3/17/2022

A boa lua (Conto), de Júlia Lopes de Almeida

 


A boa lua 

O milho caia em granulações de ouro, por entre os dedos rugosos, curtos, cor de fumo seco, do velho Samé. 

Os bisnetos riam-se às escâncaras, acompanhando o andar vacilante do bisavô, que mal arrastava os pés doentes sobre os laivos azinhavrados do chão úmido. Chovera, e o campo abria-se por ali fora, nu, só com uns velhos tocos de madeira podre, onde zumbiam abe-lhas e despontavam róseas orelhas-de-pau para lhes ouvir a música. 

O tio Samé fizera cem anos pelo S. Miguel; dera de enfraquecer, pelos últimos tempos; estava a acabar todos os dias. 

Nos seus olhinhos garços já se havia a névoa da idiotia, a ausência da alma, que se lhe desprendia do corpo aos pedaços. 

Caíam-lhe falripas brancas, ásperas e lisas, como pálida moldura às carquilhas do seu rostinho sumido, de maxilas salientes e pele azeitonada. Todo ele era miúdo e enrugado. O pobre tinha perdido a fé e a memória das coisas, menos do tempo das sementeiras e das colheitas. Contava as luas, sabia de cor o calendário. Não atinava com os nomes dos netos nem da criançada. Confundia todos: já nem sabia o número dos filhos nem a graça da sua defunta mulher, que o fora por longuíssimos anos, nem mesmo saberia responder pelo seu nome – Samuel, que lhe valera o doce apelido de Samé; contudo, aconselhava do seu canto quando se devia cortar a mandioca, bater o arroz, colher o feijão ou a batata, e o seu aviso era ouvido como de sábio, seguido como de Deus! 

Inda assim, se morria alguma criança em casa, a mãe, desesperada, ressumava rancor contra esse velho, teimoso em viver e que bem poderia ter-se ido embora, em lugar do filhinho inocente. E nesses dias a comida era-lhe atirada como a um cão intruso, sem direito ao carinho de ninguém. 

Com cem anos e cinco meses, ainda o Samé quis ajudar numa sementeira de milho. A lua era boa, grossas carradas haveriam de ranger por ali, atulhadas de espigas maduras, secas, aos montões. 

Os netos enchiam a roça de barulho; uma gralhada! Ele media os passos, silencioso; de tempos a tempos entreabria os dedos e os grãos de milho caiam, um a um, como contas de um rosário de ouro partido por um santinho velho, das antigas lendas. 

E foi andando assim, devagar, devagar, com as pernas em tesoura, os pés cada vez mais inchados, o olhar embebido no sol, que abria no fundo horizonte um enorme meio círculo vermelho. 

Os netos cantavam alto, os bisnetos riam ao longe, ruidosamente; e aquela bulha era para ele como a do vento que passasse, arrastando folhas mortas, varrendo caminhos, abrindo ramadas, carregando sementes e fecundando a terra. Sorria o velhinho para o sol poente como a um amigo velho de quem se despedisse com um afago, quando os pés já dormentes lhe negaram outras passadas e ele caiu para a frente, sobre o peito chato. 

Não lhe doeu a queda; a terra estava fofa, a carne amortecida; teve uma tontura, sumiu-se lhe tudo da lembrança; mas pouco a pouco voltou-lhe a ação e procurou levantar-se, tateando um velho tronco negro, cavernoso, que ali estava em frente, roído de bichos, mal ligado à terra. 

Tio Samé não conseguiu mover-se, mas reparou que irrompia daquela ruína um galhito verde e tenro, macio ao tato, doce à vista, e quedou-se a olhá-lo espantado, com a boca aberta, a baba em fio, as falripas brancas caídas sobre as largas orelhas. 

Julgara aquela árvore morta havia muito, e num relance fugitivo invejou as coisas que duram longo tempo, ou que não morrem nunca, como aquele sol vermelho sempre quente e aquele tronco que nas suas fibras despedaçadas ainda encontrava seiva para novas gerações! E o tio Samé beijou a terra, o seu único amor verdadeiro, beijou-a uma, duas, muitas vezes, com os braços abertos, as unhas fincadas no chão. 

– Bisavô morreu! Gritaram de longe; e vieram buscá-lo ao colo, como uma criança. 

Levaram-no para dentro, afirmando que ele estava no fim. Uma neta fez-lhe a cama de limpo, outra vazou-lhe o caldo pela boca, alagando-lhe o peito, com impaciência. A nora acendeu o oratório e baixou da parede o crucifixo de ébano. 

Samé passeava os seus olhinhos de cem anos por tudo, como a perguntar – para quê? 

Estavam feitos os preparativos para a morte. 

Quando ela entrasse encontraria chamas de velas, toalhas de crivo, ramos de flores, imagens de santos e uma alma abençoada pelo padre, que um dos bisnetos fora chamar à pressa. 

O padre veio e perguntando ao Samuel pelos seus pecados, ou-viu em resposta que as sementes germinariam depressa, porque a terra estava úmida e o sol ardente... 

Riram-se uns, sorriam outros. O padre afastou-os e tornando à cabeceira do velhinho, disse-lhe: 

– Todo homem vive sujeito à tentação do inimigo; confessa sem pejo os teus pecados! 

Samuel respondeu, sorrindo, que a lua ia ser propícia: os pescadores fariam boas pescas, os agricultores ótimas colheitas. A estação seria favorável aos pobres. 

Caiu a absolvição sobre a cabeça branca do velho. 

Filhos e netos rezaram uma ladainha arrastada e tristonha. Samé ouvia aquele ruído sem determinar-lhe o sentido, como se fora o de vento passando à noite fora das portas de sua casinha rústica. Depois da ladainha a ceia, depois da ceia o sono, – todos adormeceram; só o tio Samé ficou abrindo para a lamparina os seus olhinhos de cem anos e foi assim que ele viu uma sombra esguia, longa, desenrolar-se das traves do teto e descer devagar, devagar, pela parede fronteira, sem barulho, com a cautela de um assassino... 

Tio Samé tremeu. Uma das netas dormia ali mesmo, no chão, com o seio nu, os braços nus, o queixo erguido, a garganta bem iluminada. A cobra desceu e sumiu-se entre os lençóis, sem nem mesmo fazer rumor na esteira... Samé abanava os braços, mudo, inerte e espavorido, até que a rapariga, sacudida por uma convulsão tremenda, gritou alto, e o réptil fugiu, cascalhando, pela parede acima... 

Na manhã seguinte morria a neta do velho Samé; mas ele ficou ainda, movendo os dedos trêmulos sobre o lençol branco, no gesto de semear a terra e aproveitar a boa lua...

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