentos exclama, assumindo ares de cômica
gravidade:
— E não tens escrúpulos tu, que conheces a falsa
posição, em que estou colocado, não tens escrúpulos de me exigir um semelhante
desprezo de mim e das minhas coisas? Quererias abrir azo a que o quase simples
beneplácito de um meirinho, emissário detestável de más novas, fosse suficiente
para introduzir a sua alta dignidade por minha casa dentro no farejo duma gorda
penhora?
— Tens razão; murmuro eu desalentado, como ferido
na última esperança.
E, cobrindo o chapéu, dirigi-me bruscamente para a
escada. Lúcio correu em meu seguimento.
— Mariano!
— Adeus! Assusta-me o lamentoso caso, que
figuraste. Não quero em almoeda as tuas alfaias ricas.
— Escuta, criança… Sou teu amigo, e pesa-me que vás
assim com o semblante retalhado de maus presságios.
— Presságios, que não se amolecem na água chilra da
tua impertinente retórica, devolvi com repreensível rudeza.
— Quem sabe? Experimentemos…
— Não me oponho.
— Tenho um amigo…
— Sem rodeios.
— Tenho um amigo, que no breve decurso de alguns
meses me confiou somas extraordinárias sem outro título de segurança além da
minha palavra, que para a sua boa-fé é garantia mais que suficiente. Há pouco,
porém, me preveniu ele de certa crise pecuniária, que vai atravessando, e
fez-me sentir com esquisita delicadeza, bem significativa contudo…
— Entendo.
— Ora avalia se seria religioso o dever que me
impus de ser pontual no pagamento. Privar-me-ia antes de tudo, sem exclusão das
vestes que aqui me vês, do que quebrantaria a promessa, que tacitamente lhe
fiz.
— Em conclusão?
— Irei falar ao homem; contar-lhe-ei a tua
história, e, se o resolver, como cuido, a uma espera razoável, é teu o…
— O dinheiro?!
— Sim.
Lancei-me alvoroçado nos braços de Lúcio.
Abracei-o, semelhando o áspide, que se insinua brando no seio compassivo, que o
aviventa, para nele depositar a venenosa semente.
Era um abraço de Judas.
— Aceito, exclamo. É muito nobre a oferta para ser
rejeitada. Vai, então vai sem demora. Que se aplaque quanto antes esta fome de
Ugolino.
— Nada de pressas inúteis. O meu amigo vive no
povoado além da montanha, a duas léguas…
— Quem é?
— P. Vassal.
— Oh! É um nome, que vale uma redenção.
— É homem laborioso, como sabes; sem paradeiro
certo enquanto o requisitam as azáfamas do campo. Por mim não conto gabar-me de
ir dar com ele a hora tão mal escolhida. Voto que vamos refazer-nos, dormindo,
dos estragos da noite, que ao descair da tarde te prometo arvorar-me em
paladino dos teus interesses. Sou forte na diplomacia destas negociações.
Descansa. Antes da meia-noite serei contigo.
— Virás como um duende.
— Decerto, pela meia-noite.
— E hás de atravessar a montanha?
— Que remédio!
— Sem companhia?
— Certamente.
— Porém, se voltas com o dinheiro?
— Abraçar-me-ás.
— Não receias salteadores?
— Criança!
— Há-os aqui como em toda a parte. Às vezes bem
perto de nós…
— Com que ares o dizes! Há-os principalmente nos
contos à lareira, quando são destemperados do adubo do senso comum.
— O caso não é de riso.
— Deixa o caso por minha conta.
Separamo-nos.
Entrei no meu quarto cambaleante como um ébrio. E,
convulso e nervoso até ao refinamento, dirigi-me para um espelho curioso de
julgar do modo por que as nocivas impressões duma noite tormentosa transparecem
nos traços da fisionomia.
Toldou-se com a minha imagem a límpida superfície
do cristal. Inclinei-me sobre ela, observando a alteração de cada lineamento ou
parte característica com a minudência inspirada do áugure da antiguidade,
quando revolvia as entranhas quentes das vítimas para lhes arrancar segredos do
futuro.
Alguma coisa me dizia que estava ali ferretado um
terrível destino. E estava.
Na vista torva, na vincada fronte, na térrea
amarelidão da tez, no franzir dos lábios, nisso enfim, que para um estranho
poderia significar, quando muito, aturada efervescência de conhaque nos
intestinos irritados, indigestão de aguardente com seu suplemento de fumo de
mau tabaco, luxúria exausta e insônia, ou coisa assim; nisso, que, a falar
verdade, era pouco de espantar, percebia eu, não sei por que misteriosa
intuição, um como retábulo de morte, arraigado pressentimento de crimes.
III
Tremendo de frio, cruciado pela hidra invencível de
enormíssimos cuidados, atirei-me, vestido como estava, para cima do leito,
antes para refrigerar a atufada impaciência, que, crescendo de ponto, me erguia
ao apogeu das amarguras, do que para desafiar as blandícias suaves do sonífero
deus.
O sono em tais condições não passa duma quimera, de
um vão desejo.
Levei todo o dia absorto ora na pêndula, ora no
quadrante do relógio, evadindo-me a interrogações impertinentes, e repelindo os
alimentos com que a afanosa complacência de minha mãe estimulava meus
desvanecidos apetites. A noite, a noite auspiciosa e cheia de promessas de
bonança, cifrava os meus mais caros anelos.
Ela me prometia Lúcio alegre dessa alegria franca,
que é um prenúncio de boa nova.
Digo de boa nova, porque passava em provérbio a
generosidade de P. Vassal. Era ele a filantropia estreme, encadernada, de mais
a mais, em fidalga adiposidade. Lúcio não voltaria de escarcela vazia. Não,
porque seria um milagre.
Mas, que regressasse carregado como o camelo de um
nababo?
Aqui despontam novas ponderosas dificuldades.
Por que forma pagar tão avultados cabedais, fosse
qual fosse o prazo, que me concedessem para os granjear? Não era certo que, se
me não faltavam vantagens e distinções, que bem aproveitadas empreenderiam a
provável conquista de jardins de Hespérides, se lhes contrapunha todavia a
lembrança assustadora do trabalho, com o qual eu andava em rancoroso divórcio?
De meu pai que tinha a esperar?
Esmagado de desgostos, ferido de contratempos,
atraiçoado em suas relações de comércio, estrebuchava entre a bancarrota e o último bruxulear da honra
em paroxismos.
Que cautério aplicar à cancerosa pústula? Que
filtros inventar? Como despregar-me desta cruz dolorosa?
Esgotara as potências da imaginação exacerbada; e
ela, em suas malignas sugestões, só me deixava livre escolha entre puerilidades
insignificantes, e execrandas torpezas.
Neste estado de coisas, quem hesitou jamais?
Lúcio havia de atravessar a montanha, só, incauto,
velado pela escuridão da noite, vergando ao peso do dinheiro…
Que infernal ideia!
Mas quem não afronta a infâmia, para se remir dessa
outra infâmia, que o universo enojado cospe nas lívidas faces da pobreza?
Decidi. Era mortal a enfermidade. Apelava para um
remédio heróico.
Ergui-me de golpe com um plano formado. Fora
demorada a incubação, mas lograva vingar glorioso, entrajado nas vestes
amaldiçoadas do homicídio. Era um plano, cuja simples concepção valia um
opróbrio, e cuja cobarde execução não obteria nome em língua de homens.
Que me importava? Eu tinha uma ideia só a arder-me
no crânio, uma ideia fixa, um princípio de demência.
Nove horas.
Era tempo de cumprir-se a fatídica sina.
Lá fora desprendia a tempestade as borrascosas asas
pelo entenebrecido espaço. Espessa saraivada fustigava impetuosa as minhas
vidraças. O céu abrasava-se em clarões efêmeros. E a terra revolvia-se açoitada
pelos ímpetos recrudescentes de sucessivos furacões. A imobilidade sombria das
catedrais antigas, dos torreões cônicos de mourisca fábrica, dos zimbórios dos
edifícios circulares e colossais, iluminada a espaços pelas fosforescências
pálidas dos relâmpagos, dava ao espetáculo um lúgubre caráter. Dir-se-ia que o
abismo vomitara legiões de demônios, que ameaçavam este nosso acanhado canto de
mundo com um formidável torvelinho, reduzindo-o a arena de vertiginosas
coreias.
Era uma tempestade,
dessas tempestades impossíveis, sopradas a capricho para darem realce às
trágicas narrações.
O rei Lear, esse louco extraordinário e sublime,
perderia a melhor parte da sua imponente majestade sem a fúria desesperada dos
elementos, que o fulmina na floresta, arrancando-lhe espantosas invectivas
contra o mundo, contra os Infernos e contra os Céus.
Eu, que ardo por me colocar fora da órbita
ordinária, não dispensaria na mais terrível excursão da minha vida o fogo dos
raios para me alumiar o caminho, e o estourar dos trovões para sufocar o
estrépito dos meus passos.
Feitos os aprestos, que julguei necessários, saí
com a rapidez do pensamento.
Indiferente a quanto me cercava, só submerso nas
ideias pérfidas, que levedavam em meu ânimo, sem ver, sem ouvir, quase
inconsciente caminhava como um sonâmbulo. Apenas, ao passar algumas ruas, por
cima dos clamores do vendaval me estrugia aos ouvidos, de longe em longe, como
uma risada blasfema o alarido despejado da embriaguez, que transpirava do fundo
de becos fétidos e de casas de equívocas indústrias.
Mas breve toquei nas abas da montanha, onde já não
chegavam esses estouvados ruídos.
Lancei em volta de mim rápida vista, e quase me
senti enfraquecer. Achava-me completamente só, em face duma natureza agreste, debaixo
de um céu iroso, e com a alma cheia de projetos de sangue. Horrorizado de me
ver ali, tão perto do crime, tive medo de mim próprio, chegando a imaginar que
o meu corpo, este corpo que eu palpava, e que eu sentia, era propriedade de
outro dono.
Foi um momento lúcido.
Novamente endurecido, tomei por uma vereda pouco
frequentada, vadeei uma escura torrente, e perdi-me nas eriçadas penedias,
transpondo torrentes e valados, rasgando as carnes nos densos sarçais e nas
protuberâncias dos granitos sem topar com embaraços no dificultoso trânsito. As
urzes estalavam debaixo dos meus pés. Os píncaros, só acessíveis ao voo
triunfante das águias, pareciam acurvar-se humilhados em cômoros de verdura. As
escarpas dos precipícios, como os córregos dos montes, também me abriam passo
franco. E cada nova barreira a transpor, novos alentos me insuflava.
A velocidade de meus movimentos, meu vulto incitado
como pela febre duma doença vertiginosa, a cadência monótona de meus passos, e
a segurança milagrosa, com que me firmava no chão pedregoso e resvaladio,
davam-me por certo o toque fantástico de visão extravagante de um delírio, ou
de infeliz estranhamente arrebatado da ânsia tenaz de mortal hidrofobia.
Dir-me-iam levado de um turbilhão maligno, como se o gênio do mal, segundo a
decência pede que se chame ao cão tinhoso, me coadjuvasse mediante um pacto
execrável.
Um amador de legendas, que me visse passar
aureolado pela luz sinistra dos relâmpagos, jurara, invocando o Inferno, que
vira com os espantadiços olhos da cara o judeu errante. Um bardo desgrenhado e
imaginoso, livre no idear, como são livres os pintarroxos, e os melros, e os
rouxinóis da devesa, e as vozes do infinito, e os mares, sem temer conspurcar a
minha senatória gravidade e meus melindres bem entendidos, comparar-me-ia, em
virtude dessa liberdade, a um cavalo abissínio, que passa no deserto,
desdenhando oceanos de areia e ameaços do simoun.
Um sábio ou um jornalista, um homem de alma ou um agiota não se ergueriam a
menor altura.
Lembra-me o caso do Evangelho, em que o espírito
imundo, afugentado dos energúmenos pelo sagrado esconjuro de Jesus, se
catrafilou nos pobres cerdos, que se apascentavam no monte vizinho, levando-os
de roldão, pendor abaixo, até os afundar nas salgadas águas. Lembra-me, porque
a vertigem, que me arrastava, era nem mais nem menos a de um cerdo do
Evangelho, a despeito de bardos, de legendários, de sábios e tudo.
Levava na alma a blasfêmia, e na horrenda catadura
o desafio.
Que se convertesse cada folha silvestre em
reservatório de chuvas para se rasgar na minha passagem; que se esfacelasse o
globo em terremotos; que do alto caíssem raios, como transborda champanhe duma
garrafa feita estilhaços pelo expansivo impulso do licor!
As peças da minha armadura saíram temperadas de
forja nigromântica. Resistiram às iras das potências superiores como aos
turbilhões de fluidificada lava ejaculados de mil crateras.
Meu bordão de peregrino era o lustroso cano duma
clavina americana. E tinha a asa invulnerável de Satanás como seguro paládio.
IV
Parei enfim no viso dum rochedo à borda do caminho.
Uma refega do sul trouxe arrastado o som plangitivo
de um relógio. Contei dez horas.
Chegara a tempo de consumar o atentado. O diabo
esfrega a cauda de contente.
Alongara-me da cidade meia légua ao norte. Era aquele
o sítio mais agreste e temeroso da montanha.
Cruzam-se em vários sentidos pedregosos carreiros,
que aparecem e desaparecem como serpeando por entre penhascos enormes e
irregulares, os quais aparentam ameaçar a eternidade como titãs em competência
com os deuses. Algumas raras árvores, pobres de seiva e de vigor, enraizando-se
nas fendas dos fraguedos neste momento clareados pelos relâmpagos, erguem para
as nuvens os braços estéreis, ou se inclinam sobre as gargantas fundas, onde se
despenham mugidoras torrentes.
Era o império das trevas. Somente, além da luz
resultante da combinação das duas opostas eletricidades, resplandeciam ao
longe, nas aldeias, rápidos luzeiros como fosforescência de brejos.
Eu era a alma da sombria paisagem.
Em pé, no ponto culminante deste lugar sinistro
como que votado ao crime, com os cabelos flutuantes e postura feroz esteava-me
à certeira clavina, que transluzia pela abertura do meu capote.
A paisagem oferecia uma perspectiva digna do
magistral pincel de Salvador Rosa. Era sombria como a ordinária inspiração do
aventuroso companheiro de Masaniello.
Decorreu mais de meia hora. Por cima dos fragores
da borrasca ressoou então o trotar longínquo e cerrado de um cavalo.
Devia ser o cavalo que Lúcio costumava arriscar nas
digressões deste gênero.
Não podia estar distante o meu intrépido e dedicado
amigo.
A tais desoras, numa tal noite, e em tal sítio,
quem passaria senão ele?
Todos dizem que facilmente nos convencemos do que
desejamos. É certo. Assim me pareceu infalível o raciocínio.
Sem mais reflexão escondi-me na concavidade de um
penhasco.
O ruído aumentava. Já se ouvia distinto.
Armei a clavina.
E esperei acurvado, atento e vigilante como o
leopardo, quando de entre a espessura dos bambus espreita, aguçando as preias,
o desapercebido viajante.
Em transes como este não há coração diamantino, que
deixe de macerar-se nas prisões, que o reprimem.
A mão tremia-me no cano da clavina. E eu não
desejava senão vê-la paralisada, como meio de desmanchar o diabólico encanto
que, a meu pesar, me perdia.
Esperei ainda.
Começava a descobrir-se por entre as raquíticas
árvores a sombra de um cavaleiro, que veloz se aproximava do meu covil. Já
vinha perto, a tiro de espingarda.
Quanto dera eu para que a terra me tragasse,
fendendo-se em abismos, ou para que me arrancasse pelos cabelos mão caridosa a
este sangrento destino!
Estava feita a pontaria. A vida de um homem pendia
duma inspiração momentânea. Quis ainda arrostar com a sorte. Mas é forçoso que
nos conflitos entre o mal e o bem prepondere o mal, porque fui vencido.
Desfechei.
Reboou formidável a detonação de um tiro nas
quebradas e nas gargantas da cordilheira, acordando os ecos distantes, e
assanhando nos casais da encosta e nas aldeias do vale o latir confuso dos
rafeiros.
O baque de um corpo, e em seguida o nitrir
assustado do cavalo, que sem dono se precipitou no mais espesso das brenhas,
perderam-se nos ares.
Lancei-me então como um chacal sobre o cadáver.
Arranquei-lhe uma bolsa, que pelo volume e peso devia encerrar grossas
quantias, e fugi com ligeireza de gamo perseguido, num estado de espanto e de
alegria, que com mais acerto chamara desvairamento.
Apenas no meu quarto, fechei com precaução a porta,
aticei a lâmpada, e, apertando nos dedos regelados a bolsa roubada,
contemplei-a enlevado e amoroso no antegosto duma plena saciedade de dinheiro.
Nada me convenceria de que não sobrava ali cabedal
com que comprar a mais retraída virgindade. E todavia faltava-me ânimo para
desatar os enroscados cordões. Temia uma desilusão.
Como um facínora endurecido e incurável não via no
objeto das minhas alegrias o terrível documento da mais negra das perfídias.
Mas a Providência não é um sonho de poetas. Aquele suposto talismã era já um
princípio de castigo.
Despedacei afinal os cordões, certo de que da bolsa
saltariam ondas do brilhante metal, ídolo em cujo holocausto tanto sangue
humano se derrama. Pintava-me o desejo em seus exagerados coloridos as profusas
grandezas de um conto das mil e uma
noites.
Sôfrego, mergulho a mão na bolsa, como um galã
venturoso no perfumado seio da amante. Mas, como se me picara um escorpião,
retiro-a apressado e convulso.
Cobriu-se o tapete de informes moedas de cobre,
mescladas com outras de prata, raras e de pouca valia.
À semelhança dos encantados tesouros, que medram
nas lendas maravilhosas do povo, os quais, enquanto o diabo esfrega um olho, se
reduzem a carvão pela influência de invisíveis espíritos, transmutaram-se em
cobre vil as minhas almejadas riquezas!
Não soube aparar o golpe. Deu-me em cheio no
coração.
Um assassínio para obter aquilo!
Caí e rolei no pavimento como assombrado do raio.
Rugi como fera apanhada no laço. Não tive caridade comigo. Retirei da cabeça as
mãos cheias de cabelos arrancados pela ensanguentada raiz. Macerei o corpo em
evoluções de energúmeno, em esgares frenéticos, com ranger de dentes e espumar
de raiva. Quebrantado enfim lancei-me desatinado sobre o leito, e desatei num
doloroso e amargurado choro.
Fez-se o milagre da rocha de Horebe. Era um coração
de rocha que chorava.
Lembrei-me então de Lúcio, desse amigo generoso e
dedicado, que nada poupara para me curar duma tristeza, e experimentei o pungir
do remorso no seu corrosivo travor.
Ai, se eu pudesse restituir-lhe a vida, estreitá-lo
ao peito, e chorar com ele!… Matara-o. Eu, assassino?! Como acreditá-lo? Seria
sonho?… Esta cabeça, este peito, esta razão, este sentir seriam os meus? Quem
era eu? Mariano? Eu era Mariano?! Quando me conheceu alguém uma índole
perversa, uma educação irreligiosa, uma instrução descurada? Como se explica a
perpetração desse monstruoso atentado? Não, não fui, não podia ser eu o
assassino. Homem novo, de cabelos louros e virgíneos lábios, estimado dos
velhos, festejado entre os moços, e perigoso às mulheres, nobre com todos os
nobres sentimentos dos vinte anos, que havia de comum entre mim e um ímpio
celerado?
Que havia de comum?! O coral desbotara em meus
lábios ao bafo carbonizador das vulcânicas paixões de algumas horas; meus
cabelos louros, como animados de vida própria, eriçavam-se em serpentes; a
doçura de meus olhos submergia-se nas inchadas pálpebras; e as louçainhas
parisienses dos meus vestidos enxovalharam-se no lodo das encruzilhadas.
Onde estava a gentil feição da minha mocidade?
Eu! onde estava eu?!
Via-me como em visão de lanterna mágica dividido em
dois seres distintos: aqui cercado da auréola rosicler do justo, além afundado
na sórdida escuridão do réprobo; crente e feliz aqui, blasfemo e maldito acolá;
contra este movia-me severo rancor, aquele arrancava-me lágrimas de piedade.
Estes dois seres, confundiam-se, combinavam-se e
separavam-se para tornar a confundir-se como numa dança louca de feiticeiras.
Era uma visão aflitiva, que se repetia numa espécie de tresloucamento mórbido.
O estourar sobranceiro de um medonho trovão
distraiu-me do desatino em que ia fundeando. Concheguei a roupa a meu corpo
ainda molhado da chuva, e pensei compungido na existência de um Deus, que era
Pai e Misericordioso, e que me estava vendo das alturas sem misericórdia, ou
sem onipotência.
Rebentaram-me as lágrimas. O Céu porém foi
compassivo. Se me não deu uma irmã sensível, ou uma formosa amante, que
corresse a enxugar-mas, dardejou uma faísca, que, penetrando em fugaz lampejo
pelos interstícios da janela, azulejou singularmente o recinto, traçando um
sulco de fogo, que me crestou a fronte.
Crepitou a lâmpada derramando faúlhas inflamadas. E
o relógio, posto no friso do fogão, fez ouvir o surdo ruído precursor das
horas.
Ia bater meia-noite.
Mas à primeira martelada caiu a pêndula no chão com
seco estalido.
A hástia, que a suspendia, rebentara como bordão de
lira sob os dedos de um Orfeu invisível.
Acocorei-me atônito no leito. E começaram os objetos
a ganhar todas as formas e proporções, que lhes dava a minha veemente turbação.
Ora cresciam, ora diminuíam de volume. Torneavam-se em estátuas, achatavam-se
em sarcófagos, erguiam-se em pirâmides, fundiam-se em epitáfios, amontoavam-se
em ossadas. O meu estreito quarto dava o fúnebre aspecto de uma vasta cripta,
angulosa e negra, cheia dos segredos de muitas gerações.
Recrudescia a extravagância visionária, quando
rápido soam três pancadas na porta. Limpei o suor, bendizendo o socorro,
qualquer que fosse, que tanto a propósito chegava. Sem necessidade de deixar o
meu lugar, tirei dos cordões de seda, que prendiam à aldrava, e a porta
abriu-se.
Escuridão.
Os lustrosos alisares da porta constituíam como que
uma grande moldura. Era uma moldura vazia, sem painel. Mas não o foi muito
tempo. Breve se desenharam naquele fundo negro as formas fatídicas de um homem
pálido e silencioso como o herói de uma balada.
Reconheci-o, e pus-me em pé num movimento de
inexprimível assombro.
— Lúcio! grito, estendendo as mãos em ação de
repelir o fantasma.
Depois fiquei petrificado como se tivera dado de
frente com a horrenda cabeça de Medusa.
V
Lúcio conservou-se alguns poucos minutos naquela
imobilidade de rocha, como em muda e pasmada interrogação.
Depois dirigiu-se para mim, exclamando com alegria
temperada com o seu tanto de exprobrador entono:
— Que é isto, Mariano?! Recebes-me em aflitivo
sobressalto, quando me sobravam direitos a ser festejado com expansão de alma,
coração e braços abertos? Estou capaz de ir jurar que andas apostado em
fazer-me perder a tramontana.
Ouvi as palavras, mas sem lhe ligar sentido. Fiquei
inerte. Lúcio prossegue, após breve expectativa, em tom de surpresa crescente,
e não sem algum sal de ironia:
— Se tal é o salário, com que reconheces os meus
serviços, confesso que fico ainda devedor. Mas tu estás abatido! Ora vamos,
nada de desfalecimentos de menina mimosa. Um homem luta peito a peito com a
dureza de todas as adversidades conspiradas, e passa por cima delas triunfante.
Emudeceste?! Decididamente perdeste a voz. Pois juro que hei de curar-te. Trago
aqui a medicina nas algibeiras.
E fez retinir o ouro, que as prenhava.
Estremeci tocado da magia do som. Olhei-o
desvairado, e acordei então do letargo.
— Donde vens? perguntei.
— Do Inferno.
— Do Inferno!
— Está visto.
— Jesus!
— Ah! ah!
— Vai-te!…
— Que me vá! Pobre rapaz! Deliras? Que me vá! Que
pavor é esse, Mariano? Que há em mim de tão notavelmente feroz e extraordinário
que cause susto? Não sou eu o teu amigo? Não sou eu quem por ti, por tua causa,
se enovelou de bom grado na lava torrencial de abrasados torvelinhos?
— Vai-te, vai-te!
— Repeles o sacrifício depois de conduzida a rês?…
— Perdoa, Lúcio, perdoa-me. Tinha as faculdades
perdidas. Eu sou inocente. Deus sabe que sou inocente. Deus sabe da compunção
profunda com que me arrependi.
— Que dizes?
— Algum malefício me dominou. Por duas vezes quis
quebrar nas rochas a clavina para me furtar ao labéu do assassínio. Não pude.
— Que significa isso? Que estás aí a dizer,
desgraçado? brada Lúcio no fervor de atroz desconfiança, atentando só agora
para o que em mim transparecia de muito sinistro.
Senti na cara superabundância de calor. Cresci para
Lúcio, e travando-lhe o braço:
— Estás vivo! exclamei de ímpeto, não pouco corrido
da simpleza e ingênua credulidade, que ao primeiro relance manifestara,
supondo-me face a face com maravilhosa aparição.
Lúcio recuou indeciso e perplexo. Aquela minha
exclamação desvairada, e tão contrária à razão, convenceu-o totalmente de que
não era infundada a aterradora suspeita, que começara de conceber.
— Pobre amigo! murmura consternado.
Humilhou-me o dolorido lamento; e, mais que muito
envergonhado empreguei o meu empenho em lhe desvanecer o conceito, que, diga-se
a verdade, nada me lisonjeava.
— Não estranhes, disse. À tua chegada acordei de um
desagradável sonho, duma espécie de pesadelo em que te via ensanguentado, e
envolvido numa mortalha. Estava meio dormente. Tive medo. Disseste que vinhas…
— Do Inferno? Ah! ah!
— O Inferno é uma pífia imaginação. Tem a sua
existência no mundo das quimeras. Porém…
— Bem sei. Há momentos em que, sem crítica, se
aceita qualquer descarnado absurdo. Deverás de convir todavia que atravessar a
montanha ao sopro temeroso da tempestade, por entre crebras faíscas e trovões
mugidores, vale pelo menos tanto como atravessar os fumegantes domínios de
Satã, como quer que a padraria os pinte. Ora, ainda bem que aqui estou, salvo
melhor juízo, em corpo e alma.
— Chegas neste momento?
— Aviei com rapidez o negócio. Às dez horas já eu
estava à tua porta. Tinhas saído ninguém sabia para onde. É esta a terceira vez
que venho procurar-te. Por que paragens tens andado divertido?
— Eu?… Andava… Tinha lume na cabeça, fui apagá-lo
num banho de chuva.
— Jeitosa extravagância. Merece ser coroada por uma
qualquer doença mais jeitosa ainda. Aí estás tu todo molhado, segundo se me
afigura. Estás decerto. Ninguém atina como teu pai, quando assegura que nunca
te verá em maré de juízo. A propósito, ainda não veio teu pai?
— Não sei dele.
— Fui encontrá-lo alisando contas com… Adivinha.
— Em tu o declarando.
— Com o homem de mais honrada estofa, que engorda
neste globo sovina. Adivinha.
— Pelos modos…
— Quem é?
— Sou eu.
— Bem respondido, e mal acertado. Aplaudo o
humorismo, sem deixar de reprovar a presunção. O que algum sainete lhe dá é a
frouxeza ou desleixo de puro enfado com que o dizes. P. Vassal…
— Foi em casa dele que?…
— Exatamente.
— Meu pai!
— Sossega. P. Vassal é discreto.
— Meu pai! repeti entre mim alanceado por uma
terrível ideia.
— Dei-me ao diabo, continuou Lúcio, para o reduzir
a acompanhar-me. Foi malhar em ferro frio. Lobrigou aprestos de guerra nas
alturas e tornou-se inabalável, pretextando que a velhice bem como um tronco
caduco e seco provoca naturalmente a combustão, e que estava ele muito velho
para que o fogo do Céu deixasse de o cobiçar. Com esta e outras quejandas
razões de armar à hilaridade se foi deixando ficar à lareira até ver se lá nos
estados superiores descobria anúncios de paz. Eu que ardia por vir, quanto
antes, desprender-te da tortura, pus-me a caminho sem mais esperar companhia.
Travara-se dentro em mim um acérrimo conflito de
receios e opressões acima de toda a narração. Um cadáver ficara na montanha. E
esse podia ser o cadáver de meu pai!
Oh Shakespeare, empresta-me a irresistível torrente
de tuas estupendas imprecações!
Despertou-me da síncope mortal, que todo me tomara,
o som metálico do dinheiro, que Lúcio encastelava sobre o bufete.
Tão grata melodia, à semelhança das encantadas
músicas de Orfeu, animando as penhas e os arvoredos, fez estremecer vivificante
humor em meu corpo exânime.
Minhas pupilas irradiaram flamas, e minhas mãos
recurvaram-se em garras de águia.
Dei dois passos em frente, e encarei em Lúcio
ameaçador, e com ademanes de alvar provocação.
Era uma metamorfose.
Já me não lembrava meu pai.
Vivo ou morto, que importava?
Ouro! ouro! Estava o bufete refulgindo com montões
de libras. Apossei-me rudemente delas como cão invejoso, que receia lhe venham
disputar algum quinhão do objeto apreendido; e, recheando as algibeiras, olhei
de soslaio em clara desconfiança para Lúcio, que, estupeficado, nem sabia dar
crédito ao que estava vendo.
Concluída a operação respirei com desafogo, tomei o
chapéu, e fiz menção de sair.
Era sórdido aquilo.
— Mariano! clama Lúcio, que comédia me vais dar em
espetáculo? Ensandeceste?
— Talvez.
— Como justificarás semelhante desatino?
— Direi que ensandeci.
— Não mentirás.
— Pois sim, mas não malbaratemos palavras em
assuntos de ronceira esfera. Compreendes? Vou sair.
— Às mil maravilhas! E convidas-me a caminhar na
vanguarda…
— É o posto dos valentes.
— Obrigado, muito obrigado. Por essa forma se
procede com um lacaio.
— Folgo de encontrar em ti agudeza nada comum em
esconsos entendimentos. Empalideces? Há de ser de frio. Oh! o passeio é o
antídoto do frio.
— Não é de frio, é de vergonha, clama Lúcio lívido
de justa indignação, é de vergonha por ti, que me insultas, quando deveras
humilhar-te a meus pés como o mendigo aos pés do filantropo, que lhe sepulta a
fome no melhor prato da sua mesa, e o dessedenta no próprio copo, destinado às
mais generosas bebidas.
— Basta de sermão. Longe vem a Quaresma.
— Nauseias-me.
— Não duvido. Mas… pelo diabo! não me apures a
paciência.
— Basta. Ouve ao menos as cláusulas do contrato.
— Amanhã.
— É forçoso…
— Voltarás amanhã.
E fui-o empurrando para a escada, onde o deixei aniquilado, sem fio de Ariadne, que o tirasse do labirinto.
Era la hora en que acaso
Temerosas voces suenan
Informes, en que se escuchan
Tácitas pisadas huecas,
Y pavorosas fantasmas
Entre las densas tinieblas
Vagan, y aúllan los perros
Amedrentados al verlas.
como diz Espronceda ali pelo começo do seu Estudiante de Salamanca, que muito a
pelo veio de economizar à minha gasta paleta o colorido desbotado de mais uma
insulsa e fastienta descrição.
Tendo trilhado a rampa de uma rua escusa, fora-me
postar em face de uma casa de regular aspecto, cujas vidraças do superior andar
estavam ainda coradas por luz emanada de dentro. Era ali o valhacouto dos
jogadores de estrondo. Tirei da campainha, e, trocada a senha, rangeu a porta
nos duros quícios, e eu fui introduzido.
Na amplidão da sala ardia apenas um candelabro, que
descrevia limitado círculo de luz. O fumo denso dos cachimbos entenebrecia e
viciava o ambiente. Não foi sem custo que distingui feições conhecidas.
No topo da mesa notei um personagem mais que muito
misterioso. Era o banqueiro.
A gola erguida de um grosso capote escondia-lhe
meio rosto, desaparecendo totalmente a outra metade nas abas negras de um
derrubado feltro. As sombras da afumada quadra concorriam para lhe favorecer o
incógnito. E, com efeito, baldavam-se todas as curiosidades, que não havia ali
quem pudesse nomeá-lo.
Sentara-se à banca ao bater da meia-noite e nem uma
sílaba proferira. Quadruplicaram, num fulgir de relâmpago, os capitais, que
arriscara, sem que se destribasse da primitiva impassibilidade.
À minha aproximação parece que lhe fuzilaram dos olhos
dois efêmeros raios luminosos, e que lhe estalou o peito com um gemido surdo.
Se foi certo não assevero. Alguém todavia mo asseverou com espanto.
O dinheiro fornecido por Lúcio, à semelhança da
lenha, que aviventa o brasido quase apagado, exacerbou-me terrivelmente a
febre, febre do jogo, sede de mais dinheiro.
Joguei, joguei frenético, joguei com raiva, joguei
sempre. E ganhei, se não bastante para me saciar a avidez, ao menos para
excitar a minha miserável sofreguidão.
Por acaso porém, ao recolher uma opulenta soma,
rocei com a mão na mão do desconhecido banqueiro. Pareceu-me inteiriçada, sem
articulações, gelada, como a mão insensível de um finado.
Em má hora foi.
Desde então escasseou a munificência da sorte.
A roda caprichosa da fortuna como que se esmagou
contra o meu rosto, saltando fora dos esmigalhados eixos.
Fatídico contato aquele!
VI
Perdoem-me as reticências.
Que se incumbam elas de significar o que toda a
minha retórica não exporia nos rodeios e nas sinuosidades de um retesado
discurso.
As reticências têm, em repetidos casos, destes
privilégios, e não poucas vezes se ostentam prenhadas de calculada eloquência.
Oxalá que muitos oradores ilustres, principalmente
políticos, desses, que vivazes tresandam em nossas terras, soubessem dar-lhes o
devido preço, usando-as sempre que dos inchados gorgomilos quisessem ejacular
sermões portentosos. Seria uma convincente razão de tino e senso.
Ora as presentes reticências tendem a significar
que, saldas as contas, rasteei nos lamaçais da indigência como um pária
infeliz, para não dizer como Jó, que, em matéria de comparações, caiu decrépito
sob a profanação do vulgo.
Repare-se que falo ex-cathedra. Eu não pertenço ao vulgo.
Era de esperar que esta segunda cruelíssima perda,
mil vezes mais gravosa do que a primeira, me esmagasse de uma vez para sempre.
Pois não. O africano afeito ao azorrague sofre-o
quase indiferente. A alma também cria seu calo para opor ao açoite desapiedado
do infortúnio.
À maneira do arbusto delicado e exótico, que,
transplantado para um clima pobre das doçuras do seu clima nativo, se resiste
aos gelos da primeira invernia, corroborado depois, afronta incólume as mais
rudes provas, sem que haja vendaval calamitoso, que o arranque do torrão
ingrato a que se afeiçoou; eu também, fulminado por múltiplos e encontrados
azares, cada um dos quais só de si capaz de produzir mil apoplexias, de tal
jeito me familiarizara com a adversidade, que vivia nela como no fogo a
salamandra dos poetas.
Não me pungiam dores agudas. Resvalara numa
insensibilidade atônica, que moveria pena em quem me visse.
Aproxima-se o dia. A sala estava quase evacuada.
Mas eu permanecia amarrado ao poste do meu suplício.
Que rumo a seguir, que horizonte a desencantar? Que
esperanças em perspectiva? Nada. O vácuo.
Que palavra!
Enlanguescia-me esta indiferença torporosa enquanto
no extremo da mesa o misterioso banqueiro, com suma quietação e placidez
afundava nas enormes algibeiras o meu perdido dinheiro, e o dinheiro de tantos
outros miseráveis.
— Cavalheiro, lhe disse eu ao acaso, tolere que
daqui o felicite. Apesar do favor divino não alcançara mais o rei Midas em tão
curto espaço.
Não respondeu. Eu julguei ver-lhe rolar nas
pálpebras, como de pedra, dois carvões acesos.
— O possuidor, continuei acerando o motejo, o
possuidor desses graúdos cabedais injuria a sociedade se se furta a que o
reconheçam e o adulem. Neles leva um brasão de nobreza, sangue de reis, títulos
de honradez e virtude, a chave de todos os santuários, tudo. Por um impulso
tácito, mas unânime, voltamos à idolatria. O dinheiro é o ídolo. E aquele, que
o possui, acatado como um templo, como um altar. E é nos templos, sobre os
altares que recendem os incensos dos turibulários. Obtenha-se ouro, pela
infâmia, pelo crime, mas obtenha-se, e está feita a conquista do Panteão.
— Pela infâmia! pelo crime? inquiriu o desconhecido
com voz sumida, branda e quase imperceptível, que fazia relembrar o lúgubre
gemer do vento na ramagem de pinheiral longínquo.
— Sem dúvida, acudi perturbado por um arrepio
desanimador.
— Obtenha-se, embora seja com garra ensanguentada
de abutre? Pela rapina?
— Sem dúvida.
— Mesmo à custa do assassínio?
— Ainda assim.
— À custa do assassínio perpetrado à traição, no
retiro das montanhas?
Balbuciei. Ele continuou, inflexível como um
carrasco, no mesmo plangitivo tom:
— Ainda que se atire o golpe ao peito de um amigo
leal, de um?…
Era bem clara a alusão. Vinha ervada a seta. Corri
para ele, gritando:
— Quem és tu? quem és tu?!
Afastou-se alguns passos, tirou o feltro, e
derrubou a gola do grosseiro capote.
Maldição!
Era meu pai.
Não lhe vi mover os lábios, mas percebi que me
chamava parricida.
— Pai! meu pai!…
Eu estava de joelhos.
Impôs-me silêncio com afabilidade sinistra. E,
afastando as brancas melenas, retintas em sangue coagulado e negro, deixou patente
uma ferida, que se perdia no interior do crânio.
Aquela vista lastimosa fez-me vibrar ainda uma
fibra ignorada.
Espedaçava-se-me o peito com amarguradíssimos
soluços, e rebentavam-me dos olhos copiosas lágrimas de aflição acerba.
Meu pai pôs-se a rir com um rir diabólico,
repassado de agonia.
— Pobre filho! profere ele na toada gemedora de uma
dor abafada, que espontânea ressumbra, pobre filho! Não concebas lavar com
pranto o estigma do pecado. Nódoas dessas vão além da epiderme. Empestam o
sangue, e putrificam o coração. As águas purificadoras do Jordão, se nelas as
fores lavar, verás que, toldadas, hão de perder as tradicionais virtudes.
Ergue-te daí com todo o orgulho do Inferno, e ri comigo o rir doloroso do
precito. Mataste-me! Mataste-me, como a víbora, que corrói as entranhas em que
prelibou a existência, para se esconder na terra, ou andar sobre ela de rastos;
e morri impenitente, meu pobre Mariano!… O abismo! Sabes tu o que é o abismo?
Oh desgraçado! desgraçado!
E tornou a rir.
— Meu Deus!
— Deixa em paz esse nome. Deixa a tirania nas
pompas da sua imensidade, e não a invoques embalde. Que há de comum entre o
Supremo Monarca e o cão, que falece no esterquilínio das ruas? Sê tu o teu
deus, implora às forças da tua vontade, e sê imenso ao menos no orgulho.
Cortou-lhe a palavra um suspiro espedaçado, que o
fez tremer como treme fustigada do vento uma corda frouxa de alaúde.
E, encolhendo-se nas vestes enlameadas e
descompostas, continuou em tom cada vez mais mavioso, mais subtil, mais
esmorecido e lúgubre: dir-se-ia pranteio, como que de moira cativa e amorosa,
refletido das brisas nas folhas secas do Outono:
— Meu pobre filho! Mariano! Adeus! Ouço o canto
matutino dos galos. A luz branca do dia não a sofrem meus olhos. Tenho sono.
São horas de repouso. Adeus!
Caminhou para a porta estonteado e sonolento. Mas
parou no limiar, levando as mãos às algibeiras e circunvagando com a vista
desconfiada e receosa.
— Insensato! murmura. Esquecia que no escuro de
cada arcada, nos alpendres de cada praça, atrás de cada tronco de árvore pode
acoitar-se um ladrão. Expor-me a ser roubado! Não, não quero que me privem do
meu dinheiro. Ganhei-o. É meu. Mariano, filho, não me deixes ir só.
Acompanha-me, Mariano…
Renuncio a explicar a reação estranha, que se
operou em mim. O certo é que o escutei com ardor e brios renascentes, e me
aprestei a segui-lo com o desafogo com que Don
Felix de Montemar, esse terrível Don Juan de Espronceda, segue o fantasma
da desdichada Elvira.
Caminhamos em silêncio. Escorregavam-nos os pés nas
lajes lamacentas das calçadas, e vertiam as goteiras sobre nós os restos da
chuva dispersa nos telhados.
Meu pai ia adiante. Eu seguia-o de perto.
Breve nos embargou o passo a fachada secular de um
templo. Árabe de origem, tivera o seu esplendor aquele templo. Cosido em ouro,
farto de telas cintilantes fora forçoso, para que satisfizesse à rígida nudez
do ascetismo cristão, que todos seus luxuosos adornos se relegassem para os
refeitórios humildes de algum humilde convento. Os conventos, eternamente zelosos
em fazer purificações, tomaram sobre si a piedosa tarefa. E, graças a seus
pastorais cuidados, a esplêndida mesquita arvorou-se em magreza de tísico.
Exultaram as harpias. Mas firme, nobre em sua nobreza primeva, lá ficou a nua
arquitetura a apregoar passadas glórias.
Tal o templo em cuja fachada defrontamos.
Meu pai avançou para o portão frontal, que a um
ligeiro toque de mão se abriu mansamente. Tínhamos patente o santuário. Entramos.
No meio estava um ataúde. Alguns brandões acesos o
cercavam. À luz frouxa e baça, que despediam, desmaiada pelos alvores da manhã,
amarelecia a imagem macerada de um Cristo de tamanho natural, suspenso, no
altar vizinho, de um madeiro informe. Dubiamente esclarecidos, quase na
penumbra, divisavam-se vários santos, majestosos em seus nichos de pedra.
Quanto flutuava de indeciso e de vago, debaixo dos revérberos pálidos das luzes
mortiças, tendia a dobrar o místico terror, o respeito religioso, que de mim,
mesquinho, se apossava.
O ataúde estava vazio. Este reparo final, não sei
porquê, paralisou-me de todo.
A razão vacilava. A imaginação inflamava-se. E não
dava acordo de mim, não compreendia como ousara seguir a aventura, como
permanecia colado ao pavimento, como não fugia.
Ainda desta vez duvidei se o meu corpo pertenceria
a outro dono.
— Mariano, diz meu pai na sua melopeia lacrimosa,
já não preciso de ti. Há muito cantaram os galos. Tenho sono. Vai-te.
Osculou-me.
Senti na cara os seus lábios, frios como a lâmina
de um punhal.
— Filho! continua brandamente entre suspiros, meu
pobre filho! Que sono! que sono!
Entorpecido foi estender-se no ataúde, conchegou a
si friolento as humildes roupagens, cruzou as mãos na altura do peito, cerrou
as pálpebras e… adormeceu.
Ao mesmo tempo uma ave negra, negra como um carvão
das cozinhas do Inferno, ou como a trança do meu bem, que tanto vale, baixando
do capitel de uma coluna, veio estender as ebâneas asas sobre ele, e,
sacudindo-as com violência e estrépito, apagou os círios, despedindo um grasnar
agoureiro.
VII
O terror passara subitâneo ao refinamento.
Fervem nas auras zumbidos ominosos. Ergue-se de
envolta ao ataúde crassa poeira ardente, que flutua fúlgida, e tênue se dilata.
E em seus nichos intumescem as imagens dos santos, solfejando com as bocas de
pedra, ou de madeiro, cantos eróticos de loucura e ebriedade.
Uma onda tenebrosa me circunda, me enrodilha, torce
e arrasta num rodopio sufocador. Quero firmar-me aprumado, rolo, estrebucho
como o náufrago na agonia, até que alcanço um ponto de apoio, e fujo, expondo à
fúria dos ventos os arrepiados cabelos, e enchendo o espaço de gritos guturais
e entrecortados.
Como favorecido pelas asas do fugaz Mercúrio não
percebia a dureza do solo. Diria que uma coluna de fogo me arrebatava para os
domínios do éter.
E o cântico erótico das imagens do templo, mugindo
sempre a meus ouvidos em mística consonância, era como o formidável estrugir da
trombeta final.
Insano, dobrava então o vigor do curso. Mas quanto
mais fugia, mais me perseguia o nefando coro.
De repente paro esmagado num círculo de ferro.
Ergue-se um brado soluçante e comprimido. Vozes confusas troavam de cada lado.
Olhei.
Caíam sobre mim os raios tisnadores de um sol
brilhante. Estava no zênite o Sol. De todas as partes acelerada se ajuntava a
populaça. Alguns homens, não poucos, cheios de suor e de cansaço reprimiam-me
nos braços atléticos.
Entre esses homens descobri minha mãe, que
desalinhada e lacrimosa clamava, estorcendo os braços em veemente dor:
— Louco! louco!
Cravei nela os olhos estupefato.
Aquele brado de uma aflição de mãe arrefeceu-me até
à ponta dos cabelos.
Tentei refletir, mas faltaram-me ideias. Tentei
recordar, mas não tive memória. O que eu tinha era o vácuo na cabeça. Porém,
não sei como, compenetrei-me da medonha verdade.
Envergonhado, quis furtar-me às vistas dos
curiosos. E só nesse instante reparei que estava nu.
Eu! Nu, de dia, numa praça pública?! Como
acreditá-lo?
Estava nu. Mas trazia pendente dos ombros a coberta
esfarrapada do meu leito, como um manto real.
— Louco! louco! repeti então num choro colérico de
desespero atroz.
E, espumando de raiva, rolei de chofre exânime nos
braços, que me prendiam.
— Lúcio! foi a minha primeira exclamação ao volver
à existência.
— Onde estou eu? foi a minha primeira pergunta.
Lúcio, de pé à cabeceira da minha cama, estava embevecido
em minuciosa análise. Parecia determinado a não perder uma só das fases por que
ia passando a doença, nem algum novo sintoma, que acaso se revelasse.
— Desconheço esta casa. Onde estamos? prossegui.
— Em Nápoles.
— Nápoles!
— Justamente.
— Como assim!
— Mandou-te de viagem a medicina. Eu é que tracei a
norma.
— Fizeste bem. Mas tu?…
— Carecias desvelos e cuidados especiais.
Ofereci-me para enfermeiro.
Apertei-lhe a mão em silêncio.
— Há muito que estamos em Itália?
— Vai para três meses.
— Seriamente?! Que enfermidade! Diria que acabo de
despertar de um sono aligeirado.
— Como te sentes?
— Débil…
— Mais nada?
— Achas pouco? Em Nápoles! É pouco estar em Nápoles
entrevado sem ver o céu azul, a terra esmaltada, soberbas mulheres, o feliz lazzaroni!…
— Basta por enquanto.
— O lazzaroni!
Eu adoro o lazzaroni. Estou daqui a
vê-lo estendido no cais, dormindo sob os raios perpendiculares deste sol da
Itália. E eu, aboborado nesta enxerga, sem poder imitá-lo, sem poder privar com
ele sobre a luzente areia da praia numa volta de qualquer dança graciosa. É
pouco, isto!
— Basta, basta. Mais parcimônia na loquela. Basta
de excesso. É mister que se não arrisque em leviandades o esmero solícito com
que a ciência tem esgotado os seus recursos.
Foi rápida a convalescença.
Tarde, bem tarde já, de regresso ao país, quando me
supunham plenamente equilibradas as faculdades, é que relembrei, por forma
indistinta e obscura, os acontecimentos atrás bosquejados.
Refletiam-se na memória como reminiscências
desbotadas e imperfeitas dos contos da infância.
Tinha a certeza de que algum caso estranho
promovera aquela apreensão, mas não marcava a raia em que acabava a realidade
para começar o sonho.
Todavia, em meu abono o digo, inclinava-me a crer
que o maravilhoso estava antes no tresmalhar do espírito, do que na verdade dos
fatos.
Esta nossa natureza, indefinida como é, apresenta
sem dúvida muitas vezes fenômenos de tal quilate, fenômenos tais, que nem
admira escapem pela malha estreita, que porventura lhes lancem a sábia psicologia
e a acurada fisiologia. Quando elas porém, cada qual sobre si, ou mutuamente
favorecidas, renunciam a reduzir o fato inverossímil e insensato à
transparência do cristal, à lucidez com que a óptica explica os seus espectros,
pede a prudência que logo o rejeitemos para não aceitar alguma cousa, que
importe aberração de leis, chamadas invariáveis e eternas.
Esta consideração determinou-me favoravelmente.
Contudo não me eximi a que essas recordações me
abatessem num recolhimento cismador e doloroso, que assaz dava que cuidar ao
meu infatigável companheiro.
Encostado à amurada do navio, que nos conduzia ao
lar de nossas famílias, e, com os olhos submersos nas tranquilas águas do
Mediterrâneo, esquecia horas sem conta naquela íntima cogitação. Ali, na
lanterna mágica da fantasia, evocava as névoas do passado, que transpareciam
como num sudário imenso.
Lúcio contemplava-me de longe com tristeza.
Amofinado afinal de tão obstinada reconcentração
veio postar-se a meu lado.
— Em que meditas, Mariano? perguntou com azedume
mal disfarçado.
— Que sei eu? Dou alforria à imaginação, e deixo-a
desfraldar pelas regiões do nada.
— Não sabes tu que, sobretudo, deves cuidar em
distrair-te? A tua saúde, se bem que esperançosa, é ainda muito delicada.
— Que me importa?
— Que te importa! Tens desapego à existência?
— Indiferentista.
— Algum desgosto secreto…
— Talvez.
— Venha a revelação.
— Não vale a pena. Pechas!
— Pechas? É vago de mais.
— Há pontos escuros na minha história.
— Aclaremo-los.
— Duvido.
— Por quê?
— Se o intento, parece que escorrego em sangue.
— Valha-te Deus! Porque não buscas distrair-te? Aí
voltas à ideia constante dos teus delírios. Remove para longe esses
pensamentos, que te prejudicam, e faz por te conservar, ao menos para tua mãe,
que agora espera reflorir na alegria, há tanto tempo perdida. És novo, e
brevemente vigoroso…
— Muito bem, amigo. Não preciso alentos. Viste
pairar no meu arrazoado ainda assomos de demência, e viste mal. Perdoa. Estou
em ótimas disposições.
— E quem o pôs em dúvida?
— Deixemos isso. E, já que chegamos a este ponto,
desejo que me desfaças uma incerteza.
— Às tuas ordens.
— Cautela, que vou submeter-te a um interrogatório.
— Estou pronto.
— Eu figuro de réu, autor e juiz. A ti ficam-te as
honras de testemunha. Bem. Responde com precisão e clareza franca. Conheceste
algum dia em mim paixões brutais, tendências malévolas, falta de humanidade, e
sobretudo sórdida avareza?
— Oh! oh! Onde queres chegar?
— Responde.
— Que queres que eu responda?
— A verdade.
— Fá-lo-ei com uma pergunta. Quando te faltou a
minha amizade? Quando te desprezei?
— Nunca.
— Aí está a resposta. Lúcio nunca estimou um
miserável.
— Obrigado.
Logo prossegui:
— Pois eu nunca fui jogador?
— Jogar é um vício, e não uma abjeção.
— Nunca me viste jogar, Lúcio?
— Não te recordas?
— Dubiamente.
— Jogar!… Só uma noite…
— Perdi punhados de ouro?
— Perdeste.
— Eras tu o banqueiro!
— Era.
Eu ia-me acalorando. Continuei com fervor e
impaciência:
— Tudo me ganhaste…
— Folgo que te vá acudindo a memória.
— Depois, para me suspenderes na ourela do abismo,
emprestaste-me todo o dinheiro, que eu esfaimado te pedi.
— Isso mesmo.
— O teu credor P. Vassal…
— Foi quem me valeu.
— Tiveste de atravessar a montanha por uma noite…
— Que noite! Ainda sinto calafrios. O céu era um
incêndio e a terra um mar. Fui decerto muito corajoso.
— Meu Deus! meu Deus! exclamei, ferindo a fronte
uma e muitas vezes com os punhos cerrados.
— Mariano!
— Oh, então não foi um sonho!
— Mariano!
— Horrível!
— Mariano! Que tens tu, Mariano?!
— Nada. Esse dinheiro?…
— Já me foi embolsado.
— Por quem?
— Por tua mãe.
— Pobre mãe! Como conseguiria?…
— Como? Com tão sólido e acrescentado rendimento
quem melhor poderia fazê-lo?
— E a bancarrota?
— Que bancarrota, ou que tontura é essa?
— Pois não faliu a casa comercial de meu pai?!
— Que dizes! Que firma há naquela praça mais
acreditada do que?…
— É espantoso! E meu pai soube?…
Aqui Lúcio mostrou-se embaraçado, e, iludindo a
resposta, deu outra direção à conversa.
Se bem que sobressaltado fui acalentando, no
restante da viagem, animadora esperança.
Minha mãe, com numeroso séquito de toda a parentela
e muitos amigos, veio receber-me ao desembarque.
— Meu pai? perguntei, passados os primeiros
transportes, espantado de o não ver na comitiva.
Os olhos de minha mãe marejaram-se de lágrimas.
Tive medo de a adivinhar.
— Meu pai? insisti sufocado. Onde está meu pai?
— Ainda não sabe! Ainda to não disse o teu amigo?…
balbucia ela, estreitando-me num abraço longo e dolorido.
Notei que Lúcio lhe fazia gestos de inteligência a
que ela não atendia.
— Morreu? perguntei.
— Mataram-no.
— Morto!
— Foi cercada de mistério aquela morte, filho! Não
se elucidou a causa, nem se conhece o assassino. Encontraram o cadáver na
montanha. Tinha o crânio despedaçado por uma bala. O cavalo, que o conduzira,
apareceu selado na cavalariça coberto de lama, de espuma e de suor.
— Oh! Então…
— Filho! filho!… Acudam, que desmaia o meu filho!
— Então não foi um sonho, murmurei. Eu sou um
celerado.
Lúcio apressou-se a amparar-me, vituperando com
aspereza a imprudência de uma revelação tão séria para a qual de modo algum eu
estava preparado.
Nunca ninguém mais me viu sorrir.
A saturnal e o jogo tornaram-se uma necessidade da
minha existência. O jogo sobretudo. Era um monstro, que eu alimentava com
dinheiro.
E hoje, senhores, a esta mesa, em volta da qual vos
agrupais para ouvir a nefanda história, bem vistes se aniquilei a última
mesquinha mealha do meu patrimônio.
Sou um mendigo.
Minha mulher e meus inocentes filhinhos morrerão à
fome, porque não descerá do alto o maná dos israelitas, e porque a caridade, se
aparecesse na terra, seria para lhes insultar a pobreza.
Minha mulher! Pasmais com certeza de que o homem
corrompido a não jogue numa carta. Supondes-me talvez ainda alguns vislumbres
de virtude. Enganais-vos.
Não a jogo, porque apenas tem uma alma de santa e
um corpo de divina formosura. Que agiota moderno ousara lançar sobre mercadoria
tão sujeita a deturpar-se? É moeda fina, pura, estreme, sem liga, que a
preserve da ação do tempo. E, sem esta última condição, não circulará na praça.
Que morra, que morra com meus filhos. Assim a
recompenso dos bálsamos, que me verteu nas feridas; das sedes corrosivas, que
me apagou; dos refrigérios com que me regalou na avidez do deserto, em que
vagabundo errei.
Amou-me muito. E fez daquele amor uma coroa de
martírios. Mísera!
Bem vejo que me encarais com magoado assombro.
Agradeço-vos a atenção.
A minha história é como o canto do gaulês
guerreiro, quando, sobre a pira inflamada, junto à penha druídica, fazia, aos
deuses do seu povo, religiosa oblata duma rude existência.
***
Calou-se.
Os jogadores entreolharam-se em silêncio. Muito
dizia aquele silêncio.
— E agora? pergunta o mais estouvado e lesto de
entre eles.
— Foi o navio a pique. Mas ficou uma tábua em que
me equilibro à flor das águas.
— Onde está?
— Minhas pistolas.
— Pois quê!
— Não faltam encruzilhadas, e, graças a Deus!
também não faltam viajantes.
— Certamente. Mas cada um dos caminhos da
encruzilhada, qualquer que seja sua direção, há de encontrá-lo obstruído por um
cadafalso.
— Resta o suicídio.
— É sensabor.
— Mas lógico. Quem uma vez se deixou cegar de
paixões violentas, e não teve ânimo para lhes esterilizar os efeitos, cedo ou
tarde tropeçará nos acerados gumes do dilema implacável, que oferece de um lado
a ignomínia da forca, e do outro a covardia do suicídio.
Assim, em guisa de sermão de abade das dúzias,
termina a lengalenga.
Porque Fedro, Esopo e La Fontaine terminavam pela moralidade.
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