Chico Mendes e a velha da foice
Era uma ensolarada tarde de sexta-feira
quando Chico Mendes anunciou à mulher que iria ainda naquele dia à sua fazenda.
— Dê cá minha capa, que vem chuva
grossa aí...
— Mas homem de Deus, deixe pra ir
amanhã, que o tempo até lá já vai tá bom.
— Isso não! Preciso resolver o negócio
das vacas, e tem que ser ainda hoje.
Dizendo isto, tomou de seu velho roupão
preto num dos braços e seguiu a passos ligeiros para seu destino. Naquele
momento, o céu, que até então estava tomado pelo brilho ofuscante do sol, aos
poucos assumia um aspecto carregado e fúnebre. É que ao longe, o horizonte,
pejado de nuvens negras e túmidas, anunciava a iminente chegada de uma forte
trovoada.
Este aspecto tenebroso do tempo aliado
a rajadas de relâmpagos e ao reboar de trovões ao longe, fez com que Chico
Mendes apressasse ainda mais a caminhada. Logo, porém, caiu em si que seria
impossível alcançar a roça antes da precipitação da chuva. Então se cobriu todo
com a capa e entrou pelo mato próximo em busca de algum lugar onde pudesse se
abrigar da tempestade.
Quando já os primeiros pingos d'água
molharam-lhe a fronte suada, olhou ao redor de si e vislumbrou ao longe uma
pontinha de luz que tremulava numa velha e desconhecida choupana. Posto que
nunca tivesse notado ali aquela tosca habitação, ainda assim deu graças aos
céus por tão oportuna providência. Então correu depressa até lá, batendo
precipitadamente na porta.
— Ô de casa! — gritou alto. — Tem
alguém aí?
— Pode entrar, está aberta! — respondeu
uma voz, que indicava ser de uma mulher idosa.
Quando a porta abriu, ele deu de cara
com uma velhinha aparentando uns cem anos de idade, a qual se encontrava
encostada numa das paredes e segurava na mão esquerda uma foice pontuda, tendo
ainda pousado sob um dos ombros uma ave preta semelhante ao urubu.
Aquela figura grotesca, cujo rosto
disforme parecia rir pelos cantos da boca, causou-lhe um arrepio frio por toda
a espinha, e por alguns instantes sentiu como se estivesse sendo atraído para
junto dela contra sua própria vontade. Confuso, esforçou-se por se manter
sereno e lhe tomou a bênção.
— Chegou bem na hora! — disse a anciã,
sustando uma gargalhada longa e estrondosa.
— Na hora? — indagou ele, todo imerso
num emaranhado de sentidos, mesclados de reverência e pavor.
— Há cinquenta anos, cinquenta longos
anos que o aguardo ansiosamente bem aqui — acrescentou a velha, cujos olhos pareciam
agora reluzir como dois fachos de luz vermelha.
— Não entendo a senhora. O que quer
dizer com todas essas palavras?
— Ah, então não me reconhece, ingrato?
Não se lembra mais do meu nome?
— Desconheço completamente uma e outra
coisa — objetou Chico Mendes, firmando na velha um olhar vacilante. — Já estou
nos meus cinquenta anos de idade, e afianço à senhora que jamais a vi, nem aqui
nem em qualquer outro lugar deste mundão de Deus.
— Pois saiba — disse a velha,
tocando-lhe com os dedos secos na testa — que sou a Morte e este encontro foi
marcado desde o dia em que você nasceu. Não se recorda?
Neste momento um relâmpago rasgou o céu
de alto a baixo, e um trovão fez estremecer o velho casebre.
A velha então se aproximou dele e lhe
soprou no rosto um bafo aromático, que exalava uma mistura de alfazema e
canela.
— Pois bem! — continuou a velha. — Vejo
que ainda não está preparado. Como tem sido um bom homem, dou a você mais
trinta e quatro anos a partir deste dia e hora. Nem um minuto a mais.
Ditas estas palavras, a velha
arremessou para longe sua foice e, tomando a forma da ave negra, desapareceu
nos ares entre relâmpagos e trovões.
Enquanto isso, lá embaixo, Chico Mendes
perdeu os sentidos, e esteve fora de si durante o resto da noite. Quando
acordou já se achou em casa ao lado de sua companheira Zizinha, que naquele
instante pitava com muito gosto o seu saboroso cachimbo.
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